06 abril 2009

"O Feminismo na Música": 'fast food' nas manhãs de domingo



Terminada a excelente série "A Herança de Atena", da autoria de Ana Mântua e João Chambers, fiquei na expectativa do que se seguiria no "Caleidoscópio" dominical. Como de costume, programei o telemóvel para as 8:55 e, logo que o toque polifónico soou, liguei a hi-fi sintonizando o rádio na Antena 2 (estava na RR onde ouvira na véspera o "Sete Mares", de Luís Salgueiro). Depois da Judite Lima fechar as portas do seu "Os Nós e os Laços" e do subsequente bloco de 'jingles' e 'spots' promocionais (não haverá maneira de nos pouparem a esta praga?), aparece um novo genérico de programa em que se anuncia "O Feminismo na Música", por Margarida Prates. Apesar do nome da autora nada me dizer, o título desde logo despertou a minha atenção, não por ter qualquer preconceito contra o movimento feminista, iniciando pelas sufragistas inglesas nos inícios do séc. XX, mas pela curiosidade intelectual em conhecer, de forma mais aprofundada e sistemática, as relações existentes entre esse movimento e a música. Mas quando a autora começa por se debruçar sobre obras medievais de canto gregoriano centradas na figura da Virgem Maria, logo deduzi que o âmbito do programa não era o feminismo na música ou as compositoras feministas mas uma coisa bem diferente: "a mulher na música" e/ou "mulheres compositoras", ideia que com o desenrolar do programa acabei por confirmar. Por conseguinte, o título adequado para o programa deveria ser "A Mulher na Música" ou "O Feminino na Música" e não o redutor e equívoco "O Feminismo na Música". Feito o devido reparo ao título, devo dizer que a abordagem da "História da Música", tendo como motivo condutor o elemento feminino, até era, à partida, uma óptima ideia por permitir analisar a criação musical ao longo dos séculos numa perspectiva diferente e com certeza muito interessante. O grande problema é que a concretização da ideia se revelou um completo desastre, tanto no conteúdo como na forma: tudo tratado pela rama, sem a menor profundidade e, ainda por cima, com uma apresentação desorganizada e perfeitamente pedante, fazendo-me recordar outra série de má memória no mesmo "Caleidoscópio", intitulada "Haendel de A a T". Para ilustrar a prosa exígua e de reles recorte, a roçar o simplório (como se os ouvintes da Antena 2 não passassem de uma cambada de trogloditas ignaros), a receita escolhida foi uma imensa caldeirada de estilos, épocas e compositores: Canto gregoriano; Afonso X, o Sábio (cantigas de Santa Maria); Henry Purcell ("Ode a Santa Cecília"); Johann Sebastian Bach ("Magnificat"); Fanny Mendelssohn; Clara Schumann; Sergei Rachmaninov; Giacomo Puccini ("Soror Angélica"); Benjamin Britten; Cláudio Carneyro ("Senhora do Almortão"); cancioneiro alentejano (cântico mariano por um coro feminino). Tudo isto servido, como facilmente se advinha, sob a forma de trechos de três a quatro minutos (às vezes menos), deixando transparecer a ideia de que não se estava ali para proporcionar aos ouvintes a fruição das obras nem sequer para lhes aguçar o gosto pelas mesmas; a função da música naquele programa – foi essa a nítida sensação com que fiquei – era meramente ilustrativa, quais desenhos em livros infantis. Só que ao contrário das narrativas para crianças, neste caso não havia uma história que ajudasse a mitigar a frustração causada por aquela sucessão de "coitos interrompidos". E já que aludi à literatura infantil que tem o objectivo de fomentar o gosto pela leitura e, simultaneamente, ajudar as crianças a dominar escorreitamente a língua portuguesa, aproveito para apontar um erro gramatical perfeitamente infantil que ouvi da boca da senhora Margarida Prates: «continuaram sempre a haver artistas». Acontece que não é "continuaram" mas "continuou". Eu não sou linguista e também dou os meus pontapés na gramática (agradeço desde já os reparos que entenderem por bem fazer-me), mas numa rádio vocacionada para a cultura tais erros não são admissíveis. Tais calinadas não existiriam (ou seriam raras) se a Antena 2 se regesse por um critério sério e rigoroso na avaliação da competência científica e cultural das pessoas que com ela se propõem colaborar. Já agora, acrescente-se que as deficiências de ordem cultural de Margarida Prates (na foto) não se ficam pela gramática: a geografia também parece não ser um dos seus pontos fortes. Para os devidos efeitos, dá-se aqui conta de uma clamorosa asneira. Depois de ter falado da alemã Clara Schumann, a senhora Margarida Prates anunciou que ia mais para norte. Ora como os países que se situam a norte da Alemanha são a Dinamarca, a Noruega e a Suécia eu julguei que me ia revelar uma compositora escandinava ou então dar a ouvir uma obra de um compositor da mesma área geográfica (Carl Nielsen ou Grieg, por exemplo) versando uma figura feminina. Mas não: tratava-se de Rachmaninov, que, segundo rezam as biografias (e como o próprio nome também sugere), nasceu na oriental Rússia! Ainda outra coisa: no fim do programa fiquei com a ideia de que a autora prometeu voltar no próximo sábado. Terei ouvido bem? Ou foi a direcção da Antena 2 que, a posteriori, resolveu proceder a uma troca com a série realizada por Sérgio Azevedo? Se assim foi, porquê? E tendo-se decidido alterar o dia inicialmente previsto para a transmissão, não era possível, com uma simples operação de montagem, ter suprimido aquela frase? Isto pode parecer uma questão de pormenor e de somenos importância, mas revela bem a forma atabalhoada como a Antena 2 vem sendo dirigida.
Resumindo e concluindo: o 'fast food' musical/cultural a que muito apropriadamente se referiu o Prof. Mário Vieira de Carvalho, num artigo publicado na imprensa (reproduzido
aqui) já não se restringe aos "Impérios dos Sentidos", aos "Boulevards", aos "Vibratos" e aos "Bailes de Máscaras". Os próprios programas de autor, ressalvando algumas honrosas excepções, também passaram a ser confeccionados segundo a mesma receita. E isto acontece não por vontade dos ouvintes (que reiteradamente de tem insurgido contra tal modus faciendi) mas porque assim determina o umbigo dos locatários da direcção de programas, Rui Pêgo e João Almeida. Bem, a indivíduos incapazes não se pode pedir que por milagre se tornem competentes – do mesmo modo que ninguém pediria a um iletrado que escrevesse "Os Lusíadas" – mas terá de se pedir responsabilidades a quem teima em mantê-los nas funções para as quais não foram definitivamente talhados.

Post Scriptum: Uma pessoa que com a temática "o feminino na música/mulheres compositoras" teria feito, com toda a certeza, um trabalho primoroso, chama-se Luciana Leiderfarb. Que pena o dinheiro dos contribuintes estar a ser tão mal administrado!
Aproveito o ensejo para chamar a atenção – uma vez mais – para a importância de alguns programas feitos por autores habilitados ("Matrizes", "Musica Aeterna", "Cosmorama", "Prata da Casa") que neste momento têm passagem única ao fim-de-semana, serem repetidos durante a semana. E porquê? Em primeiro lugar, porque constituem as poucas mais-valias da programação e, em segundo, porque representam um investimento acrescido em termos orçamentais, o qual deve ser rendibilizado ao máximo, o mesmo é dizer, tornar possível a fruição de tais programas por um universo tão vasto e abrangente quanto possível de pessoas. É que nem todos os ouvintes têm disponibilidade para ouvir rádio ao fim-de-semana. Estou a pensar sobretudo naqueles que aproveitam os sábados e domingos para a prática de actividades desportivas, recreativas (caça, pesca, etc.) ou culturais (visita a museus, exposições, ida a concertos, cinema, teatro, etc.). João Almeida disse certa vez no programa do Provedor do Ouvinte que durante a semana as pessoas estão a trabalhar e não tem disponibilidade auditiva para programas que requerem mais atenção. Pode haver aí alguma verdade, mas não é menos certo que os ouvintes que ouvem rádio enquanto trabalham teriam muito mais a ganhar ouvindo programas de autor (ainda que sem uma atenção muito apurada) do que aquelas sequências desconchavadas de trechos de música variada que actualmente preenchem manhãs e tardes inteiras. E depois é preciso não esquecer também as pessoas que não estão no activo que, como se sabe, são cada vez em maior número, seja por causa do crescente desemprego seja porque já se aposentaram. Ou será que essas pessoas não contam? Por acaso, não pagam também elas a contribuição do audiovisual e impostos?

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