Fotograma do telefilme "Balada do Atlântico", com dramatizações de Álamo Oliveira, realização de José Medeiros e produção de Bruges da Cruz para a RTP-Açores (1987).
João Carlos Callixto fez o serviço público de consagrar por inteiro a edição do seu programa "Gramofone", que ontem de manhã foi para o ar nas ondas da Antena 1, a homenagear seis figuras ligadas à música portuguesa (e não só) que recentemente nos deixaram: as fadistas Adelina Silva e Maria da Nazaré, o produtor Luís Jardim, o guitarrista Luís Fernando, o baterista Paulo Neto (do grupo Essa Entente) e o letrista/poeta Álamo Oliveira (1945-2025). Com letras/poemas da autoria do último, quem ouviu a emissão em directo ou se socorreu do arquivo na plataforma RTP-Play teve a oportunidade de escutar duas canções com música de Carlos Alberto Moniz: "Recados da Ilha", por Samuel (1979) [>> YouTube], e "Navegar o Teu Corpo", na voz do compositor (2020) [>> YouTube Music].
O blogue "A Nossa Rádio" faz questão de enaltecer a iniciativa de João Carlos Callixto – um dos mais sabedores, atentos e zelosos profissionais hodiernamente a laborar na rádio pública –, e aproveita o ensejo para reforçar a homenagem ao autor açoriano (terceirense) Álamo Oliveira, que, além de ter escrito letras/textos para serem musicados/cantados, distinguiu-se como poeta, ficcionista e dramaturgo com vasta obra publicada [>> bibliografia]. Fazemo-lo dando destaque à maravilhosa xácara "Os Piratas", que ele escreveu e Luís Gil Bettencourt musicou para o telefilme "Balada do Atlântico" (RTP-Açores, 1987) [Parte I >> RTP-Arquivos / Parte II >> RTP-Arquivos], realizado por José Medeiros, cujas dramatizações têm a avalizada assinatura precisamente de Álamo Oliveira. O trecho poético-musical em apreço foi também – e bem – objecto de edição fonográfica, primeiramente no LP homónimo (DisRego, 1987), com honras de abertura do alinhamento, e nas compilações "O Barco e o Sonho | Balada do Atlântico | Xailes Negros" (2LP, Philips/Polygram, 1989) e "7 Anos de Música (2.ª edição)" (CD, DisRego, 1992).
Vem a talhe de foice apontar o dedo acusador/reprovador a quem manda na programação musical da Antena 1 pelo vil ostracismo a que tem votado a música açoriana, quer a tradicional quer a de autor, ao negar-lhe a merecida e justa presença na 'playlist'. A fascinante xácara aqui apresentada é apenas uma das numerosas pérolas que já se criaram nas nove Ilhas de Bruma, preciosidades essas que por serem portuguesas não podem (não devem) ficar escondidas dos continentais.
Os Piratas
Letra: Álamo Oliveira
Música: Luís Gil Bettencourt
Intérpretes: Nélia Freitas, Carlos Medeiros, Henrique Ben-David, Henrique Álvares Cabral, Paulo Andrade e Luísa Alves [in LP "Balada do Atlântico", DisRego, 1987; 2LP "O Barco e o Sonho | Balada do Atlântico | Xailes Negros": LP 1, Philips/Polygram, 1989; CD "7 Anos de Música (2.ª edição)", DisRego, 1992]
[instrumental]
[A Donzela:]
— «Minha mãe, vinde ao balcão
Ver quem vem aí!
Pelo mar do nosso chão
Vêm barcos de roubar.
São corsários, são piratas,
Oh, valei-me aqui!
Ó pirata, porque matas
O que não te posso dar?»
[instrumental]
[1.º Pirata:]
— «Tenho sangue no meu peito
P'ra me lambuzar...»
[2.º Pirata:]
Esse corpo, amor-perfeito,
Quero-o bem dentro de mim.»
[1.º Pirata:]
— «Dou-te um par de arrecadas
P'ra te aliciar.»
[2.º Pirata:]
— «Tenho homens com espadas
P'ra me ajudarem no fim.»
[Os Piratas:]
— «Somos os piratas,
O terror do mar,
Os heróis da prata,
Oiro a nadar.
Somos gente que até gosta de roubar.
Somos os herdeiros
De aventuras vãs;
Fomos os primeiros
A romper manhãs,
E no corpo a tatuagem fica bem.»
[O Morgado:]
— «Ó corsário, ó ladrão,
Deixa-me a fazenda!
Não vês que isso é o pão
Dos meus filhos e mulher?
Sempre vivo em sobressalto
Por cada moenda...
Há navios no mar alto
Com o oiro que quiser.»
[1.º Pirata:]
— «Se me deres o que é teu
Vou-me logo embora...»
[2.º Pirata:]
— «Se te armares em judeu
Nem sequer o ar te deixo.»
[O Morgado:]
— «Senhor meu, a minha vida
Nada vale agora...»
[2.º Pirata:]
— «Tens a morte preferida...
Da escolha não me queixo.»
[Gente da ilha:]
— «São ladrões da terra!
São ladrões do mar!
Os senhores da guerra
De espadas no ar!
E um sorriso estampado no matar.
Querem nosso pão,
Querem nossas vidas.
São piratas, são!
São almas perdidas,
E não sabem que este medo vem do chão.
[instrumental]
[3.º Pirata:]
— «Há aqui um frade coxo
P'ra vos confessar...»
[A Religiosa:]
— «Ah, senhor, que não vos ouço,
Deixa-nos viver em paz!»
[2.º Pirata:]
— «Cara linda, minha freira,
Venho p'ra ficar
Aqui uma noite inteira...»
[3.º Pirata:]
— «O que já o satisfaz...»
[A Religiosa:]
— «Tenho medo, tenho medo
Desta tentação...»
[2.º Pirata:]
— «Posso até guardar segredo,
Juro à porta do sacrário:
Se trouxerem as alfaias
Para a minha mão,
Respeitarei essas saias
E a cruz do escapulário.»
[Os Piratas:]
— «Somos os piratas,
O terror do mar,
Os heróis da prata,
Oiro a nadar.
Somos gente que até gosta de roubar.»
[Gente da ilha:]
— «Querem nosso pão,
Querem nossas vidas.
São piratas, são!
São almas perdidas,
E não sabem que este medo vem do chão.»
[Todos:]
— «Foram outros ventos,
Cofres por abrir;
Foram outros tempos
Neste descobrir
Que os piratas continuam a existir.»
* Nélia Freitas – voz (A Donzela)
Carlos Medeiros – voz (1.º Pirata)
Henrique Ben-David – voz (2.° Pirata) e percussão
Henrique Álvares Cabral – voz (O Morgado)
Paulo Andrade – voz (3.º Pirata), percussão e cavaquinho
Luísa Alves – voz (A Religiosa)
Luís Gil Bettencourt – percussão e teclas
José Medeiros – percussão e teclas
Gil Alves – flauta
Direcção musical – Luís Gil Bettencourt e José Medeiros
Produção – RTP-Açores
Produtor executivo – Victor Toste
Gravado no Angel Studio, Lisboa, em Abril de 1987
Técnico de som – Jorge Barata
Técnico assistente – Luís Flor
Capa do LP "Balada do Atlântico" (DisRego, 1987)
Fotografia – Raul Resendes
Modelo – Luísa Madruga
Design – Luís Gil Bettencourt e Carlos Elias Rodrigues
Capa da compilação em duplo LP "O Barco e o Sonho | Balada do Atlântico | Xailes Negros" (Philips/Polygram, 1989)
Fotografia – Rui Martins (A partir de uma imagem de "O Barco e o Sonho" – Paint Box: António Luís Moniz)
Capa da compilação em CD "7 Anos de Música (2.ª edição)" (DisRego, 1992)
Ilustração – Michael Hudec
Design gráfico – Digiarte.
O cacau é obtido a partir das sementes de uma árvore perenifólia de pequeno porte (4 a 8 metros de altura) – o cacaueiro –, nativa da América Central e da zona setentrional da América do Sul.
O nome científico (Theobroma cacao) foi-lhe atribuído pelo famoso naturalista sueco Lineu (1707-1778) na obra em dois volumes "Species Plantarum" (1753), que fundou e estabeleceu a taxonomia botânica moderna. Lineu utilizou parte do nome que outros autores haviam atribuído a esta planta (cacao) e criou um novo género (Theobroma) que significa alimento divino (do grego: theós = deus; broma = alimento).
O cacaueiro apresenta um tipo de floração e frutificação pouco comum, ou seja, as flores (e os subsequentes frutos) nascem no tronco principal e nas pernadas. Este tipo de floração (cauliflora) também ocorre nas olaias (Cercis siliquastrum). Após a colheita dos frutos, as sementes são submetidas a um processo de fermentação e oxidação para desenvolverem o aroma característico do cacau. Segue-se a secagem, que tem como objectivo reduzir o teor de água, sendo depois processadas industrialmente (em geral, nos países consumidores).
O cacau foi levado para São Tomé na década de 1850 por João Mário de Sousa e Almeida, vindo de uma família da Bahia com raízes na ilha do Príncipe, que começou a sua plantação na roça Água Izé de que era proprietário. E foi assim que começou o ciclo do cacau no arquipélago, sendo sucessivamente fundadas mais roças, entre as quais Monte Café, Rio do Ouro (hoje Agostinho Neto), Diogo Vaz, Bela Vista, São João dos Angolares, São Nicolau, Boa Entrada, Java, Saudade, e Sundy. Muitas dessas roças tinham uma envergadura colossal e funcionavam como uma comunidade autónoma: tinham capela, escola, creche e hospital – regalias conquistadas após críticas estrangeiras, mormente britânicas, às condições de trabalho escravo ou semi-escravo no arquipélago. Estima-se que em 1898 as roças ocupassem 90% do território de São Tomé e Príncipe. Em 1895, a roça de Água Izé, que nessa altura já pertencia ao Banco Nacional Ultramarino (BNU), ocupava uma área de 8000 hectares, com mais de metade dessa terra a ser reservada ao cultivo de cacau (a outra cultura era a do café). Tinha ainda 50 quilómetros de caminhos-de-ferro e contava com 50 empregados europeus e forros nos escritórios e 2500 contratados, oriundos maioritariamente de Angola, Moçambique e Cabo Verde, no trabalho das plantações.
Graças à Natureza fértil das ilhas e à estrutura de exploração de mão-de-obra implantada nessas antigas roças coloniais, São Tomé e Príncipe tornou-se, em 1909, o maior produtor mundial de cacau, com uma produção anual de 30 300 toneladas. A independência ditou a nacionalização das roças, mas a gestão estatal não foi bem-sucedida, levando à degradação do património edificado e ao acentuado declínio da actividade económica, acabando várias dessas roças por ser convertidas em empreendimentos turísticos de luxo [cf. https://turismodesaotomeeprincipe.com/]
Hoje, a produção de cacau em São Tomé e Príncipe faz-se em pequena escala, no âmbito de cooperativas de produção biológica, rondando as 10 toneladas por ano.
[Fontes principais: https://viagemasaotome.com/ e https://www.rfi.fr/pt/]
Cinquenta anos volvidos sobre a proclamação solene da independência, São Tomé e Príncipe não logrou atingir os padrões de desenvolvimento desejados e merecidos pelo seu afável povo. O país ainda é um dos mais pobres de África e o facto de ser um micro-estado insular não explica tudo. A população santomense viveria hoje bem melhor e sem necessidade de emigrar se os dirigentes políticos, no último meio século, tivessem valorizado e fomentado convenientemente a cultura do cacau, a exemplo do que fizeram (sem sair do Golfo da Guiné) a Costa do Marfim e o Gana que são, à data, os dois maiores produtores do mundo. Uma das pessoas que tinha perfeita consciência da importância da produção de cacau para a economia e a tão necessária prosperidade de São Tomé e Príncipe era o cantautor Sum Alvarinho (1940-2022), que deixou isso bem e claramente expresso na canção "Cacau" (Cacau é ouro, é prata / É nosso diamante também...) que gravou para o álbum homónimo, com direcção musical e arranjos seus e do reputado músico cabo-verdiano Paulino Vieira, que foi editado em 1982. Aqui vo-la deixamos em (singela) homenagem ao distinto artista santomense nesta dia do cinquentenário da independência do seu país, que ele muito amava apesar de desgostoso e desiludido (afirmou-o em Julho de 2019, numa entrevista) com os governantes que não souberam ou não foram capazes de desenvolver cabalmente São Tomé e Príncipe. Boa escuta!
O escrevente destas linhas não é ouvinte da RDP-África mas quer acreditar que repertório de Sum Alvarinho faça parte da respectiva 'playlist' (seria assaz anormal se tal não acontecesse, considerando que se trata de uma das figuras gradas da música santomense e da África lusófona). Na Antena 1, durante os larguíssimos períodos em que reina a 'playlist', nada da sua discografia alguma vez apanhámos. Mas era bom que o canal generalista da rádio do Estado desse mais atenção e divulgação ao património musical/fonográfico dos países africanos de língua oficial portuguesa. O fortalecimento dos laços culturais entre Portugal e os países que com ele partilham um passado comum também passa por aí...
Cacau
Letra e música: Sum Alvarinho (Álvaro Victor de Menezes Trigueiros)
Intérprete: Sum Alvarinho* (in LP "Cacau", IEFE Discos/Intercontinental Fonográfica, 1982, Vidisco, 1989, reed. Sonovox, 1994)
[instrumental]
Escutem o que eu digo
Não pretendo engraxar
É um conselho de amigo
Para salvaguardar
Não os oportunistas
Que agora estão-se a rir
Mas sim o povo, povo e
Gerações que hão-de vir
Cacau é ouro, é prata
É nosso diamante também
Ele é que a tudo movimenta
Quando o contravalor vem
Por isso, na apanha, na quebra
E no secador também
Não deite fora um bago
Porque isso não convém
Desperdícios à toa
Beneficia ninguém
É prejuízo, é ruína
Se a nossa bolsa nada tem
Produzamos para ter
Pois se malta não produz
Não saímos da miséria
Com tanta gente xem-xém
Cacau é ouro, é prata
É nosso diamante também
Ele é que a tudo movimenta
Quando o contravalor vem
Por isso, na apanha, na quebra
E no secador também
Não deite fora um bago
Porque isso não convém
Desperdícios à toa
Beneficia ninguém
É prejuízo, é ruína
Se a nossa bolsa nada tem
Introduzir alternativas
É reforçar a produção
São novas fontes de divisas
Que farão face à flutuação
Cacau é ouro, é prata
É nosso diamante também
Ele é que a tudo movimenta
Quando o contravalor vem
Por isso, na apanha, na quebra
E no secador também
Não deite fora um bago
Porque isso não convém
[instrumental]
Desperdícios à toa
Beneficia ninguém
É prejuízo, é ruína
Se a nossa bolsa nada tem
Produzamos muito para ter
Pois se malta não produz
Não saímos da miséria
Com tanta gente xem-xém
Cacau é ouro, é prata
É nosso diamante também
Ele é que a tudo movimenta
Quando o contravalor vem
Por isso, na apanha, na quebra
E no secador também
Não deite fora um bago
Porque isso não convém
* [Créditos gerais do disco:]
Sum Alvarinho – voz, timbales, percussão, coros
Paulino Vieira – viola solo, piano, órgão Solina, bongós e coros
Adler Ramos – viola ritmo, percussão e coros
Bebet (Humberto Lopes Almeida) – viola baixo
Eduardo Vaz – bateria
«TRAVADINHA, de seu nome de registo António Vicente Lopes, tocador de rabeca, é um dos artistas mais consagrados na música de Cabo Verde.
Nascido na Ilha de Santo Antão, berço também de outros bons violinistas, em criança teve como brinquedos os instrumentos musicais que encontrava em casa, onde desde o pai ao irmão mais novo — eram sete — todos tocavam. Ele, porém, foi o único da família que se dedicou à rabeca e aos nove anos já tocava em festas e bailes.
Jovem ainda, mudou-se para a ilha vizinha de São Vicente, mais cosmopolita, onde se fixou e vive até hoje.
Embora alguns amigos e até músicos de fama, como Luís de Morais e Manuel de Novas, sempre lhe tenham reconhecido o talento, foi só a partir de 1981, depois de uma pequena tournée em Portugal, que o seu nome se popularizou e hoje pode dizer-se que Travadinha é já uma legenda e uma referência obrigatória.
As interpretações que faz dos temas populares, sendo profundamente enraizadas na tradição, têm um cunho pessoalíssimo de onde se destaca uma contínua reinvenção da linha melódica e um grande poder de improvisação, que são notáveis, ainda mais se considerarmos que para Travadinha a música é apenas um passatempo, pois não existe a profissão de músico no meio social que é o seu.
A expressividade com que toca a sua música é altamente contagiante: não é preciso saber crioulo para entendermos o que ele diz. António Travadinha é, por tudo isto, um artista que merece ser ouvido, não só pelo prazer que propicia, mas também pelo muito que nos ensina.
A edição deste disco de António Travadinha insere-se, com toda a simplicidade de um gesto natural, na actividade da Associação de Amizade Portugal/Cabo Verde.
Cada país, cada povo, tem as manifestações que lhe são próprias, que melhor o caracterizam, e Cabo Verde, os cabo-verdianos têm na música um sinal da sua indelével personalidade colectiva.
Arquipélago na encruzilhada de quatro continentes, ponto de rota, local de fuga e de encontro, o povo foi-se construindo na mistura que identifica, na miscigenação que caracteriza. Com a música sempre presente a apôr como que um selo de garantia... nacional.
Assim sentimos, sem veleidades de investigação aprofundada, assim vivemos na calorosa experiência de conviver com os cabo-verdianos no seu quotidiano, na sua terra, na luta/labuta em que se afirmam e são.
E como o que queremos é fortalecer os laços de amizade entre os nossos povos, pela via do conhecimento mútuo, da compreensão fraterna do que somos e como somos, a divulgação da música cabo-verdiana tem de ser um gesto natural. Assim tem sido, e assim o é nesta procura de contribuir para o registo e a divulgação do que Travadinha faz com a sua rabeca.
António Travadinha é, na sua maneira de estar na vida, no seu modo de ser vida, uma ilustração de Cabo Verde. Queremos contribuir para gravar essa maneira, esse modo, em documento. O documento aqui está: é este disco; a nossa tarefa de dar a conhecer Cabo Verde vai-se cumprindo: na continuidade de outras acções, exigindo continuidade.»
O Conselho Directivo da Associação de Amizade Portugal/Cabo Verde
[textos publicados na contracapa do LP "Feiticeira de Cor Morena", ed. Associação de Amizade Portugal-Cabo Verde e Associação Cabo-Verdiana/distr. Dargil, 1986]
«O violino de Travadinha é como a guitarra de Paredes. Coisas belas, misteriosas, insondáveis, que retratam os povos sem necessitarem de palavras», assim escrevia o crítico musical António Duarte, na página 14 do semanário "O Jornal" de 14 de Agosto de 1987, no obituário do malogrado rabequista cabo-verdiano, sob o título "Travadinha: só a morte não foi improvisada". O músico falecera a 8 de Agosto, vitimado por doença oncológica, e foi numa das estadias em Lisboa, para tratamento, menos de um ano antes, que gravou o seu segundo e último álbum em nome próprio, "Feiticeira de Cor Morena" (1986). Na posição terceira do alinhamento figura a mazurca "Toi", nome que parece ser um diminutivo popular de António, um outro António do arquipélago de Cabo Verde certamente, mas que não obstava Travadinha de tocá-la como se fosse ele o autor ou o dedicatário, conferindo-lhe um fascínio a que não é indiferente ouvido algum, mesmo que não familiarizado com as cativantes sonoridades da música popular cabo-verdiana. E o 50.º aniversário da independência do país de Travadinha afigura-se um excelente pretexto para resgatarmos tão brilhante pérola e assim homenagearmos aquele que foi um dos maiores músicos cabo-verdianos de sempre, mas – e infelizmente – hoje bastante ignorado em Portugal, pelo menos por quem escolhe a música que passa nas principais rádios, a pública Antena 1 incluída. Boa escuta!
Toi
Música: Popular (mazurca)
Intérprete: Travadinha* (in LP "Feiticeira de Cor Morena", Associação de Amizade Portugal-Cabo Verde e Associação Cabo-Verdiana/distr. Dargil, 1986, reed. CD "Travadinha: Le Violon du Cap Vert", Buda Records, 1993)
(instrumental)
* [Créditos gerais do disco:]
Antoninho Travadinha – violino, viola de dez cordas, cavaquinho
Armando Tito – violão solo, viola de dez cordas, cavaquinho, baixo eléctrico, chocalho, reco-reco, voz
Ildo Ramos – violão
Micau – bongós, reco-reco, chocalho
Ana Firmino – voz
Capa do LP "Feiticeira de Cor Morena", de Travadinha (Associação de Amizade Portugal-Cabo Verde e Associação Cabo-Verdiana/distr. Dargil, 1986)
Travadinha no Centro Cultural São Lourenço, Almancil, Loulé
Escultura de João Cutileiro [uma fotografia da obra integral in situ >> abaixo]
Fotografia – João Freire
Arranjo gráfico – José Santa-Bárbara
«Um velho camarada de ofício que já cá não anda, necessitado de um papel carimbado de um qualquer balcão administrativo, enfrentou o inquérito da funcionária entufada, cujo olhar não acompanhava as perguntas. Ela despachou o questionário, sem uma só vez fitar a sua urgência resignada, ele respondeu com uma secura contrafeita. Nome? Fulano de tal. Idade? Tanta. Data de nascimento? Tantos do tal. Morada? Rua tal, em tal sítio. Profissão? E ele, impassível, tomado por secreto demónio, esticando a corda: Encantador de serpentes.
A funcionária entufada, escreveu, sem o mínimo sobressalto de sobrancelhas, sem inopinado estremecimento de espanto ou de menosprezo. Pergunta seguinte.
Muitas vezes me lembro desta história e logo entreteço um inventário de ofícios sublimes. Herberto Helder, que sabia das palavras a música secreta, regressou de Luanda e escreveu, na página 14 de "Photomaton & Vox": "Gostaria de ser entrançador de tabaco". Há tempos descobri que existem rebocadores de icebergs e especialistas em dormir, tipos pagos para dormir. Talvez haja tipos pagos para sonhar, talvez não. Se eu pudesse escolher ofício para os dias futuros procuraria aquele que me permitisse ver passar navios.
Manoel de Barros, meu poeta mais amado, imaginou-se apanhador de desperdícios. Ele acreditava que nascera para administrar o à toa, o em vão, o inútil. A fasquia dele era tanto mais alta quanto menos soprada de caganças. Ele passou a vida a colher palavras mágicas de tudo o que o seu olhar tocava, mas avisou: "Não gosto de palavra acostumada". Disse-o de mil maneiras. Assim, por exemplo: "Palavras que me aceitam como sou, eu não aceito".
Cada um é para o que nasce, será que sim? Quando nasci, nenhum anjo me disse "vai ser gauche na vida" e eu fui.
Mas na verdade não quis ser outra coisa além de recolector de palavras perdidas. Não fiz outra coisa senão colher da árvore prodigiosa as palavras mais belas, alaúde, cítara, veleiro, rododendro, andarilho. A pouco mais aspirei.
Mas os dias não se apresentam propícios.
Até sempre.» [Fernando Alves, "Nota final sobre os improváveis ofícios", in "Os Dias que Correm", 30 Jun. 2025]
Depois de escutarem esta crónica, quando foi transmitida hoje de manhã pela Antena 1, os ouvintes que conhecem razoavelmente a poesia de Eugénio de Andrade, terão dito para os seus botões ou para quem, porventura, que os acompanhava nessa experiência: «Que bem ficava o poema "As Palavras", do autor de "Coração do Dia", a rematar as que Fernando Alves redigiu e leu hoje aos microfones da rádio pública!» Ficava bem, sem dúvida alguma, mas assim não aconteceu. Nada de nada, mais uma vez! Para que conste, aqui vos deixamos o tal poema na voz do autor.
De entre os qualificativos que Eugénio de Andrade dá às palavras, o que não se aplica às de Fernando Alves, nas suas imperdíveis crónicas – outrora denominadas "Sinais" (na TSF-Rádio Jornal) e desde Setembro de 2024 "Os Dias que Correm" (na Antena 1) –, é "inocentes" e também escassíssimas vezes as suas palavras foram "de orvalho apenas". E grafamos 'foram' porque Fernando Alves fechou a crónica de hoje em tom de despedida dando a entender («os dias não se apresentam propícios») que não querem deixá-lo continuar a exercer, na rádio pública, o seu admirável mister de «recolector de palavras perdidas». Quer parecer-nos que o eminente cronista foi também incluído na purga, que a administração tem vindo a levar a cabo, de colaboradores aposentados altamente qualificados sob o argumento de que «os aposentados, reformados, reservistas fora de efectividade e equiparados encontram-se legalmente impedidos de exercer actividades profissionais remuneradas em empresas públicas». Acontece que a legislação vigente também prevê que «por razões de interesse público excepcional, sejam autorizados pelos membros do Governo responsáveis pelas áreas das Finanças e da Administração Pública.» E o que representa a crónica de Fernando Alves se não interesse público excepcional? Excepcional e de todo insubstituível porque não há em Portugal alguém que consiga fazer algo idêntico e tão bom. Fernando Alves é, sem exagero, o Camões da crónica radiofónica portuguesa. Por conseguinte, compete à administração da empresa Rádio e Televisão de Portugal formular o pedido junto do ministro da tutela e do ministério das Finanças no sentido de ser permitido a Fernando Alves continuar a desempenhar o seu relevante serviço público aos ouvintes/contribuintes que não dispensam as suas sábias e tão cativantes palavras.
AS PALAVRAS
Poema de Eugénio de Andrade (in "Coração do Dia", Lisboa: Iniciativas Editoriais, 1958 – p. 12-13; "Coração do Dia / Mar de Setembro", Col. Obra de Eugénio de Andrade, vol. 3, Porto: Limiar, 1977; "Coração do Dia / Mar de Setembro", Col. Obras de Eugénio de Andrade, Porto: Assírio & Alvim, 2013; "Poesia", 2.ª edição, org. Arnaldo Saraiva, Porto: Fundação Eugénio de Andrade, 2005 – p. 88; "Poesia", Col. Obras de Eugénio de Andrade, Porto: Assírio & Alvim, 2017 – p. 93-94)
Dito pelo autor* (in CD "Eugénio de Andrade por Eugénio de Andrade", Numérica, 1997)
São como um cristal,
as palavras.
Algumas, um punhal,
um incêndio.
Outras,
orvalho apenas.
Secretas vêm, cheias de memória.
Inseguras navegam:
barcos ou beijos,
as águas estremecem.
Desamparadas, inocentes,
leves.
Tecidas são de luz
e são a noite.
E mesmo pálidas
verdes paraísos lembram ainda.
Quem as escuta? Quem
as recolhe, assim,
cruéis, desfeitas,
nas suas conchas puras?
Capa do livro "Coração do Dia", de Eugénio de Andrade (Lisboa: Iniciativas Editoriais, 1958)
Capa do volume "Coração do Dia / Mar de Setembro", de Eugénio de Andrade (Col. Obra de Eugénio de Andrade, vol. 3, Porto: Limiar, 1977)
Direcção gráfica – Armando Alves
Capa da nova edição do volume "Coração do Dia / Mar de Setembro", de Eugénio de Andrade, pref. Fernando J. B. Martinho (Col. Obras de Eugénio de Andrade, Porto: Assírio & Alvim, Fev. 2013)
Desenho – Ilda David (2013)
Sobrecapa da 2.ª edição, revista e acrescentada do livro "Poesia", de Eugénio de Andrade (Porto: Fundação Eugénio de Andrade, Dez. 2005)
Gravura – Ângelo de Sousa (1964)
Concepção – Armando Alves
Poesia reunida. Organização, nota de edição e bibliografia por Arnaldo Saraiva
Capa da nova edição do livro "Poesia", de Eugénio de Andrade (Col. Obras de Eugénio de Andrade, Porto: Assírio & Alvim, Set. 2017)
Pintura – Ilda David (2017)
Poesia reunida. Prefácio de José Tolentino Mendonça
Capa do CD "Eugénio de Andrade por Eugénio de Andrade" (Numérica, 1997)
Retrato por Jorge Ulisses (1980)
Contém quarenta e dois poemas de Eugénio de Andrade ditos pelo autor.
«Izan, um menino galego de oito anos, tem a cabeça povoada de pensamentos marinheiros mais vastos que a ria de Bayona.
Certa vez, conta a repórter Mónica Torres, correspondente d' "A Voz da Galiza" em Nigrán, o tio de Izan perguntou-lhe se queria que lhe construíssem "um Titanic gigante". Izan ficou muito feliz, mais feliz do que o rio Miñor quando corre para as águas mais vastas, traçando uma linha de vertigem entre dois municípios de Pontevedra.
Na cabeça de um menino marinheiro, os Titanics nunca afundam. Muito menos este Titanic que o tio Fernando replicou, imponente nos seus seis metros e vinte de comprimento e dois metros de altura, com as quatro chaminés listradas a amarelo e negro, as tantas escotilhas, os mastros, o casco, os invisíveis pedais. O Titanic a pedais flutua e sulca o oceano ali deitado, tão manso, aos pés do menino vestido de marinheiro.
Cabem dois tripulantes dentro deste Titanic. Sentados aos pedais, como os antigos remadores, arreda Neptuno! Foi este Titanic a obsessão feliz de muitas horas a ver passar navios no YouTube e a tomar notas para a aventura de um estaleiro familiar. Izan, oito anos, desenhou estruturas, estudou materiais, orientou a maratona que, desde o Natal, permitiu erguer, sobre um kayak, a réplica perfeita do transatlântico que, em 1912, abraçou tragicamente um iceberg no Atlântico Norte.
Izan é um dos miúdos que sorri na fotografia d' "A Voz da Galiza". Miúdo dado à arte de marear por pensamentos, e agora por pedais, parece ter um destino marujo traçado nas estrelas e nas entrelinhas do nome. Reparai no apelido de Izan: Rios Garcia. Vive na embocadura de um rio, passa horas fitando as águas mais vastas da ria de Bayona, faz-me lembrar o menino de um poema de Afonso Lopes Vieira dedicado ao marinheiro da minha estima maior, um tal Bartolomeu Dias. Quando ainda menino, tal como Izan, (estou já pedalando o poema) o menino Bartolomeu "ia para o pé do mar (...) E Bartolomeu cismava / Ó que lindo, ó que lindo, / o mar, / e a sua voz profunda e bela!".
Foi este poema escrito no ano em que o Titanic naufragou, 1912. Não quero puxar para a crónica a nuvem da desgraça. Mas, na verdade, o marinheiro e engenheiro naval Izan Rios Garcia, nos seus oito anos de menino a olhar o mar, tem o plano de fazer naufragar o seu navio de brincar a sério. Talvez no final do Verão.
Eu chegara a pensar que esta era a história de um menino que aprende a ser marinheiro com um Titanic que nunca iria ao fundo porque é pura poesia feita navio. Mas não.
Num arrepio breve, como se tivesse sido tocado por um vento frio no convés da manhã, ocorrem-me os versos de Cecília Meireles: "Pus o meu sonho num navio / e o navio em cima do mar; / depois, abri o mar com as mãos, / para o meu sonho naufragar".» [Fernando Alves, "Um Titanic a pedais", in "Os Dias que Correm", 27 Jun. 2025]
Sendo certo que Fernando Alves grava a sua crónica com razoável tempo de antecedência em relação ao horário previsto para a radiodifusão, pouco antes das 09h:00, Miguel Freitas, que ultimamente vem assegurando a condução programa da manhã da Antena 1, tem acaso o cuidado, antes de pôr a crónica no ar, de ouvir o áudio ou, ao menos, de ler o texto? Hoje procedeu assim? Em caso afirmativo, por que razão não antecipou a crónica em cerca de três minutos para rematá-la com o poema de Cecília Meireles evocado por Fernando Alves, na interpretação de Amália com música de Alain Oulman, que abre o alinhamento do primoroso álbum "Com Que Voz" (1970)? Não quis dar-se a esse eventual incómodo ou será que está terminantemente proibido por Nuno Galopim de Carvalho de aditar um epílogo (poético, poético-musical ou simplesmente musical) à crónica de Fernando Alves? Qualquer que seja o motivo, ele merece a veemente reprovação dos ouvintes, designadamente daqueles que ouviam os "Sinais" na TSF-Rádio Jornal e eram aí presenteados com um registo extraído de edição discográfica tematicamente relacionado com o teor geral da crónica ou com uma determinada referência intertextual. Se esse louvável procedimento se verificava numa rádio privada, não há justificação atendível para que não seja regra na Antena 1, a qual, em razão do financiamento público, tem a obrigação de fazer melhor do que as estações que vivem da publicidade.
Eis, pois, o sublime fado "Naufrágio", superlativamente cantado por Amália, com música de Alain Oulman sobre versos do poema "Canção" da autoria da ilustre poetisa brasileira Cecília Meireles (1901-1964). Boa escuta!
Naufrágio
Poema: Cecília Meireles (excerto ligeiramente adaptado do poema "Canção") [texto original >> abaixo]
Música: Alain Oulman
Intérprete: Amália Rodrigues* [in LP "Com Que Voz", Columbia/VC, 1970, reed. EMI-VC, 1987; 2CD "Com Que Voz" (nova edição): CD 1, Edições Valentim de Carvalho/iPlay, 2010; CD "Com Que Voz (Remastered)", Edições Valentim de Carvalho, 2019]
[instrumental]
Pus o meu sonho num navio
e o navio em cima do mar;
— depois, abri o mar com as mãos,
com as mãos, para o meu sonho naufragar.
Minhas mãos ainda estão molhadas
do azul, do azul das ondas entreabertas,
e a cor que escorre dos meus dedos
colore as areias desertas.
O vento vem vindo de longe,
a noite se curva de frio;
debaixo da água vai morrendo
meu sonho, vai morrendo dentro do navio...
Chorarei quanto for preciso,
para fazer, para fazer com que o mar cresça,
e o meu navio chegue ao fundo
e o meu sonho desapareça.
[instrumental]
* Amália Rodrigues – voz
José Fontes Rocha – guitarra portuguesa
Pedro Leal – viola
(Cecília Meireles, in "Viagem", Lisboa: Editorial Império, 1939; "Obra Poética", Rio de Janeiro: Editora José Aguilar, 1958)
Pus o meu sonho num navio
e o navio em cima do mar;
— depois, abri o mar com as mãos,
para o meu sonho naufragar.
Minhas mãos ainda estão molhadas
do azul das ondas entreabertas,
e a cor que escorre dos meus dedos
colore as areias desertas.
O vento vem vindo de longe,
a noite se curva de frio;
debaixo da água vai morrendo
meu sonho, dentro do navio...
Chorarei quanto for preciso,
para fazer com que o mar cresça,
e o meu navio chegue ao fundo
e o meu sonho desapareça.
Depois, tudo estará perfeito;
praia lisa, águas ordenadas,
meus olhos secos como pedras
e as minhas duas mãos quebradas.
Capa da 1.ª edição do livro "Viagem", de Cecília Meireles (Lisboa: Editorial Império, 1939)
Capa na nova edição brasileira do livro "Viagem", de Cecília Meireles (São Paulo: Global Editora, 2012)
Frontispício do volume "Obra Poética", de Cecília Meireles; introdução geral de Darcy Damasceno; apreciações de Mário de Andrade e de outros; epílogo de João Gaspar Simões; xilogravuras de Graciela Fuensalida (Rio de Janeiro: Editora José Aguilar, 1958)
Capa do LP "Com Que Voz", de Amália Rodrigues (Columbia/VC, 1970)
Executada no Atelier Conceição e Silva.
A cidade-estado de Cartago localizava-se no Norte da África, próximo da actual cidade de Túnis (ou Tunes), capital da Tunísia. Foi fundada no século IX a.C. pelos Fenícios, povo oriundo do território que corresponde hoje maioritariamente ao do Líbano e que durante séculos dominou o comércio marítimo de metais preciosos, sobretudo no Mediterrâneo, fundando diversas colónias na Sicília, na Sardenha, na Córsega, nas Ilhas Baleares, na Península Ibérica e no Norte da África. Cartago, inicialmente uma colónia, foi fundada com o objectivo de ser um entreposto comercial na costa norte-africana e possibilitar a exploração das riquezas metalúrgicas da região. Devido à exiguidade do território e à vizinhança de povos belicosos, Cartago voltou-se para o mar. Com a economia centrada no comércio marítimo, os Cartagineses controlavam a exploração e a venda de metais preciosos no Mediterrâneo Ocidental. Com o decorrer do tempo, passaram a exercer domínio político sobre boa parte do Mediterrâneo, controlando as rotas daquele mar interior por mais de seis centúrias. No século IV a.C., Cartago florescia como uma grande e importante cidade, pontuada de templos, palácios e altos edifícios. No entanto, essa prosperidade fez com que entrasse em colisão com outra potência em ascensão no Mediterrâneo, Roma. As confrontações entre Cartagineses e Romanos ficaram conhecidas como as Guerras Púnicas. A primeira Guerra Púnica teve início em 264 a.C. e o seu desfecho mudaria o curso da História e Aníbal Barca, o grande general cartaginês, ficaria nos anais como um dos maiores génios militares de todos os tempos. Aníbal lançaria uma das mais incríveis campanhas de ataque já vistas. Dado que Roma passara a dominar o Mediterrâneo, na sequência da vitória na primeira Guerra Púnica, Aníbal resolveu marchar por terra, partindo da Península Ibérica em direcção aos Alpes chefiando um exército onde iam 37 elefantes, com o objectivo de alcançar Roma e, desta forma, vencer os Romanos no seu próprio território. Na Batalha de Canas, ocorrida a 2 de Agosto de 216 a.C., na Apúlia (sudeste da Península Itálica), infligiu ao exército romano uma pesadíssima derrota. No entanto, Aníbal não chegou a atacar a cidade de Roma, demorando-se no sul da Península Itálica e terminando por regressar a Cartago, por via marítima, a fim de defender a cidade do ataque dos Romanos. Acabaria por ser derrotado na Batalha de Zama, a 19 de Outubro de 202 a.C., por Cipião, que receberia o cognome de 'O Africano'. Chegava assim ao fim a Segunda Guerra Púnica, e Cartago perdia os seus territórios ultramarinos, ficava despida do seu poder militar e obrigada a pagar avultadas indemnizações de guerra. Temendo que a cidade-estado se reerguesse comercial e militarmente, a República Romana, incitada pelo cônsul Catão, o Velho, voltava a atacar Cartago, desta vez para destruir a urbe definitivamente, na que seria a terceira e última Guerra Púnica. Em 146 a.C., Cartago foi incendiada, devastada e o seu chão salgado, para que nele nada germinasse e crescesse futuramente. Com o fim de Cartago, Roma consolidava o seu domínio no Mediterrâneo, vindo a tornar-se o mais poderoso império da Antiguidade no Ocidente. [adaptado do texto publicado no sítio da Fundação Cultural Palmares].
(in https://commons.wikimedia.org/)
Territórios cartagineses ou sob influência de Cartago cerca de 264 a.C., antes da Primeira Guerra Púnica.
«Faz hoje cem anos, o grande repórter Norberto Lopes, terminado um longo périplo pelo continente africano, assina, a quase toda a largura da primeira página do "Diário de Lisboa", uma cuidada prosa sobre "um belo dia de sol nas ruínas de Cartago". Há cem anos, o repórter escrevia Cartago com th, "trazendo ainda nos olhos a visão graciosa de Túnis".
Tudo era mais lento, à época. O texto estava datado de Maio, escrito sob a impressão forte de um lugar tão repetidamente sentenciado pela frase implacável de Catão, o Velho, uma espécie de carimbo final dos discursos do senador romano: "Que Cartago seja destruída". Catão era quase menino quando se alistou para combater os cartagineses, ficou-lhe porventura aquela divisa como distintivo.
Era esse tempo de há um século desprovido da varinha mágica da instantaneidade. Foi preciso esperar um mês até que ele ganhasse as rotativas do número 48 da Luz Soriano.
Na prosa aquecida por um sol entre ruínas, o repórter destaca os afloramentos de um passado glorioso, "o capitel gracioso duma coluna coríntia (...), a inscrição piedosa duma lápide votiva", lá onde "não ficou pedra sobre pedra". A tal ponto que, escreve Norberto Lopes, "o próprio terreno foi salgado – para que nem a haste humilde de uma planta brotasse do seio da terra". Mas o grande repórter parece colher uma inesperada flor da poeira pisada pelos cavalos de Cipião. E isso o leva a concluir que "a destruição poupou os mortos", pois "nada restaria hoje da velha Cartago (ele escreve com th, escrevia-se com th) se os Romanos não tivessem respeitado, talvez por um temor supersticioso, o interior sagrado das sepulturas".
Naquele lugar em redor do qual tantas cidades, tantas pegadas de cavalos, foram sobrepostas, um repórter anota, dois mil anos depois, mas ainda num tempo em que a lentidão marcava, mesmo que ofegante, a sucessão dos dias e o compasso das rotativas, o legado dos arqueólogos, colunas, moedas, frisos de mármore, "a cabeça laureada de um imperador", Diana acariciando "as hastes de um veado".
Assim o repórter futuro, centenas de anos adiante de nós, recolha, possa recolher do arqueólogo ou do robot arqueólogo e mostre ao mundo, possa mostrar ao mundo as cidades agora destruídas e soterradas, lá onde os novos Cipiões alvitraram Rivieras. Ainda que não possa, não queira, ou não saiba, usar palavras tão inebriantes como as de Norberto Lopes, aquelas que ele resgatou do vento há cem anos diante dos minaretes de Túnis. E que, tal como há cem anos, a atmosfera seja "transparente e doce – como na tarde de Pharsalia" e as flores tenham "o mesmo perfume que enfeitiçava Salambô nas noites de luar".
Assim os repórteres futuros não se percam de Flaubert, tal como Norberto Lopes não se perdeu.» [Fernando Alves, "Um belo dia de sol, há cem anos, em Cartago", in "Os Dias que Correm", 26 Jun. 2025]
Tendo em conta que a cidade de Cartago foi incendiada, a crónica que Fernando Alves achou por bem dedicar à primorosa e impressiva prosa com que o repórter Norberto Lopes relatou a visita que fez às ruínas da vetusta urbe, em Maio de 1925 (e aproveitamos para manifestarmos o nosso elevado apreço a ambos os escribas), podia muito adequadamente ser rematada com a composição "A Cidade Queimada", de e por Rodrigo Leão, originalmente publicada no magnífico álbum "Cinema" (2004) e incluída na compilação "O Mundo (1993-2006)" lançada dois anos mais tarde. O tom plangente, quase funéreo, que o distinto compositor/intérprete imprimiu à música tornava ainda mais apropriada e justa a escolha deste tocante registo, que até é curto (1':20"), para funcionar como epílogo a uma crónica consagrada à desditosa cidade de Cartago. O locutor de serviço, Miguel Freitas, seguindo o mau exemplo de Ricardo Soares preferiu, infelizmente, ficar quietinho (não sabemos de por mero comodismo ou se acatando ordens expressas de Nuno Galopim de Carvalho) e mal a crónica chegou ao fim limitou-se a debitar os valores máximos das temperaturas previstos para todas as capitais de distrito de Portugal. É triste!
A Cidade Queimada
Música: Rodrigo Leão
Intérprete: Rodrigo Leão* [in CD "Cinema", Columbia/Sony Music Entertainment (Portugal), 2004; 2CD "O Mundo (1993-2006)": CD 1, Columbia/Sony BMG Music Entertainment (Portugal), 2006]
Capa do CD "Cinema", de Rodrigo Leão [Columbia/Sony Music Entertainment (Portugal), 2004]
Fotografia – Steve Stoer
Design e direcção de arte – Marco Sousa Santos
Capa da compilação em duplo CD "O Mundo (1993-2006)", de Rodrigo Leão [Columbia/Sony BMG Music Entertainment (Portugal), 2006]