Álvaro de Campos nasceu em Tavira, a 15 de Outubro de 1890, à uma e meia da tarde. Frequentou o liceu em Portugal e teve um tio padre [beirão] que lhe ensinou latim. Foi mandado para Glasgow, na Escócia, para estudar Engenharia, primeiro Mecânica e depois Naval. Foi aí que se formou. Viajou muito pela Europa e numa viagem ao Oriente colheu inspiração para «Opiário», um poema irónico sobre temas decadentes: o transatlântico, o ópio, o exotismo.
Viveu em Lisboa sem exercer nenhuma profissão, dedicando-se completamente à literatura e às polémicas modernistas, intervindo também nos jornais a propósito de actualidades da vida política portuguesa, o que lhe atraiu algumas antipatias.
Foi o único dos heterónimos a frequentar Fernando Pessoa, segundo uma confidência do próprio Pessoa:
«A mim, pessoalmente, nenhum me conheceu, excepto Álvaro de Campos.»
Era um homem alto, de cabelo preto e liso, risca ao lado, monóculo. A sua figura lembra, não só nas atitudes como no porte, um certo tipo de dandy entediado e blasé.
Fernando Pessoa constrói com Álvaro de Campos a figura do perfeito vanguardista do século XX. Quando nasce, esta figura já se encontra na sua plena maturidade criativa de vanguardista e manifesta-se com uma arrebatada ode de sabor futurista e whitmaniano intitulada «Ode Triunfal». Aí se cantam ruidosamente os mitos e os gostos típicos do início do século passado: a máquina, a velocidade, a metrópole, a electricidade...
Álvaro de Campos manifesta uma modernolatria que é o carácter mais vistoso da sua personagem. Modernolatria que se traduz muitas vezes numa forte polémica ou agressividade em relação à tradição literária vigente, ao statu quo cultural, ao conformismo. É sem dúvida esta atitude que inspira o «Ultimatum», um violento manifesto literário de ruptura com a tradição e que Pessoa publicará, em 1917, na revista «Portugal Futurista».
O facto de utilizar um instrumento expressivo como o manifesto é já em si sintomático na caracterização de uma personagem como Álvaro de Campos. O manifesto é o instrumento privilegiado de declaração poética para as mais importantes vanguardas do século XX e Campos sigla pertencer à vanguarda mais ruidosa precisamente com o seu «Ultimatum».
Esta chave vanguardista pode ler-se também na maior composição de Campos, a «Ode Marítima», na qual se revisitam, em termos novecentescos, os grandes temas e os grandes motivos da história e do imaginário colectivo português.
Ora Fernando Pessoa querendo construir uma personagem mais completa e auto-suficiente cogita um antes para Álvaro de Campos. Com o poema «Opiário» que publica retrodatado, Pessoa inventa para Campos um passado de irónico decadente, de tardo-simbolista blasé, de burguês culto e entediado.
Tem-se todavia a impressão de que na sucessiva evolução da figura de Campos, a vontade de pessoana fique mais na sombra e as mudanças sejam intrínsecas à própria figura da personagem — a qual parece ter adquirido total autonomia. Não nos podemos esquecer que Campos foi o único heterónimo que misturou a sua vida à vida de Pessoa e que se permitiu até a intrusões na esfera privada do seu criador.
O exemplo mais desconcertante ocorre durante a história afectiva que Pessoa viveu com Ophélia Queiroz e durante a qual Campos pôs em prática interferências que são evidentes na correspondência trocada com Ophélia.
«Ex.ma Senhora D. Ophélia Queiroz:
Um abjecto e miserável indivíduo chamado Fernando Pessoa, meu particular e querido amigo, encarregou-me de comunicar a V. Ex.ª — considerando que o estado mental dele o impede de comunicar qualquer coisa, mesmo a uma ervilha seca — que V. Ex.ª está proibida de: pesar menos gramas, comer pouco, não dormir nada, ter febre, pensar no indivíduo em questão.
Pela minha parte, e como íntimo e sincero amigo que sou do meliante de cuja comunicação (com sacrifício) me encarrego, aconselho V. Ex.ª a pegar na imagem mental, que acaso tenha formado do indivíduo cuja citação está estragando este papel razoavelmente branco, e deitar essa imagem mental na pia, por ser materialmente impossível dar esse justo Destino à entidade fingidamente humana a quem ele competiria, se houvesse justiça no mundo.
Cumprimenta V. Ex.ª
Álvaro de Campos, Engenheiro Naval»
É evidente que esta intrusão se verifica no plano de uma ironia paradoxal, mas mesmo assim a coisa não deixa de nos espantar devido à sua ambiguidade.
Quanto à escrita, propriamente dita, de Álvaro de Campos é o heterónimo Ricardo Reis que a caracteriza:
«O que verdadeiramente Campos faz, quando escreve em verso, é escrever prosa ritmada com pausas maiores marcadas em certos pontos, para fins rítmicos, e esses pontos de pausa maior determina-os ele pelos fins dos versos.
Campos é um grande prosador, um prosador com uma grande ciência do ritmo; mas o ritmo de que tem ciência é o ritmo da prosa, e a prosa de que se serve é aquela em que se introduziu, além dos vulgares sinais de pontuação, uma pausa maior e especial, que Campos, como os seus pares anteriores e semelhantes, determinou representar graficamente pela linha quebrada no fim, pela linha disposta como o que se chama um verso.
Se Campos, em vez de fazer tal, inventasse um sinal novo de pontuação — digamos o traço vertical — para determinar esta ordem de pausa, ficando nós sabendo que ali se pausava com o mesmo género de pausa com que se pausa no fim de um verso, não faria obra diferente, nem estabeleceria a confusão que estabeleceu.
Nenhum homem foi alguma vez poeta assim. A disciplina do ritmo é aprendida até ficar sendo uma parte da alma: o verso que a emoção produz nasce já subordinado a essa disciplina. Uma emoção naturalmente harmónica é uma emoção naturalmente ordenada; uma emoção naturalmente ordenada é uma emoção naturalmente traduzida num ritmo ordenado, pois a emoção dá o ritmo e a ordem que há nela a ordem que no ritmo há.»
Capa da 1.ª edição do livro "O Essencial sobre Fernando Pessoa", de Maria José de Lancastre (Col. Essencial, Vol. 9, Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1985)
Capa da 2.ª edição do livro "O Essencial sobre Fernando Pessoa", de Maria José de Lancastre (Col. Essencial, Vol. 9, Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1998)
Assinalamos o 135.º aniversário natalício de Álvaro de Campos, dando destaque a um seu poema que não podia vir mais a propósito, embora a escolha seja a mais óbvia: "Aniversário". A 13 de Junho de 2018, por ocasião do 130.º aniversário do nascimento de Fernando Pessoa, apresentámos o poema dito por Luís Lima Barreto [cf. Fernando Pessoa/Álvaro de Campos: "Aniversário", por Luís Lima Barreto], pelo que hoje, resgatamos a gravação mais antiga das duas de Germana Tânger que integram o audiolivro "Poemas de Almada Negreiros, Mário de Sá-Carneiro, Fernando Pessoa ditos por Germana Tânger", publicado em 2004, com chancela da Assírio & Alvim. O poema "Aniversário", de Álvaro de Campos, era dos mais queridos da distinta dizedora [é disso prova tê-lo escolhido para dizer no programa "Câmara Clara", de Paula Moura Pinheiro, emitido a 15 Jun. 2008 >> YouTube], o que nos permite imaginar que lá no assento etéreo onde repousa esboce um sorriso ao nosso gesto de trazer à tona, neste ano em que se comemora o seu 105.º aniversário (nasceu em 1920, a 16 de Janeiro), o registo de um momento feliz e jubiloso do recital que deu no Teatro de São Luiz, no limiar da década de 1970. Boa escuta!
Germana Tânger também disse muita e boa poesia de língua portuguesa na rádio pública, designadamente nos programas "Tempo de Poesia" e "Poesia de um Só Poeta" (1973) [>> RTP-Arquivos]. Seria bom que a nova direcção de programas das Antenas 1 e 3 não deixasse terminar o ano sem emitir um ciclo de homenagem à saudosa dizedora com registos extraídos daqueles programas, o qual poderia muito bem começar pela poesia pessoana, tendo em conta a efeméride que se aproxima do noventenário da morte do genial poeta dos heterónimos.
ANIVERSÁRIO
Poema de Álvaro de Campos (in "Presença: Folha de Arte e Crítica", N.º 27, Coimbra, Jun.-Jul. 1930 – p. 2; "Poesias de Álvaro de Campos", Col. Poesia, Série 'Obras Completas de Fernando Pessoa', Vol. II, Lisboa: Edições Ática, 1944, 1993 – p. 284-286; "Álvaro de Campos: Vida e Obras do Engenheiro", Introdução, organização, transcrição e notas de Teresa Rita Lopes, Lisboa: Editorial Estampa, 1990; "Álvaro de Campos: Livro de Versos", Introdução, transcrição, organização e notas de Teresa Rita Lopes, Lisboa: Editorial Estampa, 1993; "Poesia de Álvaro de Campos", Org. Teresa Rita Lopes, Col. Obras de Fernando Pessoa, Vol. 16, Lisboa: Assírio & Alvim, 2002, 2013, 2019 – p. 403-405)
Recitado por Germana Tânger* (in livro/CD "Poemas de Almada Negreiros, Mário de Sá-Carneiro, Fernando Pessoa ditos por Germana Tânger", Col. Sons, Lisboa: Assírio & Alvim, 2004)
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,
De ser inteligente para entre a família,
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.
Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.
Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da vida.
Sim, o que fui de suposto a mim mesmo,
O que fui de coração e parentesco,
O que fui de serões de meia-província,
O que fui de amarem-me e eu ser menino.
O que fui — ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui...
A que distância!...
(Nem o acho...)
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!
O que eu sou hoje é como a humidade no corredor do fim da casa,
Pondo grelado nas paredes...
O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas lágrimas),
O que eu sou hoje é terem vendido a casa.
É terem morrido todos,
É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio...
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...
Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!
Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez,
Por uma viagem metafísica e carnal,
Com uma dualidade de eu para mim...
Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!
Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui...
A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça, com mais copos,
O aparador com muitas coisas — doces, frutas, o resto na sombra debaixo do alçado —,
As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa,
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...
Pára, meu coração!
Não penses! Deixa o pensar na cabeça!
Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!
Hoje já não faço anos.
Duro.
Somam-se-me dias.
Serei velho quando o for.
Mais nada.
Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira!...
Capa do N.º 27 da revista "Presença: Folha de Arte e Crítica" (Coimbra, Jun.-Jul. 1930)
Desenho – Olavo d'Eça Leal (com dedicatória ao escultor Diogo de Macedo)
Página 2 da publicação anterior onde consta o poema "Aniversário", de Álvaro de Campos
Capa da 1.ª edição do livro "Poesias de Álvaro de Campos" (Col. Poesia, Série 'Obras Completas de Fernando Pessoa', Vol. II, Lisboa: Edições Ática, 1944)
Desenho – José de Almada Negreiros
Capa do livro "Álvaro de Campos: Vida e Obras do Engenheiro", Introdução, organização, transcrição e notas de Teresa Rita Lopes (Lisboa: Editorial Estampa, 1990)
Capa do livro "Álvaro de Campos: Livro de Versos", Edição crítica. Introdução, transcrição, organização e notas de Teresa Rita Lopes; colaboração de Manuela Parreira da Silva e de Luísa Medeiros (Lisboa: Editorial Estampa, 1993)
Capa da 3.ª edição do livro anterior (Lisboa: Editorial Estampa, 1997)
Capa da 1.ª edição do livro "Poesia de Álvaro de Campos", Org. Teresa Rita Lopes (Col. Obras de Fernando Pessoa, Vol. 16, Lisboa: Assírio & Alvim, 2002)
Capa da 2.ª edição do livro "Poesia de Álvaro de Campos", Org. Teresa Rita Lopes (Col. Obras de Fernando Pessoa, Vol. 16, Lisboa: Assírio & Alvim, 2013)
Capa da 3.ª edição do livro "Poesia de Álvaro de Campos", Org. Teresa Rita Lopes (Col. Obras de Fernando Pessoa, Vol. 16, Porto: Assírio & Alvim, 2019)
Capa da do livro "Fernando Pessoa: Vida e Obras do Engenheiro Álvaro de Campos", Org. Teresa Rita Lopes (São Paulo: Global Editora, 2019)
Capa do livro/CD "Poemas de Almada Negreiros, Mário de Sá-Carneiro, Fernando Pessoa ditos por Germana Tânger" (Col. Sons, Lisboa: Assírio & Alvim, Set. 2004)
Fotografia – Inês Gonçalves (2004).
Os seres vivos são, na sua generalidade, dotados do instinto de autopreservação, que se traduz em evitar situações/procedimentos que possam fazer perigar a sua integridade física e, no extremo, porem em risco a vida. O ser humano não é, naturalmente, excepção e quando adopta comportamentos autodestrutivos – mutilações e tentativas de suicídio – tal significa que algo do foro psíquico/mental não está bem. O escrevente destas linhas ficou a saber, ouvindo a edição do programa da Antena 1 "Consulta Pública", de 10 de Setembro passado [>> RTP-Play], que são mais as mulheres que ligam para a Linha SOS Voz Amiga (https://www.sosvozamiga.org/contactos), mas que é no sexo masculino que se regista a maioria dos suicídios consumados (cerca de 3/4 do total), dado que mostra, por um lado, serem os homens menos propensos a solicitar ajuda e, por outro lado, mais eficazes nos actos praticados com o propósito de pôr termo à vida. E segundo o testemunho de uma participante naquela mesa-redonda, que esteve em vias de suicidar-se, o que impele alguém a tentar matar-se não é propriamente a vontade de morrer mas o desejo de acabar com o sofrimento – que é, quase sempre, de ordem psíquica/mental e que mesmo sendo intenso pode, na maioria dos casos, ser debelado ou fortemente atenuado se o paciente pedir ajuda, ou alguém das suas relações proceder nessa conformidade. A família tem um papel fundamental nesse processo terapêutico e, obviamente, na criação/manutenção de um ambiente profiláctico a ideias autodestrutivas/suicidas, mas o papel da comunidade/sociedade não é de somenos importância, mormente na esfera laboral e escolar. O sentimento de exaustão profissional e estudantil, vulgo 'burnout', afecta cada vez mais pessoas e não será exagero considerá-lo já um problema de saúde pública. Concomitantemente, surgiu a dependência patológica dos 'smartphones' e a manipulação de que muitos (muitíssimos) dos seus portadores são objecto, mais ou menos inconscientemente, por parte dos algoritmos, que mais não são do que instrumentos concebidos para dar lucro aos accionistas das empresas proprietárias das redes (ditas) sociais. Bem cientes de todos esses fenómenos devem estar as maiores sumidades do mundo da psicologia, da psiquiatria e de outras áreas científicas co-relacionadas ao escolherem subordinar ao tópico "Saúde Mental e Sustentabilidade Social: Uma Abordagem Baseada na Sociedade e na Comunidade" o Congresso Mundial da Saúde Mental que nos próximos dias 30 de Outubro a 1 de Novembro vai decorrer na cidade de Barcelos [vide o cartaz infra].
Fazendo votos que do evento saiam conclusões tanto quanto possível consensuais e que – imensamente importante! – elas sejam tidas em devida conta pelos governos dos países representados, assim como pelos dos restantes, assinalamos o presente Dia Mundial da Saúde Mental destacando o tocante fado "Última Porta", da autoria (letra e música) de Frederico de Brito, na irrepreensível interpretação que Rodrigo gravou para o seu álbum "Eu Sou Povo e Canto Esperança" (1974). Altamente gratificados ficaremos se este nosso singelo e humilde gesto for válido no âmbito dos esforços, que nunca serão bastantes, visando evitar que o maior número possível de pessoas caia na tentação de transpor, antes de tempo, o umbral da última porta!
Sendo Rodrigo um artista proscrito por quem administra a 'playlist' da Antena 1, é de crer que o fado "Última Porta" seja desconhecido da grande maioria dos ouvintes, sobretudo dos mais fidelizados ao canal e pouco dados a explorarem repertório de fado nas plataformas de 'streaming'. Em troca do dinheiro que eles desembolsam, em sede de contribuição do audiovisual, já não seria mau de todo se ao menos nos dias mundiais, internacionais ou nacionais de cada temática houvesse a preocupação de dar a ouvir repertório condizente. O impressivo registo poético-musical ora em realce seria um dos mais apropriados a figurar nesse cardápio musical, quer a 10 de Setembro, quer a 10 de Outubro, Dias Mundiais, respectivamente, da Prevenção do Suicídio e da Saúde Mental.
Letra e música: Frederico de Brito
Intérprete: Rodrigo* (in EP "O Cantar da Minha Gente", EMI/VC, 1974; LP "Eu Sou Povo e Canto Esperança", EMI/VC, 1974; 2LP/CD "O Melhor de Rodrigo", EMI-VC, 1990; CD "O Melhor de Rodrigo", Edições Valentim de Carvalho/iPlay, 2008; CD "Rodrigo: Essencial", Edições Valentim de Carvalho/CNM, 2014)
Abandonou-se ao desespero,
Foi como um náufrago sem rumo:
Nunca na vida foi sincero;
Por fim, perdeu todo o aprumo.
Falto de amparo, andou fugido;
Não viu na vida um mau prenúncio,
Até que ao fim, desiludido,
Pôs nos jornais mais este anúncio:
Resto de esperança perdeu-se
Do largo da ilusão
À rua do esquecimento:
Tem manchas de ingratidão
E sinais de sofrimento;
Quem a achou, se não se importa,
Entregue-a mesmo à saída
Do beco do fim da vida,
Última porta.
Vida que eu sei que anda ao acaso,
Que não se inveja nem se gaba:
Uma licença a curto prazo
Que ninguém sabe quando acaba.
Não a ganhou, era uma herança,
Foi dissipada aí a rodos;
Como perdeu também a esperança,
Vem amanhã nos jornais todos:
Resto de esperança perdeu-se
Do largo da ilusão
À rua do esquecimento:
Tem manchas de ingratidão
E sinais de sofrimento;
Quem a achou, se não se importa,
Entregue-a mesmo à saída
Do beco do fim da vida,
Última porta.
[instrumental]
Quem a achou, se não se importa,
Entregue-a mesmo à saída
Do beco do fim da vida,
Última porta.
* Rodrigo – voz
António Chainho – 1.ª guitarra portuguesa
José Luís Nobre Costa – 2.ª guitarra portuguesa
José Maria Nóbrega – viola
Raul Silva – viola baixo
A profusa representação de cavalos em pinturas rupestres (nas grutas de Lascaux e de Altamira, por exemplo) denota a admiração que os nossos antepassados caçadores-recolectores do Paleolítico nutriam por aquele quadrúpede. Mais tarde, já na Idade do Ferro, por alturas da Revolução Agrícola, o homem percebeu que o equídeo podia servir para algo mais do que mera presa de caça (alimento). Sendo domado (domesticado), o cavalo, por ser um animal bastante inteligente, ágil, possante e veloz, revelar-se-ia um importantíssimo auxiliar do homem, ora na agro-pastorícia, ora como meio de transporte (enquanto montada ou puxando carroças), ora como arma de guerra. Não foram poucas as batalhas e as campanhas militares ganhas graças ao uso da cavalaria. O maior império da História em área territorial contígua – o mongol de Gengis Khan, no século XIII – não teria sido possível sem o cavalo excelentemente adestrado e pericialmente manejado (ainda hoje os mongóis são habilíssimos cavaleiros). Mais de milénio e meio antes, já Alexandre Magno havia rendido sentida e pomposa homenagem ao seu cavalo Bucéfalo, quando este morreu durante a campanha da Índia, fundando aí a cidade de Bucefália (a actual Jhelum, no Paquistão). E cerca de três séculos e meio mais tarde, o imperador romano Calígula outorgará ao seu cavalo, Incitatus, a condição de seu filho e o privilégio de usar colares de pérolas preciosas e de dormir coberto por mantas de cor púrpura numa luxuosa villa que mandou construir expressamente para ele e na qual era apaparicado por dezoito serviçais. Posteriormente, outros imperadores romanos, como Trajano e Marco Aurélio, fizeram-se representar em imponentes estátuas equestres de bronze e esse exemplo seria seguido, da Idade Média em diante, por numerosos monarcas e aristocratas. O cavalo fôra elevado ao estatuto mais alto e nobre que algum animal alguma vez atingira ou viria a atingir.
A invenção da locomotiva a vapor nos inícios do século XIX e, pouco depois, do comboio (não por acaso chamado "cavalo de ferro"), e a subsequente construção de vias férreas ligando as principais cidades ditou a gradual obsolescência do cavalo como meio de transporte de longa distância, quer de pessoas, quer de mercadorias, inclusive de correio (o cavalo representado no antigo símbolo dos CTT é um testemunho desse passado áureo). Já no século XX, os eléctricos e as viaturas movidas a motor de combustão interna – particulares e colectivas – teriam o condão de retirar de vez o cavalo das ruas das cidades e das vilas. O mesmo aconteceu na guerra, com a mecanização e o desenvolvimento tecnológico do armamento. Ante carros de combate blindados e aviões bombardeiros, os cavalos seriam simplesmente, como sói dizer-se, carne para canhão. Mesmo tendo perdido muita da importância que tivera outrora para o homem, o cavalo não regressou à condição de animal selvagem, no mundo ocidental. Continua a ser usado na agro-pastorícia, designadamente como montada de guardadores de gado bovino (citem-se os campinos do Ribatejo, os rancheiros dos Estados Unidos e os gaúchos das pampas argentinas), e em actividades recreativas e desportivas (tracção de charretes em percursos turísticos, corridas, saltos de obstáculos, equitação de alta escola, espectáculos circenses e tauromáquicos...), devendo referir-se o potencial terapêutico – hipoterapia – que está provado existir pondo-se em contacto com o cavalo crianças e até adultos portadores de determinadas deficiências de índole física, cognitiva, social ou afectiva.
De todos os animais, o cavalo é o mais representado na arte e não apenas na escultura, na pintura, na música, no cinema – também na literatura romanesca (bastará mencionar o Rocinante, montada de D. Quixote da la Mancha, no romance de Cervantes) e na poesia. No último caso, o exemplo mais paradigmático talvez seja o Cavalo de Tróia, na "Ilíada", de Homero, dentro do qual os guerreiros aqueus (gregos) lograram entrar na cidade de Ilion (Tróia), ao cabo de dez longos anos de cerco, para resgatarem Helena de Esparta que havia sido raptada pelo príncipe troiano Páris. Ainda na poesia grega antiga, mormente na "Teogonia", de Hesíodo, é referido Pégaso, o cavalo branco alado nascido do sangue da Medusa quando foi decapitada por Perseu, mítico corcel esse que transportando o herói Belerofonte esteve envolvido em várias façanhas (entre as quais a morte da Quimera, monstro cuspidor de fogo) e, depois, ascendeu ao Olimpo ficando ao serviço de Zeus e, por fim, recebendo como prémio ficar eternizado numa constelação celeste.
Na poesia de língua portuguesa do século XX, há três poemas que são de referência obrigatória: "Do vale à montanha, / Da montanha ao monte, / Cavalo de sombra, / Cavaleiro monge...", de Fernando Pessoa, que foi musicado por Fernando Lopes-Graça e por Mário Pacheco (neste caso, para a voz da fadista Mariza); "Quero um Cavalo de Várias Cores", de Reinaldo Ferreira, musicado por diversos compositores e cantado, entre outros intérpretes, por Filipa Pais; e "O Cavalo", de Natália Correia. Ao último, por se tratar de um poema em que está lapidarmente expressa a aura majestosa e misteriosa do nobre equídeo que tantos olhos humanos extasiou (parafraseando a autora), e dado que o actor/recitador Vítor de Sousa teve a mui louvável iniciativa de gravá-lo para o seu álbum "No Palco da Poesia" (Ovação, 1995), achámos por bem dar-lhe aqui realce na presente data, em jeito de celebração do Dia Mundial do Animal. A ideia surgiu-nos quando escutámos recentemente uma interessante edição do programa "Fora da Gaveta" (Antena 2), de Tânia Valente, subordinada ao tópico "Cavalos à solta", cuja audição recomendamos vivamente [>> RTP-Play].
Foi na Antena 1, pela mão de Mestre Rafael Correia, no seu memorável "Lugar ao Sul", que o escrevente destas linhas escutou, pela primeira vez, o poema "O Cavalo", de Natália Correia, recitado por Vítor de Sousa, e nunca mais o esqueceu. Do que não se pode gabar é de alguma vez ter tornado a ouvi-lo na mesma rádio. Serve este lamento para voltar a chamar a atenção de quem de direito para a gritante lacuna de uma rubrica regular de poesia no canal generalista da estação pública de radiodifusão...
Poema de Natália Correia [in "JL - Jornal de Letras, Artes e Ideias", N.º 302, 19 Abr. 1988; De "Inéditos (1985/1990)", in "O Sol nas Noites e o Luar nos Dias II", Lisboa: Projornal/Círculo de Leitores, 1993 – p. 310; "Poesia Completa", Col. Poesia do Século XX, Vol. 32, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1999 – p. 559]
Recitado por Vítor de Sousa* (in CD "No Palco da Poesia", Ovação, 1995, reed. Ovação, 2000)
Teus poros exalam o fumo
Do lar dos deuses de onde vieste.
Rompante de espuma e de lume
És sol quadrúpede ou mar equestre?
Desfilando derramas o ouro
Do teu rio inacabável,
Desmedido relâmpago louro
De um deus equídeo possante e frágil.
Tudo existiu para que fosses
No contraluz desta madrugada
Mitológica proporção perfeita
Em purpúrea bruma recortada.
Pois que te é divino mister
Humanos olhos extasiar,
A dúvida é só perceber
Se vieste do sol ou do mar.
(in https://www.facebook.com/cmribeiragrd/)
Cartaz anunciando a abertura da exposição "Viola da Saudade" que esteve patente no Museu Municipal da Ribeira Grande, Ilha de São Miguel, entre 21 Dez. 2024 e 28 Mar. 2025.
A mostra incluiu uma homenagem ao Mestre Miguel de Braga Pimentel, natural da freguesia da Maia do mesmo concelho, como forma de enaltecer o seu contributo para a dignificação deste tradicional instrumento açoriano e para o ensino da arte de tocá-lo bem, não deixando também de reconhecer o trabalho de outras figuras que foram decisivas para que a viola da terra tomasse novo impulso no cenário regional e micaelense.
O projecto surgiu no âmbito de uma parceria com a Direcção-Regional da Cultura dos Açores e contou com a colaboração da família do homenageado, apresentando-se como um contributo para a candidatura da Viola da Terra ao Inventário Nacional do Património Cultural Imaterial e, posteriormente, a Património Cultural Imaterial da Humanidade.
Há um ano, celebrando o dia da viola da terra, apresentámos sete peças instrumentais eximiamente tangidas por Mestre Miguel Pimentel e uma delas foi a 1.ª versão das cinco "saudades" micaelenses presentes no seu maravilhoso álbum "Sons d'Outrora" [cf. "Sons d'Outrora" em viola da terra, por Miguel Pimentel"]. Hoje, cingimo-nos a esse subgénero da tradição musical dos Açores que versa sobre a saudade, tão cara aos açorianos (quanto mais não seja por muitos deles se encontrarem ausentes do torrão natal), destacando a primeiríssima "Saudade" com a qual os ouvidos do continental escrevente destas linhas tomaram contacto, enlevados, e que a cada revisitação novamente embevecidos se sentem: a gravada pela Ronda dos Quatro Caminhos para o seu magnífico álbum "Amores de Maio" (1986), recriação essa que tem por base (primeira estrofe e música) uma recolha fonográfica efectuada pelo Prof. Artur Santos, em 1960, na ilha de São Miguel. Segundo a nota daquele distinto etnomusicólogo apensa à recolha, trata-se de uma canção dançada ou moda de baile e na versão da Ronda, esplendidamente cantada por João Cavadinhas (é justíssimo reconhecê-lo), o acompanhamento é assegurado não por duas violas (como na recolha), mas por quatro (tocadas por António Prata) e ainda por uma rabeca, instrumento também bastante usado na música tradicional das nove Ilhas de Bruma. O resultado, esse, é absolutamente soberbo! Boa escuta, com as cativantes sonoridades da viola da terra!
A Ronda dos Quatro Caminhos é outro dos grandes e históricos grupos da Música Tradicional Portuguesa alvo de discricionário e criminoso boicote por quem tem administrado a 'playlist' da Antena 1 e, por causa disso, é assaz provável que muitos dos mais fiéis ouvintes do canal, mormente os dos estratos etários abaixo dos cinquenta anos, nunca a tenham escutado. Os que acederem a esta página terão a oportunidade de colmatar essa lacuna na sua mundividência musical/cultural e, terminada a audição (se prazenteira, como esperamos), bem poderão maldizer a parte da contribuição do audiovisual que lhes é cobrada e serve para alimentar os indivíduos instalados na rádio do Estado que se arrogaram/arrogam em marginalizar uma quantidade substancial da melhor música portuguesa (continental e insular).
Saudade
Letra e música: Popular (Ilha de São Miguel, Açores)
Informantes: Manuel da Câmara Vieira (canto), Manuel Cabral Gravita e João Ferreira de Melo (violas de arame)
Recolha: Artur Santos (campanha de 1960) (in 7LP "O Folclore Musical nas Ilhas dos Açores: Antologia Sonora da Ilha de S. Miguel": LP 2, Instituto Cultural de Ponta Delgada, 1965, reed. 4CD "O Folclore Musical nas Ilhas dos Açores: Antologia Sonora da Ilha de S. Miguel": CD 1, faixa 21, Açor/Emiliano Toste, 2001) [>> YouTube]
Intérprete: Ronda dos Quatro Caminhos* / voz de João Cavadinhas [in LP "Amores de Maio", Contradança, 1986, reed. Ovação, 1992, 1997; CD "Canções Esquecidas" (compilação), Ovação, 2005]
[instrumental]
Ai! As saudades são tantas
Que eu por ti tenho às vezes,
Ai! As saudades são tantas,
minha Saudade,
Que eu por ti tenho às vezes,
Que até l'as mando espalhar [bis]
Oh! Que até l'as mando espalhar,
minha Saudade,
Por cima dos campos teus.
São tantas as saudades
Que nem as posso contar,
Oh! São tantas, tantas as saudades,
minha Saudade,
Que nem as posso contar:
São tantas como as estrelas [bis]
Ai! São tantas como as estrelas,
minha Saudade,
Como as areias do mar.
[instrumental]
Dizem que a saudade espera
Ausência para chegar,
Oh! Dizem que a saudade espera,
minha Saudade,
Ausência para chegar;
Eu tenho saudades tuas [bis]
Oh! Eu tenho saudades tuas,
minha Saudade,
Mesmo antes de te deixar.
Já lá vai Abril e Maio,
Já lá vão estes dois meses,
Oh! Já lá, lá vai Abril e Maio,
minha Saudade,
Já lá vão estes dois meses;
Só não se vão as saudades [bis]
Oh! Só não se vão as saudades,
minha Saudade,
Que eu por ti tenho às vezes.
[instrumental]
* Instrumentos: quatro violas de arame e violino.
Nota: «Instrumento tipicamente açoriano (embora seja conhecido e utilizado também na Madeira), a viola de arame acompanha à maravilha o canto repousado e suave dos cantadores.
Com cinco ordens de cordas (duas triplas e três duplas) e uma afinação semelhante à da viola comum, possui uma sonoridade por vezes grosseira, por vezes doce, mas sempre enleante, quer quando soam as cordas mais graves no desenho dos baixos, ou quando se evidencia um trecho melódico.
Conhecida e utilizada em todo o arquipélago, apenas na ilha Terceira a viola tem outras características, apresentando seis ordens de cordas (três duplas e três triplas).
Saudade! Saudade dos que partiram, dos que ficaram, de um amor ausente?! Sentir-se-á ainda, após tantas e tantas gerações, a nostalgia dos primeiros povoadores? De qualquer modo, é a saudade o sentimento inspirador de algumas das mais belas quadras da poesia popular açoriana.» (Ronda dos Quatro Caminhos)
* [Créditos gerais do disco:]
Ronda dos Quatro Caminhos:
António Prata – viola campaniça, viola de arame, violino, concertina, flautas e voz
António Silva Lopes – bombo, caixa, pandeiro, pinhas e voz
Daniel Completo – viola, pandeireta e voz
Fátima Valido – cavaquinho, bandolim, banjola e voz
João Cavadinhas – viola, viola braguesa, rajão, banjola, baixo acústico e voz (solo em "Saudade")
Capa da edição com 7 LP "O Folclore Musical nas Ilhas dos Açores: Antologia Sonora da Ilha de S. Miguel" (campanha de 1960), Investigação, gravações e organização da antologia por Artur Santos, com a colaboração de Túlia Santos (Instituto Cultural de Ponta Delgada, 1965)
Capa da reedição em 4 CD do conteúdo da edição anterior (Açor/Emiliano Toste, 2001)
Capa do CD n.º 1 da edição precedente.
Capa do LP "Amores de Maio", da Ronda dos Quatro Caminhos (Contradança, 1986)
Concepção – Cristina Amaral
Capa da 1.ª reedição em CD do álbum "Amores de Maio", da Ronda dos Quatro Caminhos (Ovação, 1992)
Concepção – Cristina Amaral
Capa da 2.ª reedição em CD do álbum "Amores de Maio", da Ronda dos Quatro Caminhos (Ovação, 1997)
Concepção – João Vaz de Carvalho
Capa da compilação em CD "Canções Esquecidas", da Ronda dos Quatro Caminhos (Ovação, 2005).
(in https://commons.wikimedia.org/)
Henri Rousseau, "Le Rêve" ("O Sonho"), 1910, óleo sobre tela, 204,5 × 298,5 cm, Museum of Modern Art, Nova Iorque
[Para ver a imagem em ecrã inteiro, noutra janela, é favor clicar aqui]
«Numa primeira audição, esta "invasão" provoca algum desconforto. Não é um disco fácil. Os Gaiteiros de Lisboa confundem e incomodam. Preferem arriscar a petiscar. Lutadores, empunham uma espada do mesmo calibre da que em vida empunhou José Afonso. Desbravar o que ainda não existe e, com o impossível, fazer obra.
[...]
Disco pretensioso, sem dúvida, no modo como escapa a qualquer catalogação e se distancia com orgulhos dos caminhos mais fáceis e mil vezes trilhados de fazer "música de raiz tradicional". Disco experimental, também. Os Gaiteiros, mais do que usar, abusam do legado tradicional, entregando-se a cirurgias de parto capazes de originar os mutantes de uma nova tradição ou, em termos gráficos, a instrumentos como a "besta-de-foles" da capa. E se temas como "Talvez que sonhando" ou "Décimas" surgem marcados pela influência, respectivamente, de José Mário Branco e Fausto, outros, verdadeiramente de antologia, como "O menino está na neve", erguem a nossa música popular a patamares nunca antes atingidos. Música "bárbara", sem dúvida, pela heresia formal que a enforma, e porque fremente e virgem dos maneirismos que deitam tudo a perder e fazem nascer o preconceito.»
Foi com estas palavras que o reputado e saudoso crítico musical Fernando Magalhães recenseou o álbum "Invasões Bárbaras", disco de estreia dos Gaiteiros de Lisboa, nas páginas do suplemento "Pop Rock" do jornal "Público", de 18 de Outubro de 1995 [texto completo em "Poeira Cósmica"]. Fernando Magalhães foi lúcido e cortês na apreciação da proposta arrojada e algo desconcertante que os novos Gaiteiros apresentavam, mas houve alguma gente respeitável que não lhes perdoou a ousadia e não se coibiu de 'mimá-los' com censuras malévolas, atitude que daria azo à escolha da expressão "Bocas do Inferno" para título do segundo álbum, publicado dois anos mais tarde. Mas não foi só na recriação heterodoxa da nossa herança etnomusical que os Gaiteiros de Lisboa se diferenciaram dos projectos mais canónicos e reconhecidos da música tradicional lusitana; foi também na aposta de gravarem repertório original, concebido, claro está, segundo os inovadores e distintivos padrões estético-estilísticos que adoptaram. Um magnífico exemplo disso é a canção "Talvez Que Sonhando", que Sérgio Godinho escreveu e compôs expressamente para eles, e que o esmerado arranjo de José Mário Branco (atente-se na magistral construção harmónica das vozes) elevou à categoria de pérola superlativamente fascinante no universo do nosso património musical, genericamente considerado. Ora, considerando a efeméride do trinténio do lançamento do álbum "Invasões Bárbaras", e uma vez que a letra gizada por Sérgio Godinho versa sobre quem labuta e não desiste de sonhar com ou em prol da música, consciente que está do quão essencial ela é à vida («Ter sempre a certeza da música / Por via da música tocar e cantar»), afigurou-se-nos inteiramente apropriado dar destaque a "Talvez Que Sonhando" neste dia em que se celebra a arte dos sons. Boa escuta!
O vil ostracismo a que a música portuguesa de raiz/matriz tradicional tem sido votada por quem superintende/administra a 'playlist' da Antena 1 tem como efeito que nos larguíssimos períodos da emissão de continuidade seja impossível apanhar o quer que seja da produção dos Gaiteiros de Lisboa. Tal atitude, além de representar um criminoso acto de sonegação cultural aos ouvintes de um canal que eles pagam, traduz-se em clamorosa injustiça a um grupo que se afirmou, nas últimas três décadas, como de absoluta referência no meio musical português. Haja decência e sentido de serviço público!
Talvez Que Sonhando
Letra e música: Sérgio Godinho
Intérprete: Gaiteiros de Lisboa* [in CD "Invasões Bárbaras", Farol Música, 1995; CD "A História" (compilação), Uguru, 2017]
[instrumental]
Ser ou não ser gente
Ter ou não ter sonhos
Mais exactamente – vir
À tona dos sonhos
Ter sempre a certeza das dúvidas
Por via das dúvidas saber o que achar
Dobradores do ferro
Sopradores do vidro
Na margem do erro – ser
Claro como o vidro
Ter sempre a destreza da prática
Por via da prática saber o que achar
Ah, morrer, dormir, talvez sonhar
mas então
Que outros sonhos virão?
Morrendo, vivendo, dormindo,
Talvez que sonhando...
Ter sempre a certeza da música
Por via da música tocar e cantar
Sedutores da musa
Amadores da alma
Mesmo que difusa – ser
A imagem da alma
Ter sempre a clareza da fábula
Por via da fábula saber o que achar
Dedos semelhantes
Às velozes aves
Mesmo que distante – ouvir
O chamar das aves
Ter sempre a afoiteza do pássaro
Por via do pássaro subir e pousar
Ah, morrer, dormir, talvez sonhar
Mas então
Que outros sonhos virão?
Morrendo, vivendo, dormindo,
Talvez que sonhando...
Ter sempre a certeza da música
Por via da música tocar e cantar
Ser ou não ser gente
Ter ou não ter sonhos
Mais exactamente – vir
À tona dos sonhos
Ter sempre a certeza das dúvidas
Por via das dúvidas saber o que achar
Ah, morrer, dormir, talvez sonhar
Mas então
Que outros sonhos virão?
Morrendo, vivendo, dormindo,
Talvez que sonhando...
Ter sempre a certeza da música
[instrumental]
* Gaiteiros de Lisboa:
Carlos Guerreiro – sanfona, voz solo, coro
José Manuel David – trompa, flauta, coro
José Salgueiro – percussão
Rui Vaz – voz solo, coro
Músico convidado:
José Mário Branco – percussão, coro
Capa do CD "Invasões Bárbaras", dos Gaiteiros de Lisboa (Farol Música, 1995)
Desenho – Carlos Guerreiro
Design e direcção gráfica – Fátima Rolo Duarte
Arte-final – Luís Miguel (Euphoria Comunicação)
Capa da compilação em CD "A História", dos Gaiteiros de Lisboa (Uguru, 2017)
Desenho – Carlos Guerreiro.
Tu não perguntes (é-nos proibido pelos deuses saber) que fim a mim, a ti,
os deuses deram, Leucónoe, nem ensaies cálculos babilónicos.
Como é melhor suportar o que quer que o futuro reserve,
quer Júpiter muitos invernos nos tenha concedido, quer um último,
este que agora o tirreno mar quebranta ante os rochedos que se lhe opõem.
Sê sensata, decanta o vinho, e faz de uma longa esperança
um breve momento. Enquanto falamos, já invejoso terá fugido o tempo:
colhe cada dia, confiando o menos possível no amanhã.
HORÁCIO, ode 11 do Livro I,
Trad. Pedro Braga Falcão
(in "Odes e Epodos", de Horácio,
Lisboa: Edições Tinta-da-China, 2022 – p. 87)
Notas:
1. cálculos babilónicos – horóscopos;
2. colhe cada dia – tradução de carpe diem, a mais conhecida expressão horaciana, também passível de ser vertida como "colhe o dia", "colhe o fruto do dia" ou "colhe cada fruto do dia".
[...]
Como forma de concluirmos esta introdução, poderá ser também interessante colocar em contraste com este poeta renascentista [António Ferreira] outro dos maiores vultos da língua portuguesa, Fernando Pessoa, como forma de exemplificarmos o modo por vezes coincidente, outras irreconciliável como Horácio foi sendo reinterpretado nas diversas vozes da literatura ocidental. Referimo-nos mais concretamente a Ricardo Reis, o heterónimo pessoano «latinista por educação alheia, e um semi-helenista por educação própria» (tal como Pessoa o define numa carta a Adolfo Casais Monteiro, de 13 de Janeiro de 1935). Nas suas odes — conscientemente assim apelidadas pelo seu autor —, o poeta simula algo semelhante a uma «estrofe alcaica» e uma «estrofe sáfica» (tal como Álvaro de Campos as descreve), tentando recriar em português a sonoridade de uma ode horaciana, experimentando e variando tanto ou mais quanto o próprio António Ferreira tinha feito, desta vez já sem o espartilho da rima. Este experimentalismo é como que um manifesto artístico em alguém que estudou de forma atenta o latim métrico de Horácio, tal como podemos atestar no rascunho de um tratado que se intitularia Nova Métrica (cf. Fernando Lemos, Fernando Pessoa e a Nova Métrica, Inquérito, 1993): é a procura da tal varietas tão querida ao poeta romano. Mas a aproximação formal é apenas uma das diversas perspectivas com que podemos estudar a lírica ricardiana: ao nível da temática, aquilo que Reis decide ou não imitar diz muito da sua personalidade literária. Ao contrário de Ferreira, como seria de esperar, ao heterónimo pessoano pouco ou nada interessa a face mais política ou social das odes horacianas, nem a sua essência dialógica (quase não há dedicatórias nas odes de Reis, e grande parte não tem destinatário definido). Mesmo o discurso metapoético, ainda que aflorado em odes como «Quero versos que sejam como jóias» (ode 55 na ed. de Manuela Parreira da Silva, Assírio & Alvim, 2007), poema onde aliás o nome de Horácio é explicitamente referido, não é central em Reis. Para além do formalismo da ode, da sua estrutura rítmica diversa, e daquele tal tom solene e rebuscado, típico da ode latina, são os poemas de Horácio sobre a natureza humana que mais parecem interessar ao heterónimo pessoano: a busca de uma simplicidade que escapa continuamente ao homem, o motivo do carpe diem e da inexorabilidade da morte, a omnipotência da fortuna, a efemeridade da alegria e do prazer, posta no contexto da imagética do banquete e do elogio do vinho, tão caros à estética horaciana. Mesmo na temática amorosa, temos de ter algum cuidado nas eventuais aproximações que possamos fazer. O nome de Lídia, obviamente, é uma vénia ao poeta romano, mas toda a sexualidade e erotismo típicos do autor latino são como que expurgados numa presença feminina que parece habitar nos poemas pessoanos, não no corpo de uma mulher, mas num espírito algo descarnado. De facto, os nomes das amadas de Horácio são interpelados nas odes de Reis apenas como isso: simples nomes, sem nenhuma daquela carga sexual com que o romano as encena nas suas odes, isto para além do facto de o amor homoerótico, comum na lírica de Horácio, estar de todo ausente das odes de Reis.
[...]
PEDRO BRAGA FALCÃO
(Da Introdução a "Odes e Epodos", de Horácio,
Lisboa: Edições Tinta-da-China, 2022 – p. 44-46)
Prosseguindo a celebração de Fernando Pessoa, neste ano do noventenário da sua morte, assinalamos o equinócio do Outono com uma ode do seu heterónimo horaciano, Ricardo Reis: aquela que tem como incipit "Quando, Lídia, vier o nosso outono", na leitura irrepreensível do actor Luís Lucas, que os deuses chamaram a si há menos de um mês. Boa escuta! Carpe diem!
Ainda não nos demos conta, no ano em curso, o qual já só está a pouco mais de dois meses de 30 de Novembro (dia preciso da efeméride da morte de Fernando Pessoa), de qualquer inicitiva nas antenas nacionais da rádio pública visando celebrar o nosso maior poeta do século XX. Vão limitar-se a uma simples evocação naquela data, do tipo "toca-e-foge", e nada mais?
Quando, Lídia, vier o nosso outono
Poema de Ricardo Reis (in "Presença: Folha de Arte e Crítica", N.º 31-32, Coimbra, Mar.-Jun. 1931 – p. 10; "Odes de Ricardo Reis", Col. Poesia, Série 'Obras Completas de Fernando Pessoa', Vol. IV, Lisboa: Edições Ática, 1946, 1987 – p. 120; "Poesia de Ricardo Reis", Org. Manuela Parreira da Silva, Col. Obras de Fernando Pessoa, Lisboa: Assírio & Alvim, 2000, 2007, 2023; "Poemas de Ricardo Reis", Org. Luiz Fagundes Duarte, Col. Pessoana Edições, Vol. I, Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2015 – p. 25)
Dito por Luís Lucas* (in livro/2CD "Ao Longe os Barcos de Flores: Poesia Portuguesa do Século XX": CD 1, Col. Sons, Assírio & Alvim, 2004)
Quando, Lídia, vier o nosso outono
Com o inverno que há nele, reservemos
Um pensamento, não para a futura
Primavera, que é de outrem,
Nem para o estio, de quem somos mortos,
Senão para o que fica do que passa —
O amarelo actual que as folhas vivem
E as torna diferentes.
Capa do livro "Odes e Epodos", de Horácio; tradução, introdução e notas: Pedro Braga Falcão (Lisboa: Edições Tinta-da-China, Set. 2022)
Concepção – Vera Tavares (Edições Tinta-da-China)
Capa do N.º 31-32 da revista "Presença: Folha de Arte e Crítica" (Coimbra, Mar.-Jun. 1931)
Desenho – Sara Afonso
Página 10 da publicação anterior onde consta a ode "Quando, Lídia, vier o nosso outono", de Ricardo Reis
Capa da 1.ª edição do livro "Odes de Ricardo Reis" (Col. Poesia, Série 'Obras Completas de Fernando Pessoa', Vol. IV, Lisboa: Edições Ática, 1946)
Desenho – José de Almada Negreiros
Capa da 1.ª edição do livro "Poesia de Ricardo Reis", Org. Manuela Parreira da Silva (Col. Obras de Fernando Pessoa, Lisboa: Assírio & Alvim, Out. 2000)
Capa da 2.ª edição do livro "Poesia de Ricardo Reis", Org. Manuela Parreira da Silva (Col. Obras de Fernando Pessoa, Lisboa: Assírio & Alvim, 2007)
Capa da 3.ª edição do livro "Poesia de Ricardo Reis", Org. Manuela Parreira da Silva (Col. Obras de Fernando Pessoa, Porto: Assírio & Alvim, Mai. 2023)
Capa do livro "Poemas de Ricardo Reis", Org. Luiz Fagundes Duarte (Col. Pessoana Edições, Vol. I, Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Abr. 2015)
Capa do livro "Fernando Pessoa: Vida e Obras de Ricardo Reis", Org. Teresa Rita Lopes (São Paulo: Global Editora, 2018)
Capa do livro (com 2 CD) "Ao Longe os Barcos de Flores: Poesia Portuguesa do Século XX" (Col. Sons, Lisboa: Assírio & Alvim, 2004).
Imagem heliográfica – Lourdes Castro ("Mangueiro", in Grand Herbier d'Ombres, 1972)