19 novembro 2024
José Mário Branco com Fausto: "Canto dos Torna-Viagem"
A descolonização, que a Revolução dos Cravos tornou possível e que tinha de ser feita (embora se possa questionar o modo como se processou), teve como efeito o êxodo de mais de meio milhão de pessoas vindas de África para este rectângulo europeu e para os arquipélagos atlânticos adstritos. Eram os chamados retornados, se bem que, em rigor, alguns não o fossem, porque já nascidos em territórios de além-mar. A esses despojos humanos do colapso do império, cuja integração na sociedade portuguesa, analisada à distância, foi surpreendente atendendo à sua dimensão, se refere o "Canto dos Torna-Viagem" que José Mário Branco gravou com Fausto Bordalo Dias para o álbum "Resistir É Vencer", publicado há vinte anos. E percebe-se perfeitamente que José Mário Branco tenha convidado para aquele tema concreto o autor de "Por Este Rio Acima" e de "Crónicas da Terra Ardente", que são dois sublimes frescos poético-musicais da Expansão Portuguesa, não tanto em glorificação de heróis incomparáveis ou em enaltecimento de façanhas inauditas, como era timbre do colonialista Estado Novo, mas mais como documento ilustrativo da vida aventurosa e temerária de homens comuns por mares ignotos e terras estranhas, e do destino desditoso que muitos deles tiveram. Entre os malogrados pioneiros de Quinhentos e os derradeiros colonos do império, a quem não restou outra saída do que largar tudo em terras africanas para virem recomeçar a vida a partir do zero neste muito menos promissor rincão lusitano de onde haviam fugido, é lícito estabelecer um certo paralelismo – são as duas extremidades de um ciclo que se fechou –, o que torna ainda mais pertinente o convite que José Mário Branco dirigiu especificamente a Fausto, a não a outro artista que admirasse. E o arranjo também não foi gizado aleatoriamente, pois é notória a inspiração na estética de Fausto patente nos álbuns supracitados.
É pois com este fascinante e inspirado "Canto dos Torna-Viagem" que assinalamos o primeiro lustro sem a presença entre nós de José Mário Branco, aproveitando o pretexto para também homenagearmos, ainda que muito modestamente, Fausto Bordalo Dias que partiu há escassos meses. Dando destaque a este notável registo, pretendemos igualmente exemplificar o superlativo valor do legado musical/fonográfico de José Mário Branco e mostrar o quanto é culturalmente importante e imperioso estimá-lo, salvaguardá-lo e divulgá-lo. De referir que foi também esse o propósito que motivou o músico Vítor Sarmento a lançar uma petição pública visando a classificação da obra do categorizado cantautor como de interesse nacional, tendo na presente data sido entregue na Assembleia da República o dossier com as quase 4 mil assinaturas recolhidas. Esperamos que os grupos parlamentares e os deputados ajam em conformidade com tal desiderato. No capítulo da divulgação – convém nunca esquecer –, é imprescindível o papel da rádio. Ora, atentamos na pública Antena 1, que é a que tem mais responsabilidades nesse domínio, e não se consegue apanhar o quer que seja na voz de José Mário Branco durante os larguíssimos períodos em que reina a 'playlist'. Como é possível?
Canto dos Torna-Viagem
Letra e música: José Mário Branco
Intérpretes: José Mário Branco* & Fausto Bordalo Dias (in CD "Resistir É Vencer", José Mário Branco/EMI-VC, 2004, reed. Parlophone/Warner Music Portugal, 2017)
[instrumental]
Foi no sulco da viagem
Já sem armas nem bagagem
Nem os brasões da equipagem
Foi ao voltar
Pátria moratória
No coração da História
Que consumiste a glória
Num jantar
Foi como se Portugal
P'ra seu bem e p'ra seu mal
Andasse em busca dum final
P'ra começar
Ávida violência
Reverso de inocência
Sal da inconsciência
Que há no mar
Império tão pequenino
De portulano caprino
Bolsos de sina e de sino
Em cada mão
Pátria imaginária
De consistência vária
Afirmação diária
Do teu não
As malas dos portugueses
São como os olhos das rezes
Que se mastigam três vezes
Em cada chão
Cândida ignorância
Grande desimportância
Os frutos da errância
Já lá vão
Ai Senhora dos Navegantes me valei
De África, do sal e do mar só eu sobrei
Foi p'ra me encontrar que amanhã já me perdi
Longe vai o tempo em que eu já não estou aqui
Ai Senhora dos Talvez-Muitos-Mais-Sinais
Socorrei estes desperdícios coloniais
Foi na noite fria que o dia me cegou
Inda agora fui, inda agora cá não estou
Ai Senhora dos Esquecidos me lembrai
O caminho que p'ra lá vem e p'ra cá vai
Etecetra e tal, Portugal é nós no mar
Inda agora vim e estou longe de chegar
Ai Senhora dos Meus Iguais que eu subtraí
Foi pataca a mim e não foi pataca a ti
Se é tão grande a alma na palma do meu ser
Algum dia eu vou finalmente acontecer
Porque não tentar outro ponto de vista
A história dos outros, quem a contará
Se qualquer colónia sem colonialista
São os que já estavam lá
Tentemos então ver a coisa ao contrário
Do ponto de vista de quem não chegou
Pois se eu fosse um preto chamado Zé Mário
Eu não era quem eu sou
Os navegadores chegaram cá a casa
E foi tudo novo p'ra eles e p'ra mim
A cruz e a espada e os olhos em brasa
Porque me trataste assim?
Não é culpa nossa se quem p'ra cá veio
Não se incomodou ao saber do horror
A História não olha a quem fica no meio
E o que foi é de quem fôr
[instrumental / som do mar e do vento a bordo de um barco à vela]
* José Mário Branco – voz
Fausto Bordalo Dias – voz
José Peixoto, Francisco Abreu – guitarras acústicas
Carlos Bica – contrabaixo
Tomás Pimentel, Nuno Marques – trompetes
Claus Nymark, Luís Cunha – trombones
Rui Marques – flautim
António José Martins, João Luís Lobo, Fernando Molina – percussão
Quarteto Anthropos (Viena):
Luís Morais – 1.º violino
Ko Wang-Yo – 2.º violino
Michael Trabesinger – viola d'arco
Lee il-Se – violoncelo
Orquestra de Gratz (Viena):
Dong Hynk Kim – maestro
Luís Morais, Sergei Bolotny, Andreas Kalfmann, Annette Veiltendorber, Narachi Nima e Kathrin Lenzenweger – 1.os violinos
Ko Wang-Yo, Smaranda Lelutiv, Orsolya Pálfi, Nora Põtter, Stalislava Svirac e Ardian Lahi – 2.os violinos
Michael Trabesinger, Marie Therese Hartet, Laura Jungairth e Margarethe Hlava – violas d'arco
Lee il-Se, Pflegard Wilhelm e Ele Schõfmann – violoncelos
James Rapport e König Franz – contrabaixos
Grupo Coral "Os Escolhidos" (Amélia Muge, Fernando Pinheiro, Filipa Pais, Genoveva Faísca, Guilhermino Monteiro, Jorge Palma, José Manuel David, Luísa Rodrigues, Manuela de Brito, Paulo Santos Silva e Rui Vaz) – coro
Coro dos Gambozinos, Porto (Afonso Souto Moura, Amendoim, Ana Lusa Abreu, Ana Lusa Moura, Bárbara, Batatinha frita, Carolina Duarte, Chenda, Coelho, Cuca, Gui, Maria Rui, Mariana Branco, Microfone, Miguel Simões, Pilas, Presunto, Rita Sousa e Teia – ensaiados, dirigidos e muito amados por Suzana Ralha) – coro
Luís Martins Saraiva – sonoplastia da coda
Direcção, produção, arranjos e orquestrações – José Mário Branco
Assistência de produção artística – Manuela de Freitas
Assistência de produção musical – António José Martins
Produção executiva – Paulo Salgado / Vachier & Associados, Lda.
Direcção técnica – António Pinheiro da Silva
Assistência de direcção técnica e anotações – Maria João Castanheira
Gravado e masterizado no Estúdio 'O Circo a Vapor' (Lisboa), por António Pinheiro da Silva, Frederico Pereira e Maria João Castanheira, de Janeiro a Março de 2004
Gravação de cordas na Wiener Konzerthaus (Viena) por António Pinheiro da Silva, Maria João Castanheira, Georg Burdicek e Andreas Melcher, em Fevereiro de 2004
Edição e misturas nos Estúdios Pé-de-Meia (Oeiras), por António Pinheiro da Silva, Frederico Pereira, Maria João Castanheira e José Mário Branco, em Fevereiro e Março de 2004
URL: https://pt.wikipedia.org/wiki/Jos%C3%A9_M%C3%A1rio_Branco
https://arquivojosemariobranco.fcsh.unl.pt/
https://www.facebook.com/FascismoNuncaMais/posts/725849500857765/
https://expresso.pt/cultura/2019-11-19-O-momento-antes-de-disparar-a-seta-a-entrevista-de-Jose-Mario-Branco
https://www.buala.org/pt/cara-a-cara/jose-mario-branco-a-eterna-inquietacao
https://www.nit.pt/cultura/musica/morte-lenda-momentos-marcantes-vida-jose-mario-branco
https://www.esquerda.net/topics/dossier-303-jose-mario-branco-voz-da-inquietacao
https://www.publico.pt/jose-mario-branco
https://www.youtube.com/channel/UChQPBSV5W6kL-jw1Tp08g_w
https://www.youtube.com/user/DoTempoDosSonhos/videos?query=jose+mario+branco
Capa do CD "Resistir É Vencer", de José Mário Branco (EMI-VC, 2004)
Reprodução parcial do quadro "Resistência", 1946, de Júlio Pomar [imagem da obra integral e texto explicativo de Ana Anacleto >> aqui]
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15 novembro 2024
Ruy Belo: "E Tudo Era Possível", por Nicolau Santos
© Duarte Gromicho, Out. 2021 (in https://view.genially.com/)
«Dois investigadores da Universidade de Pittsburgh colocaram mais de 1600 pessoas diante de dez poemas. Cinco desses poemas haviam sido gerados por Inteligência Artificial, tomando como modelo o estilo de poetas como T.S. Elliot ou Lord Byron. Os leitores não conseguiram distinguir, entre os dez poemas, quais eram genuinamente de Shakespeare ou do Nobel de Literatura influenciado por [Ezra] Pound e quais tinham sido gerados por sistema informático. Mas tendiam a preferir, por serem "mais directos e acessíveis", aqueles que tinham sido produzidos pela artificiosa máquina lírica. Máquina lírica não vos soa a Herberto? Soa-vos bem. Que diz mais a notícia? Diz que a alegada maior compreensão dos poemas gerados por Inteligência Artificial conduziu a maioria dos participantes à convicção de que esses, os "mais fáceis de compreender", eram os poemas de "autoria humana". Dito de outro modo: a malta prefere poemas da IA. IA, meu.
Se o mercado se render ao filão da poesia produzida artificialmente podemos imaginar amantes do antigo e humano modelo criativo procurando velhas livrarias como se procurassem abrigos nucleares. Uso a palavra "nuclear" querendo significar "central", "essencial". Querendo significar a sua importância vital, desmesurada.
Manoel de Barros, o meu poeta tão amado, deixou firmados estes versos sobre importâncias quando nem se falava de Inteligência Artificial: "O cu de uma formiga é mais importante para o poeta do que uma usina nuclear".
Assim pudesse surgir, entretanto, um Álvaro de Campos que nos gritasse com novas palavras, com novas humanas palavras: "Estou cansado da inteligência. Pensar faz mal às emoções". Um futuro criador de geniais heterónimos ousará lançar ao Chat GPT o verso mote desabrido "Estou cansado da inteligência artificial"?
Lá está Herberto no "Poemacto": "As vacas dormem, as estrelas são truculentas/ a inteligência é cruel/ Eu abro para o lado dos campos./ Vejo como estou minado por esse/ puro movimento de inteligência. Porque olho/ rodo nos gonzos como para a felicidade/ Mais levantadas são as arbitrárias ervas/ do que as estrelas/ Tudo dorme nas vacas/ Oh violenta inteligência onde as coisas/ levitam preciosamente".
É possível? Será possível que a IA detenha esse poder que o poeta alcança e de que fala Ruy Belo num poema. "Na minha juventude antes de ter saído/ da casa de meus pais disposto a viajar/ eu conhecia já o rebentar do mar/ das páginas dos livros que já tinha lido". Está no "Homem de Palavra(s)" esse poema que termina com o poeta perguntando-se quando foi isso, não tendo para essa pergunta resposta bastante. Isso explica os versos finais do poema: "Só sei que tinha o poder duma criança/ Entre as coisas e mim havia vizinhança/ E tudo era possível, era só querer".
A notícia que motivou esta deambulação diz-nos, da Inteligência Artificial, a possibilidade de que ela confunda leitores, mais ou menos calejados, de poetas maiores. Admitamos que, com a sua vasta asa tecnológica, essa possibilidade abranja tudo. E que tudo seja possível, mesmo se apenas ilusoriamente possível. Também, nesta nova frente poética, genialmente enganadora, bastará querer? Se sim, até onde irá o querer desta fonte geradora de formidáveis enganos?» [Fernando Alves, "A máquina lírica", in "Os Dias que Correm", 15 Nov. 2024]
A TSF-Rádio Jornal, apesar de ser uma rádio privada, logo com as contingências inerentes a essa condição, presenteava sempre os ouvintes da crónica "Sinais", de Fernando Alves, logo que ela acabava, com um registo musical (geralmente cantado, mas podia ser instrumental) ou, uma vez por outra, de poesia dita/recitada. Registos esses que não eram escolhidos à toa, pois obedeciam a um rigoroso e exigente critério de qualidade e de enquadramento temático com as palavras enunciadas pelo cronista. Em matéria de poesia, o escrevente destas linhas lembra-se perfeitamente de ter lá ouvido, em meados de 2022, o célebre "Cântico Negro", de José Régio, recitado (admiravelmente) por Jorge Delfim.
Acaso a crónica que Fernando Alves leu hoje aos microfones da Antena 1 fosse ainda emitida pela TSF, seria, quase de certeza, rematada com um registo recitado de um dos poemas integrais de que o distinto cronista citou passagens, possivelmente "E Tudo Era Possível", de Ruy Belo, por Nicolau Santos, acompanhado ao piano por João Balula Cid, que faz parte do CD "...E Quase Tudo Foi Possível (21 Poemas e um Piano), publicado em 2008. Mas se Ricardo Soares, ou Nuno Galopim de Carvalho, acaso receasse que a transmissão dessa gravação pudesse ser encarada como um acto de dar graxa ao patrão (visto ele ocupar, presentemente, o lugar de presidente do conselho de administração da Rádio e Televisão de Portugal) podia muito bem recorrer ao arquivo histórico que é fabulosamente rico em poesia (dita por, entre outros, Manuel Lereno, Carmen Dolores, Maria Clara, Carlos Achemann, António Cardoso Pinto, Paulo Rato e Eugénia Bettencourt). Estamos em crer que aquele poema de Ruy Belo e os demais evocados por Fernando Alves estão lá representados por alguma daquelas vozes ou por outra. Mas, se por remota hipótese académica, tal não se verificasse, ainda assim podia ser transmitido outro poema de um dos autores nomeados, resgatado do arquivo ou extraído de uma edição discográfica. Suspeitamos que ninguém se importaria com isso e se, porventura, alguém reclamasse, sendo-lhe dada a devida explicação, a compreenderia de bom grado. O que não se compreende, nem se pode tolerar, é que a estatal Antena 1 teime em pecar por omissão e a fazer pior (quando podia fazer igual ou até melhor) do que fazia a privada TSF-Rádio Jornal.
De agora em diante, ante a ameaça da "máquina lírica", como dá nota Fernando Alves, a fruição de poesia verdadeiramente humana (à outra é questionável que se possa chamar-lhe poesia, porque a arte digna desse nome assenta na vida e nas vivências de gente de carne e osso) é um acto de resistência cultural e a rádio do Estado não pode (não deve) ficar alheada desse vital desígnio.
E TUDO ERA POSSÍVEL
Poema de Ruy Belo (in "Homem de Palavra(s)", Col. Cadernos de Poesia, Vol. 9, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1969; "Todos os Poemas", Lisboa: Assírio & Alvim, 2000)
Recitado por Nicolau Santos* [in CD "...E Quase Tudo Foi Possível (21 Poemas e um Piano)", João Balula Cid, 2008]
Música de João Balula Cid
Na minha juventude antes de ter saído
da casa de meus pais disposto a viajar
eu conhecia já o rebentar do mar
das páginas dos livros que já tinha lido
Chegava o mês de maio era tudo florido
o rolo das manhãs punha-se a circular
e era só ouvir o sonhador falar
da vida como se ela houvesse acontecido
E tudo se passava numa outra vida
e havia para as coisas sempre uma saída
Quando foi isso? Eu próprio não o sei dizer
Só sei que tinha o poder de uma criança
entre as coisas e mim havia vizinhança
e tudo era possível era só querer
* Nicolau Santos – voz
João Balula Cid – piano
URL: https://pt.wikipedia.org/wiki/Nicolau_Santos
https://www.meloteca.com/portfolio-item/joao-balula-cid/
https://music.youtube.com/channel/UCqPKRBMxHUlwYovPF7y_0dw
Capa da 1.ª edição do livro "Homem de Palavra(s)", de Ruy Belo (Col. Cadernos de Poesia, Vol. 9, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1969)
Fotografia – António Xavier
Orientação gráfica – Fernando Felgueiras
Sobrecapa da 1.ª edição do volume "Todos os Poemas", de Ruy Belo (Lisboa: Assírio & Alvim, 2000)
Capa do CD "...E Quase Tudo Foi Possível (21 Poemas e um Piano)", de João Balula Cid & Nicolau Santos (João Balula Cid, 2008)
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Outros artigos com poesia de Ruy Belo:
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António Borges Coelho: "Sou Barco"
Celeste Rodrigues: "Chapéu Preto"
Sérgio Godinho: "Tem Ratos"
12 novembro 2024
Sérgio Godinho: "Tem Ratos"
«O grande compositor e poeta repentista Patativa do Assaré, cinco vezes doutor honoris causa, capaz de aliar a mais rústica voz do Ceará às regras do soneto clássico, sabia de pragas e do modo de as rogar. Certa vez, percebendo que vizinhos não identificados lhe roubavam do quintal sucessivas varas de feijão, compôs um poema que lançava sobre eles mais pragas do que as do livro do Êxodo sobre o Egipto. Roubo, para dar algum sabor à crónica, uma breve passagem do poema "Rogando Pragas", de Patativa: "O santo Deus de Moisés/ lhe mande bexiga roxa/ saia carbúnculo na coxa/ cravo na sola dos pés/ sofra os incómodos cruéis/ da doença hidropsia/ icterícia e anemia/ tuberculose e diarreia/ e a lepra da morféia/ seja a sua companhia./ Deus lhe dê reumatismo/ com a sinusite crónica/ a sezão, o impaludismo/ e os ataques da bubónica/ além de quatro picadas/ de quatro cobras danadas/ cada qual a mais cruel/ de veneno fatal/ a urutu, a coral/ jararaca e cascavel".
A rogação é um vasto lençol de pragas, nuvem de gafanhotos verbais, rãs cobrindo a terra como vírgulas. Contudo, mais assustador do que um lançador de pragas contra a saúde alheia é o aparecimento de uma praga numa qualquer instituição dedicada ao cuidado da saúde pública. A praga de ratos que levou, por duas vezes, ao encerramento do Centro de Saúde de São Martinho do Bispo [Coimbra], encosta-nos, na verdade, mais à parede do que as rimas de Patativa, consegue roer muito mais do que a rolha da garrafa do rei da Rússia.
Uma praga de ratos num Centro de Saúde? Aqui há gato. Por mais que nos prometa a notícia uma desinfestação, instala-se o estribilho de uma velha canção do Sérgio: "Tem ratos/ tem ratos/ vivem escondidos/ nos nossos sapatos".
Certas estratégias de alegado combate a pragas são, em si mesmas, calamitosas, pestíferas. Como combatê-las? Há dias, um superintendente da PSP foi chamado a uma comissão do parlamento regional dos Açores. Pediram-lhe que se pronunciasse sobre uma proposta apresentada por cinco deputados do Chega no arquipélago visando a permissão da caça aos ratos e às rolas com armas de fogo, de modo a combater as pragas que afectam as culturas agrícolas. O comandante da Polícia dos Açores considerou a proposta "muito perigosa" e lembrou que ela viola o estabelecido na lei.
Há, na verdade, um abismo entre a caça e o combate às pragas. Algumas escapam, aliás, a todas as técnicas de desinfestação. Este fim-de-semana, em vésperas do jogo entre o Fabril e o Barreirense, para a série D do Campeonato de Portugal, alguém colocou uma tarja na parede do Estádio Alfredo da Silva com os dizeres "Esperamos vocês, ratos brancos". As pragas tomam formas diversas, ora de bicho, ora de palavra, ora de piolho, ora de pensamento maléfico.
Mas um centro de saúde ameaçado por praga de ratos, sendo assustador em si mesmo, ao ponto de obrigar ao encerramento do centro, é também metáfora de outros perigos.
O caso de São Martinho do Bispo sugere, talvez, uma pergunta estranha: haverá um flautista disponível no mercado, um flautista como aquele saído do conto dos irmãos Grimm, capaz de conduzir a praga para a margem de lá da ponte de Negrelos?» [Fernando Alves, "Tem ratos, tem ratos", in "Os Dias que Correm", 12 Nov. 2024]
«... instala-se o estribilho de uma velha canção do Sérgio: "Tem ratos/ tem ratos/ vivem escondidos/ nos nossos sapatos.»
Identificando a canção e o intérprete, Fernando Alves fez a papinha toda, pelo que Ricardo Soares ou o seu chefe, Nuno Galopim de Carvalho, nada mais precisava fazer do que ir (ou encarregar alguém da produção que fosse) buscar o CD "À Queima-Roupa", caso não houvesse o áudio digital à mão de semear, e transmitir o tema "Tem Ratos" imediatamente a seguir à crónica. Escusado será referir que os ouvintes da Antena 1 tiveram, uma vez mais, de engolir em seco, e se ficaram com vontade de ouvir a canção evocada por Fernando Alves, a qual é das menos conhecidas de toda a produção de Sérgio Godinho, não lhes restou outra saída do que fazerem uso da sua fonoteca particular ou de se socorrerem do YouTube ou doutra plataforma digital.
Esta canção-miniatura, uma espécie de haiku cantado, é virtualmente impossível de se ouvir no éter nacional (o escrevente destas linhas não tem memória de alguma vez a ter escutado via rádio) e a essa circunstância se deve, em grande medida, que seja tão pouco conhecida. Ora, uma das mais nobres missões do serviço público de radiodifusão é justamente a de divulgar repertório de qualidade, com primazia para o português, que não é objecto de (cabal) divulgação pelas estações privadas. Não cumprindo essa missão, a Antena 1, além de falhar na promoção a uma tão importante vertente da cultura portuguesa, está a gozar com os pagantes da contribuição do audiovisual e a dar argumentos àqueles que advogam a privatização da rádio do Estado. Nuno Galopim de Carvalho parece não ter noção disso. E quem está acima dele, também não?
Tem Ratos
Letra e música: Sérgio Godinho
Intérprete: Sérgio Godinho* (in LP "À Queima-Roupa", Guilda da Música/Sassetti, 1974, reed. Philips/Polygram, 1990, Universal Music Portugal, 2001, 2018)
Tem ratos
Tem ratos
Tem ratos
Vivem escondidos
Nos nossos sapatos
Tem ratos
Vivem escondidos
Nos nossos sapatos
Roem-nos os dedos
Tem medos
Tem medos
Vivem escondidos
Nos nossos segredos
[instrumental]
* Sérgio Godinho – voz e viola
Sheila Charlesworth – 2.ª voz
Supervisão – Pedro Osório
Produção – Sassetti
Gravado em Vancouver (Canadá) e nos Estúdios da Rádio Triunfo, Lisboa
Engenheiro de som – José Fortes
URL: https://www.facebook.com/Sergio.Godinho.Oficial/
https://vachier.pt/sergio-godinho/
https://pt.wikipedia.org/wiki/S%C3%A9rgio_Godinho
https://altamont.pt/sergio-godinho-a-queima-roupa/
https://www.youtube.com/@SergioGodinhoTV
https://www.youtube.com/channel/UCCUWcMFHuwlLu7y8cX1LyJg
https://www.youtube.com/@DoTempoDosSonhos/videos?query=sergio+godinho
https://music.youtube.com/channel/UC6NItFDCOUpxXVmOfvAD3Rg
Capa do LP "À Queima-Roupa", de Sérgio Godinho (Guilda da Música/Sassetti, 1974)
Concepção – Argos Publicidade.
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Sérgio Godinho: "Mão na Música"
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Celeste Rodrigues: "Chapéu Preto"
11 novembro 2024
Celeste Rodrigues: "Chapéu Preto"
«Já tinha lido no "Jornal do Fundão" que, neste arranque de Novembro, "a azeitona faz triplicar a população em Malpica do Tejo". A aldeia de Castelo Branco acolhe os que regressam para varejar as oliveiras da família. O mesmo se passa nos tantos povoados em redor. Na manhã de sábado, retive a imagem de uma longa fila de carrinhas de caixa aberta carregadas de azeitona, à porta do lagar, em São Miguel de Acha. Ou foi em Aldeia do Bispo? Tantos os nomes que retive na lenta revisitação de lugares há muito guardados apenas no mapa mais íntimo, ao longo da manhã e em parte da tarde, fazendo horas para a apresentação do romance "O Tribunal das Almas: Os Espiões de Deus e as Fogueiras" que Fernando Paulouro das Neves acaba de editar na Guerra & Paz. Quando a noite pousar, depois do bacalhau na Hermínia, estará cheia a sala do Casino Fundanense, Lavacolhos fará soar os bombos diante dos inquisidores, se for necessário. Não foi. Mas é ainda manhã de sábado e deixo-me levar pelos caminhos sob um sol manso: Penamacor anuncia já o seu madeiro, Monsanto à vista, tomo o sentido de Medelim e de Proença-a-Velha, desta vez não compro queijo na Lardosa, nem no mercado de Alcains, a voz de meu pai canta dentro da minha cabeça uma moda antiga, "a azeitona já está preta, já se pode armar aos tordos".
Entro em Castelo Branco com um programa muito bem definido: almoço breve e a tarde no Jardim do Paço onde sempre acredito que o poeta António Salvado continua a conversar com as estátuas dos reis sob o olhar comovido de José Manuel Castanheira que há-de estar na roda da mesa dos amigos de Paulouro a escutar as andanças do ficcionista até à descoberta dos atalhos da vida de Martinho Pessoa, um antepassado do poeta cuja relação com o Fundão fora aflorada num texto de Arnaldo Saraiva nos anos 80.
Fernando Paulouro das Neves acalentou longamente a saga deste encontro com uma personagem tão exaltante como a de Martinho Pessoa, beirão do Fundão, judeu perseguido por honrar convicções, fugido aos "espiões de Deus" para um Brasil onde a vida não foram favas contadas, "oh que lindo chapéu preto!". Regressa agora aos lugares onde, por estes dias, os filhos da terra varejam as oliveiras da família, cuidando que não lhe hão-de colocar, desta vez, a carocha na cabeça.
Incansável labor, o de Fernando Paulouro das Neves, entretecendo numa escrita admirável as memórias de Martinho, o pai de Martinho legendando a água caída na seca planura idanhense com palavras que sabiam a pão: "Deus choveu". E o romance nos leva, entretanto, nas páginas iniciais, pelos estes campos de Idanha que encheram de luz, no sábado, os meus olhos. Por estes campos cresceu, também, como esteva maligna, a baba denunciante dos caçadores de cristãos-novos, esse lastro de tempos de infâmia com as suas fogueiras purificadoras. Os repuxos do parque da cidade sacodem a tarde como chicotes, enquanto retenho a memória daquele que há-de perecer na fogueira do Rossio, diante de um rei, um Rei Nosso Senhor que não suspende o riso. As fogueiras de homens eram "teatro divino", lembra o ficcionista.
Fernando Paulouro das Neves retém o pensamento de Martinho Pessoa: "O Santo Ofício queima homens e livros". Vamos por este romance como se varejássemos a nossa própria História ferida. É uma ferida tão funda que nunca cicatriza.» [Fernando Alves, "Um romance", in "Os Dias que Correm", 11 Nov. 2024]
Ao evocar a conhecida cantiga "Chapéu Preto", citando os versos «a azeitona já está preta, / já se pode armar aos tordos» e «Ai, que lindo chapéu preto», Fernando Alves teria certamente apreciado que a sua crónica fosse rematada/ilustrada, na emissão hoje de manhã, com uma gravação do mencionado trecho musical. E os ouvintes, na sua esmagadora maioria, não deixariam também de receber com imenso agrado e satisfação esse mimo musical, em complemento às palavras ditas pelo eminente cronista. A Antena 1, ao contrário do que acontecia na TSF-Rádio Jornal com a crónica congénere "Sinais", optou, uma vez mais, pela inacção. E seria bem fácil deitar mãos a uma boa gravação, dada a abundância delas, quer cantadas quer instrumentais. Das últimas apontamos três, cujos arranjos são de superior qualidade: a de Júlio Pereira, com a participação de Janita Salomé a fazer vocalizos (in "Cádoi", 1984) [>> YouTube Music], a de Rão Kyao (in "Danças de Rua", 1987) [>> YouTube Music] e a de Carlos Araújo (in "Duo", 2015) [>> YouTube Music]. Resolvemos dar destaque à mui cativante e fresquíssima versão cantada por Celeste Rodrigues, publicada em 1959, aproveitando para assim rendermos homenagem, singela mas sincera, àquela distinta filha do Fundão e extraordinária intérprete, quer de fado, quer da chamada canção parafolclórica de que o presente espécime, concebido por Arlindo de Carvalho (também ele natural do concelho do Fundão), é um magnífico exemplo (no disco original vem classificado como chula).
O verso «Já se pode armar aos tordos» é hoje – e ainda bem – ecologicamente incorrecto, mas não devemos censurar/cancelar a canção por causa disso pois seria adoptar uma atitude inquisitorial. As canções – e isto vale igualmente para quaisquer obras artísticas e literárias – são um testemunho da mundividência de um autor e reflectem a mentalidade e os costumes da época em que foram criadas. São instantâneos culturais do processo histórico e, nessa medida, sagrados e invioláveis, não se podendo jamais aceitar que, por não estarem em perfeita e estreita conformidade com o pensamento prevalecente num determinado momento histórico posterior (que é, por definição, transitório), sejam modificadas, amputadas ou, pura e simplesmente, banidas. A obra é o que é, e se tem valor artístico, estético e/ou filosófico, em lugar da atitude paternalista de pretensa protecção dos seus fruidores a ideias e a conceitos considerados errados à luz do pensamento mais validado pelas elites (ou pseudo-elites), importa dotar as pessoas dos instrumentos de interpretação e análise crítica dessas obras do passado. Proceder desse modo é também promover a liberdade de pensamento dos cidadãos e desenvolver as suas faculdades de discernimento, no escrupuloso respeito pelos inalienáveis valores democráticos e pluralistas.
Eis, pois, a cantiga "Chapéu Preto", com versos e música de Arlindo de Carvalho, na primorosa interpretação de Celeste Rodrigues, à qual apensamos a prévia nota (especialmente dirigida aos menos conscienciosos em questões ambientais) de que já não se deve "armar aos tordos" (seja com azeitonas maduras ou com qualquer outro engodo), porque aqueles pássaros, assim como todas as demais aves, são importantes para o equilíbrio dos ecossistemas e, por extensão, para a própria sobrevivência da espécie humana no planeta Terra. Sortudos os visitantes do blogue "A Nossa Rádio" pela oportunidade de aqui se deleitarem com este encantador "Chapéu Preto", os quais – se ouvintes da Antena 1 nas matinas de segunda a sexta-feira – bem podem lamentar-se por terem sido outra vez desconsiderados pela rádio que vive do seu dinheiro!
Chapéu Preto
Letra e música: Arlindo de Carvalho
Intérprete: Celeste Rodrigues* [in EP "Celeste (Chapéu Preto)", Parlophone/VC, 1959; reed. digital: Edições Valentim de Carvalho, 2019]
A azeitona já está preta, [bis]
Já se pode armar aos tordos, [bis]
Diz-me lá, ó cara linda: [bis]
Como vais d'amores novos?
Já se pode armar aos tordos.
É mentira, é mentira,
É mentira, sim, senhor!
Eu nunca roubei um beijo,
Quem mo deu foi meu amor.
[bis]
Quem me dera ser colete! [bis]
Quem me dera ser botão, [bis]
Para andar agarradinha [bis]
Juntinho ao teu coração!
Quem me dera ser botão!
É mentira, é mentira,
É mentira, sim, senhor!
Eu nunca roubei um beijo,
Quem mo deu foi meu amor.
[bis]
Ai, que lindo chapéu preto [bis]
Naquela cabeça vai! [bis]
Ai, que lindo rapazinho [bis]
Para genro do meu pai!
Naquela cabeça vai!
É mentira, é mentira,
É mentira, sim, senhor!
Eu nunca roubei um beijo,
Quem mo deu foi meu amor.
[bis]
É mentira, é mentira,
É mentira, é mentira,
É mentira, é mentira...
* Celeste Rodrigues – voz
Adelino dos Santos – guitarra portuguesa
Carlos Neves – viola
URL: https://www.museudofado.pt/fado/personalidade/celeste-rodrigues
https://www.youtube.com/@ValentimdeCarvalhoPT/videos?query=celeste+rodrigues
https://music.youtube.com/channel/UCcVQ5pMWj0gEjkzEg9RqVJQ
Capa do EP "Celeste (Chapéu Preto)", de Celeste Rodrigues (Parlophone/VC, 1959)
Fotografia – João Paulo Gil (na Casa de Fados "A Viela", à Rua das Taipas, em Lisboa)
Arranjo gráfico – Morato
Capa do romance "O Tribunal das Almas: os Espiões de Deus e as Fogueiras", de Fernando Paulouro das Neves (Lisboa: Guerra & Paz, Ago. 2024)
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Outro artigo com repertório de Celeste Rodrigues:
Celeste Rodrigues: "Velhas Sombras"
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Outros artigos relacionados com a crónica de Fernando Alves na Antena 1:
Galandum Galundaina: "Chin Glin Din"
"Sons d'Outrora" em viola da terra, por Miguel Pimentel
Vitorino: "Moças de Bencatel" (Conde de Monsaraz)
Teresa Silva Carvalho: "Barca Bela" (Almeida Garrett)
António Borges Coelho: "Sou Barco"
02 novembro 2024
José Pracana: "Lenda das Rosas" (João Linhares Barbosa)
Quando se alude a lendas associadas a rosas, a que surge mais de imediato na mente de maior número de pessoas é, muito provavelmente, aquela em que foi protagonista a esposa do rei D. Dinis, D. Isabel de Aragão, posteriormente mais conhecida como Rainha Santa Isabel. Entre os fadistas, outra lenda sobre rosas de feição bem diferente tem sido muito cultivada e objecto de múltiplas gravações (por Frei Hermano da Câmara, José Pracana, Mariette Pessanha, Maria Leopoldina Guia, Nuno da Câmara Pereira, etc.). A de José Pracana, publicada no EP homónimo, em 1972, é a que mais nos cativa e, por isso, sobre ela recaiu a nossa escolha para assinalar este Dia de Finados. Porém, sem intentos de proselitismo religioso e tentando não cair no lúgubre e tétrico, pois é mesmo uma bela e poética história de amor no Além-Morte a que se conta nas quatro décimas glosando uma quadra-mote, admiravelmente concebidas por João Linhares Barbosa, sem dúvida alguma um dos maiores poetas do Fado.
Dando destaque a esta tocante e romântica "Lenda das Rosas" (brancas e vermelhas) queremos também render homenagem, ainda que singela, ao distinto guitarrista e cantador açoriano (micaelense) José Pracana (1946-2016), que se devotou de alma e coração ao Fado e a quem devemos, além dessa notável contribuição artística, o avalizado trabalho de curadoria das compilações em CD "Biografia do Fado" (EMI-VC, 1994) e "Biografia da Guitarra" (EMI-VC, 2005), e, igualmente, da série discográfica "Biografias do Fado" (EMI-VC, 1997, 1998, 2004) consagrada a fadistas de renome, entre os quais Alfredo Marceneiro, Maria Teresa de Noronha, Lucília do Carmo e Max, assim como da avultada edição "Um Século de Fado" (Ediclube, 1999), constituída por 33 CDs, videogramas e livros.
Esta "Lenda das Rosas", na voz de José Pracana, foi um das muitas pérolas do Fado que Edgar Canelas levou à sua rubrica "Alma Lusa" [>> RTP-Play] que se manteve na grelha da Antena 1, de segunda a sexta-feira, durante quase 10 anos (desde Novembro de 2005 até Setembro de 2015). Rui Pêgo tomou a decisão de suprimi-la, com o argumento de alegada redundância por haver um programa alargado consagrado ao fado, "Alma Lusa (Fim-de-Semana)", emitido depois da meia-noite de domingo, e também por o género estar representado na 'playlist'. A justificação era, evidentemente, falaciosa porque o fado tinha (e ainda tem) uma presença bastante residual na 'playlist', e o programa referido peca por ter um horário que nem todos podem praticar. Um apontamento de fado com notas informativas e de contextualização (a pensar sobretudo nos ouvintes menos iniciados no género) e transmitido em vários momentos do dia, longe de ser redundante, constitui uma real mais-valia na programação do canal generalista da estação pública de rádio, pelo que se impõe que regresse à antena. Estamos em crer que Edgar Canelas, se desafiado a retomar a rubrica "Alma Lusa", encarará tal missão com o mesmo entusiasmo e dedicação.
Lenda das Rosas
Letra: João Linhares Barbosa
Música: Popular e Maria Teresa de Noronha (Fado da Horas)
Arranjo: José Pracana
Intérprete: José Pracana* (in EP "Lenda das Rosas", Parlophone/VC, 1972; 2CD "Biografia do Fado": CD 2, EMI-VC, 1994)
[instrumental]
Na mesma campa nasceram
Duas roseiras a par;
Conforme o vento as movia,
Iam-se as rosas beijar.
Deu uma rosas vermelhas,
Desse vermelho que os sábios
Dizem ser a cor dos lábios
Onde o amor põe centelhas;
Da outra, gentis parelhas
De rosas brancas vieram;
Só nisso diferentes eram,
Nada mais as diferençou:
A mesma seiva as criou,
Na mesma campa nasceram.
Dizem contos magoados
Que aquele triste coval
Fora leito nupcial
De dois jovens namorados,
Que no amor contrariados
Ali se foram finar,
E continuaram a amar
Lá no Além, todavia:
E por isso ali havia
Duas roseiras a par.
A lenda simples, singela,
Conta mais: que as rosas brancas
Eram as mãos puras, francas,
Da desditosa donzela;
E ao querer beijar as mãos dela,
Como na vida o fazia,
A boca dele se abria
Em rosas de rubra cor
E segredavam o amor,
Conforme o vento as movia.
Quando as crianças passavam
Junto à linda sepultura,
Toda a gente afirma e jura
Que as rosas brancas coravam
E as vermelhas se fechavam
Para ninguém lhes tocar;
Mas que, alta noite, ao luar,
Entre um séquito de goivos,
Tal qual os lábios dos noivos, | bis
Iam-se as rosas beijar. |
* José Pracana – voz e guitarra portuguesa
José Nunes – guitarra portuguesa
José Inácio e Segismundo de Bragança – violas
Gravado nos Estúdios Valentim de Carvalho, Paço d'Arcos
Técnico de som – Hugo Ribeiro
Montagem digital (edição em CD) – Miguel Gonçalves
URL: https://www.museudofado.pt/fado/personalidade/jose-pracana
https://www.rtp.pt/rtpmemoria/gramofone/jose-pracana-por-joao-carlos-callixto_1422
https://www.publico.pt/2016/12/26/culturaipsilon/noticia/morreu-jose-pracana-um-distinto-amador-do-fado-1756120
https://www.youtube.com/@fadomeu/videos?query=jose+pracana
https://www.youtube.com/@MikeFadoEtc/videos?query=jose+pracana
Capa do EP "Lenda das Rosas", de José Pracana (Parlophone/VC, 1972)
Fotografia – L. Lourenço
Capa da compilação em duplo CD "Biografia do Fado", organizada por José Pracana e David Ferreira (EMI-VC, 1994)
Ilustração – Stuart Carvalhais
Design gráfico – Fátima Rolo Duarte, com Paulo Faria.
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Outro artigo tematicamente relacionado:
Belaurora: "Saudade"
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Outro artigo com repertório da autoria de João Linhares Barbosa:
Celebrando Lucília do Carmo
29 outubro 2024
António Borges Coelho: "Sou Barco"
António Borges Coelho (n. 1928), poeta e historiador português.
«Folheio, de novo, em voz alta, o jornal "Região de Leiria", lançando amarras à penúltima página habitualmente dedicada às histórias dos nossos mais velhos. Desta vez, decido ancorar na notícia da exposição que Carlos Santos, carpinteiro naval durante 60 anos, montou na sua garagem, na rua das Arribas do Mar, em Peniche.
O repórter fotográfico Joaquim Dâmaso mostra-nos as paredes da oficina do carpinteiro naval agora reformado: são como redes ao alto que, em vez de peixe, recolhessem pagaias, canas de leme, serrotes, furadeiras. Carlos explica à jornalista Joana Magalhães que nenhuma outra arte em que se trabalhe a madeira exige tantas ferramentas como a carpintaria naval. O homem cujas mãos são agora um mar calmo de onde poderiam zarpar navios alados tem sempre o mar diante dos olhos no seu pequeno santuário do bairro do Visconde. É o mesmo mar que fez soar o fragor da vaga durante a dura vigília de António Borges Coelho, preso em Peniche. "Sou barco abandonado / na praia ao pé do mar", gritou, há muitos anos, o poeta para a carpintaria melódica de Luís Cília e a canção foi em ondas na voz de Adriano. Já Carlos talhava barcos nos troncos das árvores. Também através do seu coração, tal como no poema de Sophia, passou um barco que não pára de seguir, sem ele, o seu caminho. Ele cuida de uma inumerável frota na angra da memória, no porto de abrigo da sua garagem diante do mar. Gravuras antigas, com motivos marítimos, repousam nas paredes como o peixe seco ao sol, nos paneiros.
Quantas árvores terão nascido para ser barco nas suas mãos? Em quantas talhou a sua arte curvilínea entre amuras e anteparas?
O velho carpinteiro naval olha-nos na doca seca de uma página de jornal enquanto explica suavemente a geometria que guiou, a vida toda, o seu formão. "O barco é todo torto", observa. Por isso, o seu ofício cuida de fazer nascer a curva no mastro maciço da árvore. "Do direito temos de fazer torto, é diferente de outras artes da madeira", explica o carpinteiro naval.
E eu fico preso ao sereno olhar de Carlos Santos nesta página de jornal. As mãos dele estão pousadas num cavername encalhado. Ainda que, como ele assegura, apenas um carpinteiro naval permaneça activo em Peniche, imagino o mestre afagando o dorso de um pinheiro manso ou de um carvalho como quem acalenta um navio e o lança a todas as Berlengas do mar.» [Fernando Alves, "O carpinteiro naval", in "Os Dias que Correm", 29 Out. 2024]
«É o mesmo mar que fez soar o fragor da vaga durante a dura vigília de António Borges Coelho, preso em Peniche. "Sou barco abandonado / na praia ao pé do mar", gritou, há muitos anos, o poeta para a carpintaria melódica de Luís Cília e a canção foi em ondas na voz de Adriano.»
O intertexto poético-musical não podia ser mais objectivo e preciso, e Fernando Alves não o fez gratuitamente. O poema "Sou Barco" foi mesmo escrito em Peniche, mais concretamente no tenebroso forte-prisão, quando o seu autor, o poeta e historiador António Borges Coelho, aí esteve encarcerado, durante seis longos anos, por motivos políticos. Ao ler o poema, no livro "Roseira Verde" (1962), Luís Cília, já exilado em Paris, achou por bem musicá-lo e gravá-lo para o seu primeiro álbum, de título genérico "Portugal-Angola: Chants de Lutte", publicado em 1964, sob a chancela Le Chant du Monde. E quando Adriano Correia de Oliveira visitou Luís Cília na Cidade-Luz, aquele tocante "Sou Barco" seria um dos três espécimes que pediria emprestados ao talentoso compositor/intérprete natural de Angola (cidade de Nova Lisboa, actual Huambo) para ele próprio os gravar. E foi essa versão de Adriano, com o sublime arranjo e o primoroso acompanhamento de Rui Pato à viola que mais navegou nas ondas hertzianas portuguesas, como muito apropriadamente alude Fernando Alves. Nomeando o autor do poema, o inspirado compositor e o distinto intérprete por cuja voz aquele "Sou Barco" chegou aos ouvidos de mais gente, o preclaro cronista, além de aproveitar o pretexto para desse modo render homenagem a três figuras gradas da Cultura Portuguesa, teria certamente apreciado e ficado reconhecido se tal gravação servisse de epílogo à sua crónica, quando esta foi difundida hoje de manhã pela Antena 1, a exemplo do que acontecia na TSF-Rádio Jornal. O ouvinte e escrevente destas linhas, ainda assim, não censuraria o locutor de serviço, Ricardo Soares, nem o seu chefe, Nuno Galopim de Carvalho, se um ou outro tivesse optado pela gravação original de Luís Cília ou a sua regravação presente no álbum "Meu País" (1973). Mas nem isso aconteceu. Nadinha de nada! Enfim, para mal dos pecados dos ouvintes e da reputação do serviço público de rádio, o imobilismo e a inércia sobrepuseram-se, uma vez mais, ao zelo e ao brio profissional que deviam ser sempre o timbre de quem vive do dinheiro dos ouvintes/contribuintes.
Para que conste, e como os ouvintes merecem o melhor, o blogue "A Nossa Rádio" proporciona aos que aqui acederem as duas primeiras gravações de "Sou Barco": a original de Luís Cília e a versão de Adriano Correia de Oliveira. Boa escuta!
Sou Barco
Poema: António Borges Coelho (in "Roseira Verde", Lisboa: Edição do autor, 1962)
Música: Luís Cília
Intérprete: Luís Cília (in LP "Portugal-Angola: Chants de Lutte", Le Chant du Monde, 1964)
[Marulhar das ondas / instrumental]
Sou barco abandonado
Na praia ao pé do mar
E os pensamentos são
Meninos a brincar.
Ei-lo que salta bravo
E a onda verde-escura
Desfaz-se em trigo
De raiva e amargura.
Ouço o fragor da vaga
Sempre a bater ao fundo,
Escrevo, leio, penso,
Passeio neste mundo
De seis passos
E o mar a bater ao fundo.
Agora é todo azul,
Com barras de cinzento,
E logo é verde, verde,
Seu brando chamamento.
Ó mar, venha a onda forte
Por cima do areal
E os barcos abandonados
Voltarão a Portugal.
* Luís Cília – voz e guitarra
URL: http://www.luiscilia.com/
https://www.youtube.com/user/LeoMOV/videos
https://music.youtube.com/channel/UCqL_T8TPQ2ffVAKn-v4kN_A
Sou Barco
Poema: António Borges Coelho (in "Roseira Verde", Lisboa: Edição do autor, 1962)
Música: Luís Cília
Arranjo: Rui Pato
Intérprete: Adriano Correia de Oliveira* [in LP "Adriano Correia de Oliveira ("Rosa de Sangue")", Orfeu, 1967, reed. LP "Margem Sul", Orfeu, 1982; EP "Para Que Quero Eu Olhos", Orfeu, 1968; 2LP "Memória de Adriano": LP 1, Orfeu, 1983, reed. Movieplay, 1992; 7CD "Adriano: Obra Completa": CD "A Noite dos Poetas", Movieplay, 1994; 7 livros/CD "Obra Completa de Adriano Correia de Oliveira": vol. 7 -"Menina dos Olhos Tristes: A Noite dos Poetas", Movieplay/Público, 2007]
[instrumental]
Sou barco abandonado
Na praia ao pé do mar
E os pensamentos são
Meninos a brincar.
Ei-lo que salta bravo
E a onda verde-escura
Desfaz-se em trigo
De raiva e amargura.
Oiço o fragor da vaga
Sempre a bater ao fundo,
Escrevo, leio, penso,
Passeio neste mundo
De seis passos
E o mar a bater ao fundo.
Agora é todo azul,
Com barras de cinzento,
E logo é verde, verde,
Seu brando chamamento.
Ó mar, venha a onda forte
Por cima do areal
E os barcos abandonados
Voltarão a Portugal.
[instrumental / assobio]
* Adriano Correia de Oliveira – voz
Rui Pato – viola
Montagem DAT (edição de 1994) – João Pedro Castro, nos Estúdios Namouche, Lisboa
Biografia e discografia em: A Nossa Rádio
URL: https://adrianocorreiadeoliveira.org/
https://www.facebook.com/adrianocorreiadeoliveira/
https://www.youtube.com/user/DoTempoDosSonhos/videos?query=adriano+correia+oliveira
Capa do livro "Roseira Verde", de António Borges Coelho (Lisboa: Edição do autor, 1962)
Capa do LP "Portugal-Angola: Chants de Lutte", de Luís Cília (Le Chant du Monde, 1964)
Capa do LP "Adriano Correia de Oliveira ("Rosa de Sangue")" (Orfeu, 1967)
Concepção – Fernando Aroso
Capa do EP "Para Que Quero Eu Olhos", de Adriano Correia de Oliveira (Orfeu, 1968)
Concepção – Fernando Aroso
Capa do LP "Margem Sul", de Adriano Correia de Oliveira (Orfeu, 1982)
Reedição LP "Adriano Correia de Oliveira ("Rosa de Sangue")", de 1967
Capa da compilação em duplo LP "Memória de Adriano" (Orfeu, 1983)
Design – João Machado
Capa da caixa de 7CD "Adriano: Obra Completa", org. José Niza (Movieplay, 1994)
Fotografia – Inácio Ludgero
Design gráfico – José Santa-Bárbara
Edição electrónica/digitalização gráfica – Olívia Braga
Capa do CD "A Noite dos Poetas", org. José Niza (Movieplay, 1994)
Design gráfico – José Santa-Bárbara
Edição electrónica/digitalização gráfica – Olívia Braga
Capa do livro/CD "Menina dos Olhos Tristes: A Noite dos Poetas", vol. 7 da "Obra Completa de Adriano Correia de Oliveira", org. José Niza (Movieplay/Público, 2007)
Na fotografia, tirada em 1962, em Estocolmo, à direita de Adriano estão José Afonso e José Niza.
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Outros artigos com repertório interpretado por Luís Cília ou da sua autoria:
A infância e a música portuguesa
Em memória de Urbano Tavares Rodrigues (1923-2013)
Celebrando Eugénio de Andrade
Camões recitado e cantado (V)
José Saramago: "Dia Não"
Adriano Correia de Oliveira: "Exílio" (Manuel Alegre)
Luís Cília: "Tango Poluído"
Luís Cília: "O Cavador" (Guerra Junqueiro)
Poesia trovadoresca adaptada por Natália Correia
Luís Cília: "Se me Levam Águas" (Luís de Camões)
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Outros artigos com canções interpretadas por Adriano Correia de Oliveira:
Adriano Correia de Oliveira: um grande cantor silenciado na rádio pública
E Alegre se Fez Triste
Galeria da Música Portuguesa: Adriano Correia de Oliveira
Em memória de Adriano
Adriano Correia de Oliveira: "As Balas" (Manuel da Fonseca)
Adriano Correia de Oliveira: "Cantar de Emigração"
Em memória de Urbano Tavares Rodrigues (1923-2013)
Celebrando Luís Pignatelli
Adriano Correia de Oliveira: "Exílio" (Manuel Alegre)
Adriano Correia de Oliveira: "Canção da Fronteira" (António Cabral)
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Outros artigos relacionados com a crónica de Fernando Alves na Antena 1:
Galandum Galundaina: "Chin Glin Din"
"Sons d'Outrora" em viola da terra, por Miguel Pimentel
Vitorino: "Moças de Bencatel" (Conde de Monsaraz)
Teresa Silva Carvalho: "Barca Bela" (Almeida Garrett)
22 outubro 2024
Teresa Silva Carvalho: "Barca Bela" (Almeida Garrett)
Ilustração do francês Thierry Murat, para a sua adaptação em banda desenhada do romance "O Velho e o Mar", de Ernest Hemingway ("Le Vieil Homme et la Mer", Paris: Futuropolis, 2014 – p. 9)
«Num 22 de Outubro de há cem anos redondos, o "Diário de Lisboa" consagra uma coluna ao peixe "que está a apodrecer em Cezimbra e falta em Lisboa". O título propaga o fedor de um problema de "transportes e subsistências" para que o antetítulo remete o leitor, embora com menor destaque do que aquele conferido, na mesma página, em duas largas colunas, à sorte do cão "Tejo", "o amigo mais fiel que Sidónio Pais teve" e que subsistia com a trela da subscrição pública, nem sequer ladrando, enquanto passava a caravana da polémica a que não escapava a Sociedade Protectora dos Animais.
Regressemos à notícia de há cem anos redondos e precisos: "Há dois meses que Lisboa está sem peixe. E o pouco que aparece na Ribeira, vindo de Cezimbra, é vendido por um preço fabuloso. Anteontem", detalha o repórter, "vimos vender pescada a 25$00 o quilo, goraz a 15$00 e dois pargos por 150$00".
Não tenho, e creio que os ouvintes também não, nesta voraz míngua de euros no bolso, uma razoável tabela de equivalência de preços à mão. Mas seria cometimento apenas acessível a mais do que remediados esportular por dois pargos 150$00, nesse Outubro de 1924.
Que diz mais a notícia? Prossegue com o que o articulista considera "o mais curioso de tudo isto". Passo a ler: "O mais curioso de tudo isto é que, em Cezimbra, a abundância de peixe é tal que os armadores o vendem para adubo de terras por falta de transportes para o enviarem para Lisboa".
O repórter cuida de saber o que pretendem os "capitães de pesca, que se encontram em greve". E porque falta o peixe. A resposta aponta o dedo aos armadores e ao comissário dos Abastecimentos. E que reclamam os pescadores? Resposta obtida: "Nós reclamamos um por cento sobre o meio por cento que já temos no produto líquido da venda do peixe".
Ora, que mudou neste século no quadro que a notícia descreve? Passou a haver câmaras frigoríficas, o peixe já não apodrece a não ser por más práticas que caiam na alçada da ASAE.
Quanto ao mais, os pescadores da barca bela não precisam de ler o Garrett para identificarem as novas sereias, o seu canto lúgubre. Eles partilham com o freguês da Ribeira ou do Livramento a posta do rabo de um lance em que ganham sempre os intermediários.
Outra coisa mudou, contudo, nestes cem anos: Sesimbra já não se escreve com cê e zê, mas com dois esses, ora essa.
Cuidemos, pois, da bolsa e da ortografia.
Já agora: a quanto está o pargo, esta manhã? E o goraz?» [Fernando Alves, "Cezimbra, há cem anos", in "Os Dias que Correm", 22 Out. 2024]
A referência que Fernando Alves fez a Garrett e ao seu conhecido poema "Barca Bela" estavam mesmo a pedir, para remate musical da sua crónica, quando foi radiodifundida pela Antena 1 hoje de manhã, a belíssima canção homónima interpretada por Teresa Silva Carvalho, com música da sua autoria sobre os versos do autor de "Folhas Caídas" e esplêndida orquestração de Thilo Krasmann. Quem, porventura, teve essa expectativa bem pôde esperar sentado. Além de não ter sido feita devida justiça ao louvável intertexto do eminente cronista, ficaram a perder esses rádio-ouvintes, e todos os demais que decerto escutariam com imenso prazer aquela maravilhosa canção, quer os que já a conheciam (em gratíssima revisitação), quer todos os outros (em deslumbrante descoberta). O canal generalista da rádio do Estado, esse pecou uma vez mais por clamorosa omissão, e em algo que era bem simples e fácil de concretizar. Dar a ouvir Teresa Silva Carvalho naquele horário, em que se registam boas audiências (graças também à crónica de Fernando Alves), seria relevante serviço público, atendendo ao vil ostracismo a que a notabilíssima intérprete e compositora tem sido votada pelas rádios nacionais, inclusive a pública.
De referir, a título de curiosidade, que esta fascinante "Barca Bela", de Teresa Silva Carvalho, agradou tanto a José Afonso que ele fez questão de convidar a meritória artista para participar na gravação, em Madrid, do seu álbum "Eu Vou Ser Como a Toupeira" (1972). E ela não deixou também de manifestar a sua admiração pelo genial cantautor ao gravar versões de várias canções dele, para os álbuns "Ó Rama, Ó Que Linda Rama" (1977) e "Canções Gratas" (1994).
Eis, pois, a encantadora "Barca Bela" que a Antena 1 negligentemente sonegou aos seus ouvintes, os quais tem a agora a oportunidade de escutá-la nesta página. É serviço público que o blogue "A Nossa Rádio" se orgulha de prestar aos seus visitantes!
Barca Bela
Poema: Almeida Garrett (ligeiramente adaptado) [texto original >> abaixo]
Música: Teresa Silva Carvalho
Arranjo: Thilo Krasmann
Intérprete: Teresa Silva Carvalho* (in EP "Adágio", Movieplay, 1971; CD "Teresa Silva Carvalho", Col. O Melhor dos Melhores, vol. 35, Movieplay, 1994; CD "Teresa Silva Carvalho", Col. Clássicos da Renascença, vol. 63, Movieplay, 2000; CD "Poesia EnCantada", vol. 1, EMI-VC, 2002)
[instrumental]
Pescador da barca bela,
Onde vais pescar com ela,
Que é tão bela, | bis
Oh pescador?! |
Pescador da barca bela,
Onde vais pescar com ela,
Que é tão bela, | bis
Oh pescador?! |
Não vês que a última estrela
No céu nublado se vela?
Colhe a vela, | bis
Oh pescador! |
[instrumental]
Deita o lanço com cautela,
Que a sereia canta bela...
Mas cautela, | bis
Oh pescador! |
Deita o lanço com cautela,
Que a sereia canta bela...
Mas cautela, | bis
Oh pescador! |
Não se enrede a rede nela,
Que perdido é remo e vela
Só de vê-la, | bis
Oh pescador. |
[instrumental]
Pescador da barca bela,
Inda é tempo, foge dela,
Foge dela | bis
Oh pescador! |
* Teresa Silva Carvalho – voz
Orquestra dirigida por Thilo Krasmann
Produção – Movieplay
Gravado nos Estúdios Polysom, Lisboa
Técnico de som – Jean-François Beaudet
URL: https://www.museudofado.pt/fado/personalidade/teresa-silva-carvalho
https://music.youtube.com/channel/UCkAbckRH-jBkegIgZ5iqx3A
https://www.youtube.com/@AlainJEANPIERRE/videos?query=teresa+silva+carvalho
https://www.youtube.com/c/Am%C3%A9ricoPereiraFado/videos?query=teresa+silva+carvalho
https://www.youtube.com/@carlosportelo9319/videos?query=teresa+silva+carvalho
BARCA BELA
(Almeida Garrett, in "Folhas Caídas", Lisboa: em casa da viúva Bertrand e Filhos, 1853 – p. 91-92)
Pescador da barca bela,
Onde vais pescar com ela,
Que é tão bela,
Oh pescador?!
Não vês que a última estrela
No céu nublado se vela?
Colhe a vela,
Oh pescador!
Deita o lanço com cautela,
Que a sereia canta bela...
Mas cautela,
Oh pescador!
Não se enrede a rede nela,
Que perdido é remo e vela
Só de vê-la,
Oh pescador.
Pescador da barca bela,
Inda é tempo, foge dela,
Foge dela
Oh pescador!
Frontispício da primeira edição do livro "Folhas Caídas", de Almeida Garrett (Lisboa: em casa da viúva Bertrand e Filhos, 1853)
Capa de outra edição do livro "Folhas Caídas", de Almeida Garrett (Lisboa: Portugália Editora, 1955)
Ilustração – Maria Keil
"Barca Bela", desenho de Maria Keil para o livro "Folhas Caídas", de Almeida Garrett (Lisboa: Portugália Editora, 1955)
Capa do EP "Adágio", de Teresa Silva Carvalho (Movieplay, 1971)
Fotografia – Michel Ribó
Capa da compilação em CD "Teresa Silva Carvalho" (Col. O Melhor dos Melhores, vol. 35, Movieplay, 1994)
Capa da compilação em CD "Teresa Silva Carvalho" (Col. Clássicos da Renascença, vol. 63, Movieplay, 2000)
Capa da compilação em CD "Poesia EnCantada", vol. 1 (EMI-VC, 2002)
Selecção e notas – David Ferreira
Assistência na recolha de trechos – Jwana Godinho.
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Outros artigos com repertório de Teresa Silva Carvalho:
A infância e a música portuguesa
A vitória do azeite
Ser Poeta
Celebrando Luís Pignatelli
Teresa Silva Carvalho: "Mulher da Erva"
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Outros artigos relacionados com a crónica de Fernando Alves na Antena 1:
Galandum Galundaina: "Chin Glin Din"
"Sons d'Outrora" em viola da terra, por Miguel Pimentel
Vitorino: "Moças de Bencatel" (Conde de Monsaraz)
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