17 abril 2025

João Afonso: "Tangerina dos Algarves"


(in https://loja.mondiniplantas.com.br/)


«Desculpai-me se regresso ao poeta Ferreira Gullar, ainda ontem aqui citado. Faço-o por causa das duas tangerinas que tirei do saco, por volta das cinco e meia da manhã, ao mesmo tempo que, na mesa ao lado, Gonçalo Costa Martins retirava, do saco dele, duas tangerinas semelhantes às minhas na cor, mas menos encorpadas. A coincidência levou-nos a imaginar um jogo de damas ou de xadrez, no qual as peças fossem tangerinas de cores diferentes, talvez azuis as dele, ou verdes; vermelhas ou cor de laranja desmaiado as minhas.
Faço-o acima de tudo para abordar singelamente as questões do método, inspirado no modo como o Imortal da Academia explicou, certa vez, as etapas percorridas até nos brindar com o perfume desse preciso poema intitulado "O cheiro das tangerinas". Ele explicou que, estando numa sala, sentiu o cheiro de tangerinas, mil vezes experimentado, mas nunca com aquela fragância tão especial. Usou estas precisas palavras, falando com leitores: "Aquele cheiro, daquela vez, abriu para mim um mundo que eu não sabia qual era". E, nesse momento, ele o afirma, Ferreira Gullar saiu da sala para escrever o poema. Abençoada decisão. O resultado foi o que se sabe, aqueles primeiros versos, "Com raras excepções / os minerais não têm cheiro". É um longo poema de desconcertos: os minerais não respiram e a nada aspiram, ao contrário da trepadeira da casa de São Luís, lá no Maranhão onde o poeta nasceu. "Nunca se acenderá neles" (é outra passagem do poema) "– em sua massa quase eterna – um cheiro de tangerina".
Ferreira Gullar está a explicar aos seus leitores o método que utilizou para chegar ao poema. Ele diz que não sabia sobre o que iria escrever. Sobre "a tangerina cheirosa"? Há risos na sala. E o poeta explica que pegou na enciclopédia e leu tudo o que encontrou sobre tangerinas. Descobriu que a tangerina é "a laranja da China". Depois descobriu que "a laranja da China foi levada para a Califórnia". E eu, lançado a tomar notas numa folha A4, presumo que tal transporte não terá sido sobrecarregado com tarifas semelhantes às de uma guerra comercial futura, tão de alecrim e manjerona, não fora os estragos. E anoto também, lançado já em consultas de ecrã, mandarina, laranja mimosa, mexerica, manjerica... nomes de gomos sumarentos.
Ferreira Gullar, podeis encontrar no YouTube estas suas revelações sobre o método, conta que nessa tarde foi "descobrindo coisas sobre a tangerina, mas o poema não nascia". E ele mergulhado na enciclopédia, descobrindo coisas que não sabia, sobre o enxofre, o único mineral que tem cheiro, ele surpreendendo-se até chegar à música mais secreta, partindo de um "jovem cheiro / que nada tem da noite do gás metano" até ao cheiro daquela fruta inesperada que solta, fechando o poema, "sua notícia matinal".
Às sete e meia desta manhã de intenso perfume nos dedos eu fantasiava um tabuleiro de damas ou de xadrez em que as peças fossem tangerinas de cores improváveis. Em vez de comermos metaforicamente torres, cavalos ou rainhas ao adversário, comeríamos literalmente as peças que lhes conquistássemos.
Mas eis que o ecrã, enciclopédia mais à mão, me revela a improvável tangerina, não tanto pelo cheiro, nem sequer pela cor, a tangerina que talvez tenha escapado à pesquisa de Ferreira Gullar: a tangerina montenegrina. Existe, sim. Produz poucas sementes e isso pode dificultar a montenegrização do fruto. A árvore em que é colhida produz frutos tardios, tem "ramos finos e – estou a citar – quase sem espinhos". Assim a encontrei, em página científica, remetendo para o município brasileiro de Montenegro, onde foi descoberta em 1940, resultante de uma mutação espontânea. O método de Ferreira Gullar pode levar-nos a lugares improváveis. Quando isso acontece, ganhamos o dia. Agora, vou despachar a única tangerina que me resta. Boa Páscoa.» [Fernando Alves, "Tangerina montenegrina", in "Os Dias que Correm", 17 Abr. 2025]


Uma crónica glosando as tangerinas, como a que hoje Fernando Alves leu aos microfones da Antena 1, estava mesmo a pedir que fosse rematada com uma canção alusiva, directa ou indirectamente, àquele citrino cujo nome deriva da cidade magrebina de Tânger. No universo da música portuguesa, duas boas canções se prestavam, em excelente adequação, a tal propósito: "O Primeiro Gomo da Tangerina", de Sérgio Godinho (in CD "Tinta Permanente", EMI-VC, 1993) e "Tangerina dos Algarves", de João Afonso (in CD "Barco Voador", Mercury/Universal Music Portugal, 1999). Escusado será referir que nenhuma delas, nem qualquer outra, foi dada a ouvir aos rádio-ouvintes, que se viram, uma vez mais, torpemente desconsiderados por Nuno Galopim de Carvalho e o seu subordinado Ricardo Soares, indivíduos que valorizam muito mais o descanso e o "não te rales" do que o dever de prestarem bom serviço público a quem lhes garante os (imerecidos) salários.
Das duas canções indicadas, a menos conhecida é a de João Afonso, circunstância que aliada à qualidade intrínseca – belíssima a melodia (concebida pelo próprio intérprete) e muito cativante o arranjo (gizado pelo categorizado guitarrista José Moz Carrapa) – nos motivou a destacá-la no presente artigo. É nossa firme convicção que a esmagadora maioria dos ouvintes da Antena 1 teria apreciado este mimo poético-musical à guisa de epílogo às palavras de Fernando Alves. E o canal generalista da rádio do Estado teria também o ensejo de fazer alguma justiça, ainda que mínima, ao cantautor João Afonso, proscrito que está às mãos de quem gere a 'playlist'.
Eis, pois, a sumarenta e doce "Tangerina dos Algarves" cultivada, com muito primor, por João Afonso. Boa degustação e melhor proveito!



Tangerina dos Algarves



Letra e música: João Afonso Lima
Intérprete: João Afonso* (in CD "Barco Voador", Mercury/Universal Music Portugal, 1999; CD "João Afonso: A Arte e a Música", Universal Music Portugal, 2004)




[instrumental]

Tenho uma rosa p'ra ti
Tenho uma rosa encarnada
Tenho uma rosa no mar
Tenho uma rosa molhada
Circula a noite no tempo
sobre as nossas gargalhadas
Tenho uma rosa p'ra ti
Tenho uma rosa encarnada

Vou sonhar com o teu olhar
oceano de água e mar

Vou fugir com o teu olhar
oceano de água e mar
sobre o mistério

Vou fugir com o teu olhar
oceano de água e mar
sobre o mistério

Em castelos de areia
eu escrevi um nome ao lado
Foi por ti que conheci
a tangerina dos Algarves

Em castelos de areia
eu escrevi um nome ao lado
Foi por ti que conheci
a tangerina dos Algarves

[instrumental]

Anda o Sol por trás da serra
Há cheiro a funcho queimado
E este abanão duma vaga
que chega sem avisar

Vinho rubro a navegar
por segredos do Universo
Desfolho a rosa no rio
p'ra te oferecer com um verso

Vou sentir o teu sabor
oceano de água e mar

Vou sentir com o teu sabor
oceano de água e flor
de tangerina

Vou sentir com o teu sabor
oceano de água e flor
de tangerina

Em castelos de areia
eu escrevi um nome ao lado
Foi por ti que conheci
a tangerina dos Algarves

Em castelos de areia
eu escrevi um nome ao lado
Foi por ti que conheci
a tangerina dos Algarves

[instrumental]


* João Afonso – voz
António Afonso – 2.ª voz
João Frazão – guitarra
José Moz Carrapa – guitarra
António Pedro Vasques – percussão, reco-reco
Músico convidado:
Ricardo J. Dias – acordeão

Produção e arranjos – José Moz Carrapa
Gravado nos Estúdios Valentim de Carvalho, Paço d'Arcos, de 22 de Fevereiro a 21 de Março de 1999
Gravação e masterização – Jorge Avillez
Técnico assistente – Artur David
Misturas – Jorge Avillez e José Moz Carrapa
URL: https://pt.wikipedia.org/wiki/Jo%C3%A3o_Afonso
https://www.facebook.com/JoaoAfonso.musico/
https://www.youtube.com/Jo%C3%A3oAfonsoMusico
https://www.youtube.com/@DoTempoDosSonhos/videos?query=joao+afonso
https://music.youtube.com/channel/UCCmbVQRLE6IHLbp_EYXro7w



Capa do CD "Barco Voador", de João Afonso (Mercury/Universal Music Portugal, 1999)
Fotografia – Augusto Brázio
Design e ilustração – António Afonso e Rita Ventura



Capa da compilação em CD "João Afonso: A Arte e a Música", Universal Music Portugal, 2004)

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Outros artigos com repertório de João Afonso:
A infância e a música portuguesa
Celebrando Natália Correia

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Outros artigos relacionados com a crónica de Fernando Alves na Antena 1:
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