03 abril 2025

Chico Buarque: "Construção"




«Por momentos, estive tentado a aviar-me com as postas de pescada eleitorais de um governo em peso junto à banca do peixe. Mas logo me libertei do Bolhão mediático porque o título de uma notícia do "Correio Braziliense" me fez soar dentro da cabeça os versos de uma poderosa canção do Chico.
A notícia do "Correio Braziliense" contava a morte de Cleonilson, catador de recicláveis, apanhado por uma descarga eléctrica na via pública. Foi a sua maneira de morrer "na contramão, atrapalhando o tráfego".
Na verdade, Cleonilson morreu em sentido inverso ao do operário da canção que "flutuou no ar como se fosse um pássaro". As asas dele iam nos calcanhares, quando pisou um fio desencapado no chão, junto a um poste eléctrico em dia de chuva. Foi levado em coma para o hospital da Asa Norte. Há nomes que nos elevam, mesmo em desgraça.
Este nome Cleonilson faz pensar em pontas de lança, mas o mais conhecido Cleonilson que encontrei numa pesquisa breve na internet foi um certo Cleonilson Protásio de Souza (Souza com zê), pós-doutorado em Engenharia Eléctrica (oh, ironia!)
Já o Cleonilson da notícia, sendo catador de recicláveis, raras vezes terá tido direito a tratamento respeitoso de instituições. Mas a Companhia Eléctrica Brasileira, neste contexto, lamentou profundamente "o falecimento do senhor Cleonilson Borges Pimentel".
O "Correio Braziliense" faz um apanhado de casos semelhantes mais recentes, todos de Março, casos de gente que pisa fios desencapados em dias de chuva. Raios sacudindo em plenas águas de Março. Um deles é o de um homem não identificado que fazia uma ligação clandestina, na zona do Sol Nascente. Outro é o de um menino que morreu electrocutado por um fio de alta tensão, durante uma tempestade. Outro é de um técnico de som que montava uma instalação no estádio Mané Garrincha.
A notícia da morte de Cleonilson tem uma frase tocada por uma subtil força electromotriz: explica que o catador de recicláveis "passava pelo local após uma chuva, quando pisou no chão, próximo a um poste e caiu desacordado". Um tipo lê isto "caiu desacordado" e é sacudido por uma aprazível voltagem. Pena que Cleonilson tenha acabado no chão, "feito um pacote tímido". Um quase morto que dá choque.
Tudo nesta notícia tem um não sei quê. Apetece dizer ao repórter no batente: "Deus lhe pague".» [Fernando Alves, "Catador de recicláveis", in "Os Dias que Correm", 3 Abr. 2025]


Das pérolas poético-musicais que Chico Buarque criou – e não foram poucas –, o poema-canção "Construção", publicado em 1971 no LP homónimo sob o selo Philips, é (quase) unanimemente considerada a mais preciosa e resplandecente. Em tal apreciação pesa sobretudo a maneira absolutamente admirável e magistral como o poema foi elaborado e estruturado com versos dodecassilábicos terminados em trissílabos esdrúxulos (nas três primeiras estofes) e em verbos do tipo -ir no infinitivo (no último conjunto de três tercetos rematados com o estribilho-súplica "Deus lhe pague").
A evocação da sublime "Construção", de Chico Buarque, que Fernando Alves fez na sua crónica de hoje era mesmo uma convocação tácita para que lhe fossem dadas honras de transmissão a seguir às suas palavras de homenagem a infortunadas vítimas de electrocussão no Brasil, em sorte idêntica à do operário de construção civil que caído das alturas «se acabou no chão feito um pacote flácido». As honras de radiodifusão eram garantidas se a crónica tivesse sido emitida no âmbito dos "Sinais", na privada TSF-Rádio-Jornal, mas na pública Antena 1 é pedir de mais. Não o seria se Nuno Galopim de Carvalho e o seu subalterno encarregado de conduzir o programa da manhã, Ricardo Soares, fossem pessoas diligentes e sempre empenhadas em prestar o melhor serviço aos ouvintes/contribuintes...



Construção



Letra e música: Chico Buarque (Francisco Buarque de Hollanda)
Intérprete: Chico Buarque* (in LP "Construção", Philips/Phonogram, 1971, reed. Philips/Polygram, 1988; 2CD "Antologia 66/84": CD 1, Universal Music Portugal, 2004)




Amou daquela vez como se fosse a última
Beijou sua mulher como se fosse a última
E cada filho seu como se fosse o único
E atravessou a rua com seu passo tímido
Subiu a construção como se fosse máquina
Ergueu no patamar quatro paredes sólidas
Tijolo com tijolo num desenho mágico
Seus olhos embotados de cimento e lágrima
Sentou pra descansar como se fosse sábado
Comeu feijão com arroz como se fosse um príncipe
Bebeu e soluçou como se fosse um náufrago
Dançou e gargalhou como se ouvisse música
E tropeçou no céu como se fosse um bêbado
E flutuou no ar como se fosse um pássaro
E se acabou no chão feito um pacote flácido
Agonizou no meio do passeio público
Morreu na contramão atrapalhando o tráfego

Amou daquela vez como se fosse o último
Beijou sua mulher como se fosse a única
E cada filho seu como se fosse o pródigo
E atravessou a rua com seu passo bêbado
Subiu a construção como se fosse sólido
Ergueu no patamar quatro paredes mágicas
Tijolo com tijolo num desenho lógico
Seus olhos embotados de cimento e tráfego
Sentou pra descansar como se fosse um príncipe
Comeu feijão com arroz como se fosse o máximo
Bebeu e soluçou como se fosse máquina
Dançou e gargalhou como se fosse o próximo
E tropeçou no céu como se ouvisse música
E flutuou no ar como se fosse sábado
E se acabou no chão feito um pacote tímido
Agonizou no meio do passeio náufrago
Morreu na contramão atrapalhando o público

Amou daquela vez como se fosse máquina
Beijou sua mulher como se fosse lógico
Ergueu no patamar quatro paredes flácidas
Sentou pra descansar como se fosse um pássaro
E flutuou no ar como se fosse um príncipe
E se acabou no chão feito um pacote bêbado
Morreu na contramão atrapalhando o sábado

Por esse pão pra comer, por esse chão pra dormir
A certidão pra nascer e a concessão pra sorrir
Por me deixar respirar, por me deixar existir
Deus lhe pague

Pela cachaça de graça que a gente tem que engolir
Pela fumaça, desgraça, que a gente tem que tossir
Pelos andaimes, pingentes, que a gente tem que cair
Deus lhe pague

Pela mulher carpideira pra nos louvar e cuspir
E pelas moscas-bicheiras a nos beijar e cobrir
E pela paz derradeira que enfim vai nos redimir
Deus lhe pague


* Chico Buarque – voz
Participação especial de:
Tom Jobim, Paulinho Jobim e MPB4

Direcção musical – Magro
Direcção de produção e de estúdio – Roberto Menescal
Gravado nos Estúdios Phonogram, Rio de Janeiro
Técnicos de gravação – Toninho e Mazola
URL: https://www.chicobuarque.com.br/
https://www.facebook.com/ChicoBuarque/
https://music.youtube.com/channel/UC0KFB-23-1AeWp1pOi6bvpQ



Capa do LP "Construção", de Chico Buarque (Philips/Phonogram, 1971)
Fotografia – Carlos Leonam
Concepção – Aldo Luz



Capa da compilação em duplo CD "Antologia 66/84" (Universal Music Portugal, 2004).

___________________________________________

Outros artigos com repertório de Chico Buarque:
Em memória de Georges Moustaki (1934-2013)
Celebrando Vinicius de Moraes
Chico Buarque: "Bom Conselho"

___________________________________________

Outros artigos relacionados com a crónica de Fernando Alves na Antena 1:
Galandum Galundaina: "Chin Glin Din"
"Sons d'Outrora" em viola da terra, por Miguel Pimentel
Vitorino: "Moças de Bencatel" (Conde de Monsaraz)
Teresa Silva Carvalho: "Barca Bela" (Almeida Garrett)
António Borges Coelho: "Sou Barco"
Celeste Rodrigues: "Chapéu Preto"
Sérgio Godinho: "Tem Ratos"
Ruy Belo: "E Tudo Era Possível", por Nicolau Santos
Jacques Brel: "J'Arrive"
A tristeza lusitana
Segréis de Lisboa: "Ay flores do verde pino" (D. Dinis)
Manuel D'Oliveira: "O Momento Azul"
Aldina Duarte: "Flor do Cardo" (João Monge)
José Mário Branco: "Inquietação"
Chico Buarque: "Bom Conselho"
Teresa Paula Brito: "Meu Aceso Lume - Meu Amor" (Maria Teresa Horta)
Adriano Correia de Oliveira: "Pensamento" (Manuel Alegre)
Fausto Bordalo Dias: "Comboio Malandro" (António Jacinto)
Grupo Coral "Os Ganhões de Castro Verde" com Luiz Avellar: "As Nuvens Que Andam no Ar"
Amélia Muge: "Ai, Flores"
Afonso Dias: "Os Amigos" (Camilo Castelo Branco)
Pedro Barroso: "Barca em Chão de Lama"
António Gedeão: "Poema do Coração"
Reinaldo Ferreira: "Quero um cavalo de várias cores"

Sem comentários: