Painel azulejar de homenagem a Adriano Correia de Oliveira, da autoria do pintor António Carmo. Situado em Avintes, à entrada do Parque Biológico de Gaia, foi inaugurado a 20 de Abril de 2008 pelo então presidente da Câmara Municipal de Vila Nova de Gaia, Luís Filipe Menezes.
Fotografia – Jorge Guedes (in https://adrianocorreiadeoliveira.org/fotografias/).
Depois de José Afonso, Adriano Correia de Oliveira foi o compositor/intérprete mais importante da canção de contestação à ditadura salazarista-marcelista e mensageira da irreprimível aspiração à vida num Portugal liberto da mordaça, dos cárceres políticos, da anacrónica guerra colonial, das vergonhosas iniquidades sociais, da corrupção... – em suma, num país livre e solidário onde imperasse a justiça social e o bem-comum. Mas o repertório de Adriano não se restringiu, após o fado de Coimbra dos primórdios, às trovas e às baladas de intervenção, no sentido mais estrito do termo (se bem que toda a arte seja, de algum modo, interventiva ou interpelativa): o distinto artista também dispensou especial atenção à poesia lírica de temática amorosa, quer popular quer erudita. Entre esses espécimes líricos a que Adriano emprestou a sua maviosa, límpida e afinadíssima voz conta-se a encantadora "Canção da Fronteira", com música criada por si próprio para o poema "Serranilha", do poeta, ficcionista e etnógrafo duriense (natural de Castedo do Douro, Alijó) António Cabral, inspirado na "Serranilla VII (La vaquera de la Finojosa)", da autoria do castelhano, do século XV, Iñigo López de Mendoza (1.º Marquês de Santilhana) [>> texto completo].
A "Canção da Fronteira", que saiu no LP "O Canto e as Armas", publicado em Dezembro de 1969, tem uma das belas melodias que Adriano concebeu e, paradoxalmente, é das menos conhecidas. Uma boa razão para aqui a destacarmos, nesta data em que se completam 40 anos sobre o prematuro desaparecimento do criador da "Canção com Lágrimas", honrando a memória do grande (enorme) artista português, a quem – é oportuno lembrar – o país ainda não deu o devido e merecido reconhecimento. Não nos referimos a condecorações póstumas nem a estátuas (estátuas e bustos de ilustres desconhecidos é o que mais há por esse Portugal fora), mas à divulgação da sua obra pelos media, sobretudo pela rádio. Não deixando de ser grave que quem manda nos canais privados se 'esqueça' de Adriano Correia de Oliveira, por ignorância ou por pacóvio preconceito, constitui um abominável crime de sonegação cultural que o precioso legado musical/fonográfico do insigne cantor seja reiteradamente posto de lado por quem tem responsabilidades nas 'playlists' da estação pública, mormente nas das Antenas 1 e 3.
Canção da Fronteira
Poema: António Cabral (ligeiramente adaptado) [texto original >> abaixo]
Música: Adriano Correia de Oliveira
Intérprete: Adriano Correia de Oliveira* (in LP "O Canto e as Armas", Orfeu, 1969, reed. Movieplay, 1997; 7CD "Adriano: Obra Completa": CD "A Noite dos Poetas", Movieplay, 1994; 7 livros/CD "Obra Completa de Adriano Correia de Oliveira": vol. 7 - "Menina dos Olhos Tristes: A Noite dos Poetas", Movieplay/Público, 2007)
[instrumental]
Moça tão formosa
não vi na fronteira,
como uma ceifeira
que cantava rosa.
Foi em Barca d'Alva,
quando o Sol nascia.
Uma ceifeira cantava...
cantando vertia
trovas na fronteira,
quando o Sol nascia.
A saia de chita,
blusinha limão.
Que coisa bonita
sobre o coração!
Nos ramos da luz
um fruto limão.
De foice na mão,
suspensa dum sonho,
mordendo dois bagos
rubros de medronho;
seus olhos dois bagos
suspensos dum sonho.
Devia ser pobre,
mas cantava rosa,
romã que se abria
na manhã formosa.
Que canto, que sonho,
que engano de rosa?
Foi em Barca d'Alva,
quando o Sol nascia.
Uma ceifeira cantava...
cantando vertia
trovas na fronteira,
quando o Sol nascia.
Moça tão formosa
não vi na fronteira,
como uma ceifeira
que cantava rosa.
(António Cabral, in "Os Homens Cantam a Nordeste", Tomar: Nova Realidade, 1967 – p. 80-81; "Antologia dos Poemas Durienses", Chaves: Edições Tartaruga, 1999 – p. 64-65)
«Moza tan fermosa
non vi en la frontera,
com' una vaquera
de la Finojosa.»
Iñigo López de Mendoza
(Marquês de Santilhana)
Moça tão formosa
não vi na fronteira,
como uma ceifeira
que cantava rosa.
Foi em Barca de Alva,
quando o sol nascia.
Ia uma ceifeira
cantando; floria.
Floria a fronteira,
quando o sol nascia.
A saia de chita,
blusinha limão.
Que coisa bonita
sobre o coração!
Nos ramos da luz
um fruto limão.
De foice na mão,
suspensa dum sonho,
mordendo dois bagos
rubros de medronho;
seus olhos dois bagos
suspensos dum sonho.
Devia ser pobre,
mas cantava rosa,
romã que se abria
na manhã formosa.
Que canto, que sonho,
que engano de rosa?
António Cabral (Castedo do Douro, Alijó, 30 Abr. 1931 - Vila Real, 23 Out. 2007)
Capa do livro "Os Homens Cantam a Nordeste", de António Cabral (Tomar: Nova Realidade, 1967)
Reprodução parcial de um quadro de Nuno Barreto
Capa do livro "Antologia dos Poemas Durienses", de António Cabral (Chaves: Edições Tartaruga, 1999)
Capa do LP "O Canto e as Armas", de Adriano Correia de Oliveira (Orfeu, 1969)
Concepção – J. F. Bogalho
Capa da caixa de 7CD "Adriano: Obra Completa", org. José Niza (Movieplay, 1994)
Fotografia – Inácio Ludgero
Design gráfico – José Santa-Bárbara
Edição electrónica/digitalização gráfica – Olívia Braga
Capa do CD "A Noite dos Poetas", org. José Niza (Movieplay, 1994)
Design gráfico – José Santa-Bárbara
Edição electrónica/digitalização gráfica – Olívia Braga
Capa do livro/CD "Menina dos Olhos Tristes: A Noite dos Poetas", vol. 7 da "Obra Completa de Adriano Correia de Oliveira", org. José Niza (Movieplay/Público, 2007)
Na fotografia, tirada em 1962, em Estocolmo, à direita de Adriano estão José Afonso e José Niza.
Franz Schubert retratado por Wilhelm August Rieder, em óleo sobre tela, no ano de 1875, a partir de um retrato em aguarela pintado em 1825.
A Franz Schubert, mau grado a sua curta vida (morreu antes de completar 32 anos de idade, vítima de sífilis), se devem muitas das mais belas e sedutoras melodias da História da Música. Uma delas é a do lied "An die Musik" ("À Música"), que o genial compositor austríaco concebeu, em Março de 1817, para um poema do seu compatriota e amigo Franz von Schober, e viu publicado em 1827 (ano anterior ao do decesso), pelo editor vienense Thaddäus Weigl.
Com este fascinante hino de gratidão à arte dos sons celebramos o presente Dia Mundial da Música pondo em destaque duas interpretações absolutamente superlativas, uma masculina e outra feminina: a primeira pelo barítono Dietrich Fischer-Dieskau (acompanhado por Gerald Moore) e a segunda pelo meio-soprano Christa Ludwig (com acompanhamento de Geoffrey Parsons). Os leitores/visitantes do blogue "A Nossa Rádio" que cultivam o lied germânico certamente conhecem estas gravações, mas para os outros talvez sejam revelações – revelações extraordinárias, esperamos. Se assim acontecer, congratulamo-nos por termos prestado serviço público cultural.
A propósito de serviço público, afigura-se-nos pertinente lembrar que uma das mais gritantes lacunas na actual grelha da Antena 2 é precisamente a ausência de um espaço reservado à canção de tradição erudita, desde a Idade Média até à actualidade. Sem prejuízo da criação de um programa semanal, a exemplo do memorável "O Texto e a Música" (de Yvette Centeno e Nuno Vieira de Almeida), devia haver uma rubrica diária na qual fosse apresentada uma canção, interpretada por um(a) cantor(a) de referência no género, antecedida do respectivo texto em português dito, consoante o caso, por um actor ou por uma actriz com provas dadas na difícil arte de dizer poesia (Luís Lima Barreto e Luísa Cruz, por exemplo). Só os lieder de Schubert, avulsos ou integrantes de ciclos ("A Bela Moleira", "A Dama do Lago", "Viagem de Inverno", "O Canto do Cisne"), que se cifram em mais de 600 espécimes, dariam para manter essa rubrica durante quase dois anos.
Fica apresentada a ideia, na esperança de que não caia em saco roto.
An die Musik
Poema: Franz von Schober [tradução livre em português >> abaixo]
Música (em Dó maior): Franz Schubert (Opus 88, No. 4 / D. 547)
Intérpretes: Dietrich Fischer-Dieskau* & Gerald Moore (in 12LP "Franz Schubert: Lieder, Volume I": LP 1, Deutsche Grammophon, 1970; 9CD "Franz Schubert: Lieder, Volume II": CD 1, Deutsche Grammophon, 1992)
Du holde Kunst, in wieviel grauen Stunden,
Wo mich des Lebens wilder Kreis umstrickt,
Hast du mein Herz zu warmer Lieb entzunden,
Hast mich in eine bessre Welt entrückt!
In eine bessre Welt entrückt!
Oft hat ein Seufzer, deiner Harf entflossen,
Ein süsser, heiliger Akkord von dir,
Den Himmel bessrer Zeiten mir erschlossen...
Du holde Kunst, ich danke dir dafür!
Du holde Kunst, ich danke dir dafür!
Poema: Franz von Schober [tradução livre em português >> abaixo]
Música (em Dó maior): Franz Schubert (Opus 88, No. 4 / D. 547)
Intérpretes: Christa Ludwig* & Geoffrey Parsons (in LP "Schubert Recital", Columbia/EMI, 1966; CD "Schubert: 15 Lieder", EMI Classics, 2004)
Du holde Kunst, in wieviel grauen Stunden,
Wo mich des Lebens wilder Kreis umstrickt,
Hast du mein Herz zu warmer Lieb entzunden,
Hast mich in eine bessre Welt entrückt!
In eine bessre Welt entrückt!
Oft hat ein Seufzer, deiner Harf entflossen,
Ein süsser, heiliger Akkord von dir,
Den Himmel bessrer Zeiten mir erschlossen...
Du holde Kunst, ich danke dir dafür!
Du holde Kunst, ich danke dir dafür!
Tu, bendita Arte, quantas vezes em horas sombrias,
Em que o rude grilhão da vida me envolvia,
Incendiaste o meu coração de inflamado amor,
Me transportaste para um mundo melhor!
Para um mundo melhor!
Muitas vezes um suspiro da tua harpa se evolou,
Um dócil e sagrado acorde de ti
O céu carregado me desanuviou...
A ti, bendita Arte, te agradeço por isso!
A ti, bendita Arte, te agradeço!
Franz von Schober retratado por Leopold Kupelwieser, em óleo sobre tela, 1822.
Partitura autógrafa do lied "An die Musik" (1817), de Franz Schubert.
Capa do duodécuplo LP "Franz Schubert: Lieder, Volume I", de Dietrich Fischer-Dieskau & Gerald Moore (Deutsche Grammophon, 1970).
Capa do LP "Schubert Recital", de Christa Ludwig & Geoffrey Parsons (Columbia/EMI, 1966).
Nesta 'reentrée' estávamos à espera de poder continuar a deleitar os nossos ouvidos, nas manhãs dominicais, após o bloco publicitário subsequente ao noticiário das 11h:00, com o magnífico programa "A Cena do Ódio" [>> RTP-Play], de David Ferreira, agora em edições originais, a exemplo do que tem acontecido com "O Amor É...". Desditosamente, as nossas expectativas saíram frustradas porque o horário d' "A Cena do Ódio" passou a ser ocupado por um programa de entrevista (mais um), intitulado "Infinito Particular", de uma tal Susana Bento Ramos, que não conhecemos de parte alguma mas que nos deixou mal impressionados ao revelar-se ignorante quando associou o álbum "Os Dias da Madredeus" à canção "O Pastor". Ainda aventámos a hipótese de que o imperdível "A Cena do Ódio" tivesse sido colocado noutro horário e fomos averiguar. Nenhuma referência ao programa lográmos enxergar passando a pente fino a grelha da Antena 1 nos sete dias da semana, o que nos leva a deduzir que foi suprimido. Se foi o Sr. David Ferreira que resolveu pôr-lhe um ponto final, apesar de nem por sombras terem sido esgotadas as temáticas susceptíveis de serem exploradas, respeitamos a decisão, embora a lamentemos. Ainda assim, o programa podia muito bem manter-se em reposição. E se não se manteve foi por única e exclusiva vontade do director de programas da Antena 1, Nuno Galopim, pois o autor não iria decerto opor-se a isso. Mas são fortes as nossas suspeitas de que foi o próprio Nuno Galopim que não quis que fossem produzidas mais edições originais d' "A Cena do Ódio" (sabê-lo-emos, mais cedo ou mais tarde). Em qualquer dos casos, uma pergunta se nos impõe fazer: que bicho peçonhento terá mordido ao sr. Nuno Galopim para tomar a tão insana e descabida decisão de eliminar da grelha da Antena 1 o programa "A Cena do Ódio", uma marca de excelência do serviço público de radiodifusão, como já foi reconhecido pela SPA? Se desejava criar outro programa de entrevista podia perfeitamente fazê-lo sem necessidade de sacrificar o aclamado programa de David Ferreira. Mesmo que não houvesse vaga na grelha e se queria à viva força iniciar nesta altura o "Infinito Particular", a opção acertada seria descartar um dos programas de muito duvidoso interesse (alguns são mesmo de autêntica lana-caprina) que preenchem o espaço compreendido entre as 23h:00 e a 01h:00, de segunda a sexta-feira.
Não sabemos se o sr. Nuno Galopim alguma vez ouviu, com ouvidos de ouvir, o programa "A Cena do Ódio". Se ouviu, é de lamentar, em primeiro lugar, que não tenha a capacidade de reconhecer a pertinência da existência numa rádio de serviço público de um programa cujo conceito consiste em apresentar música ecléctica e de qualidade subordinada a um determinado tema-tópico, ademais estando a mesma rádio bastante descaracterizada e abastardada no que à oferta musical diz respeito (basta atentar naquela asquerosa 'playlist' atafulhada de escória sonora), e, em segundo lugar, que lhe falte o discernimento para reconhecer o dedicado e proficiente trabalho do Sr. David Ferreira, sobejamente patente na zelosa e criteriosa selecção de canções, peças instrumentais e poemas recitados, sem cedências ao gosto mais vulgar e rasteiro, com que brindava os ouvintes da Antena 1, revelando-lhes muitas preciosidades e alargando-lhes os horizontes culturais/estéticos. Uma coisa – convém acrescentar – nada despicienda no actual panorama radiofónico em que se regista uma perniciosa tendência para a uniformização da música no éter nacional, privilegiando-se a mais massificada e de maior potencial comercial em prejuízo da menos divulgada e mais alternativa. Seria bom que Nuno Galopim tivesse a real noção de que a Antena 1, por ser financiada pelos ouvintes/contribuintes, não pode descurar os programas/conteúdos que fazem a diferença (para melhor, claro está) em relação àquilo que oferecem as rádios comerciais. E aqui vamos ao busílis da questão: o programa "A Cena do Ódio" dificilmente teria guarida numa rádio privada, mas na estação pública é uma grande (enorme) mais-valia, sendo uma perfeita estultícia prescindir desse insubstituível trunfo.
Estando disso bem conscientes, os seus fiéis ouvintes clamam, a plenos pulmões: «Queremos "A Cena do Ódio" de volta à Antena 1!»
Assinalamos a chegada da estação da nostalgia e das cores quentes de 2022, que ocorreu às 02h:04 da madrugada (hora de Portugal Continental), com a bela "Balada de Outono" interpretada por Aníbal Raposo, com música da sua autoria sobre poema de Álamo Oliveira, que faz parte do magnífico álbum "A Palavra e o Canto", lançado em 2006, sob o selo Açor, do Prof. Emiliano Toste.
Suspeitamos que para a maioria dos leitores/visitantes do blogue "A Nossa Rádio" não açorianos será uma (agradável) descoberta uma vez que Aníbal Raposo não está representado nas 'playlists' das rádios do Continente, Antena 1 incluída, sendo também duvidoso que algo da sua produção passe na Antena 1-Madeira, na RDP-Internacional e na RDP-África. Estamos em crer que na RDP-Açores (agora denominada Antena 1-Açores) o cantautor micaelense tenha divulgação conveniente. Seria assaz anormal e bizarro se acontecesse o contrário. No entanto, Aníbal Raposo, que está à beira de completar 45 anos de percurso profissional no mundo da música (foi um dos elementos fundadores, em 1978, do grupo Construção, que enriqueceu o património musical/fonográfico português com o soberbo álbum "Há Qualquer Coisa...", editado em 1982), é muito mais do que um bom artista dos Açores: é um excelente artista de Portugal e da Lusofonia. Atesta-o fundamentalmente a sua discografia em nome próprio – "Maré Cheia" (1999), "A Palavra e o Canto" (2006), "Rocha da Relva" (2013), "Mar de Capelo" (2017) e "Falas e Afectos (2020)" – a qual, além de repertório inteiramente da sua autoria, contempla poesia de vultos tão proeminentes da Língua Portuguesa como Mário de Sá-Carneiro, Natália Correia, Vinicius de Moraes e Mia Couto. Por conseguinte, importa que o serviço público português de radiodifusão cumpra a missão para a qual foi criado e, através da Antena 1, da Antena 1-Madeira, da RDP-Internacional e da RDP-África, bem como da rádio online Lusitânia, divulgue, cabal e satisfatoriamente, a obra de Aníbal Raposo. Vale o mesmo, bem entendido, para outros categorizados artistas e grupos açorianos e madeirenses que criam música original e/ou se dedicam à recriação do cancioneiro tradicional – pelo direito que lhes assiste de serem conhecidos de todos os portugueses, independentemente do local onde residam, e pelo direito que os segundos também têm de escutar no canal da rádio pública mais ao seu alcance a boa música produzida naqueles pedaços de Portugal que são os arquipélagos dos Açores e da Madeira!
Balada de Outono
Poema: Álamo Oliveira
Música: Aníbal Raposo
Intérprete: Aníbal Raposo* (in CD "A Palavra e o Canto", Açor/Emiliano Toste, 2006)
[instrumental]
Poema ao vento
Com as crinas delirantes!
Outono lento
Com os sonhos bem distantes!
Meu Sol sangrando
em agonia,
Meu corpo amando
Um farrapo de poesia.
Folhas de Outubro
Sobre Setembro:
– Mãos que descubro
Sem saber do que me lembro...
Meu barco atado
Ao cais da vida;
Lenço bordado
Que aceno em despedida.
[instrumental]
Tudo sereno
Nesse mar em maresia:
Um cheiro a feno
Vai na onda da poesia
Nas mãos da tarde
– Em concha pura
Um corpo arde
De espanto e de ternura.
Eis o Outono
Correndo à chuva!
Com ar de sono
E seu pranto de viúva...
Tudo cinzento.
Mágoa levada
No movimento
Desta garça abandonada.
[instrumental]
Longo tormento
Que Novembro acarreta:
Poema dentro
Da barriga do poeta.
Minha placenta,
Sem ter idade,
Que não rebenta
Este grito de saudade.
Que parto ameno
De mim deriva?
– Meu filho pleno,
Meu amor em carne viva;
Meu sangue e carne,
Criado e dono;
Folha da tarde
Que caiu no meu Outono.
[instrumental]
* Aníbal Raposo – voz
Carlos Frazão – piano
Lídia Medeiros – violino
Teresa Carvalho – violoncelo
Paulo Andrade – percussões
Zica – baixo
Sendo verdade que a estação estival (e hoje começa a de 2022) convida os apreciadores de música a experienciarem ritmos mais acelerados e trepidantes, também não é mentira que a certas horas do dia, sobretudo quando o Sol está a pino, muitos melómanos, a resguardo da torreira, não desejam outra coisa, além de um refresco, que não seja ouvir música serena e sem palavras propiciadora da quietação e da introspecção, como é o caso do inebriante instrumental "Estio", de José Peixoto. Música encantatória em que a maravilhosa guitarra de José Peixoto, assente no fabuloso contrabaixo de Mário Franco, como que sobre um tapete-voador, nos faz viajar até paragens magrebinas, ora de buliçosos bazares, ora de amplas paisagens dunares, ora de paradisíacos oásis. Este "Estio" pertence à selecta categoria de obras musicais que depois de por elas nos deixarmos envolver não queremos, de modo algum, largar. Sublime!
Com quatro décadas de percurso artístico, como compositor e exímio executante de guitarra clássica (sendo que nos primeiros tempos também tocava outros instrumentos como o alaúde, o baixo, a harpa sequenciada e o piano-marimba), José Peixoto alcançou, por mérito próprio, o invejável estatuto de músico de superlativa referência em Portugal. Atestam-no: a sua valiosa discografia, quer em nome próprio – individualmente ou em parceria com outros reputados instrumentistas (o percussionista José Salgueiro, o baixista Fernando Júdice, o violinista Carlos Zíngaro, o contrabaixista António Quintino...) ou com meritórias cantoras (Maria João, Filipa Pais, Sofia Vitória...) –, quer integrando projectos colectivos, quase todos criados por sua iniciativa (SHISH, El Fad, Grupo Cal Viva, TAIFA, Madredeus, Sal, Aduf, LST-Lisboa String Trio, Quinteto Lisboa); os numerosos convites que recebeu para participar, na qualidade de instrumentista, de compositor, de arranjador e/ou de produtor, em discos de múltiplos artistas (João Lóio, Janita Salomé, Maria João, Pedro Cadeira Cabral, Pedra d'Hera, Vitorino, Anamar, José Mário Branco, Rui Veloso, Amélia Muge, Mafalda Veiga, Júlio Pereira, Rui Júnior, Maria João Quadros, María Berasarte, Francisco Ribeiro, Marta Pereira da Costa, Teresa Salgueiro...); as também muito relevantes encomendas de música para espectáculos de dança e para peças de teatro (encenadas, na sua maioria, por Maria João Luís); a aclamação da crítica especializada, sendo de destacar a atribuição do Prémio Carlos Paredes a dois álbuns de projectos seus ["Lunar" (2010), de El Fad, e "Matéria" (2014), de LST-Lisboa String Trio]; e o aplauso de um público exigente.
No que respeita à rádio pública, a divulgação da produção de José Peixoto tem-se restringido essencialmente a um ou outro programa de entrevista, na Antena 1 ou na Antena 2, aquando do lançamento de trabalhos discográficos. É pouquíssimo! Devia haver uma divulgação mais consistente, em todas as três antenas de cobertura nacional, quer em programas temáticos ou de autor, quer nos alinhamentos de continuidade. Na Antena 2, havia o espaço "Ponto PT" [>> RTP-Play], no qual boa parte da discografia de José Peixoto tinha perfeito cabimento, mas foi incompreensivelmente suprimido da grelha, em finais de 2019, com a mácula desonrosa de nem um só disco do artista lá ter sido divulgado. No caso das Antenas 1 e 3, atendendo ao enorme peso que as respectivas 'playlists' têm no cômputo geral da difusão musical, sobretudo de segunda a sexta-feira, não é aceitável que lá não figurem algumas canções com a assinatura de José Peixoto, designadamente dos álbuns "Estrela" (com Filipa Pais), "Pele" (com Maria João) e "Belo Manto" (com Sofia Vitória). Sem prejuízo, obviamente, da presença de peças instrumentais, ainda que de duração mais curta do que a do espécime que ora destacamos.
Estio
Música: José Peixoto
Intérprete: José Peixoto* (in CD "Aceno", Zona Música, 2003)
(instrumental)
* José Peixoto – guitarra de oito cordas
Mário Franco – contrabaixo
Neste ano do bicentenário da independência do Brasil (o histórico Grito do Ipiranga aconteceu a 7 de Setembro de 1822), que é também o do centenário da primeira viagem aérea entre Lisboa e o Rio de Janeiro protagonizada por Sacadura Cabral e Gago Coutinho, entendemos que faria bastante sentido apresentar no presente 10 de Junho poesia de Camões dita por um brasileiro, no caso pelo embaixador (e também actor) Lauro Moreira. Esses espécimes camonianos são os três sonetos presentes na edição, em duplo CD, "Mãos Dadas: Lauro Moreira interpreta Poemas da Língua Portuguesa" (EMC Digital, 1998). De poesia musicada/cantada escolhemos os "Três Sonetos de Camões", Op. 27, de Fernando Lopes-Graça, interpretados pelo tenor Fernando Serafim acompanhado ao piano por Filipe de Sousa e publicados no CD "Fernando Lopes-Graça: Sonetos de Camões" (PortugalSom/Strauss, 1995). Dá-se o caso – feliz coincidência – de dois sonetos ("Sete anos de pastor Jacob servia" e "Alma minha gentil, que te partiste") que Lauro Moreira escolheu terem sido também musicados por Fernando Lopes-Graça, o que nos permite fazer a audição sequencial: a forma recitada seguida da musicada/cantada. Uma celebração camoniana luso-brasileira que nos deu imenso prazer preparar e nos deixará redobradamente gratificados se for do agrado dos leitores/visitantes do blogue "A Nossa Rádio"!
E como tem a rádio pública celebrado Luís de Camões neste dia que lhe é devotado? Apesar do incómodo, desde as 07h:00 até às 20h:00, andámos a fazer 'zapping' entre os três canais nacionais, Antenas 1, 2 e 3. Ouvimos duas pequenas resenhas biográficas: uma no programa da manhã da Antena 3, por Hugo van der Ding, na sua rubrica "Vamos Todos Morrer" [>> RTP-Play] e outra na Antena 2, baseada no livro de José Hermano Saraiva "Vida Ignorada de Camões" (1978), lida por Ana Isabel Gonçalves e Paula Pina, no apontamento "Palavras de Bolso" [>> RTP-Play]. Também escutámos no espaço "Boulevard", da Antena 2, pela mão do seu animador André Pinto, a Sinfonia «À Pátria», Op. 13, de José Vianna da Motta (cujos andamentos têm, na partitura, epígrafes retiradas d' "Os Lusíadas" e do soneto "Eu cantarei de amor tão docemente"), interpretada pela Orquestra Filarmónica Real de Liverpool, sob a direcção de Álvaro Cassuto. De poesia camoniana, lográmos ouvir apenas a introdução do soneto apócrifo "Com que voz chorarei meu triste fado", cantado por Amália Rodrigues sobre música de Alain Oulman, que serviu de fundo musical na rubrica de Hugo van der Ding e, citados pelo Prof. Jorge Miranda, no seu discurso das cerimónias oficiais do Dia de Portugal transmitidas pela Antena 1, o verso «Da Lusitana antiga liberdade» (segundo da 6.ª estrofe d' "Os Lusíadas") e os versos 'incipit' de alguns dos sonetos mais conhecidos, entre os quais os dois acima referenciados. Nada mais! Quer dizer: quem chefia os três canais nacionais da rádio pública portuguesa, além de nada fazer no sentido de proporcionar aos seus ouvintes a revisitação ou a audição em primeira mão de registos camonianos de poesia e de teatro existentes no arquivo histórico, limitou-se a ignorar o valioso património discográfico – quer recitado quer musical (popular e erudito) – a que podia deitar mão para celebrar o vulto maior da nossa Língua. No caso das Antenas 1 e 3 nem sequer houve a preocupação de reformular as respectivas 'playlists' ou de dar instruções aos locutores de continuidade para que a oferta musical, fora dos programas de autor (pré-gravados), fosse exclusivamente cantada em português. Absolutamente indecente e vergonhoso!
Sete anos de pastor Jacob servia
Poema (soneto) de Luís de Camões (in "Rimas", org. Fernão Rodrigues Lobo Soropita, Lisboa, 1595; "Obras de Luís de Camões", Porto: Lello & Irmão Editores, 1970 – p. 15)
Recitado por Lauro Moreira (in 2CD "Mãos Dadas: Lauro Moreira interpreta Poemas da Língua Portuguesa": CD 1, EMC Digital, 1998)
Sete anos de pastor Jacob servia
Labão, pai de Raquel, serrana bela;
mas não servia ao pai, servia a ela,
que a ela só por prémio pretendia.
Os dias, na esperança de um só dia,
passava, contentando-se com vê-la:
porém o pai, usando de cautela,
em lugar de Raquel lhe deu a Lia.
Vendo o triste pastor que com enganos
assi lhe era negada a sua pastora,
como se a não tivera merecida,
começou a servir outros sete anos,
dizendo: — Mais servira, se não fora
para tão longo amor tão curta a vida!
Nota:
Jacob – patriarca bíblico, filho de Isaac e de Rebeca, irmão gémeo de Esaú. Serviu seu tio Labão durante sete anos com a condição de, findo esse período, casar-se com a mais bela das suas filhas, Raquel. No dia das bodas, Labão trocou Raquel pela filha mais velha, Lia. Como, segundo o rito hebraico de então, a noiva era oferecida ao noivo completamente envolvida num véu, Jacob só deu pelo logro no dia seguinte. O tio justificou-se dizendo que não era costume casarem-se as filhas mais novas primeiro e contratou com Jacob mais sete anos, após o que lhe deu Raquel em casamento. De Lia, de Raquel e das suas duas escravas, Zilfa e Bila, Jacob teve doze filhos que fundaram as doze tribos de Israel.
Sete anos de pastor Jacob servia
Poema (soneto): Luís de Camões (in "Rimas", org. Fernão Rodrigues Lobo Soropita, Lisboa, 1595; "Obras de Luís de Camões", Porto: Lello & Irmão Editores, 1970 – p. 15)
Música: Fernando Lopes-Graça (1.ª peça de "Três Sonetos de Camões", Op. 27, LG 168, 1939)
Intérpretes: Fernando Serafim* & Filipe de Sousa (in CD "Fernando Lopes-Graça: Sonetos de Camões", PortugalSom/Strauss, 1995)
Sete anos de pastor Jacob servia
Labão, pai de Raquel, serrana bela;
mas não servia ao pai, servia a ela,
que a ela só por prémio pretendia.
Os dias, na esperança de um só dia,
passava, contentando-se com vê-la:
porém o pai, usando de cautela,
em lugar de Raquel lhe dava a Lia.
Vendo o triste pastor que com enganos
assi lhe era negada a sua pastora,
como se a não tivera merecida,
começa de servir outros sete anos,
dizendo: — Mais servira, se não fora
para tão longo amor tão curta a vida!
* Fernando Serafim – voz (tenor)
Filipe de Sousa – piano
Alma minha gentil, que te partiste
Poema (soneto) de Luís de Camões (in "Rimas", org. Fernão Rodrigues Lobo Soropita, Lisboa, 1595; "Obras de Luís de Camões", Porto: Lello & Irmão Editores, 1970 – p. 9)
Recitado por Lauro Moreira (in 2CD "Mãos Dadas: Lauro Moreira interpreta Poemas da Língua Portuguesa": CD 1, EMC Digital, 1998)
Alma minha gentil, que te partiste
tão cedo desta vida, descontente,
repousa lá no Céu eternamente,
e viva eu cá na Terra sempre triste.
Se lá no assento etéreo, onde subiste,
memória desta vida se consente,
não te esqueças daquele amor ardente
que já nos olhos meus tão puro viste.
E se vires que pode merecer-te
alguma coisa a dor que me ficou
da mágoa, sem remédio, de perder-te,
roga a Deus, que teus anos encurtou,
que tão cedo de cá me leve a ver-te,
quão cedo de meus olhos te levou.
Nota:
«Vindo de lá [da China] se foi perder na costa de Sião [Tailândia], onde se salvaram todos despidos e o Camões por dita escapou com as suas "Lusíadas", como ele diz nelas, e ali se afogou ũa moça china muito fermosa com que vinha embarcado e muito obrigado, e em terra fez sonetos à sua morte em que entrou aquele que diz: Alma minha gentil, que te partiste...» [excerto do manuscrito da "Década VIII", atribuído a Diogo do Couto, c.1542-1616].
Alma minha gentil, que te partiste
Poema (soneto): Luís de Camões (in "Rimas", org. Fernão Rodrigues Lobo Soropita, Lisboa, 1595; "Obras de Luís de Camões", Porto: Lello & Irmão Editores, 1970 – p. 9)
Música: Fernando Lopes-Graça (2.ª peça de "Três Sonetos de Camões", Op. 27, LG 168, 1939)
Intérpretes: Fernando Serafim* & Filipe de Sousa (in CD "Fernando Lopes-Graça: Sonetos de Camões", PortugalSom/Strauss, 1995)
Alma minha gentil, que te partiste
tão cedo desta vida, descontente,
repousa lá no Céu eternamente,
e viva eu cá na Terra sempre triste.
Se lá no assento etéreo, onde subiste,
memória desta vida se consente,
não te esqueças daquele amor ardente
que já nos olhos meus tão puro viste.
E se vires que pode merecer-te
alguma cousa a dor que me ficou
da mágoa, sem remédio, de perder-te,
roga a Deus, que teus anos encurtou,
que tão cedo de cá me leve a ver-te,
quão cedo de meus olhos te levou.
* Fernando Serafim – voz (tenor)
Filipe de Sousa – piano
Busque Amor novas artes, novo engenho
Poema (soneto) de Luís de Camões (in "Rimas", org. Fernão Rodrigues Lobo Soropita, Lisboa, 1595; "Obras de Luís de Camões", Porto: Lello & Irmão Editores, 1970 – p. 7)
Recitado por Lauro Moreira* (in 2CD "Mãos Dadas: Lauro Moreira interpreta Poemas da Língua Portuguesa": CD 1, EMC Digital, 1998)
Busque Amor novas artes, novo engenho
para matar-me, e novas esquivanças;
que não pode tirar-me as esperanças,
pois mal me tirará o que eu não tenho.
Olhai de que esperanças me mantenho!
Vede que perigosas seguranças!
Pois não temo contrastes nem mudanças,
andando em bravo mar, perdido o lenho.
Mas, conquanto não pode haver desgosto
onde esperança falta, lá me esconde
Amor um mal, que mata e não se vê;
que dias há que na alma me tem posto
um não sei quê, que nasce não sei onde,
vem não sei como, e dói não sei porquê.
Poema: Luís de Camões (in "Rimas", org. Fernão Rodrigues Lobo Soropita, Lisboa, 1595; "Obras de Luís de Camões", Porto: Lello & Irmão Editores, 1970 – p. 21)
Música: Fernando Lopes-Graça (3.ª peça de "Três Sonetos de Camões", Op. 27, LG 168, 1939)
Intérpretes: Fernando Serafim* & Filipe de Sousa (in CD "Fernando Lopes-Graça: Sonetos de Camões", PortugalSom/Strauss, 1995)
Oh! Como se me alonga de ano em ano
a peregrinação cansada minha!
Como se encurta e como ao fim caminha
este meu breve e vão discurso humano!
Minguando a idade vai, crescendo o dano;
perdeu-se-me um remédio, que inda tinha;
se por experiência se adivinha,
qualquer grande esperança é grande engano.
Corro após este bem que não se alcança;
no meio do caminho me falece;
mil vezes caio e perco a confiança.
Quando ele foge, eu tardo; e na tardança,
se os olhos ergo, a ver se inda aparece,
da vista se me perde e da esperança.
Frontispício da 1.ª edição das "Rimas", de Luís de Camões, org. Fernão Rodrigues Lobo Soropita (Lisboa, 1595)
Capa da caixa (contendo dois CDs e livrete) de "Mãos Dadas: Lauro Moreira interpreta Poemas da Língua Portuguesa" (EMC Digital, 1998)
Gravura – Patrícia de Oliveira
Fotografia – Mônica Moreira
Capa do CD 1 de "Mãos Dadas: Lauro Moreira interpreta Poemas da Língua Portuguesa" (EMC Digital, 1998)
Gravura – Patrícia de Oliveira
Fotografia – Mônica Moreira
Capa do CD "Fernando Lopes-Graça: Sonetos de Camões", de Fernando Serafim e Filipe de Sousa (PortugalSom/Strauss, 1995)
Pintura de Andrea Mantegna (c.1474) retratando Bárbara Gonzaga, filha de Ludovico III Gonzaga, Marquês de Mântua, e de sua esposa Bárbara de Brandemburgo (pormenor de um fresco existente na Camera degli Sposi, no torreão nordeste do Castelo de S. Jorge, em Mântua)
Real Gabinete Português de Leitura, no Rio de Janeiro: fachada em estilo neomanuelino, segundo projecto do arquitecto português Rafael da Silva e Castro. A primeira pedra do edifício foi lançada a 10 de Junho de 1880, pelo imperador D. Pedro II, e a inauguração aconteceu a 22 de Dezembro de 1888.
Real Gabinete Português de Leitura, no Rio de Janeiro: mosaico no piso de entrada.
Real Gabinete Português de Leitura, no Rio de Janeiro: biblioteca e parte do tecto.
Com um acervo de aproximadamente 350 mil volumes, parte dos quais verdadeiras preciosidades bibliográficas, como um exemplar da edição 'princeps' d' "Os Lusíadas" (1572), esta biblioteca foi considerada pela revista "Time", em 2014, uma das vinte mais belas do mundo.
Real Gabinete Português de Leitura, no Rio de Janeiro: biblioteca e respectivo tecto encimado por clarabóia octogonal.
Real Gabinete Português de Leitura, no Rio de Janeiro: retrato de Luís de Camões (medalhão) pintado num dos quatro cantos abaixo da clarabóia.
Retrato de Salgueiro Maia: parte central do mural pintado nos inícios de Abril de 2014 na parede da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, fronteira à Avenida de Berna, em Lisboa, por Frederico Campos ('DRAW'), Gonçalo Ribeiro ('MAR'), Diogo Machado ('ADD FUEL') e Miguel Januário ('CAOS'), da Underdogs Gallery. O retrato do capitão foi concebido por Frederico Campos ('DRAW'), tendo como modelo uma icónica fotografia tirada, no Largo do Carmo, pelo fotojornalista Alfredo Cunha, no dia 25 de Abril de 1974 [cf. artigo do "Público", 12.04.2014].
Fonte da fotografia: Wikimedia Commons
Entre as dezenas de oficiais que integraram o movimento militar que pôs fim ao caquéctico Estado Novo duas figuras sobressaíram: o major Otelo Saraiva de Carvalho, que planeou e coordenou as operações militares, e o capitão Fernando Salgueiro Maia, que as executou no terreno e cuja missão principal era capturar Marcelo Caetano que se refugiara no Quartel do Carmo, sede do comando-geral da Guarda Nacional Republicana. Em termos metafóricos, o primeiro foi o 'cérebro' e o segundo a 'mão' do 25 de Abril de 1974. Tendo sempre recusado os cargos políticos e as honrarias que lhe ofereceram, Salgueiro Maia ficou, por assim dizer, impoluto das manchas que a acção política inevitavelmente acarreta aos seus agentes, tornando-se com o passar do tempo e, sobretudo, após a morte precoce, ocorrida a 3 de Abril de 1992, o herói romântico por excelência da Revolução dos Cravos. À parte a mitificação, é historicamente incontestável o papel determinante que o intrépido capitão da Escola Prática de Cavalaria de Santarém teve no desfecho bem-sucedido das operações militares naquele «dia inicial inteiro e limpo/ onde emergimos da noite e do silêncio» (cit. Sophia de Mello Breyner Andresen). Em sinal de reconhecimento e gratidão a Salgueiro Maia, por ter sido um dos mais proeminentes obreiros da reconquista da liberdade em Portugal, criadores de várias artes têm-no homenageado, entre os quais José Jorge Letria e Vitorino Salomé que conceberam a canção "O Capitão dos Tanques" para o magnífico álbum "Abril, Abrilzinho" (2006), feito a pensar nos mais novos, se bem que não faça mal algum aos menos jovens de idade ouvirem-no também, atendendo à qualidade que apresenta. E, na parte que nos toca, não podíamos deixar de aproveitar este Dia Mundial da Criança, trinta anos volvidos sem a presença física de Salgueiro Maia, para prestarmos (singelo) tributo à sua memória resgatando a bela canção "O Capitão dos Tanques", esplendidamente interpretada por Vitorino sobre um primoroso arranjo de Sérgio Costa.
Não sabemos se este espécime, bem como qualquer um dos outros dez presentes no CD "Abril, Abrilzinho", alguma vez marcou presença na Rádio ZigZag, quanto mais não seja nos dias 25 de Abril desde que existe aquele canal destinado ao público infantil, mas queremos acreditar que sim. E uma vez que entre o auditório das Antenas 1 e 3 também se contam crianças, mormente quando são transportadas pelos pais para a escola e de regresso a casa, não seria despropositado que, ao menos nas horas de ponta, de vez em quando, aparecesse na emissão uma canção do "Abril, Abrilzinho". Sem prejuízo, obviamente, de outro bom repertório – canções, instrumentais, poemas, lengalengas, etc. – criado em língua portuguesa expressamente para os petizes. Fica a sugestão, na esperança de que não caia em saco roto!
O Capitão dos Tanques
Letra: José Jorge Letria
Música: Vitorino Salomé
Intérprete: Vitorino* (in Livro/CD "Abril, Abrilzinho", Praça das Flores e Público, 2006)
[instrumental]
Era uma vez um homem
que andou a fazer a guerra,
mas só quis foi plantar cravos
nos jardins da nossa terra.
Militar de poucas falas
sabia bem o que queria,
cansado de tantas mortes
na guerra que então havia.
Era capitão dos tanques
que o inimigo temia,
mas nos seus canos pôs cravos
com pétalas de poesia.
Um dia de madrugada
bateu forte o coração,
porque era chegada a hora
de destronar o Papão.
[instrumental]
P'ra trás ficou Santarém
na noite fresca de Abril
e os homens que o seguiam
valiam por mais de mil.
E foi no Largo do Carmo
que, valente, ergueu a voz
para dizer ao Papão:
«Agora mandamos nós!».
E nunca pediu em troca
dessa linda valentia
um título ou um posto,
pois lhe bastava a alegria.
Foi-se embora antes de tempo,
quando a doença o levou,
regando só com as lágrimas
os cravos que então plantou.
[instrumental]
Era o Salgueiro Maia,
capitão do nosso Abril,
pondo fim a velhos medos
numa noite primaveril.
Se um menino perguntar
«Este soldado quem foi?»
respondemos-lhe a cantar:
Maia foi o nosso herói.
[instrumental]
* [Créditos gerais do disco:]
Tomás Pimentel – fliscorne e trompete
Daniel Salomé – clarinete e saxofone alto
José Miguel Nogueira – guitarra
Rui Alves – percussões
Edgar Caramelo – saxofone tenor
Sérgio Costa – piano, teclados, acordeão, flautas, baixo e guitarra eléctrica
Coro – Andreia Brás, Carla Picanço, Catarina Melgão, Cátia Roque, Inês Peniche, Inês Soares, Joana Frade, Patrícia Escudeiro, Susana Parreira e Vanda Catarino
Direcção do coro – Maria do Amparo
Capa do livro/CD "Abril, Abrilzinho", de Manuel Freire, Vitorino e José Jorge Letria (Praça das Flores e Público, 2006)
Design gráfico – José Maria Nolasco
Ilustrações (cabeças dos artistas) – André Letria
Se fosse vivo, José Mário Branco completaria hoje 80 anos de idade. E, mesmo estando retirado dos palcos, continuaria a ser um 'compagnon de route' na tão necessária contestação às políticas amigas do sistema económico rapace, o qual, além de destruir a Natureza (e aproveitamos para evocar o ilustre arquitecto Gonçalo Ribeiro Telles neste dia do centenário do seu nascimento), usurpa a riqueza das nações concentrando-a em cada vez menos mãos à conta do empobrecimento e da degradação das condições de vida dos povos – contestação essa que deixou magistralmente expressa na belíssima canção "Do Que um Homem É Capaz", incluída no álbum "Resistir É Vencer", de 2004. Um espécime com a marca da sublimidade, mas que é virtualmente impossível de se ouvir hoje em dia no éter nacional, apesar de denunciar uma realidade candente e tremendamente actual. Aliás, a obra discográfica de José Mário Branco, que já era votada ao ostracismo, pelos fazedores de 'playlists', antes da sua inesperada morte em Novembro de 2019, nem por sombras tem sido objecto, nos dois anos e meio entretanto decorridos, da divulgação que merecia nas rádios portuguesas (privadas e pública), situação que ultraja a memória do distinto cantautor e que não pode deixar de suscitar o vivo repúdio de quem não é surdo e sabe reconhecer a qualidade e a perenidade do seu legado. Os ouvintes das Antenas 1 e 3 que ignoravam esta pérola chamada "Do Que um Homem É Capaz" e que aqui dela tomarem conhecimento, maravilhados, têm toda a legitimidade para formular a seguinte pergunta: «Vale mesmo a pena financiarmos canais de rádio que nos sonegam o mais qualificado e valioso património musical português e, em lugar dele, poluem os nossos tímpanos com quantidades industriais de lixo sonoro?».
Do Que um Homem É Capaz
Letra e música: José Mário Branco (para a peça "Gulliver", adaptada por Hélder Costa do romance "As Viagens de Gulliver", de Jonathan Swft, levada à cena pelo grupo de teatro "A Barraca" em 1997)
Intérprete: José Mário Branco* (in CD "Resistir É Vencer", José Mário Branco/EMI-VC, 2004, reed. Parlophone/Warner Music Portugal, 2017)
[instrumental]
Do que um homem é capaz,
As coisas que ele faz
P'ra chegar aonde quer:
É capaz de dar a vida
P'ra levar de vencida
Uma razão de viver.
A vida é como uma estrada
Que vai sendo traçada
Sem nunca arrepiar caminho;
E quem pensa estar parado
Vai no sentido errado
A caminhar sozinho.
Vejo gente cuja vida
Vai sendo consumida
Por miragens de poder.
Agarrados a alguns ossos
No meio dos destroços
Do que nunca vão fazer,
Vão poluindo o percurso
Co' as sobras do discurso
Que lhes serviu pr' abrir caminho;
À custa das nossas utopias
Usurpam regalias
P'ra consumir sozinhos.
Com políticas concretas
Impõem essas metas
Que nos entram casa dentro,
Como a Trilateral
Co' a treta liberal
E as virtudes do centro.
No lugar da consciência
A lei da concorrência
Pisando tudo p'lo caminho;
P'ra castrar a juventude
Mascaram de virtude
O querer vencer sozinho.
Ficam cínicos, brutais
Descendo cada vez mais
P'ra subir cada vez menos:
Quanto mais o mal se expande
Mais acham que ser grande
É lixar os mais pequenos.
Quem escolhe ser assim,
Quando chegar ao fim,
Vai ver que errou o seu caminho:
Quando a vida é hipotecada
No fim não sobra nada
E acaba-se sozinho.
Mesmo sendo os poderosos
Tão fracos e gulosos
Que precisam do poder,
Mesmo havendo tanta gente
P'ra quem é indif'rente
Passar a vida a morrer,
Há princípios e valores,
Há sonhos e há amores
Que sempre irão abrir caminho;
E quem viver abraçado
À vida que há ao lado
Não vai morrer sozinho;
E quem morrer abraçado
À vida que há ao lado
Não vai viver sozinho.
* José Mário Branco – voz
José Peixoto, Francisco Abreu – guitarras acústicas
Carlos Bica – contrabaixo
Lee il-Se – violoncelo
Grupo Coral "Os Escolhidos" (Amélia Muge, Fernando Pinheiro, Filipa Pais, Genoveva Faísca, Guilhermino Monteiro, Jorge Palma, José Manuel David, Luísa Rodrigues, Manuela de Brito, Paulo Santos Silva e Rui Vaz) – coros
Capa do CD "Resistir É Vencer", de José Mário Branco (EMI-VC, 2004)
Reprodução parcial do quadro "Resistência", 1946, de Júlio Pomar [imagem da obra integral e texto explicativo de Ana Anacleto >> aqui]