06 outubro 2024

Luís de Camões: "Perdigão perdeu a pena"


Perdiz-vermelha ou perdiz-comum (Alectoris rufa).
© Alexandre Rica Cardoso, 2019 (in https://www.avesdeportugal.info/aleruf/).


«Camões escreveu essas coisas porque lá por dentro dele era bem português e o seu estado de alma era o nosso. A pena de nós próprios. Isso tudo é a mesma coisa. O Camões tratou as palavras "destino" e "fado" como nunca mais ninguém tratará, assim eu penso. Há nele a mesma noção de destino, de fatalidade, de pena de si próprio. Fiquei toda contente quando descobri que ele dava a isto o mesmo sentido que lhe dá o povo que eu tinha ao pé da porta. Para mim, ele é o maior fadista português: sabia falar de fado como ninguém.»

              AMÁLIA RODRIGUES
              (em entrevista concedida a João Gonçalves,
              in jornal "Semanário", 27 Abr. 1985)


Completando-se o primeiro quarto de século sobre a morte de Amália no ano do quinto centenário do nascimento de Luís de Camões, que ela tanto admirava e com quem muito se identificava nesse estado de alma fadista, impunha-se, neste dia amaliano que é de saudade por excelência, fazer uma celebração conjunta. Ora como já apresentámos, no artigo "Camões recitado e cantado (II)", a totalidade dos seis poemas camonianos (canónicos) mais o apócrifo "Com que voz chorarei meu triste fado" a que Amália deu voz e foram publicados em disco, cinco com música de Alain Oulman e dois de Carlos Gonçalves, entendemos direccionar o foco da nossa atenção, na presente data, para um deles em particular: o vilancete em redondilha maior incipit "Perdigão perdeu a pena", que na edição discográfica – álbum "Cantigas numa Língua Antiga" (1977) – surge com o título simples de "Perdigão". Trata-se de um espécime da Lírica Camoniana em que está lapidarmente expresso o sentimento de desventura e fatalidade do genial vate (no caso, respeitante ao insucesso do Poeta – metaforicamente figurado num perdigão – nos seus esforços para alcançar o amor da amada – alta torre –, a qual se mostra sobranceiramente indiferente ao amador) que muito dizia a Amália e que a motivou a gravá-lo, num momento do seu percurso artístico – é oportuno referi-lo – ainda no rescaldo do PREC, durante o qual a colossal artista fora vítima de golpes baixos e acusada, por alguns indivíduos mais fanáticos e insolentes, de ter sido uma despudorada apoiante do Estado Novo. Talvez esses seus mesquinhos detractores nunca tivessem ouvido "Abandono (Fado Peniche)" [>> YouTube Music], "Senhora do Livramento" [>> YouTube Music], "Trova do Vento que Passa" [>> YouTube Music] e outro repertório sobre poesia de autores que estavam longe de serem simpatizantes do regime instituído por Salazar e mantido por Caetano (como Sidónio Muralha, Manuel Alegre e Ary dos Santos), e também talvez eles desconhecessem (ou quisessem ignorar) que Amália havia ajudado, com dinheiro, boa gente que, na clandestinidade, lutava contra a ditadura, e que ela mesma fora vigiada pela PIDE precisamente por suspeita de auxiliar antifascistas.
Aproveitamos o ensejo para deixar também, a seguir ao original amaliano, a versão (muito competente) que Katia Guerreiro gravou do mesmo "Perdigão" com música de Alain Oulman, e, a abrir a sequência, o registo recitado na voz do actor Carlos Wallenstein.
Votos de escuta prazenteira bafejada pelo enlevante estro camoniano!

E de que modo tem a Antena 1 evocado Amália neste 6 de Outubro, o 25.º após a sua partida para a eternidade?
Assinalamos a edição especial do programa "Gramofone", de João Carlos Callixto, que teve como convidado Frederico Santiago, o curador das novas edições (com muitos inéditos) do espólio fonográfico amaliano à guarda das Edições Valentim de Carvalho [>> RTP-Play]. E está também anunciado que a emissão do programa "Alma Lusa" (depois do noticiário da meia-noite), com realização de Edgar Canelas, será igualmente consagrada a Amália, «ora em palavras ditas na primeira pessoa ora através de memórias do seu biógrafo, Vítor Pavão dos Santos» (cf. https://antena1.rtp.pt/antena1/amalia-25-anos-depois/).
Registamos estas iniciativas com agrado, mas não podemos deixar de apontar o dedo acusador à direcção de programas da Antena 1, na pessoa de Nuno Galopim de Carvalho, pelo silenciamento na 'playlist', ao longo do ano, da obra discográfica de Amália, que não é uma artista qualquer – convém ter isto sempre bem presente – mas tão-só a maior intérprete vocal portuguesa (popular), provavelmente de todos os tempos, indubitavelmente a maior desde que foi inventado o registo sonoro. E não estamos a pedir que passem os espécimes mais conhecidos do vulgo, mas que haja a preocupação de pegar em repertório menos divulgado, porque é também (e sobretudo) para isso que existe o serviço público de radiodifusão.



Perdigão perdeu a pena



Poema (vilancete em redondilha maior) de Luís de Camões (in "Rimas", org. Estêvão Lopes, Lisboa, 1598; "Obras de Luís de Camões", Porto: Lello & Irmão Editores, 1970)
Recitado por Carlos Wallenstein* (in LP "Camões: Antologia", Série 'Disco Falado', Guilda da Música/Sassetti, 1973; CD "Camões: Antologia", Série 'Palavras', Strauss, 2002)




          MOTE ALHEIO

Perdigão perdeu a pena,
não há mal que lhe não venha.

          VOLTAS

Perdigão, que o pensamento
subiu em alto lugar,
perde a pena do voar,
ganha a pena do tormento.
Não tem no ar nem no vento
asas com que se sustenha:
não há mal que lhe não venha.

Quis voar a uma alta torre
mas achou-se desasado;
e, vendo-se depenado,
de puro penado morre.
Se a queixumes se socorre,
lança no fogo mais lenha:
não há mal que lhe não venha.


* Carlos Wallenstein – voz

Selecção de textos/poemas – Carlos Wallenstein
Direcção literária – Alberto Ferreira
Assistente de produção – Carmen Santos
Produção – Sassetti
Gravado nos Estúdios Polysom, Lisboa
Captação de som e montagem – Moreno Pinto
Remasterização – Jorge d'Avillez (Strauss Studio, Lisboa)
URL: http://www.cinept.ubi.pt/pt/pessoa/2143690279/Carlos+Wallenstein
https://arquivos.rtp.pt/conteudos/perfil-carlos-wallenstein/
https://music.youtube.com/channel/UCAB5mYWk4Z9tVkwp-RrXdgQ



Perdigão



Poema: Luís de Camões (ligeiramente adaptado) [texto original >> acima]
Música: Alain Oulman
Intérprete: Amália Rodrigues* (in LP "Cantigas numa Língua Antiga", Columbia/VC, 1977, reed. EMI-VC, 1992, Edições Valentim de Carvalho/Som Livre, 2007)




[instrumental]

Perdigão, que o pensamento
subiu em alto lugar,
perde a pena do voar,
ganha a pena do tormento.
Não tem no ar nem no vento
asas com que se sustenha:
não há mal que lhe não venha.
Perdigão perdeu a pena.

[instrumental]

Quis voar a uma alta torre
mas achou-se desasado;
e, vendo-se depenado,
de puro penado morre.
Se a queixumes se socorre,
lança no fogo mais lenha:
não há mal que lhe não venha. | bis
Perdigão perdeu a pena.          |


* Amália Rodrigues – voz
José Fontes Rocha – guitarra portuguesa
Martinho d'Assunção – viola

Gravado nos Estúdios Valentim de Carvalho, Paço d'Arcos
Engenheiro de som – Hugo Ribeiro
Montagem digital (edição em CD) – Fernando Paulo
URL: https://amaliarodrigues.pt/pt/amalia/
https://www.museudofado.pt/index.php/fado/personalidade/amalia-rodrigues
https://centenarioamaliarodrigues.pt/
https://www.youtube.com/c/amaliarodriguesofficial
https://music.youtube.com/channel/UCF_E888KGi1ko8nk9Pus_2g



Perdigão



Poema: Luís de Camões (ligeiramente adaptado) [texto original >> no topo]
Música: Alain Oulman
Intérprete: Katia Guerreiro* (in CD "Nas Mãos do Fado", Ocarina, 2003)




[instrumental]

Perdigão, que o pensamento
subiu em alto lugar,
perde a pena do voar,
ganha a pena do tormento.
Não tem no ar nem no vento
asas com que se sustenha:
não há mal que lhe não venha.
Perdigão perdeu a pena.

[instrumental]

Quis voar a uma alta torre
mas achou-se desasado;
e, vendo-se depenado,
de puro penado morre.
Se a queixumes se socorre,
lança no fogo mais lenha:
não há mal que lhe não venha. | bis
Perdigão perdeu a pena.          |


* Katia Guerreiro – voz
Paulo Valentim – guitarra portuguesa
João Veiga – guitarra clássica
Rodrigo Serrão – contrabaixo

Produção executiva – Joaquim Balas
Gravado e masterizado por António Cordeiro, no Estúdio d'Aldeia, Cacém, de Agosto a Outubro de 2003
Misturado por Katia Guerreiro e António Cordeiro
URL: https://katiaguerreiro.pt/
https://www.museudofado.pt/index.php/fado/personalidade/katia-guerreiro
https://www.facebook.com/katiaguerreiro.official/
https://www.youtube.com/@KatiaGuerreiroFado
https://music.youtube.com/channel/UCk8hihYmq_eb4SPXenCGqnA





Capa e contracapa do LP "Cantigas numa Língua Antiga", de Amália Rodrigues (Columbia/VC, 1977)
Concepção – Manuel Correia
Fotografias – Augusto Cabrita



Capa do LP "Camões: Antologia", de Carlos Wallenstein (Série 'Disco Falado', Guilda da Música/Sassetti, 1973)
Concepção – Soares Rocha



Capa da reedição em CD do álbum "Camões: Antologia", de Carlos Wallenstein (Série 'Palavras', Strauss, 2002)
Retrato de Camões – Soares Rocha
Grafismo – João P. Cachenha



Capa do CD "Nas Mãos do Fado", de Katia Guerreiro (Ocarina, 2003)
Fotografia – Rui Ochôa
Grafismo – Ivone Ralha.

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Camões recitado e cantado
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Em memória de Manoel de Oliveira (1908-2015)
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