25 abril 2024

José Mário Branco: "Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades"


«Esta ilustração foi publicada na capa do "Diário de Notícias", no aniversário da Revolução dos Cravos de 2020, quando vigorava o confinamento nacional da COVID-19. As pessoas foram convidadas a recortar o desenho e a colá-lo nas janelas ou noutras superfícies à sua escolha. Como o desenho se tornou algo viral e as pessoas pareciam gostar dele, contactei a Galeria de Arte Urbana de Lisboa (GAU), instituição que gere a arte pública na cidade, e propus doar a imagem, para ser transformada em mural. Foi facultado um muro perto da entrada leste da movimentada estação ferroviária de Sete Rios. O artista de rua Raps aceitou o desafio de pintá-lo e eu fiquei muito satisfeito com o resultado. Quando se fazia a pintura, as pessoas paravam e agradeciam-nos. Um senhor mais velho disse que o seu dia terminaria com um sorriso. Era tudo o que precisávamos de ouvir.» (André Carrilho, in https://andrecarrilho.myportfolio.com/)


O regime ditatorial que vigorou em Portugal entre 28 de Maio de 1926 e 25 de Abril de 1974 teve, no início, mau grado a resistência dos republicanos, dos anarquistas e dos comunistas, um substancial apoio popular por ter posto termo à continuada instabilidade política e social que caracterizou a República, sobretudo depois da traumatizante participação na Primeira Grande Guerra. O salazarismo que até teve a virtude, se assim nos é permitido afirmar, de manter o país fora da colossal hecatombe que foi a Segunda Guerra Mundial, ainda que sem evitar o feroz racionamento dos bens de primeira necessidade que afectou sobretudo os mais desfavorecidos, viu crescer a contestação no pós-guerra, em resultado da repressão e da perseguição a quem pugnava por eleições livres («tão livres como na livre Inglaterra», conforme havia anunciado, hipocritamente, Salazar) – contestação essa que se acentuou e alastrou consideravelmente a partir das fraudulentas eleições presidenciais de 1958. A perda do Estado Português da Índia, invadido pelas tropas de Nehru, a 18 de Dezembro de 1961, e a exauriente (de vidas humanas e de recursos económicos) Guerra Colonial em África acabariam por levar o regime, que assentava numa ideologia arreigadamente colonialista, a um beco sem saída. O Estado Novo era, na década de 1960 e nos inícios da seguinte, um anacronismo histórico. Os tempos haviam mudado e a vontade de mudança também cresceu na sociedade, mas o regime continuava, cegamente, a trilhar o caminho que inevitavelmente iria conduzir ao seu fim. E o fim aconteceu quando, inicialmente motivado por uma questão corporativa ligada precisamente à Guerra Colonial, um movimento militar protagonizado por oficiais intermédios (capitães, na sua maioria), seguindo um plano proficientemente gizado pelo major Otelo Saraiva de Carvalho, foi levado a cabo, com sucesso, no dia 25 de Abril de 1974. Nesse sucesso foi fundamental a adesão do povo que, apesar das recomendações assinadas pelo denominado Movimento das Forças Armadas comunicadas, via rádio, de se recolher em casa, veio para a rua em apoio aos militares libertadores e dando largas à sua incontida e esfuziante alegria. O golpe militar transformou-se assim em Revolução, a Revolução dos Cravos, que alguns observadores estrangeiros consideraram a primeira revolução política romântica, apesar de algum sangue ter sido derramado (as cinco mortes ocorridas na Rua António Maria Cardoso – quatro civis criminosamente alvejados, a metralhadora, pela PIDE/DGS, e um agente de baixa categoria daquela polícia torcionária baleado pelas costas, por um militar, quando tentava fugir). Estava derrubada a mais velha e caquéctica ditadura da Europa Ocidental no século XX, e aberto o caminho para a concretização das legítimas aspirações do povo português à liberdade, à paz e à justiça social. Volvidos cinquenta anos é precisamente na justiça social – outro nome para a igualdade e a fraternidade que, não por acaso, José Afonso menciona na "Grândola" – que a Revolução de Abril ainda está por cumprir. No que concerne à distribuição da riqueza, por exemplo, têm sido significativos os retrocessos em relação ao que se havia alcançado após o derrube do Estado Novo. É verdade que há meio século a vida da generalidade da população era ainda pior do que hoje, mas tal argumento não colhe junto daqueles que não possuem a memória viva/vivida do tempo da ditadura. O termo de comparação que têm – e inteiramente legítimo, de resto – é o da realidade dos países mais desenvolvidos, onde muitos procuram (e encontram) as condições de vida e dignidade que o seu país lhes nega. E não é de estranhar que um avultado número (centenas de milhares) desses esquecidos e injustiçados pela democracia acabem por ser receptivos às promessas higienizantes e salvíficas apresentadas por forças partidárias que denunciam – não raramente com razão – as iniquidades prevalecentes no sistema vigente, o qual resiste em debelar, quiçá por ter sido capturado por interesses instalados que tudo fazem para se manterem incólumes e, se possível, até incrementarem a sua situação de privilégio à custa do bem-comum. Seria avisado que os agentes políticos que se arrogam de democráticos (afinal, sempre foram eleitos em sufrágio livre e universal, não é verdade?, apesar da elevada abstenção e dos votos brancos e nulos), mas cuja praxis, na realidade, mina os alicerces da democracia ao protegerem (e até favorecerem) os interesses de uma casta de privilegiados, em prejuízo de muitos, atentassem nas sábias e lapidares palavras que Camões grafou no soneto "Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades". Há cinquenta anos, a ditadura caiu porque as vontades mudaram, mas nada nos garante que o pretensamente melhor de todos os regimes políticos conhecidos resista, a médio prazo, às novas vontades de mudança geradas por insatisfação e desconfiança. Os tempos que aí vêm prenunciam-se sombrios para as democracias e só as que forem efectivamente democráticas, ou seja, as denodadamente empenhadas na promoção do bem-estar do povo, não serão (grandemente) molestadas.
Aqui fica, pois, o referido poema de Camões, admiravelmente adaptado e interpretado por José Mário Branco, esperando que a sua mensagem seja tomada em devida conta por aqueles que têm responsabilidades acrescidas em zelar pela saúde da democracia, a fim de que ela consiga resistir (melhor) às investidas de agentes adversos. Oxalá!

Na Antena 1, tem sido possível ouvir, por estes dias, canções de José Mário Branco e de outros categorizados cantautores portugueses. Suspeitamos que seja sol de pouca dura e que as respectivas discografias não demorem a ser metidas na gaveta dos intocáveis por quem gere a 'playlist'...



Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades



Poema: Luís de Camões (adaptado) [texto original >> abaixo]
Adaptação e refrão: José Mário Branco
Música: Jean Sommer
Intérprete: José Mário Branco* (in LP "Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades", Guilda da Música/Sassetti, 1971, reed. UPAV, 1991, EMI-VC, 1996, Parlophone/Warner Music Portugal, 2018)




[instrumental]

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
muda-se o ser, muda-se a confiança;
todo o mundo é composto de mudança,
tomando sempre...
tomando sempre novas qualidades.

      E se todo o mundo é composto de mudança,
      troquemos-lhe as voltas,
      que inda o dia é uma criança!


[instrumental]

Continuamente vemos novidades,
diferentes em tudo da esperança;
do mal ficam as mágoas na lembrança,
e do bem...
e do bem, se algum houve, as saudades.

      E se todo o mundo é composto de mudança,
      troquemos-lhe as voltas,
      que inda o dia é uma criança!


[instrumental]

O tempo cobre o chão de verde manto,
que já coberto foi de neve fria,
e, em mim, converte em choro o doce canto.
e, em mim, converte...
e, em mim, converte em choro o doce canto.

      E se todo o mundo é composto de mudança,
      troquemos-lhe as voltas,
      que inda o dia é uma criança!


[instrumental]

E, afora este mudar-se cada dia,
outra mudança faz de mor espanto:
que não se muda já como soía.
que não se muda...
que não se muda já como soía,

      E se todo o mundo é composto de mudança,
      troquemos-lhe as voltas,
      que inda o dia é uma criança!


[instrumental]


Nota: «A ideia para esta canção surgiu quando José Mário Branco, durante o seu tempo de exílio em França, releu o soneto "Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades", de Luís de Camões. Nessa ocasião, pediu ao seu amigo e músico Jean Sommer para utilizar a música de uma canção sua, "La Nouvelle Génération", e assim surgiu a canção "Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades", à qual foi apenas acrescentado o refrão "E se todo o mundo é composto de mudança/ troquemos-lhe as voltas, que inda o dia é uma criança."» (in https://arquivojosemariobranco.fcsh.unl.pt/)


* José Mário Branco – voz solo, viola acústica de base, e coros
Jean Sommer – viola
Willy Lockwoode – contrabaixo
Daniel Lalloux – timbales e pratos
Jacqueline Ritchie – flauta de bisel
Sérgio Godinho – coros
Jorge Constante Pereira – piano

Arranjos e direcção musical – José Mário Branco
Gravado no Strawberry Studio, de Michel Magne, em Château d'Hérouville (França), em Fevereiro de 1971
Engenheiro de som – Gilles Sallé
Masterização digital (edição de 1996) – José Fortes
URL: https://pt.wikipedia.org/wiki/Jos%C3%A9_M%C3%A1rio_Branco
https://arquivojosemariobranco.fcsh.unl.pt/
https://www.facebook.com/FascismoNuncaMais/posts/725849500857765/
https://www.buala.org/pt/cara-a-cara/jose-mario-branco-a-eterna-inquietacao
https://www.nit.pt/cultura/musica/morte-lenda-momentos-marcantes-vida-jose-mario-branco
https://expresso.pt/cultura/2019-11-19-O-momento-antes-de-disparar-a-seta-a-entrevista-de-Jose-Mario-Branco
https://www.esquerda.net/topics/dossier-303-jose-mario-branco-voz-da-inquietacao
https://www.publico.pt/jose-mario-branco
https://music.youtube.com/channel/UChQPBSV5W6kL-jw1Tp08g_w
https://www.youtube.com/user/DoTempoDosSonhos/videos?query=jose+mario+branco



Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades

(Luís de Camões, in "Rimas", org. Fernão Rodrigues Lobo Soropita, Lisboa, 1595; "Obras de Luís de Camões", Porto: Lello & Irmão Editores, 1970)


Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
muda-se o ser, muda-se a confiança;
todo o mundo é composto de mudança,
tomando sempre novas qualidades.

Continuamente vemos novidades,
diferentes em tudo da esperança;
do mal ficam as mágoas na lembrança,
e do bem, se algum houve, as saudades.

O tempo cobre o chão de verde manto,
que já coberto foi de neve fria,
e, em mim, converte em choro o doce canto.

E, afora este mudar-se cada dia,
outra mudança faz de mor espanto:
que não se muda já como soía.



Capa do LP "Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades", de José Mário Branco (Guilda da Música/Sassetti, 1971)
Concepção – José Rodrigues

___________________________________________

Outros artigos com canções ou poemas alusivos à Revolução dos Cravos ou à Liberdade:
Contrabando: "Verdade ou Mentira?"
Grupo Coral "Os Ganhões de Castro Verde": "Grândola, Vila Morena"
Miguel Torga: "Flor da Liberdade"
Natália Correia: "Rascunho de uma Epístola", por Ilda Feteira
Carlos do Carmo: "O Madrugar de um Sonho"
Amália Rodrigues: "Abril" (Manuel Alegre)
Manuel Alegre: "País de Abril", por Mário Viegas
Manuel Freire: "Livre" (Carlos de Oliveira)
Teresa Salgueiro: "Liberdade"

___________________________________________

Outros artigos com repertório interpretado por José Mário Branco ou da sua autoria:
Celebrando Natália Correia
Celebrando Sophia de Mello Breyner Andresen
José Mário Branco: "Zeca (Carta a José Afonso)"
Gina Branco: "Cantiga do Leite" (José Mário Branco)
Camões recitado e cantado (VI)
José Mário Branco: "Do Que um Homem É Capaz"

___________________________________________

Outros artigos com poesia e/ou teatro de Luís de Camões:
Camões recitado e cantado
Camões recitado e cantado (II)
Em memória de Manoel de Oliveira (1908-2015)
Camões recitado e cantado (III)
Camões recitado e cantado (IV)
Camões recitado e cantado (V)
Camões recitado e cantado (VI)
Camões recitado e cantado (VII)
Camões recitado e cantado (VIII)
Camões recitado e cantado (IX)
Luís de Camões: "Os Lusíadas" (dois excertos), por Carlos Wallenstein
Luís Cília: "Se me Levam Águas" (Luís de Camões)
Teatro camoniano em versão radiofónica
Camões por Carmen Dolores

Sem comentários: