04 outubro 2025

Natália Correia: "O Cavalo", por Vítor de Sousa


© Dave Thomas (in https://www.futura-sciences.com/)
Dos 600 animais pintados nas Grutas de Lascaux, na Dordonha (sudoeste de França), o cavalo ocupa o primeiro lugar, com 350 espécimes representados. Aqui, vemos um exemplar do chamado "cavalo chinês" na parede do divertículo axial. Está pintado com ocre amarelo e manganês.


A representação de cavalos em pinturas rupestres (nas grutas de Lascaux e de Altamira, por exemplo) denota a admiração que os nossos antepassados caçadores-recolectores do Paleolítico nutriam por aquele quadrúpede. Mais tarde, já na Idade do Ferro, por alturas da Revolução Agrícola, o homem percebeu que o equídeo podia servir para algo mais do que mera presa de caça (alimento). Sendo domado (domesticado), o cavalo, por ser um animal bastante inteligente, ágil, possante e veloz, revelar-se-ia um importantíssimo auxiliar do homem, ora na agro-pastorícia, ora como meio de transporte (enquanto montada ou puxando carroças), ora como arma de guerra. Não foram poucas as batalhas e as campanhas militares ganhas graças ao uso da cavalaria. O maior império da História em área territorial contígua – o mongol de Gengis Khan, no século XIII – não teria sido possível sem o cavalo (ainda hoje os mongóis são habilíssimos cavaleiros). Mais de quinze séculos antes, já Alexandre Magno havia rendido sentida e pomposa homenagem ao seu cavalo Bucéfalo, quando este morreu durante a campanha da Índia, fundando aí (território do actual Paquistão) a cidade de Bucéfala. E cerca de três séculos mais tarde, o imperador romano Calígula outorgará ao seu cavalo, Incitatus, a condição de seu filho e o privilégio de usar colares de pérolas preciosas e de dormir coberto por mantas de cor púrpura numa luxuosa villa que mandou construir expressamente para ele e na qual era apaparicado por dezoito serviçais. Posteriormente, outros imperadores romanos, como Trajano e Marco Aurélio, fizeram-se representar em imponentes estátuas equestres de bronze e esse exemplo seria seguido, da Idade Média em diante, por numerosos monarcas e aristocratas. O cavalo fôra elevado ao estatuto mais alto e nobre que algum animal alguma vez atingira ou viria a atingir.
A invenção da locomotiva a vapor nos inícios do século XIX e, pouco depois, do comboio (não por acaso chamado "cavalo de ferro"), e a subsequente construção de vias férreas ligando as principais cidades ditou a gradual obsolescência do cavalo como meio de transporte de longa distância, quer de pessoas, quer de mercadorias, inclusive de correio (o cavalo representado no antigo símbolo dos CTT é um testemunho desse passado áureo). Já no século XX, os eléctricos e as viaturas movidas a motor de combustão interna – particulares e colectivas – teriam o condão de retirar de vez o cavalo das ruas das cidades e das vilas. O mesmo aconteceu na guerra, com a mecanização e o desenvolvimento tecnológico do armamento. Ante carros de combate blindados e aviões bombardeiros, os cavalos seriam simplesmente, como sói dizer-se, carne para canhão. Mesmo tendo perdido muita da importância que tivera outrora para o homem, o cavalo não regressou à condição de animal selvagem. Continua a ser usado na agro-pastorícia, designadamente como montada de guardadores de gado bovino (citem-se os campinos do Ribatejo, os rancheiros dos Estados Unidos e os gaúchos das pampas argentinas), e em actividades recreativas e desportivas (tracção de charretes em percursos turísticos, corridas, saltos de obstáculos, equitação de alta escola, espectáculos circenses e tauromáquicos...), devendo referir-se o potencial terapêutico – hipoterapia – que está provado existir pondo-se em contacto com o cavalo crianças e até adultos portadores de determinadas deficiências de índole física, cognitiva, social ou afectiva.
De todos os animais, o cavalo é o mais representado na arte e não apenas na escultura, na pintura, na música, no cinema – também na literatura romanesca (bastará mencionar o Rocinante, montada de D. Quixote da la Mancha, no romance de Cervantes) e na poesia. No último caso, o exemplo mais paradigmático talvez seja o Cavalo de Tróia, na "Ilíada", de Homero, dentro do qual os guerreiros aqueus (gregos) lograram entrar na cidade de Ilion (Tróia), ao cabo de dez longos anos de cerco, para resgatarem Helena de Esparta que havia sido raptada pelo príncipe troiano Páris. Ainda na poesia grega antiga, mormente na "Teogonia", de Hesíodo, é referido Pégaso, o cavalo alado nascido do sangue da Medusa quando foi decapitada por Perseu.
Na poesia de língua portuguesa do século XX, há três poemas que são de referência obrigatória: "Do vale à montanha, / Da montanha ao monte, / Cavalo de sombra, / Cavaleiro monge...", de Fernando Pessoa, que foi musicado por Fernando Lopes-Graça e por Mário Pacheco (neste caso, para a voz da fadista Mariza); "Quero um Cavalo de Várias Cores", de Reinaldo Ferreira, musicado por diversos compositores e cantado, entre outros, por Filipa Pais; e "O Cavalo", de Natália Correia. Ao último, por se tratar de um poema em que está lapidarmente expressa a aura majestosa e misteriosa do nobre equídeo que tantos olhos humanos extasiou (parafraseando a autora), e dado que o actor/recitador Vítor de Sousa teve a mui louvável iniciativa de gravá-lo para o seu álbum "No Palco da Poesia" (Ovação, 1995), achámos por bem dar-lhe aqui realce na presente data, em jeito de celebração do Dia Mundial do Animal. A ideia surgiu-nos quando escutámos recentemente uma interessante edição do programa "Fora da Gaveta" (Antena 2), de Tânia Valente, subordinada ao tópico "Cavalos à solta", cuja audição recomendamos vivamente [>> RTP-Play].

Foi na Antena 1, pela mão de Mestre Rafael Correia, no seu memorável "Lugar ao Sul", que o escrevente destas linhas ouviu, pela primeira vez, o poema "O Cavalo", de Natália Correia, recitado por Vítor de Sousa, e nunca mais o esqueceu. Do que não se pode gabar é de alguma vez ter tornado a ouvi-lo na mesma rádio. Serve este lamento para voltar a chamar a atenção de quem de direito para a gritante lacuna de uma rubrica regular de poesia no canal generalista da estação pública de radiodifusão...



Tim Flach, "Camargue", da série "Equus"
(in https://timflach.com/work/equus/)



O CAVALO



Poema de Natália Correia [in "JL - Jornal de Letras, Artes e Ideias", N.º 302, 19 Abr. 1988; De "Inéditos (1985/1990)", in "O Sol nas Noites e o Luar nos Dias II", Lisboa: Projornal/Círculo de Leitores, 1993 – p. 310; "Poesia Completa", Col. Poesia do Século XX, Vol. 32, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1999 – p. 559]
Recitado por Vítor de Sousa* (in CD "No Palco da Poesia", Ovação, 1995, reed. Ovação, 2000)




Teus poros exalam o fumo
Do lar dos deuses de onde vieste.
Rompante de espuma e de lume
És sol quadrúpede ou mar equestre?

Desfilando derramas o ouro
Do teu rio inacabável,
Desmedido relâmpago louro
De um deus equídeo possante e frágil.

Tudo existiu para que fosses
No contraluz desta madrugada
Mitológica proporção perfeita
Em purpúrea bruma recortada.

Pois que te é divino mister
Humanos olhos extasiar,
A dúvida é só perceber
Se vieste do sol ou do mar.


* Vítor de Sousa – voz
URL: https://pt.wikipedia.org/wiki/Victor_de_Sousa
https://music.youtube.com/channel/UCUW_WEDdIZhxxWRix-ZWpnw



Sobrecapa do livro "O Sol nas Noites e o Luar nos Dias II", de Natália Correia (Lisboa: Círculo de Leitores, 1993)
Concepção – Clementina Cabral



Capa da 1.ª edição do livro "Poesia Completa", de Natália Correia (Col. Poesia do Século XX, Vol. 32, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1999)



Capa da 2.ª edição do livro "Poesia Completa", de Natália Correia (Col. Poesia do Século XX, Vol. 32, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2000)



Capa da 3.ª edição do livro "Poesia Completa", de Natália Correia (Col. Poesia do Século XX, Vol. 32, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2007)



Capa da 1.ª edição do CD "No Palco da Poesia", de Vítor de Sousa (Ovação, 1995)



Capa da 2.ª edição do CD "No Palco da Poesia", de Vítor de Sousa (Ovação, 2000).

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Outros artigos com poesia alusiva a cavalos:
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Em memória de António Ramos Rosa (1924-2013)
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