21 março 2019

António Botto: "Homem que vens de humanas desventuras"


Leonardo da Vinci, "Homem Vitruviano", c.1490, desenho a tinta sobre papel, Gallerie dell'Accademia, Veneza


No passado 16 de Março completaram-se 60 anos sobre a morte de António Botto, poeta admirado, entre outros, por Guerra Junqueiro, Manuel Teixeira Gomes, João Gaspar Simões, José Régio, Luigi Pirandello e Fernando Pessoa (autor do encomiástico estudo "António Botto e o Ideal Estético em Portugal").
Naquele mesmo dia, e assinalado a efeméride, o realizador Germano Campos, no seu programa "Café Plaza" [>> RTP-Play], teve a mui louvável iniciativa de resgatar do arquivo da rádio pública um excerto do programa "Páginas de Poesia", de 1968, presenteando os seus ouvintes com quatro poemas bottianos ditos por Raul Feio – "Meus Olhos Que por Alguém", "O Brinco da Tua Orelha", "Meu Amor na Despedida" e "Não me Peças Mais Canções", todos do ciclo "Tristes Cantigas de Amor" – e também com a versão cantada do quarto poema por Carlos Mendes.
No Dia Mundial da Poesia, o blogue "A Nossa Rádio" associa-se à evocação de António Botto apresentando outro belíssimo poema, no caso um soneto, em duas abordagens, uma recitada e outra cantada: a primeira na voz de João Villaret e a segunda na de Carlos do Carmo. Trata-se de um texto impregnado de humanidade, no qual o poeta se irmana aos seres humanos que demandam o sonho de tornar o mundo melhor e esbarram na incompreensão, e também àqueles que estão reduzidos à condição títeres nas mãos de poderes e interesses instalados, sejam de ordem política, económica ou religiosa.
No que respeita à divulgação de poesia na nossa rádio, aproveitamos o ensejo para voltar a enaltecer o bom trabalho que Luís Caetano vem desempenhando na Antena 2, enquanto responsável pelas rubricas "A Vida Breve" [>> RTP-Play] e "O Som Que os Versos Fazem ao Abrir" [>> RTP-Play], preenchidas, respectivamente, com poesia dita pelos autores e com poesia comentada pela professora, poetisa e tradutora Ana Luísa Amaral. Apesar da segunda rubrica abarcar autores de todos os tempos (logo, também os que viveram antes da invenção da gravação sonora) é notório que se revela insuficiente para dar cabal divulgação ao muito material que existe gravado por dizedores credenciados, quer o editado em disco, quer – e sobretudo – o guardado no arquivo histórico da RDP. Sem prejuízo de outras acções, o espaço "Memória" poderia muito bem ser aproveitado para a transmissão, além dos habituais concertos, de programas integrais de poesia, como o supracitado "Páginas de Poesia" e aquele que deu pelo título de "Poesia, Música e Sonho" que fez as delícias de muitos ouvintes e se tornou uma referência obrigatória na História da Rádio Portuguesa.
É evidente que a Antena 1 não pode nem deve ficar alheada desse tão necessário resgate do que de melhor existe no arquivo. Nesse âmbito, duas medidas podem ser tomadas: uma é a criação de um espaço alargado ao fim-de-semana, de uma ou duas horas, consagrado aos conteúdos de cariz menos erudito; a outra é a criação de uma rubrica diária de poesia, na qual, preferencialmente, seja divulgada a produção de um determinado autor ao longo de uma semana – porque a poesia é para todos e os ouvintes da Antena 1 também são gente (não são filhos de um deus menor).



Homem que vens de humanas desventuras



Poema de António Botto (in "Os Sonetos de António Botto", Lisboa: Edição do autor, 1938; "As Canções de António Botto", 6.ª edição, Lisboa: Edição do autor, 1941 – p. 287; 15.ª edição, com um estudo crítico de Fernando Pessoa, Lisboa: Edições Ática, 1975 – p. 305; "António Botto: Poesia", org. Eduardo Pitta, Lisboa: Assírio & Alvim, 2018 – p. 245)
Recitado por João Villaret (in EP "João Villaret Diz... António Botto - Fernando Pessoa - Mário de Sá-Carneiro", Parlophone/VC, 1964; LP "Procissão", EMI/Valentim de Carvalho, 1978, reed. EMI-VC, 1991, Edições Valentim de Carvalho/Som Livre, 2008)




Homem que vens de humanas desventuras,
Que te prendes à vida e te enamoras,
Que tudo sabes e que tudo ignoras,
Vencido herói de todas as loucuras;

Que te debruças pálido nas horas
Das tuas infinitas amarguras —
E na ambição das coisas mais impuras
És grande simplesmente quando choras;

Que prometes cumprir e que te esqueces,
Que te dás à virtude e ao pecado,
Que te exaltas e cantas e aborreces,

Arquitecto do sonho e da ilusão,
Ridículo fantoche articulado
— Eu sou teu camarada e teu irmão.



Soneto XIV



Poema: António Botto (com o primeiro verso modificado) [texto original >> acima]
Música: Fernando Guerra
Arranjo e orquestração: Jorge Costa Pinto
Intérprete: Carlos do Carmo* (in LP "Carlos do Carmo", Tecla, 1972; LP "Canoas do Tejo", Edisom, 1984, reed. Movieplay, 1992, 1998, Universal Music, Série '50 Anos', 2013)




Homem que vês humanas desventuras,
Que te prendes à vida e te enamoras,
Que tudo sabes e que tudo ignoras,
Vencido herói de todas as loucuras;

Que te debruças pálido nas horas
Das tuas infinitas amarguras —
E na ambição das coisas mais impuras
És grande simplesmente quando choras;

Que prometes cumprir e que te esqueces,
Que te dás à virtude e ao pecado,
Que te exaltas e cantas e aborreces,

Arquitecto do sonho e da ilusão,
Ridículo fantoche articulado
— Eu sou teu camarada e teu irmão. [bis]

[vocalizos / instrumental]


* Carlos do Carmo – voz
Orquestra dirigida por Jorge Costa Pinto:
Violinos – João Silveira, João Nogueira, Mário Simões, João Oliver, António Dias, Calazans Duarte, Adolfo Chaves, Sá da Bandeira, Ricardo Ventura, Vitorino Gomes, Costa Gomes
Violas de arco – Rogério Gomes, Ana Bela Chaves, Luís Roberto
Violoncelos – Clélia Vital, Conceição Gomes, Lurdes dos Santos
Flautas – Hélder Ribeiro, José Duarte
Oboé / corne inglês – António Serafim, Bernardino Quito
Harpa – Fausto Dias
Trompa – Adácio Pestana
Trombones – António Jubilot, Gilberto Mota, Edmundo Manaças
Piano / órgão – Pedro Osório
Guitarra – Fernando Correia Martins
Guitarra baixo – Thilo Krasmann
Bateria – Vítor Mamede
Guitarra portuguesa – António Chainho
Viola – José Maria Nóbrega

Assistente de produção – Rocha oliveira
Técnicos de som – Hugo Ribeiro e Fernando Cortez
Misturas – José Dgo. Valeiras



Capa do EP "João Villaret Diz... António Botto - Fernando Pessoa - Mário de Sá-Carneiro" (Parlophone/VC, 1964).



Capa do LP "Carlos do Carmo" (Tecla, 1972).
Concepção – Victor Reis.

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Outros artigos com poesia dita/recitada:
Mário Viegas: 10 anos de saudade
Miguel Torga: "Natal"
Galeria da Música Portuguesa: José Afonso
Galeria da Música Portuguesa: Carlos Paredes
Arte e poesia
Poesia na rádio (II)
Jorge de Sena: "Carta a Meus Filhos sobre os Fuzilamentos de Goya", por Mário Viegas
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Celebrando Sophia de Mello Breyner Andresen
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Sebastião da Gama: "Louvor da Poesia", por José Nobre
"Ecos da Ribalta": homenagem a Carmen Dolores
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