17 janeiro 2025
Miguel Torga e Fernando Lopes-Graça: "História Trágico-Marítima"
Ilustração (gravura) do tomo I, p. 39, da obra "História Trágico-Marítima", compilada por Bernardo Gomes de Brito e publicada em 1735 e 1736 (dois tomos).
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A gravura representa o naufrágio da nau S. Bento, a 24 de Abril de 1554, ao largo da Terra do Natal, perto da foz do rio Msikaba, a meio caminho entre Port Edward e Port St. Johns, na costa oriental da actual África do Sul. Capitaneada por Fernão de Álvares Cabral, filho de Pedro Álvares Cabral, a nau S. Bento, com carga excessiva de especiarias, sedas, porcelanas, tecidos de algodão, pedras preciosas e outros bens de luxo, fazia a viagem entre Cochim e Lisboa. Das quase 500 pessoas que iam a bordo morreram 150, mas a maioria das que se salvaram acabou por sucumbir no longo e demorado (de quase um ano) caminho para norte, por terra, em direcção à costa moçambicana, em consequência de subnutrição, desidratação, doenças, acidentes, clima e geografia adversos, ataques de indígenas hostis, etc.. Manoel de Mesquita Perestrelo, um desses sobreviventes e o autor da "Relação Sumária da Viagem Que Fez Fernão d'Álvares Cabral" (1564) dá-nos o seu impressivo testemunho nos seguintes termos:
A este tempo andava o mar todo coalhado de caixas, lanças, pipas, e outras diversidades de cousas, que a desventurada hora do naufrágio faz aparecer; e andando tudo assim baralhado com a gente, de que a maior parte ia nadando à terra, era cousa medonha de ver, e em todo o tempo lastimosa de contar, a carniçaria que a fúria do mar em cada um fazia e os diversos géneros de tormentos com que geralmente tratava a todos, porque em cada parte se viam uns que não podendo mais nadar andavam dando grandes e trabalhosos arrancos com a muita água que bebiam, outros, a que as forças ainda abrangiam menos, que encomendando-se a Deus nas vontades se deixavam a derradeira vez cair ao fundo; outros a que as caixas matavam, entre si entalados, ou, deixando-os atordoados, as ondas os acabavam, marrando com eles em os penedos; outros a que as lanças, ou pedaços de nau, que andavam a nado, os espedaçavam por diversas partes com os pregos que traziam, de modo que a água andava em diversas partes manchada de uma côr tão vermelha como o próprio sangue, do muito que corria das feridas aos que assim acabavam seus dias.
Andando a cousa como digo, o que ainda havia da nau se partiu em dois pedaços, convém a saber: os castelos a uma parte e o chapitéu a outra, em os quais lugares estavam recolhidos todos os que não sabiam nadar, sem ousarem cometer o mastro nem o mar, por verem quão atribuladamente acabavam os que por cada uma destas partes se aventuravam à terra; e tanto que estes pedaços ficaram assim apartados, e o mar se pôde melhor ajudar
deles, começou de os trazer no escarcéu, aos tombos de uma parte para a outra; e dessa maneira, ora por baixo da água, ora por cima, andávamos até que prouve a Nosso Senhor virem três ou quatro mares muito grossos, que vararam estes pedaços em seco, onde ficaram encalhados, sem a ressaca os tornar a sorver como outras vezes tinha feito, e neles se salvou a maior parte da gente que ficou viva.
Escapados assim os que Nosso Senhor foi servido, despois que gastámos algum espaço em lhe dar as graças devidas a tantas mercês, começou cada um de bradar por cima daqueles penedos pelas pessoas que lhe mais doía, as quais acudindo dos lugares aonde sua ventura fizera portar, e manifestando bem com os olhos o sobejo contentamento que daquela não esperada vista recebiam, se tornaram a abraçar de novo; e preguntando uns aos outros pelos que faltavam, soubemos onde estavam alguns tão maltratados das dificuldades e contrastes que tiveram em sua salvação, que se não podiam bulir donde jaziam, pelo que foi buscado tudo tão miudamente que se acabaram de juntar os vivos, e nós certificados que não eram falecidos.
E porque entre estes penedos e a terra firme havia ainda um braço de mar, que os fazia ficar em ilhéu, e a maré começava já de repontar, receando que nos tolhesse passámos a vau à outra banda, levando os mais sãos às costas aos mais feridos, posto que todos o estávamos pouco ou muito, uns dos desastres que no mar tiveram, e outros da aspereza dos penedos em que saíram, que eram ásperos e pontiagudos, que nenhum se pôde livrar, sem ficar assinalado.
Tanto que todos fomos passados à terra firme, mandou o capitão saber os que faltavam, e acharam-se menos cento e cinquenta pessoas; convém a saber: passante de cem escravos, e quarenta e quatro portugueses [...]
[...] depois de haver um ano que partíramos donde nos perdêramos, e termos andado tanta parte da estranha, estéril, e quási não conhecida costa da Etiópia e atravessado com tão pouca, fraca, e mal apercebida gente por entre tantas bárbaras nações, tão conformes nos desejos de nossa destruição, e passando por tantas brigas, por tantas fomes, calmas, frios e sêdes, nas serras, vales e barrancos, e finalmente, por tudo aquilo que se pode imaginar contrário, medonho, pesado, triste, perigoso, grande, mau, desditoso, imagem da morte e cruel, onde tantos homens, mancebos, rijos e robustos, acabaram seus dias, deixando os ossos insepultos pelos campos e as carnes sepultadas em alimárias e aves peregrinas, e com suas mortes a tantos pais e irmãos, a tantos parentes, a tantas mulheres e filhos, cobertos de luto neste reino. [...]
[in "História Trágico-Marítima", em que se oferecem cronologicamente os Naufrágios que tiveram as naus de Portugal, depois que se pôs em exercício a Navegação da Índia, Tomo I, por Bernardo Gomes de Brito, Lisboa Ocidental: Na Oficina da Congregação do Oratório, MDCCXXXV; "História Trágico-Marítima", por Bernardo Gomes de Brito, Nova edição publicada sob a direcção de Damião Peres, Volume I, Porto: Portucalense Editora, 1942 – p. 61-63 e 146 >> https://purl.pt/]
O naufrágio da nau S. Bento ocorreu perto do local onde se dera, dois anos antes, o célebre naufrágio do galeão grande S. João, capitaneado por Manoel de Sousa Sepúlveda, tragédia também narrada na "História Trágico-Marítima" transcrevendo o relato anónimo publicado em 1555, o qual terá sido, supõe-se, a fonte em que Camões se baseou para evocar, nas estrofes 46 a 48 do Canto V d' "Os Lusíadas", pela boca do Adamastor, a desventura daquele «liberal, cavaleiro, enamorado» e da sua «formosa dama», Dona Lianor de Sá, que «verão morrer com fome os filhos caros» e, por fim, «abraçados as almas soltarão / da formosa e misérrima prisão».
«Vila Nova, 3 de Dezembro de 1935 — Morreu Fernando Pessoa. Mal acabei de ler a notícia no jornal, fechei a porta do consultório e meti-me pelos montes a cabo. Fui chorar com os pinheiros e com as fragas a morte do nosso maior poeta de hoje, que Portugal viu passar num caixão para a eternidade sem ao menos perguntar quem era.»
Foi com estas exactas palavras que Miguel Torga assinalou, no primeiro volume do seu "Diário", o desaparecimento de Fernando Pessoa, que a 30 de Novembro havia sido subtraído ao número dos vivos. E estando então a maior parte da produção do genial poeta dos heterónimos ainda inédita (guardada dentro da famosa arca), para o juízo que Miguel Torga fez do seu colossal par bastou a obra que havia sido editada: a poesia avulsa saída em revistas literárias, entre as quais a coimbrã "Presença" da qual Adolpho Rocha (ainda antes de adoptar o pseudónimo de Miguel Torga) também fora colaborador, e, sobretudo, "A Mensagem", dada à estampa, simbolicamente, a 1 de Dezembro de 1934, Dia da Restauração da Independência de Portugal. A leitura desse único livro que Pessoa publicou em vida calou tão fundo no espírito de Miguel Torga que logo em 1935 e 1936 se abalançou à escrita de quase todos os poemas que viriam a constituir a colectânea "Alguns Poemas Ibéricos" (1952) e que integrariam igualmente, ainda que modificados, o volume mais avantajado "Poemas Ibéricos" (1965). Uns quantos desses poemas, porém, já não eram inéditos pois o autor fizera-os publicar em revistas, ainda na década de 1930. Foi o caso dos sete que formam o ciclo "História Trágico-Marítima" (título sugestivo que remete o leitor informado para a compilação levada a cabo por Bernardo Gomes de Brito, na primeira metade do séc. XVIII), publicados em Julho de 1938 no N.º 5 da Revista de Arte e Crítica "Manifesto", dirigida pelo próprio Miguel Torga. Em ambos os livros mencionados, o poeta fez anteceder aquele ciclo de um outro denominado "História Trágico-Telúrica", para mostrar que a resposta afirmativa do povo português ao chamamento insidioso do mar e a tragédia daí decorrente radicam na tragédia associada à terra madrasta. A respeito dessa sequência interligada de "Histórias Trágicas" lusas e ibéricas, assim discorreu Isabel Ponce de Leão no ensaio "A matriz etnológica de Poemas Ibéricos" (in "A minha verdadeira imagem está nos livros que escrevi", Vol. I, Porto: Edições da Universidade Fernando Pessoa, 2007 – p. 92):
«Em "História Trágico-Telúrica" (p. 9), o "Povo vasco, andaluz, / Galego, asturiano, / Catalão, português" (p. 14), nascido da e para "A Terra" (p. 11), agita-se em silêncio, sujeito ao seu "Fado" (p. 13), num percurso de "Vida" (p. 14) para alcançar, com dor e esforço, "O Pão" (p. 15) e "O Vinho" (p. 16) que escasseiam; neste percurso de dor, o optimismo assola, porventura demandado numa qualquer "Miragem" (p. 17).
Deste iberismo telúrico passa a um iberismo marítimo em "História Trágico-Marítima" (p. 19), onde evoca, de forma dorida, as várias etapas de uma aventura oceânica sonhada e gerada em "Sagres" (p. 21), e rapidamente concretizada apesar da "Espera" (p. 23) e da "Tormenta" (p. 27). Numa encenação dramática, subsiste pontualmente "O Achado" (p. 26), mas é um cântico plangente, apostrofando o "Mar" (p. 29), que encerra esta parte da obra, reiterando a tragicidade que a titula:
[...]
Mar!
Enganosa sereia rouca e triste!
Foste tu quem nos veio namorar,
E foste tu depois que nos traíste!
Mar!
E quando terá fim o sofrimento!
E quando deixará de nos tentar
O teu encantamento!»
A "História Trágico-Marítima" torguiana, escassos anos após a primeira edição em 1938, viria a ter o bendito condão de motivar um grande compositor amante de boa poesia, Fernando Lopes-Graça, a vesti-la com música sob a forma de cantata. A primeira versão, composta em 1942-43, apesar de ter sido premiada não satisfazia plenamente o compositor, pelo que tratou se revê-la e assim resultou, em 1959, a versão definitiva e canónica, doravante executada em concerto e/ou registada para edição fonográfica. E deu-se a circunstância curiosa de a cantata "História Trágico-Marítima" ter sido, em 1977, a primeira obra musical editada no âmbito da colecção Discoteca Básica Nacional, sob a égide da Direcção-Geral da Acção Cultural, cuja divisão de música era chefiada pelo arquitecto Romeu Pinto da Silva, por nomeação do secretário de Estado da Cultura de então, o poeta e professor de literatura David Mourão-Ferreira. A gravação havia decorrido em Outubro de 1974, na Hungria, com o Coro da Radiodifusão Húngara e a Orquestra Sinfónica de Budapeste, sob a direcção do maestro Gyula Németh, tendo o solista sido o barítono José Oliveira Lopes. Em 1987, sob o novel selo PortugalSom, surgiria nova edição em LP e a edição em CD, neste caso juntamente com as duas suites de "Viagens na Minha Terra", também de Lopes-Graça. Tantos anos decorridos, essa gravação da "História Trágico-Marítima" não deixou de ser de absoluta referência daquela que é, sem a mais pequena sombra de dúvida, uma das mais admiráveis e fascinantes obras de Fernando Lopes-Graça. Uma boa razão para lhe darmos o merecido destaque e assim assinalarmos o trintenário da morte de Miguel Torga, menos de dois menos passados sobre igual efeméride respeitante ao compositor. E também porque não é fácil – nada fácil! – apanhá-la hoje em dia na Antena 2, devido à clamorosa e absurda inexistência de um espaço regular reservado à música portuguesa. Votos de boa escuta e de boa leitura!
Nota: Na referenciação dos poemas às fontes bibliográficas, além de "Alguns Poemas Ibéricos" (1952) que foi a edição considerada por Fernando Lopes-Graça para a versão definitiva da cantata "História Trágico-Marítima", indica-se a revista "Manifesto" N.º 5 (Jul. 1938), mas somente nos casos em que os textos são totalmente coincidentes. No livro "Poemas Ibéricos" (1965) todos os sete poemas surgem com alterações.
HISTÓRIA TRÁGICO-MARÍTIMA
Por: Nuno Barreiros (musicólogo, crítico de música e director do Programa 2 da RDP)
A obra de Fernando Lopes-Graça (nascido em 1906) reflecte, no seu conjunto, uma visão ou abordagem, por assim dizer, sincrética dos problemas e das (possíveis) soluções que se apresentam a um compositor português novecentista suficientemente apetrechado e consciente. O que não obsta a que duas linhas de força se divisem na evolução do autor de Poema de Dezembro: uma incidindo sobre a assimilação de novas conquistas de vocabulário ou a apropriação de tendências que se corporizam nas obras de algumas das mais influentes e decisivas personalidades da música deste século (v.g. Stravinski, Schönberg, Bartók); outra inclinando-se a uma arte especificamente nacional e partindo, em larga medida, de pressupostos colhidos na matéria folclórica, nas sugestões que ela oferece e nos estudos das respectivas virtualidades (melódicas, harmónicas, rítmicas, ambienciais colorísticas). Esta última orientação não se fica, porém, num folclorismo meramente exterior. Pelo contrário: visa e consegue transcender a superficialidade pitoresca, em favor da prospecção e captação dos caracteres profundos de um portuguesismo essencial, quiçá de um iberismo fundamental.
Mas os dois sentidos genéricos apontados não constituem compartimentos estanques na produção de Lopes-Graça. Mesmo nas fases mais recentes em que é sensível — nas palavras do próprio compositor — «um certo desprendimento da influência dos dados imediatos da música folclórica portuguesa e um consequente alargamento do campo tonal e rítmico» assim como uma maior concentração quanto à elaboração motívica e aos critérios de estruturação, o autor de Quatro Bosquejos está longe de recusar o contacto com a matéria folclórica. Isto pode observar-se tanto em obras de linguagem mais depurada (é o caso. por ex., de Suite Rústica n.º 2, para quarteto de cordas) como em realizações de feição mais singela ou em arranjos ou «versões de concerto» de canções populares (para voz e piano ou para coro a capella).
Não há, a bem dizer, referência directa a material folclórico na cantata que Lopes-Graça escreveu sobre o poema de Miguel Torga intitulado História Trágico-Marítima que fez parte do volume Alguns Poemas Ibéricos. Mas o portuguesismo (ou, porventura, o iberismo) do compositor está patente da primeira à última dessas páginas, nas quais se verifica um processo muito subtil de assimilação dos caracteres populares e de certos elementos tradicionais, inclusive quanto às inflexões da declamação musical do texto. Por outro lado, na referida cantata espelha-se uma atitude relevante e muito significativa: o interesse de Lopes-Graça compositor pela melhor e mais representativa poesia nacional e a atenção que lhe tem merecido a consideração prática de determinados problemas, nomeadamente prosódicos, que põe o tratamento musical da língua pátria. Neste campo, Lopes-Graça levou a efeito, ao longo da sua actividade criadora, uma substancial cobertura da poesia portuguesa, desde o lirismo trovadoresco às mais representativas correntes modernas.
A primeira versão da cantata História Trágico-Marítima é de 1942-43. O autor sujeitou-a a revisão, que ficou pronta em 1959. A partitura sofreu assim alterações: a parte solista, originalmente destinada a tenor, foi confiada a um barítono: e os dois trechos extremos passaram a integrar um coro de contraltos que apenas vocaliza para lá de algumas remodelações de pormenor atinentes à orquestração e mesmo à composição. Conforme esclareceu o próprio compositor, «do ponto de vista formal a obra é articulada como um ciclo de sete Lieder (seguindo a ordem e esgotando o número dos poemas de Torga publicados com o mesmo titulo), o primeiro e o último correspondem-se, na matéria e nas intenções expressivas, por assim dizer, como prelúdio e epílogo da acção ou do drama, que enquadram. Uma espécie de ideia fixa, ou motivo recorrente, assegura de certa maneira a unidade temática da obra».
A despeito do título, o ciclo de poemas de Torga não segue de perto as famosas narrativas de naufrágios e eventos dramáticos referentes ao século XVI e princípios do século XVII, tais como se encontram na célebre compilação de Bernardo Gomes de Brito publicada em 1735. É antes uma evocação, mais meditativa que épica, de carácter não triunfalista e situando-se numa perspectiva anticolonialista, de um dos aspectos maiores da História de Portugal. Os elementos líricos e dramáticos fundem-se aí, num estilo literário de vigorosas pinceladas e de alusões ao romanceiro popular. E a presença do Mar, sem prejuízo para o sopro da evocação, surge-nos desmistificada.
O conteúdo da transposição musical de Lopes-Graça insere-se perfeitamente nestas coordenadas, ampliando as fundas ressonâncias universalistas do texto poético. Este é confiado exclusivamente ao barítono solista, quase sempre através de um recitativo melódico que nalgumas passagens se reveste de acentos bastante dramáticos. O conjunto vocal (de contraltos), que não articula palavras, integra-se no complexo orquestral, trazendo por via do seu timbre particular, uma dimensão expressiva que sublinha persuasivamente o carácter ora envolvente ora de «sereia rouca e triste» atribuído ao Mar.
SAGRES
Pormenorizando um pouco, anote-se que o trecho inicial é exórdio:
Vinha de longe o mar...
Vinha de longe, dos confins do medo...
Mas vinha azul e brando, a murmurar
aos ouvidos da terra o tal segredo...
e a exposição nítida de um aspecto essencial do poema, consubstanciado nesta passagem:
Era o resto do mundo que faltava
(Porque faltava mundo!)
E o agudo perfil mais se aguçava
E o mar jurava cada vez mais fundo.
A própria música, em andamento moderado (Largo) encerra duas componentes que correspondem aos elementos postos em jogo pela evocação poética: uma certa brandura murmurante e uma rugosidade ou perfil aguçado, o todo como que envolvido num halo de «distância».
Dois elementos musicais muito caracterizados podem referir-se: um efeito ondulante (ondegiando) nas cordas, e um motivo de textura bastante simples, mas que emerge com relevo no discurso sonoro.
A LARGADA
No segundo número o andamento torna-se mais vivo (Allegro moderato), o ritmo mais vincado e sacudido, servindo de suporte ao tema abertamente melódico que as madeiras lançam em tom alegre e decidido.
Mas a determinação no projecto do «grande sonho» não exclui o «adeus» com as mãos terrosas, calejadas da «pobre mãe». E o trecho dilui-se num pp com as cordas em surdina.
À ESPERA
É o trecho mais curto do ciclo. O seu carácter impõe-se-nos logo de início com um efeito orquestral muito singelo mas eficaz e verdadeiramente expectante, em que os timbres da flauta e da celesta se conjugam no intervalo melódico de 5.ª ascendente, sobre um fundo molemente ritmado de instrumentos de sopro, harpa e pizzicati das cordas em surdina.
O REGRESSO
No quarto número o canto adquire sabor popular de romance, em relação aliás com o texto literário, mas não despreza inflexões mais dramáticas. Há aqui, na narrativa poética, dois planos claramente sugeridos — temporais e espaciais, dramáticos e psicológicos (com qualquer coisa de distanciação brechtiana, diríamos hoje) — que ora se contrapõem ou alternam ora se interpenetram: terra e mar, lar e tormenta, fé esperançosa e episódios de tragédia, realismo quase descritivista e simbolismo transfigurador. E o discurso musical, tanto no clima como no estilo, leva em conta toda esta dialéctica expressiva. A orquestra joga, não raro, com sonoridades agrestes e não deixa, por vezes, de se tomar de uma grande agitação.
O ACHADO
Espécie de fanfarra anunciadora dá o tom a este trecho, em correlação com o poema.
Traziam nova terra e nova luz
Nos românticos olhos lusitanos.
Mas a outra face da situação também o texto literário no-lo dá:
E uma cruz
Que depois carregaram largos anos.
E a música não deixa de reflectir.
TORMENTA
O subtítulo do sexto número aponta logo o clima deste. Trata-se, de facto, do trecho mais agitado e de cores mais carregadas de todo o ciclo, conforme o deixam entrever os primeiros compassos.
A orquestra diversifica-se e assume dimensão fortemente dramática, comentando ou sublinhando o teor dos versos, animados de um descritivismo mais aparente que real, pois revestindo-se de carácter simbólico ou alegórico de largo alcance. A quarta estrofe é-nos transmitida pelo barítono num estilo de declamação falada, um pouco na linha do «sprechgesang» (ou «canto falado», muito utilizado a partir da escola schönberguiana — mas aqui mais falado que cantado). Na estrofe seguinte a intensificação dramática que se desprende do texto literário é notavelmente realçada pela orquestra.
MAR
O sétimo e último número estabelece correspondência musical com o trecho inicial do ciclo, ampliando-o de certo modo e retomando-lhe os motivos principais, a ambiência serena, o envolvimento, o «choro», o ímpeto «cheio de amor», a determinação e o desalento, a voz «enganosa» da «sereia rouca e triste» ou a bruma dos sonhos e da quimera combinam-se, numa osmose de simbolismo poético e expressão musical, neste painel impressionante sob a invocação do Mar.
Quase no fim erguem-se na orquestra uns assomos de apelo (donde? de quem?) projectando-se na distância — tempo e no espaço — para se resolverem num pp interrogativo de todo o conjunto instrumental — e do nosso próprio destino histórico tão fortemente moldado também pelo Mar...
É uma sobreposição dos acordes de tónica e de dominante de dó menor — que constituem, aliás, o substractum harmónico do efeito ondulante com que se inicia a cantata e que tão saliente papel desempenha no painel conclusivo — com uma apogiatura de mi bemol-lá bemol, marcando também a derradeira presença do coro de contraltos.
É o seguinte o contingente orquestral da partitura: flautas, oboés, clarinetes e fagotes a 3, trompas e trompetes a 4, três trombones e tuba, duas harpas, celesta, glockenspiel, timbales, bateria e cordas.
Com a História Trágico-Marítima, Lopes-Graça obteve, em 1943, o Prémio de composição do Circulo de Cultura Musical, instituição a que a obra é dedicada. No entanto, não foi no âmbito dos concertos desta Sociedade que a partitura se apresentou pela primeira vez. A estreia efectuou-se no decurso do 4.° Festival Gulbenkian de Música, no Coliseu de Lisboa, a 18 de Junho de 1960, sendo intervenientes o barítono Hugo Casaes e a Orquestra Sinfónica Nacional, sob a direcção de António de Almeida. Só 14 anos mais tarde é que voltaria a ser dada em público num concerto comemorativo do Movimento do 25 de Abril e preenchido com obras de Fernando Lopes-Graça, organizado pela ex-Emissora Nacional e realizado no Teatro Nacional de S. Carlos a 25 de Outubro de 1974. Intérpretes nessa ocasião: o barítono José Oliveira Lopes e a Orquestra Sinfónica da Emissora Nacional, sob a direcção de Silva Pereira.
[texto originalmente publicado no LP "História Trágico-Marítima", de Fernando Lopes-Graça, Col. Discoteca Básica Nacional, Direcção-Geral da Acção Cultural/Secretaria de Estado da Cultura/Diapasão/Sassetti, 1977, e inserto no caderno do CD "História Trágico-Marítima / Viagens na Minha Terra", de Fernando Lopes-Graça, Col. PortugalSom, Direcção-Geral da Acção Cultural/Secretaria de Estado da Cultura, 1987]
SAGRES
Poema: Miguel Torga (1.º poema de "História Trágico-Marítima", in "Manifesto: Revista de Arte e Crítica", N.º 5, Coimbra, Jul. 1938 – p. 2; "Alguns Poemas Ibéricos": Coimbra: Edição do autor, 1952 – p. 65-66)
Música: Fernando Lopes Graça (1.ª peça da cantata "História Trágico-Marítima", Op. 36a, LG 75a, 1959)
Intérpretes: José Oliveira Lopes, Coro da Radiodifusão Húngara e Orquestra Sinfónica de Budapeste, dir.: Gyula Németh* (in LP "História Trágico-Marítima", Col. Discoteca Básica Nacional, Direcção-Geral da Acção Cultural/Secretaria de Estado da Cultura/Diapasão/Sassetti, 1977, reed. Col. PortugalSom, Direcção-Geral da Acção Cultural/Secretaria de Estado da Cultura, 1987; CD "História Trágico-Marítima / Viagens na Minha Terra", Col. PortugalSom, Direcção-Geral da Acção Cultural/Secretaria de Estado da Cultura, 1987)
Vinha de longe o mar...
Vinha de longe, dos confins do medo...
Mas vinha azul e brando, a murmurar
Aos ouvidos da terra o tal segredo...
E a terra ouvia, de perfil agudo,
O tal segredo que nem Deus lhe disse
Quando falava e revelava tudo
Para que Adão ouvisse...
— Era o resto do mundo que faltava
(Porque faltava mundo!).
E o agudo perfil mais se aguçava,
E o mar jurava cada vez mais fundo.
Sagres sagrou então a Descoberta
E partiu encoberto a descobrir.
Lá na distância o Novo Mundo, àlerta,
Esperava o Velho para se lhe unir.
A LARGADA
Poema: Miguel Torga (2.º poema de "História Trágico-Marítima", in "Manifesto: Revista de Arte e Crítica", N.º 5, Coimbra, Jul. 1938 – p. 2; "Alguns Poemas Ibéricos": Coimbra: Edição do autor, 1952 – p. 67-68)
Música: Fernando Lopes Graça (2.ª peça da cantata "História Trágico-Marítima", Op. 36a, LG 75a, 1959)
Intérpretes: José Oliveira Lopes, Coro da Radiodifusão Húngara e Orquestra Sinfónica de Budapeste, dir.: Gyula Németh* (in LP "História Trágico-Marítima", Col. Discoteca Básica Nacional, Direcção-Geral da Acção Cultural/Secretaria de Estado da Cultura/Diapasão/Sassetti, 1977, reed. Col. PortugalSom, Direcção-Geral da Acção Cultural/Secretaria de Estado da Cultura, 1987; CD "História Trágico-Marítima / Viagens na Minha Terra", Col. PortugalSom, Direcção-Geral da Acção Cultural/Secretaria de Estado da Cultura, 1987)
Foram então as ânsias e os pinhais
Feitos navios de costado forte,
Onde a agulha a tremer dava sinais
Do caminho a seguir ser o da sorte.
Foram então os beijos desmedidos
Na Pátria-Mãe-Viúva que ficava
Na areia fria aos gritos e aos gemidos
Pela morte dos filhos que beijava.
Foram então as horas no convés
Do grande sonho que mandava ser
Cada homem tão firme nos seus pés
Que a nau tremesse sem ninguém tremer.
Foram então as velas enfunadas
Do sopro quente dessa pobre Mãe
Que com as mãos terrosas, calejadas,
Dizia adeus e apontava Além...
À ESPERA
Poema: Miguel Torga (3.º poema de "História Trágico-Marítima", in "Manifesto: Revista de Arte e Crítica", N.º 5, Coimbra, Jul. 1938 – p. 2; "Alguns Poemas Ibéricos": Coimbra: Edição do autor, 1952 – p. 69)
Música: Fernando Lopes Graça (3.ª peça da cantata "História Trágico-Marítima", Op. 36a, LG 75a, 1959)
Intérpretes: José Oliveira Lopes, Coro da Radiodifusão Húngara e Orquestra Sinfónica de Budapeste, dir.: Gyula Németh* (in LP "História Trágico-Marítima", Col. Discoteca Básica Nacional, Direcção-Geral da Acção Cultural/Secretaria de Estado da Cultura/Diapasão/Sassetti, 1977, reed. Col. PortugalSom, Direcção-Geral da Acção Cultural/Secretaria de Estado da Cultura, 1987; CD "História Trágico-Marítima / Viagens na Minha Terra", Col. PortugalSom, Direcção-Geral da Acção Cultural/Secretaria de Estado da Cultura, 1987)
E, namorada em sonho, a nau partiu.
Partiu, e o coração da Mãe parou.
E parado de angústia assim viveu
Enquanto a caravela não voltou.
O REGRESSO
Poema: Miguel Torga (4.º poema de "História Trágico-Marítima", in "Alguns Poemas Ibéricos": Coimbra: Edição do autor, 1952 – p. 70-72)
Música: Fernando Lopes Graça (4.ª peça da cantata "História Trágico-Marítima", Op. 36a, LG 75a, 1959)
Intérpretes: José Oliveira Lopes, Coro da Radiodifusão Húngara e Orquestra Sinfónica de Budapeste, dir.: Gyula Németh* (in LP "História Trágico-Marítima", Col. Discoteca Básica Nacional, Direcção-Geral da Acção Cultural/Secretaria de Estado da Cultura/Diapasão/Sassetti, 1977, reed. Col. PortugalSom, Direcção-Geral da Acção Cultural/Secretaria de Estado da Cultura, 1987; CD "História Trágico-Marítima / Viagens na Minha Terra", Col. PortugalSom, Direcção-Geral da Acção Cultural/Secretaria de Estado da Cultura, 1987)
«Lá vem a Nau Catrineta
Que tem muito que contar.
Ouvi, agora, Senhores
Uma história de pasmar...»
A Mãe correu à varanda
E ficou horas a olhar,
Mas os seus olhos disseram
Que era um ceguinho a cantar:
«Passava mais de ano e dia
Que iam na volta do mar,
Já não tinham que comer,
Já não tinham que manjar...»
A Mãe quando tal ouviu
Rezou e pôs-se a chorar,
Porque a sola era tão rija
Que a não puderam tragar...
«Deitam sortes à ventura
Qual se havia de matar.»
(A Mãe tinha pão na arca
E não lho podia dar!)
«Logo foi cair a sorte...»
(Que sorte tão singular!)
O gajeiro olhava, olhava,
Mas só via céu e mar.
A Mãe chorava e gemia,
O vento norte a soprar,
E o gajeiro lá no topo
Do mastro grande a sondar...
«Alvíçaras, Capitão...»
E a Mãe sem reparar
Se era o gajeiro na gávea,
Se era o ceguinho a cantar!
«A minha alma é só de Deus,
O corpo dou-o eu ao mar...»
E a Mãe a dizer que sim,
Com a sua mão a acenar...
«Deu um estoiro o demónio,
Acalmaram vento e mar.»
E quando o cego acabou
Estavam em terra a varar...
O ACHADO
Poema: Miguel Torga (5.º poema de "História Trágico-Marítima", in "Manifesto: Revista de Arte e Crítica", N.º 5, Coimbra, Jul. 1938 – p. 3; "Alguns Poemas Ibéricos": Coimbra: Edição do autor, 1952 – p. 73-74)
Música: Fernando Lopes Graça (5.ª peça da cantata "História Trágico-Marítima", Op. 36a, LG 75a, 1959)
Intérpretes: José Oliveira Lopes, Coro da Radiodifusão Húngara e Orquestra Sinfónica de Budapeste, dir.: Gyula Németh* (in LP "História Trágico-Marítima", Col. Discoteca Básica Nacional, Direcção-Geral da Acção Cultural/Secretaria de Estado da Cultura/Diapasão/Sassetti, 1977, reed. Col. PortugalSom, Direcção-Geral da Acção Cultural/Secretaria de Estado da Cultura, 1987; CD "História Trágico-Marítima / Viagens na Minha Terra", Col. PortugalSom, Direcção-Geral da Acção Cultural/Secretaria de Estado da Cultura, 1987)
Traziam nova terra e nova luz
Nos românticos olhos lusitanos;
E uma cruz
Que depois carregaram largos anos.
Traziam quanta dor o mar gerou
Desde que Deus o fez;
E traziam a Fé que lhes sobrou
Da Fé sem fim dessa primeira vez.
Traziam a promessa de voltar
A ver se a cor do sonho se mantinha...
Vinho dos Deuses, tinha de tornar
À vinha.
TORMENTA
Poema: Miguel Torga (6.º poema de "História Trágico-Marítima", in "Alguns Poemas Ibéricos": Coimbra: Edição do autor, 1952 – p. 75-77)
Música: Fernando Lopes Graça (6.ª peça da cantata "História Trágico-Marítima", Op. 36a, LG 75a, 1959)
Intérpretes: José Oliveira Lopes, Coro da Radiodifusão Húngara e Orquestra Sinfónica de Budapeste, dir.: Gyula Németh* (in LP "História Trágico-Marítima", Col. Discoteca Básica Nacional, Direcção-Geral da Acção Cultural/Secretaria de Estado da Cultura/Diapasão/Sassetti, 1977, reed. Col. PortugalSom, Direcção-Geral da Acção Cultural/Secretaria de Estado da Cultura, 1987; CD "História Trágico-Marítima / Viagens na Minha Terra", Col. PortugalSom, Direcção-Geral da Acção Cultural/Secretaria de Estado da Cultura, 1987)
Noite medonha aquela!
O mar tanto engolia a caravela
Como a exibia à tona, desmaiada!
No abismo do céu nem uma estrela!
E a cruz de Cristo, a agonizar na vela,
Suava sangue sem poder mais nada!
A fúria cega dum tufão raivoso
Vinha das trevas desse Tenebroso
E varria a quimera do convés...
O mastro grande que Leiria deu
Era um homem de pinho, mas caiu
Quando um raio o abriu de lés-a-lés...
Novo guarda dos rumos da Nação,
O piloto guiava a perdição
Como um pai os destinos do seu lar...
Até que o lar inteiro se desfez,
Até que ao pai chegou também a vez
De fazer uma prece e descansar...
O gajeiro sem gávea, dessa altura
Que a alma atinge ao rés da sepultura,
Olhou ainda a bruma em desafio...
Mas a Sereia Negra, que cantava
No coração do mar, tanto chamava,
Que ele deu-lhe aquele olhar cansado e frio.
O naufrágio cresceu a sua dor.
E o corpo morto de um herói, senhor
Do maior infantado deste mundo,
No dorso frio duma onda irada,
Mandou aos mortos, com a mão na espada,
Boiar o sonho, que não fosse ao fundo.
MAR
Poema: Miguel Torga (7.º poema de "História Trágico-Marítima", in "Alguns Poemas Ibéricos": Coimbra: Edição do autor, 1952 – p. 78-79)
Música: Fernando Lopes Graça (7.ª peça da cantata "História Trágico-Marítima", Op. 36a, LG 75a, 1959)
Intérpretes: José Oliveira Lopes, Coro da Radiodifusão Húngara e Orquestra Sinfónica de Budapeste, dir.: Gyula Németh* (in LP "História Trágico-Marítima", Col. Discoteca Básica Nacional, Direcção-Geral da Acção Cultural/Secretaria de Estado da Cultura/Diapasão/Sassetti, 1977, reed. Col. PortugalSom, Direcção-Geral da Acção Cultural/Secretaria de Estado da Cultura, 1987; CD "História Trágico-Marítima / Viagens na Minha Terra", Col. PortugalSom, Direcção-Geral da Acção Cultural/Secretaria de Estado da Cultura, 1987)
Mar!
Tinhas um nome que ninguém temia:
Era um campo macio de lavrar
Ou qualquer sugestão que apetecia...
Mar!
Tinhas um choro de quem sofre tanto
Que não pode calar-se, nem gritar,
Nem aumentar nem sufocar o pranto...
Mar!
Fomos então a ti cheios de amor!
E nem eras um campo de lavrar,
Nem um corpo a gemer a sua dor!
Mar!
Enganosa sereia rouca e triste!
Foste tu quem nos veio namorar,
E foste tu depois que nos traíste!
Mar!
E quando terá fim o sofrimento!
E quando deixará de navegar
Sobre as ondas azuis o nosso pensamento!
* José Oliveira Lopes – voz solista (barítono)
Coro da Radiodifusão Húngara
Orquestra Sinfónica de Budapeste
Direcção – Gyula Németh
Supervisão artística – Fernando Lopes-Graça
Assistente musical – András Szekely
Produção – Sassetti, SARL
Direcção de produção – Mário Vieira de Carvalho
Gravação – HUNGAROTON, Budapeste, Outubro de 1974
Técnico de som – Lászlo Csintalan
URL: https://pt.wikipedia.org/wiki/Jos%C3%A9_de_Oliveira_Lopes
https://www.meloteca.com/portfolio-item/jose-de-oliveira-lopes/
Frontispício do tomo I de "História Trágico-Marítima", em que se oferecem cronologicamente os Naufrágios que tiveram as naus de Portugal, depois que se pôs em exercício a Navegação da Índia, por Bernardo Gomes de Brito (Lisboa Ocidental: Na Oficina da Congregação do Oratório, MDCCXXXV)
Capa do vol. I de "História Trágico-Marítima", Nova edição publicada sob a direcção de Damião Peres (Porto: Portucalense Editora, 1942)
Capa do N.º 5 de "Manifesto: Revista de Arte e Crítica", direcção de Miguel Torga (Coimbra, Jul. 1938)
Capa do livro "Alguns Poemas Ibéricos", de Miguel Torga (Coimbra: Edição do autor, 1952)
Capa da 1.ª edição do LP "História Trágico-Marítima", de Fernando Lopes-Graça, por José Oliveira Lopes (barítono), Coro da Radiodifusão Húngara e Orquestra Sinfónica de Budapeste, dir. Gyula Németh (Col. Discoteca Básica Nacional, Direcção-Geral da Acção Cultural/Secretaria de Estado da Cultura/Diapasão/Sassetti, 1977)
Capa da 2.ª edição do LP "História Trágico-Marítima", de Fernando Lopes-Graça, por José Oliveira Lopes (barítono), Coro da Radiodifusão Húngara e Orquestra Sinfónica de Budapeste, dir. Gyula Németh (Col. PortugalSom, Direcção-Geral da Acção Cultural/Secretaria de Estado da Cultura, 1987)
Concepção – Dimensão 6
Execução gráfica – Estúdios Gráficos, Lda.
Capa do CD "História Trágico-Marítima / Viagens na Minha Terra", de Fernando Lopes-Graça, por José Oliveira Lopes (barítono), Coro da Radiodifusão Húngara e Orquestra Sinfónica de Budapeste, dir. Gyula Németh / Orquestra Filarmónica de Budapeste, dir. Gyula Németh (Col. PortugalSom, Direcção-Geral da Acção Cultural/Secretaria de Estado da Cultura, 1987)
Concepção – Dimensão 6
Execução gráfica – Estúdios Gráficos, Lda.
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Outros artigos com poesia de Miguel Torga:
Miguel Torga: "Natal"
Música portuguesa de Natal
A infância e a música portuguesa
Miguel Torga: "Ode à Poesia", por João Villaret
Miguel Torga: "Flor da Liberdade"
Miguel Torga: "Natividade"
Miguel Torga: "A um Negrilho"
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Outros artigos com canções musicadas ou harmonizadas por Fernando Lopes-Graça:
Música portuguesa de Natal
A infância e a música portuguesa
A vitória do azeite
Celebrando Sophia de Mello Breyner Andresen
Celebrando Eugénio de Andrade
Camões recitado e cantado (VII)
Canções portuguesas de Natal harmonizadas/musicadas por Fernando Lopes-Graça
Camões recitado e cantado (VIII)
Eugénio de Andrade e Fernando Lopes-Graça: "Aquela Nuvem e Outras"
Camões recitado e cantado (IX)
Camões recitado e cantado (X)
Camões musicado por Fernando Lopes-Graça (obras corais 'a cappella')
14 janeiro 2025
Manuel D'Oliveira: "O Momento Azul"
Manuel de Oliveira num 'videoclipe' gravado em Ponte de Lima.
© D.R.
«Em vésperas do centenário do nascimento de Carlos Paredes, voltaremos a escutar, na evocação do grande mestre da guitarra (ou, como sustenta o genial Pedro Caldeira Cabral, da cítara portuguesa) os "Verdes Anos" ou o "Movimento Perpétuo". Passada a efeméride, Paredes regressará ao desterro dos instrumentais. Porque as rádios, à excepção da Antena 2 e pouco mais, convivem mal com os grandes instrumentistas, sejam eles ou não geniais criadores. Conheci quem sustentasse que, não obstante a reconhecida qualidade artística de tantas obras instrumentais, elas não passariam de uma espécie de tapete luxuoso para certos contextos de sonoplastia. Não passariam de música para falar por cima.
Palavras medíocres limparam inúmeras vezes os pés no tapete instrumental disponível. Não encontro palavras para classificar essa visão estreita, essa concessão a critérios de estrita cobardia editorial.
Se um instrumentista ganha um prémio ou cai na grelha dos obituários, abre-se circunspecta excepção à regra mais cómoda.
Lembro-me do indisfarçado incómodo com que hierarcas da 'playlist' reagiram em tempos idos à minha opção de passar, em programas com forte componente musical, com o mesmo grau de dignidade, obras instrumentais e canções.
António Pinho Vargas, Júlio Pereira, Carlos Bica, Custódio Castelo, Carlos Paredes, Branko, assomaram às janelas que abri em tantas emissões de rádio, entretecendo atmosferas com os criadores de canções da minha estima.
Sou por isso obviamente sensível a um desabafo recente do grande guitarrista Manuel de Oliveira, vencedor do prémio Carlos Paredes e de quem se aguarda a apresentação, já em Maio, na Casa das Artes de Famalicão, do projecto "Ibéria 20/22", no qual leva por diante uma parceria feliz com dois músicos espanhóis [Jorge Pardo e Carles Benavent] fundadores do sexteto de Paco de Lucía.
Manuel de Oliveira, não obstante a alegria pelo justo prémio, deixou dito com todas as letras: "A música instrumental portuguesa é um lugar difícil em Portugal. Num país com uma riqueza cultural tão vasta e diversa é difícil compreender como a música instrumental continua a ser marginalizada por alguns dos nossos meios de comunicação. Existem canais em Portugal que não difundem a música instrumental como critério de programação, o que é medíocre e é penalizante da cultura e inteligência do público português".
Penso no quanto estas palavras de justa indignação de um músico excepcional deveriam trazer à discussão e à reflexão, no quanto elas podem ser instrumentais de um processo de mudança de critérios.
Entretanto, se andares a norte, não percas o fado anunciado para dia 17 na bela casa desenhada por Souto de Moura em São Martinho de Anta. É o "Fado da Cítara Portuguesa" pensado e dedilhado por Pedro Caldeira Cabral no Espaço Miguel Torga.
Pedro Caldeira Cabral sabe, de Portugal, as variações. Sabe o que é um lugar difícil em Portugal.» [Fernando Alves, "Um lugar difícil em Portugal", in "Os Dias que Correm", 14 Jan. 2025]
Nuno Galopim de Carvalho, quando ouviu a crónica de Fernando Alves lida hoje, pelo seu autor, aos microfones da Antena 1, como se sentiu? Não ficou com as orelhas a arder? Pois não era caso para menos já que a mesmíssima rádio, cuja direcção de programas lhe foi (levianamente) confiada, tem tratado bastante mal a música instrumental portuguesa que é perfeitamente enquadrável no estatuto editorial do canal generalista público (não é de música rotulada de erudita a que nos referimos, obviamente). Basta atentar na vergonhosa e asquerosa 'playlist' usada para preencher larguíssimos tempos de emissão. O problema não é novo (remonta a 2003, quando um programa informático de débito de música foi implantado no primeiro canal da rádio estatal por decisão do inenarrável António Luís Marinho), mas a verdade é que desde então nunca houve a mínima vontade de resolvê-lo, apesar das nossas múltiplas chamadas de atenção para ele (por exemplo, no artigo "Rão Kyao & Lu Yanan: Primavera"). Também por isso foi com imenso agrado que ouvimos Fernando Alves pôr o dedo na ferida, se bem que o tenha feito visando o panorama radiofónico português em geral, com a honrosa excepção da Antena 2 (cujo serviço, ainda assim, está longe de ser perfeito). Irá Nuno Galopim de Carvalho emendar a mão, tomando em boa conta as palavras sensatas e judiciosas de Fernando Alves e fazendo justiça, como é obrigação da Antena 1, a Manuel de Oliveira, a Pedro Caldeira Cabral e a tantos outros instrumentistas portugueses de mérito reconhecido? Temos seriíssimas dúvidas...
O escrevente destas linhas descobriu Manuel de Oliveira (ou Manuel D'Oliveira, como se grafava nos primeiros tempos) pela mão do saudoso Carlos Pinto Coelho numa emissão do seu programa radiofónico "Agora... Acontece!", em 2006 ou 2007, e não teve a mais pequena dificuldade em perceber logo que se tratava de um instrumentista de invulgar e elevado gabarito. E não quis deixar de adquirir os dois álbuns até então publicados pelo exímio guitarrista vimaranense: "Ibéria" (2002) e "Amarte" (2006). Um dos pontos mais altos, provavelmente o culminante, do primeiro CD intitula-se "O Momento Azul" e nele Manuel D'Oliveira (nas guitarras acústicas) faz-se acompanhar por Quiné Teles (na percussão) e por dois convidados especiais, António Chainho (na guitarra portuguesa) e Ricardo J. Dias (no acordeão). Esta pérola da música instrumental portuguesa, além de ter qualidade bastante para figurar na 'playlist' da Antena 1, seria o remate musical adequadíssimo e perfeito à crónica de Fernando Alves, oportunidade que quem manda no canal generalista da rádio do Estado desperdiçou uma vez mais, injustiçando impiedosamente o talentoso músico Manuel de Oliveira e desdenhando vilmente os ouvintes que apreciariam tê-la ouvido e descoberto (a esmagadora maioria, garantidamente).
O Momento Azul
Música: Manuel d'Oliveira
Intérprete: Manuel D'Oliveira* com António Chainho e Ricardo J. Dias (in CD "Ibéria", Manuel D'Oliveira/Ultimatum Music Records, 2002)
(instrumental)
* Manuel D'Oliveira – guitarras acústicas
Quiné Teles – percussão
Convidados especiais:
António Chainho – guitarra portuguesa
Ricardo J. Dias – acordeão
Produção – Manuel D'Oliveira, Torcato Faria
Produção executiva – Lucília Didier
Gravado e misturado no Estúdio Praça das Flores, Lisboa
Gravação – Jorge Barata, Dominik Borde, Jorge Cervantes, Tó Pinheiro da Silva
Assistentes de gravação – Pedro Gonçalves, Nuno Roque
Mistura – Tó Pinheiro da Silva, Manuel D'Oliveira
Masterização – Pep Agulló, Manuel D'Oliveira, nos Estudis Iguana, Barcelona
URL: https://manueldeoliveira.com/
https://www.facebook.com/manueldeoliveiraguitar/
https://bodyspace.net/discos/979-iberia-amarte/
https://www.youtube.com/@ManuelDeOliveiraGuitar/videos
https://music.youtube.com/channel/UCkWhSVZnx1N-ydqe6J3zxJQ
Capa do CD "Ibéria", de Manuel D'Oliveira (Manuel D'Oliveira/Ultimatum Music Records, 2002)
Fotografia – Cassiano Ferraz
Design gráfico – Armando Oliveira
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Silvestre Fonseca: "Balada de um Outono"
Vai de Roda: "Minha Roda 'stá Parada; Quadrilha Mandada"
"Ó Meu Menino Jesus" (tradicional do Alto Alentejo)
Rão Kyao & Lu Yanan: Primavera
Em memória de Armando Carvalhêda (1950-2024)
"Sons d'Outrora" em viola da terra, por Miguel Pimentel
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Jacques Brel: "J'Arrive"
A tristeza lusitana
Segréis de Lisboa: "Ay flores do verde pino" (D. Dinis)
08 janeiro 2025
Segréis de Lisboa: "Ay flores do verde pino" (D. Dinis)
Iluminura do Codex Manesse, fl. 249v, c.1304-c.1340, Biblioteca da Universidade de Heidelberga, Alemanha.
[Para ver a imagem em ecrã inteiro, noutra janela, clicar aqui]
«Na capa do Público, o rosto de Dinis, rei poeta, 700 anos passados sobre a sua morte. "Este é o rosto do rei", anuncia o jornal, ancorando tal espantosa, mas fidedigna, revelação na reconstituição facial 3D de um esqueleto que a antropóloga biológica Eugénia Cunha, da Universidade de Coimbra, descreve como "muito bem conservado, com todos os ossos faciais preservados".
Isso explica o título interior a duas páginas: "Esta é a cara que a ciência deu ao rei D. Dinis". Desta vez, foram os cientistas que lhe pentearam o crânio ermo, não já com a cabeleira das avós, mas com a irrefutável certeza dos testes genéticos e dos dados arqueológicos e forenses. Uma geneticista ouvida pelo Público confirma o tom claro dos cabelos do rei, mas não ousa esclarecer se tais cabelos seriam lisos ou encaracolados.
O trabalho dos cientistas permite saber que o rei trovador teria um "nariz alongado", mas não revela indícios de que possa ter sido tal adereço desmesurado ao ponto de valer um soneto ao estilo daquele com que o grande Quevedo tentou ridicularizar Luís de Gôngora. Nada autoriza um verso ao estilo daqueles com que Quevedo descreveu "um homem a um nariz pregado, / um nariz superlativo".
O rosto do rei, tão diferente daquele façanhudo que conhecíamos dos manuais, fita-nos de uma janela mais pequena na capa do JN. Mas imagino um poeta como Manuel Alegre talvez mais tocado pelo título que o acompanha: "D. Dinis tinha olhos azuis, pele e cabelos claros".
Tenho dado comigo a imaginar o modo como Alegre terá reagido à revelação do rosto verdadeiro do rei poeta que tanto estima.
Quando o seu livro "Doze Naus" conquistou o prémio D. Dinis, Alegre agradeceu aos que lhe conferiram a distinção na Casa de Mateus não sem deixar registado que aquilo que mais o tocava era o facto de o prémio ter o nome do autor das Flores de Verde Pinho.
São azuis os olhos do rei poeta, "azuis da cor do céu", como os que passando diante do Pessoa faziam com que este esquecesse uma certa "dor constante".
Não ousa, contudo, o Pessoa alvitrar a cor dos olhos do rei poeta a quem, na "Mensagem", chama "plantador de naus a haver". Nesse sexto poema ele chama-nos para a noite em que Dinis escreve "um seu Cantar de Amigo" e faz-nos escutar "o rumor dos pinhais que, como um trigo / de Império, ondulam sem se poder ver". Tenho dado comigo a imaginar.» [Fernando Alves, "Os olhos azuis de Dinis", in "Os Dias que Correm", 8 Jan. 2025]
Na sua crónica de hoje, Fernando Alves menciona expressamente dois poemas que evocam D. Dinis: a sua mais popular cantiga de amigo e o poema de Fernando Pessoa alusivo ao rei-trovador. Pois, uma gravação de um ou de outro, recitada ou cantada, seria o óbvio e lógico remate à crónica quando foi difundida pela Antena 1 de manhã. Assim não aconteceu, como anteriormente. O escrevente destas linhas sentiu-se de novo defraudado e suspeita bem que não terá sido o único de entre os ouvintes que cerca de dez minutos antes das 9h:00 se dão ao cuidado de sintonizar o canal generalista da rádio do Estado, a exemplo do que faziam relativamente à TSF-Rádio Jornal enquanto esteve no ar a rubrica "Sinais", para escutarem em primeira mão as imperdíveis e lúcidas reflexões de Fernando Alves sobre episódios e casos da actualidade.
Sendo a cantiga Ai flores, ai flores do verde pino a mais conhecida e reconhecível das muitas que D. Dinis escreveu e existindo para cima de quinze gravações, em grande diversidade de estilos e de instrumentação, a passagem de uma delas, independentemente do critério seguido na sua escolha, funcionaria simultaneamente como homenagem, ainda que singela, ao rei-poeta de quem se assinalou ontem o 7.º centenário da morte, efeméride que foi, pelo que tivemos o ensejo de constatar, completamente ignorada pela direcção de programas das Antena 1. A gravação nossa predilecta é a do agrupamento La Batalla, dirigido por Pedro Caldeira Cabral [>> YouTube], mas dado que tem uma introdução instrumental de quase dois minutos e a duração total ultrapassa os cinco minutos, somos receptivos ao argumento de que talvez não fosse a mais indicada para passar naquele horário tão espartilhado que está em termos de tempo. Assim sendo, poderia optar-se pela versão também muito boa e bem mais curta (dura uns escassos 2':07'') dos Segréis de Lisboa, cantada por Mariana Moldão com acompanhamento ao alaúde por Manual Morais, integrante do álbum "O Alaúde na Península Ibérica (Séc. XV-XXI)", publicado em 2023. A melodia, muitíssimo bela, foi composta por Frederico de Freitas (1938) que também a usou no quarto andamento, 'Cantar de Amigo', da sua "Suite Medieval" (1958) [>> YouTube]. Os ouvintes de velha data da Antena 2 conhecem-na bem e os da Antena 1 menos familiarizados com a obra do compositor podiam também eles descobri-la hoje, se acaso tivesse havido a preocupação, o zelo profissional e a sã ousadia de utilizar a gravação dos Segréis de Lisboa como remate poético-musical à crónica de Fernando Alves. Esses ouvintes desconsiderados pela Antena 1 que aqui acederem têm agora a oportunidade de colmatar tal lacuna. Boa escuta!
Ay flores do verde pino
Poema (cantiga de amigo): D. Dinis (in "Cancioneiro da Biblioteca Nacional", B 568 / "Cancioneiro da Vaticana", V 171) [informação complementar >> Cantigas Medievais Galego-Portuguesas - FCSH/UNL / Moura Encantada]
Música: Frederico de Freitas (1.ª peça do ciclo "Quatro Cantares de Amigo", 1938)
Intérprete: Segréis de Lisboa* [in CD "O Alaúde na Península Ibérica (Séc. XV-XXI), Manuel Morais, 2023]
— Ai flores, ai flores do verde pino,
se sabedes novas do meu amigo?
Ai Deus, e u é?
Ai flores, ai flores do verde ramo,
se sabedes novas do meu amado?
Ai Deus, e u é?
Se sabedes novas do meu amigo,
aquel que mentiu do que pôs conmigo?
Ai Deus, e u é?
Se sabedes novas do meu amado,
aquel que mentiu do que mi há jurado?
Ai Deus, e u é?
— Vós me preguntades polo voss'amigo
e eu bem vos digo que é san'e vivo.
Ai Deus, e u é?
— Vós me preguntades polo voss'amado
e eu bem vos digo que é viv'e sano.
Ai Deus, e u é?
— E eu bem vos digo que é san'e vivo
e será vosco ant'o prazo saído.
Ai Deus, e u é?
— E eu bem vos digo que é viv'e sano
e será vosc[o] ant'o prazo passado.
Ai Deus, e u é?
Nota: Ai Deus, e u é? = Ai Deus, onde está?
* Segréis de Lisboa:
Mariana Moldão – voz (soprano)
Manuel Morais – alaúde
Direcção musical – Manuel Morais
Produção – Tiago Manuel da Hora
Técnico de som – João Pedro Castro
URL: https://pt.wikipedia.org/wiki/Segr%C3%A9is_de_Lisboa
https://www.meloteca.com/portfolio-item/segreis-de-lisboa/
https://catalogo-fonografico.fundacaogda.pt/artistas/segreis-de-lisboa-manuel-morais/
https://music.youtube.com/channel/UCrwn18s3r9MSr_Q2MEOCTpg
Capa do CD "O Alaúde na Península Ibérica (Séc. XV-XXI) (Manuel Morais, 2023)
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Outros artigos com poesia de D. Dinis ou de autoria alheia inspirada na sua:
Frei Fado d'El Rei: "Ramo Verde" (Jorge de Sena)
Poesia trovadoresca adaptada por Natália Correia
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Galandum Galundaina: "Chin Glin Din"
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Vitorino: "Moças de Bencatel" (Conde de Monsaraz)
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Jacques Brel: "J'Arrive"
A tristeza lusitana
06 janeiro 2025
Grupo de Cantares Alentejanos da Brigada Territorial N.º 3 da G.N.R.: "Quais São os Três Cavalheiros?"
Os Três Reis Magos (Baltasar, Melchior e Gaspar), c.565, mosaico bizantino (restaurado no século XIX), Basílica de Santo Apolinário Novo, Ravena, Itália.
A arte bizantina retrata geralmente os Magos trajando indumentária persa, que inclui calças, capas e barretes frígios.
[Para ver o mosaico em ecrã inteiro, noutra janela, clicar aqui]
«Quais são os três cavalheiros / Que fazem sombra no mar?»: com este curioso dístico em modo de interrogação começa um dos mais belos cantares alentejanos de Reis e também um dos mais gravados. Dos nove registos por grupos corais de cante a que tivemos acesso, o que mais nos cativou e empolgou foi o do Grupo de Cantares Alentejanos da Brigada Territorial N.º 3 da Guarda Nacional Republicana, constante no segundo disco do duplo CD "O 'Cante' Alentejano" (Public-Art, 1998), uma edição preciosa e obrigatória em qualquer discoteca onde haja lugar para o cante. Notabilíssima a interpretação, pela afinação, modulação e pujança vocal, daquele grupo de Évora, e soberba a captação de som feita pelo técnico alemão Heinz Frieden! Um portento! Esperamos que comunguem da mesma opinião os que aqui vieram ouvir esta fascinante gravação de "Quais São os Três Cavalheiros?". Boa escuta!
A talhe de foice, endereçamos uma pergunta à direcção de programas da Antena 1 e a quem tem por atribuição escrutinar e avaliar o serviço prestado (ou não prestado) pela rádio pública: não é realmente incompreensível e falho de razoabilidade que pérolas deste quilate da música tradicional portuguesa estejam a ser ocultadas aos ouvintes?
Quais São os Três Cavalheiros?
Letra e música: Popular (Baixo Alentejo)
Intérprete: Grupo de Cantares Alentejanos da Brigada Territorial N.º 3 da Guarda Nacional Republicana* (in 2CD "O 'Cante' Alentejano": CD 2, Public-Art, 1998)
Quais são os três cavalheiros
Que fazem sombra no mar?
São os três do Oriente
Que Jesus vêm buscar.
Não perguntam por pousada,
Nem aonde irão pousar;
Perguntam por Jesus Cristo:
Aonde o irão achar.
* Grupo de Cantares Alentejanos da Brigada Territorial N.º 3 da Guarda Nacional Republicana
Ensaiador – Pe. José de Alcobia
Gravado na Primavera de 1998
Engenheiro de som – Heinz Frieden
URL: https://www.facebook.com/media/set/?set=a.149621901896147.1073741862.126440127547658
https://music.youtube.com/playlist?list=OLAK5uy_l28KOccG4_n57eHO36Kp1t6vCZSuP7qSc
Capa do duplo CD "O 'Cante' Alentejano" (Public-Art, 1998)
Design – Incograf
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Outros artigos com repertório de Janeiras e/ou de Reis:
Música portuguesa de Natal
Celebrando a Ronda dos Quatro Caminhos
Catarina Moura, Ariel Ninas e César Prata: "Entrada de Aninovo"
Miguel Pimentel com Maria José Victória: "Bons Anos"
Rafael Carvalho: "Bons Anos e Anos Bons"
Terra a Terra: "Estas Casas São Mui Altas"
Grupo de Baile da Canção Regional Terceirense: "Cantar à Porta"
Grupo Coral e Etnográfico "As Camponesas de Castro Verde": "Os Bons Anos"
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Outros artigos com modas por grupos corais alentejanos:
Celebrando a Ronda dos Quatro Caminhos
O canto alentejano é património da Humanidade
Grupo Coral "Os Ganhões de Castro Verde": "Grândola, Vila Morena"
Grupo Coral "Os Ceifeiros de Cuba": "No Tempo da Primavera"
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02 janeiro 2025
A tristeza lusitana
"O Triste", escultura em granito (44 x 14 x 13 cm) da autoria de José Prior (Celorico da Beira).
(in https://www.maolusitana.com/)
A tristeza lusitana
Por: Aquilino Ribeiro
Triste o português e dum modo geral não creio que o seja. Eu sei, a tristeza é uma emoção cómoda para cantar em verso e os poetas tornaram-na em lugar-comum, que, se não passou para lá dos Pirenéus, onde les portugais sont toujours gais, corre na praça como propriedade só nossa.
Tristeza é uma degeneração do temperamento, moléstia de natureza física ou vento infausto da fortuna. Embora as influências de meio e das raças que pisaram o território pretendam convencer-nos da melancolia do alentejano, como invocar as mesmas causas quanto ao homem do Norte? Esse homem criado num meio, por via de regra, ridente e embalado por atavismos onde é difícil descortinar a tristeza? O minhoto é uma cigarra a cantar; o trasmontano activo e impaciente; o beirão vivaz e maleável; entre estas virtudes poder-se-ia aninhar a molície, o enfado, a descrença de que a tristeza é mortalha?
Um pouco de superstição, mediocridade, vida dura, a mesma eterna perspectiva podem favorecer mas não determinar um estado comatoso como esse que vozes aziagas se aprazem em ver no português. Mas em todos os tempos, em todas as latitudes, o homem oscila entre o fatal dilema da dor e da alegria. Não é condição nossa; é a condição de todos os humanos. A poesia que em Portugal teve os foros de ars prima, fixou de preferência os estados de alma, bem demarcados, porque é essa a tendência do espírito artístico, sempre que a matéria é mais dúctil, mais rica, e mais colorida. O Dante do Inferno e o Dante do Paraíso documentam este meu asserto. O negrume do inferno é cheio de fulgor; as claridades do paraíso um reverbero mortiço, sem graça.
Creio, assim, que a tristeza portuguesa é acima de tudo literária.
Em verdade, o português tem contra si, como geradores da «apagada e vil tristeza» a sensualidade e o impaludismo. Pragas contraídas por esses mundos que correu e varejou e lhe deixaram o rescaldo no sangue. Mas tudo leva a crer que essa morbidez não tenha ultrapassado as fronteiras das cidades, sobretudo desta Lisboa onde nasceu, raiou e se obscureceu o grande sonho dos conquistadores.
Por extensão desta pecha, acrescida da insatisfação moral do homem culto que sente ante o círculo de potenciais que oferecem os grandes centros, o retrécissement da sua personalidade, creio o homem culto, o português de gravata, mais triste que jovial. Mas daí até o chorão derretido dos poetas, a distância é grande.
As formas que a tristeza reveste, como cepticismo, descrença, pessimismo, mordacidade, eu as creio mais defeitos da educação que dotes intrínsecos à índole.
Como na literatura o gosto sápido do nostálgico, do funéreo, do sombrio, do desesperado, nos centros de cavaco, na boca dos homens de escol, tornou-se elegante, ganhou foros de moda dizer mal de tudo e de todos.
A primeira reacção a tentar deve ser contra o profissional de mal dizer.
Depoimento recolhido oralmente de
Aquilino Ribeiro
[in "Diário de Lisboa", 27 Dez. 1924 – p. 1]
A tristeza lusitana
Por: Teixeira de Pascoaes
O meu ilustre confrade e amigo, dr. Joaquim Manso, deseja saber a minha opinião acerca da tristeza lusitana.
Esta frase pode exprimir, sobretudo, a feição sentimental dos nossos grandes elegíacos, desde Bernardim a António Nobre e a Correia d'Oliveira. Trata-se então da tristeza da saudade, que é uma luz divina, conforme cantou Frei Agostinho da Cruz:
Ah, saudade minha! Luz divina!
A lembrança é uma fonte de actividade. Só procuramos aquilo de que nos lembramos com amor: Deus, Pátria, Família, Justiça, Liberdade, etc...
Esta lembrança, que é triste por incluir a ausência da causa desejada, é heróica e forte porque nos leva a conquistá-la. Não é, de modo algum, um sentimento depressivo. A saudade, síntese da lembrança e da esperança, é uma força divina da alma portuguesa; tornou-a mística e aventurosa. Devemos-lhe o Brasil e a Elegia Pastoril, a mais delicada flôr de poesia europeia. Sim, a tristeza da saudade é uma força divina da alma portuguesa, porque a alma portuguesa é a alma dos seus grandes poetas representativos: D. Diniz, Bernardim, Camões, Frei Agostinho.
De resto, a tristeza da saudade aparece, com o mesmo relevo, nas cantigas populares:
Chamaste-me tua vida;
Tua alma quero ser.
A vida acaba com a morte,
A alma não pode morrer.
Há um acordo absoluto entre o povo e os poetas.
Quanto à apagada e vil tristeza que choraminga em certos fados e em certos poetas inferiores, lastimo-a, como lastimo a alegria, quando ela foge do coração e se converte em palavras falsas, como lastimo as almas depenadas que não podem voar e odeiam as almas que têm asas.
A tristeza lusitana é, portanto, a maior virtude da nossa raça. Foi ela que lhe deu alma e beleza; suavizou-lhe os aspectos broncos e duros, como as sombras de crepúsculo enternecem os fraguedos dos montes e a ramagem esquelética das árvores.
É uma auréola espiritual nimbando uma cabeça de granito.
Teixeira de Pascoaes
[in "Diário de Lisboa", 2 Jan. 1925 – p. 1]
ALEGRIA E TRISTEZA
Por: José de Almada Negreiros
Ao meu ilustre amigo sr. Joaquim Manso
com muita admiração pelo seu belo e jovem
entusiasmo, cheio de alegria e confiança
O Homem é variável como o próprio Tempo, o Grande Mestre. Pessoas tristes ou alegres não as há. E o que se refere a indivíduos também diz respeito às raças: alegres ou tristes são os dias e as horas e não as raças nem as pessoas.
Há tanta diferença entre o riso e a alegria, como entre a alegria e a tristeza. De uma maneira geral a diferença está em que o que é alegre não faz rir, nem entristece: faz bem!
Por mais espontânea que pareça a alegria é sempre uma claridade que surge em compensação do tempo injusto. Os dias terríveis são afinal as vésperas dos dias admiráveis. Mas também é certo que acabada a festa volta de novo cada um a sua casa.
A alegria é o prémio dos longos dias sem fim: é aquela hora propícia aos que a souberam esperar.
A tristeza é o modo debilitado daqueles que indiscretamente se mostram afastados da hora feliz. E não será talvez porque a tivessem querido por mais tempo do que ela era durável?
Para nós, Portugueses, o único caminho que vai desde a tristeza até à alegria chama-se a Saudade: a Saudade do que já passou e a Saudade do que há-de vir!
Se não houver esperança nem fé que nos entretenha, a vida escurece, torna-se tédio e desperta a dor; mas com a luz da fé e a côr da esperança, a tristeza parece indispensável para que seja bem recebida a alegria.
Sempre que vejo a «Melancolia» de Dürer fico, como ele, com a convicção de que «intenta de medir mal sem medida»; todavia a esperança não nos larga apesar de tudo, nem se nos acaba a fé diante de nós!
Por minha parte não enjeito tristeza nem alegria, e ambas me servem como venham, para me ensinarem a viver. Se estou triste, digo logo: Mea culpa! Se estou alegre, era esse o meu desejo.
Porém, se a alguém compete inventar alegria para aqueles que a não sabem procurar, confesso que era com o maior prazer que ia oferecer-me para ser esse invejável intermediário!
Não quer isto dizer que ela me sobeje, mas é tão caprichosa e condicional a alegria que parece dar-se melhor no meio de muitos do que com uma pessoa só:
— A alegria é de toda a gente, só a tristeza é nossa!
Não há dúvida que a Humanidade é por agora, evidentemente, pouco alegre, e como acontece quando alguém está enfraquecido, é necessário reanimá-lo com bons remédios e melhores palavras que lhe restituam o natural, e, por isso, deve-se, excepcionalmente, hoje em dia, forçar a nota do agradável e do risonho, em franco optimismo artificial, para tuer le cafard e os inimigos pessoais da Alegria, Irmã Querida da Lua e Amante do Sol!
Para começar um ano em
Lisboa 1 de Jan. de 1925
José Almada Negreiros
[in "Diário de Lisboa", 6 Jan. 1925 – p. 1]
«Passam hoje, precisamente, cem anos, Teixeira de Pascoaes escreveu, na primeira página do Diário de Lisboa, a convite do seu director, Joaquim Manso, um texto sobre "a tristeza lusitana".
Já Aquilino respondera, uns dias antes, ao desafio do Diário de Lisboa, sustentando que a tristeza portuguesa seria, "acima de tudo, literária". Mas Aquilino é, neste olhar de há cem anos, o autor de uma prosa da semana passada, mesmo se aos olhos de muitos de nós o seu olhar transporta mais futuro que o do poeta do Marão. Dispensemos etiquetas apressadas.
No texto com que saúda um novo ano na primeira página de um jornal de Lisboa, o autor de "A Arte de Ser Português" não está com floreados, estilísticos ou filosóficos. Vai ao ponto preciso, ao mesmo preciso ponto que irmana, num poema das "Elegias", os olhos "em lágrimas, beijando a terra" ao seu "espírito a sorrir".
Assim o imaginamos na solidão contemplativa do Marão, por mais que ilustres amigos o visitem.
No artigo de há cem anos, Pascoaes faz a vénia a Bernardim e ao Nobre e logo nos confronta com um conceito chave, o da tristeza da saudade, lembrando que a isso chamava Frei Agostinho da Cruz "luz divina". Ora esse não seria, longe disso, para Pascoaes, um "sentimento depressivo". No artigo breve do Diário de Lisboa, o poeta usa um traço grosso: "A saudade, síntese da lembrança e da esperança, é uma força divina da alma portuguesa; tornou-a mística e aventurosa. Devemos-lhe o Brasil e a Elegia Pastoril, a mais delicada flor da poesia europeia".
Pascoaes pretende sublinhar, nesses dias de mudança de página sugeridos pelo calendário, que "a alma portuguesa é a alma dos seus grandes poetas representativos, D. Diniz, Bernardim, Camões, Frei Agostinho", do mesmo passo lembrando que a tristeza da saudade aparece, com assinalável relevo, nas cantigas populares. Ora, isso há-de ser lido com subtil sagacidade, se tomarmos como pressuposto, e Teixeira de Pascoaes toma, o "acordo absoluto" que, a seus olhos, existe entre o povo e os poetas.
São estas as premissas para o remate do texto com que Teixeira de Pascoes se dirige aos leitores do Diário de Lisboa: "A tristeza lusitana é, portanto, a maior virtude da nossa raça. Foi ela que lhe deu alma e beleza; suavizou-lhe os aspectos broncos e duros, como as sombras do crepúsculo enternecem os fraguedos dos montes e a ramagem esquelética das árvores".
Um texto desta natureza pede tudo menos a resposta a perguntas de almanaque, cuidando de saber se o ano que termina deixou saudades. Saudemos o que lá venha, com céptico desvelo. Quase adivinhando o que um tal José de Almada Negreiros há-de escrever, no mesmo jornal, daqui a quatro dias de há cem anos, sobre o mesmo tema: "Para nós, Portugueses, o único caminho que vai desde a tristeza até à alegria chama-se Saudade: a Saudade do que já passou e a Saudade do que há-de vir".
Entretanto, regressemos, em havendo tempo, e não havendo façamos com que haja, à alegria, triste que seja, da obra de Pascoaes, e no fio que puxarmos, possam vir Bernardim, Camões, Frei Agostinho, Almada. E Aquilino, claro.»
Fernando Alves ["A tristeza lusitana", in "Os Dias que Correm", 2 Jan. 2025]
Na sua crónica de hoje, Fernando Alves não menciona nem sugere um poema ou uma canção concreta. Porém, nomeia autores dos quais (se não todos a maioria) há poesia dita e também cantada publicada em fonograma. Por outro lado, o tema abordado – a saudade – é imensamente pródigo no cancioneiro português gravado em disco, quer de origem popular (lisboeta e açoriana, sobretudo), quer de extracção mais erudita. Logo, não havia desculpa para a ausência do desejado remate poético ou poético-musical à crónica na emissão da Antena 1. E um desses inumeráveis registos bem poderia ser o que tem como título "Fado da Saudade", primorosamente cantado por Carlos do Carmo, com música do Fado Menor com versículo de Alfredo Duarte "Marceneiro" sobre versos inspirados do poeta Fernando Pinto do Amaral. Seria também uma maneira de evocar o distintíssimo intérprete, completados que foram ontem quatro anos sobre o seu desaparecimento...
Das duas gravações de estúdio que Carlos do Carmo nos legou – a primeira feita para a banda sonora do filme "Fados", de Carlos Saura, e publicada no CD "Fados by Carlos Saura" (2007); e a segunda, incluída na 2.ª edição do álbum "À Noite" (2008) – escolhemos a última para aqui destacar e ficar como exemplo do que a Antena 1 podia (e devia) fazer mas não fez, desconsiderando torpe e tristemente aqueles que a pagam e têm a legítima expectativa de receber em troca um serviço modelar e irrepreensível.
Fado da Saudade
Letra: Fernando Pinto do Amaral
Música: Popular e Alfredo Duarte "Marceneiro" (Fado Menor com versículo)
Intérprete: Carlos do Carmo* (in CD "À Noite", 2.ª edição, Universal Music Portugal, 2008)
[instrumental]
Cai a noite na cidade, / que me encanta,
Na minha velha Lisboa, / de outra vida;
E com um nó de saudade, / na garganta, | bis
Escuto um fado que se entoa, / à despedida. |
Foi nas tabernas de Alfama, / em hora triste,
Que nasceu esta canção, / o seu lamento;
Na memória dos que vão, / tal como o vento, | bis
No olhar de quem se ama, / e não desiste. |
Quando brilha a antiga chama, / ou sentimento,
Oiço este mar que ressoa, / enquanto canta;
E da Bica à Madragoa, / num momento,
Volta sempre esta ansiedade, / da partida;
Cai a noite na cidade, / que me encanta,
Na minha velha Lisboa, / de outra vida.
Quem vive só do passado, / sem motivo,
Fica preso a um destino, / que o invade;
Mas na alma deste fado, / sempre vivo, | bis
Cresce um canto cristalino, / sem idade. |
É por isso que imagino, / em liberdade,
Uma gaivota que voa, / renascida;
E já nada me magoa, / ou desencanta,
Nas ruas desta cidade, / amanhecida;
Mas com um nó de saudade, / na garganta,
Escuto um fado que se entoa, / à despedida.
[instrumental]
* Carlos do Carmo – voz
José Manuel Neto – guitarra portuguesa
Carlos Manuel Proença – viola de fado
José Marino Freitas – baixo acústico
Produção – Carlos do Carmo
Gravação, mistura e masterização – Fernando Nunes, no Estúdio Pé-de-Vento, Salvaterra de Magos
URL: https://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_do_Carmo
https://www.museudofado.pt/fado/personalidade/carlos-do-carmo
https://music.youtube.com/channel/UCXqGi0cZitdJx1_A8s-NR6w
Capa do livro/CD "À Noite", de Carlos do Carmo (Universal Music Portugal/Tugaland, 2007, 2.ª edição, Universal Music Portugal, 2008)
Reprodução de um retrato do cantor pintado por Júlio Pomar, em 2007 (acrílico e carvão sobre tela).
Fotografia – Joaquim Justo.
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Outros artigos com repertório de Carlos do Carmo:
A infância e a música portuguesa
Em memória de Bernardo Sassetti (1970-2012)
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Em memória de Urbano Tavares Rodrigues (1923-2013)
Celebrando Lucília do Carmo
Em memória de Vasco Graça Moura (1942-2014)
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Em memória de Fernando Alvim (1934-2015)
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António Botto: "Homem que vens de humanas desventuras"
Carlos do Carmo: "O Madrugar de um Sonho"
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Carlos do Carmo: "Fado Varina" (Ary dos Santos)
Carlos do Carmo: "Gaivota" (Alexandre O'Neill)
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