24 dezembro 2024
Cantes ao Menino
Presépio Alentejano (2013), da autoria do barrista estremocense Ricardo Fonseca (n. 1986).
© Hernâni Matos
(in https://dotempodaoutrasenhora.blogspot.com/)
No ano em que se comemora o 10.º aniversário da inscrição do cante alentejano, pela UNESCO, na Lista Representativa do Património Cultural Imaterial da Humanidade, impunha-se que a celebração musical natalícia no blogue "A Nossa Rádio" incidisse em cantares ao Menino por grupos corais alentejanos. E assim fizemos, escolhendo e aqui apresentando dez registos que se contam entre o melhor do género que até à data se publicou em disco. Algumas letras têm partes comuns, mas vale muito a pena ouvi-las todas porque os estilos e os modos de interpretação variam, sinal de que o cante admite múltiplas cambiantes expressivas dentro da sua essência matricial. Votos de Boas-Festas, e que a audição destes maravilhosos cantes ao Menino seja prazenteira!
Uma nota de penhorado agradecimento ao Dr. João Matias (do Museu do Cante), ao Sr. José Francisco Pereira (do blogue "Tratado do Cante") e ao comparsa Mário Lima (do blogue "Tributo a José Afonso") pela amável cedência de algumas gravações, sem as quais a presente amostragem teria ficado mais incompleta.
Se Rafael Correia e Armando Carvalhêda ainda cá estivessem e a trabalhar na Antena 1 realizando, respectivamente, "Lugar ao Sul" e "Cantos da Casa", era certo que na quadra em curso presenteariam os seus ouvintes com repertório natalício português, nele se incluindo, quase de certeza, cante alentejano, pelo que fazemos questão de dedicar este artigo à memória daquelas duas grandes (enormes) figuras da rádio portuguesa.
Nos últimos dias, andámos a fazer incursões à emissão da Antena 1 para averiguar se a oferta musical incluiria canções de Natal. Apanhámos uma mão-cheia de canções e cançonetas anglo-saxónicas e até uma cantada em castelhano, mas nenhuma portuguesa nos períodos em que rodou a 'playlist' (só dentro de um programa de autor, "O Amor É...", é que ouvimos "Natal dos Simples", de e por José Afonso, que é, em rigor, uma canção de janeiras – mas não censuramos Inês Meneses por tê-la passado antes do tempo próprio). Dado que a nossa escuta foi descontínua (ficar ininterruptamente sintonizado seria um tormento ensandecente) não podemos garantir em absoluto que não tenham metido na 'playlist' uma ou outra canção natalícia endógena da área pop (por exemplo, "Presépio de Lata", de Rui Veloso, e/ou "Podia Ser Natal", de António Manuel Ribeiro e Miguel Ângelo), mas se acaso o fizeram a sua difusão será tão rarefeita que dar por ela(s) é como encontrar uma agulha num palheiro. Ora tendo Portugal um cancioneiro do ciclo do Natal vasto, diversificado e de assinalável qualidade, e existindo um apreciável acervo de boas gravações, não se pode aceitar nem tolerar que seja desconsiderado e menosprezado pela Antena 1 – porque não se trata de uma rádio qualquer, mas tão-só da que tem a indeclinável obrigação, estabelecida por lei, de acarinhar e divulgar a nosso património musical mais identitário e culturalmente válido.
Cante ao Menino
Letra e música: Popular (Baixo Alentejo)
Intérprete: Rancho Coral e Etnográfico de Vila Nova de São Bento* (in livro/CD "Cante ao Menino, Janeiras, Reis do Concelho de Serpa", Confraria do Cante Alentejano, 2019)
Entre as portas da Belém
Está uma mulher cosendo;
Está fazendo as camisinhas
P'ró Deus-Menino em nascendo.
O Deus-Menino nasceu
Numa noite de Natal,
Ali junto à meia-noite
Antes do galo cantar.
* Rancho Coral e Etnográfico de Vila Nova de São Bento
Ponto – João Santos
Altos – Manuel José Perdigão e José Racha
URL: https://www.facebook.com/p/Rancho-Coral-Etnogr%C3%A1fico-de-Vila-Nova-S-Bento-100023131393178/
https://anossamusica.web.ua.pt/ecdetailsTMP.php?ecid=8907
Quando o Menino Nasceu
Letra e música: Popular (Baixo Alentejo)
Intérpretes: Grupo Coral da Freguesia de Monsaraz* (in CD/DVD "Monsaraz: Do Natal aos Reis", Grupo Cultural e Desportivo da Freguesia de Monsaraz, 2014)
Quando o Menino nasceu,
Foi na noite de Natal,
Das onze p'rá meia-noite
Quando o galo quis cantar.
Quando o galo quis cantar,
Já meia-noite seria
Quando o Menino nasceu,
Filho da Virgem Maria.
Lá no meio do alto-mar
Está uma pedra lavada
Onde o Menino se senta,
Filho da Virgem Sagrada.
Filho da Virgem Sagrada,
Luz da nossa esperança;
Na noite da Consoada
Está caindo neve branca.
Está caindo neve branca
Na copa do meu capuz;
Deitem achas na lareira
Para aquecer Jesus!
Deitem achas na lareira
Para aquecer Jesus!
* Grupo Coral da Freguesia de Monsaraz:
António Amador Paixão, António Canhão Ramalho, António Fortunato Raminhos Caeiro, António Joaquim Lopes Rodrigues, António Joaquim Morais Cardoso, António Manuel Feijão Gato, Arlindo Bico Saramago, Armando Cristino Sardico, Francisco Poupa Valadas, Francisco Rosa Morais Gonçalves, Francisco Rosa Vidigal, João Claro Falé, Joaquim Marques Caeiro, José António Morais Gonçalves, José Cardoso Pereira, José Canadas Capucho, José Duarte Cardoso, José Manuel Paulino Balancho, José Maria Costa Ribeiro, José Raimundo dos Santos, Manuel Bugalho Almeida, Manuel Cachaço Caeiro, Manuel Jacinto Ambrósio Cartaxo, Manuel Joaquim Capucho Fernandes, Manuel Joaquim Ramalho Mendes, Ricardo Miguel Branquinho Rebolo, e Serafim Berjano da Silva
Ponto – Serafim Berjano da Silva
Alto – Manuel Jacinto Ambrósio Cartaxo
Coordenação e direcção – Joaquim Cardoso
Produção – Grupo Cultural e Desportivo da Freguesia de Monsaraz
Gravado na Casa do Cante, Telheiro, Monsaraz
Gravação, mistura e masterização – João Pedro Flores e João Bacelar
URL: https://www.facebook.com/gcdfmonsaraz/
https://anossamusica.web.ua.pt/ecdetails.php?ecid=8787
Deus-Menino
Letra e música: Popular (Aljustrel, Baixo Alentejo)
Intérprete: Grupo À Capella* (in CD/DVD "Monsaraz: Do Natal aos Reis", Grupo Cultural e Desportivo da Freguesia de Monsaraz, 2014)
Três palavras disse a Virgem
Quando o Menino nasceu:
«Vinde cá, meu bago de oiro,
Rei do Céu, amparo meu!»
Três palavras disse a Virgem
Quando nasceu o Menino:
«Vinde cá, meu bago de oiro,
Meu sacramento divino!»
Coração cheio de bondade
Que nos ensinaste a amar;
Tanto que por nós sofreu,
Morreu para nos salvar!
* Grupo À Capella:
José Francisco Pereira, Eduarda Rosa e Manuel Neto dos Santos
Ponto – José Francisco Pereira
Alto – Eduarda Rosa
Coordenação e direcção – Joaquim Cardoso
Produção – Grupo Cultural e Desportivo da Freguesia de Monsaraz
Gravado na Casa do Cante, Telheiro, Monsaraz
Gravação, mistura e masterização – João Pedro Flores e João Bacelar
URL: https://tratadodocante.blogspot.com/2016/01/tratado-do-cante-registos-fonograficos_16.html
Menino
Letra e música: Popular (Peroguarda, Ferreira do Alentejo, Baixo Alentejo)
Intérprete: Grupo Coral "Alma Alentejana" de Peroguarda* (in 2CD "O 'Cante' Alentejano": CD 2, Public-Art, 1998)
Entre os portais de Belém
Há uma árvore de Jessé
Com três letrinhas que dizem:
Jesus, Maria, José.
Li, ai li, ai li, ai lé!
O Menino nascido é!
Li, ai li, ai li, ai lé!
O Menino nascido é!
Entrai, pastores, entrai
Por este portal sagrado!
Vinde ver o Deus-Menino
Entre as palhinhas deitado!
* Grupo Coral "Alma Alentejana" de Peroguarda
Ensaiador – Vitorino Amândio
Gravado na Primavera de 1998
Engenheiro de som – Heinz Frieden
URL: https://www.facebook.com/coralalmaalentejana.peroguarda/
https://anossamusica.web.ua.pt/ecdetails.php?ecid=9171
O Menino
Letra e música: Popular (Messejana, Aljustrel, Baixo Alentejo)
Intérprete: Grupo de Cantares Alentejanos da Brigada Territorial N.º 3 da Guarda Nacional Republicana* (in CD "Cantes ao Menino: Corais Polifónicos Alentejanos", Imagem Imenso, 1999)
Qualquer filho de homem nobre
Nasce num berço doirado;
Só tu, Menino Jesus,
Numas palhinhas deitado.
Trailari, trailari, larilolé!
Menino nascido é!
Trailari, trailari, larilolé!
Menino nascido é!
Entrai, pastores, entrai
Por esse portal sagrado!
Vinde ver o Deus-Menino
Numas palhinhas deitado!
Trailari, trailari, larilolé!
Menino nascido é!
Trailari, trailari, larilolé!
Menino nascido é!
* Grupo de Cantares Alentejanos da Brigada Territorial N.º 3 da Guarda Nacional Republicana
URL: https://www.facebook.com/media/set/?set=a.149621901896147.1073741862.126440127547658
https://music.youtube.com/playlist?list=OLAK5uy_l28KOccG4_n57eHO36Kp1t6vCZSuP7qSc
O Menino
Letra e música: Popular (Baixo Alentejo)
Intérprete: Grupo Coral Alentejano "Os Amigos do Barreiro"* (in CD "Do Alentejo ao Barreiro", Musicartes, 2004)
Ai lei ai lari larilolé!
Jesus, Maria...
Jesus, Maria, José!
Entrai, pastorinho, entrai
Por esses portais...
Por esses portais sagrados!
Vinde ver o Deus-Menino
Numas palhinhas...
Numas palhinhas deitado!
Se o quereis criado,
Tratai-o com mimo;
Dêem-lhe leite,
Qu'ele é pequenino;
Tragam-lhe leite
Para o Deus-Menino.
* Grupo Coral Alentejano "Os Amigos do Barreiro"
URL: https://gca-amigos-barreiro.weebly.com/
https://www.facebook.com/gcaAmigosBarreiro/
https://anossamusica.web.ua.pt/ecdetails.php?ecid=298
O Menino
Letra e música: Popular (Baixo Alentejo)
Intérprete: Grupo Coral "Os Vindimadores da Vidigueira"* (in CD "Portugal: Les Voix de l'Alentejo / Voices of Alentejo", Ethnic/Audivis, 1994)
Lai, lei ai, lei ai, lei ai, la-i lolé-i!
Deus-Menino...
Deus-Menino nascido é-i!
Lai, lei ai, lei ai, lei ai, la-i lolé-i!
Deus-Menino...
Deus-Menino nascido é-i!
O Menino está na neve,
A neve...
A neve o faz tremer;
O Menino está na neve,
A neve...
A neve o faz tremer;
Meu Menino da minh'alma,
Quem te pu...
Quem te pudera valer!
Meu Menino da minh'alma,
Quem te pu...
Quem te pudera valer!
* Grupo Coral "Os Vindimadores da Vidigueira":
Francisco Arrojado, José Arrojado, Arsénio Bacalhau, Pedro Covas, Aires Coxinho, José Daniel, Joaquim Lança, Aires Motta, Francisco Pregro, Manuel Reis
Produção – Centre des Musiques Traditionnelles - Rhône-Alpes (França)
URL: https://anossamusica.web.ua.pt/ecdetails.php?ecid=9018
https://music.youtube.com/channel/UC-vSKP-rkTPbqcVuAH2ohbg
O Menino Está na Neve
Letra e música: Popular (Baixo Alentejo)
Intérprete: Rancho de Cantadores de Aldeia Nova de São Bento* (in livro/CD "Cante ao Menino, Janeiras, Reis do Concelho de Serpa", Confraria do Cante Alentejano, 2019)
O Menino está na neve,
A neve o faz tremer;
O Menino está na neve,
A neve o faz tremer;
Menino Deus da minh'alma,
Quem te pudesse valer!
Menino Deus da minh'alma,
Quem te pudesse valer!
Entrai, pastorinho, entrai
Por esse portal sagrado!
Entrai, pastorinho, entrai
Por esse portal sagrado!
Vinde ver a Deus-Menino
Entre as palhinhas deitado!
Vinde ver a Deus-Menino
Entre as palhinhas deitado!
* Rancho de Cantadores de Aldeia Nova de São Bento
Pontos – Luís Serrano e Francisco João
Altos – António José Silva, Pedro Mestre e João Batista
URL: https://ranchocantadoresaldeiansbento.com/
https://anossamusica.web.ua.pt/ecdetails.php?ecid=8808
https://music.youtube.com/channel/UCRyfkElTgm1P0_SIRHa3_nw
Menino
Letra e música: Popular (Safara, Moura, Baixo Alentejo)
Intérprete: Grupo Coral e Etnográfico do Ateneu Mourense* (in CD "Abram-se Lá Essas Portas", 2008)
Oh meu Menino Jesus,
Oh meu menino tão belo,
Onde vieste nascer
Na noite do caramelo!
O Menino está na neve,
A neve o faz tremer;
Meu Menino da minh'alma,
Quem te pudesse valer!
Namorou-se o Deus-Menino
Duma cigana em Belém;
Olha a dita da cigana,
Olha a dita que ela tem!
* Grupo Coral e Etnográfico do Ateneu Mourense
URL: https://www.facebook.com/ateneu.mourense/
https://anossamusica.web.ua.pt/ecdetails.php?ecid=9210
Menino
Letra e música: Popular (Baixo Alentejo)
Intérprete: Grupo Coral e Etnográfico do Ateneu Mourense* (in CD "Abram-se Lá Essas Portas", 2008)
Eu hei-de dar ao Menino
Uma fita p'ró chapéu;
Ai também Ele me há-de dar
Um lugarzinho no Céu.
Do tronco nasceu a rama,
Ai da rama nasceu a flor;
Ai da flor nasceu Maria,
Ai de Maria nasceu o Redentor.
* Grupo Coral e Etnográfico do Ateneu Mourense
URL: https://www.facebook.com/ateneu.mourense/
https://anossamusica.web.ua.pt/ecdetails.php?ecid=9210
Capa do CD "Portugal: Les Voix de l'Alentejo / Voices of Alentejo", do Grupo Coral "Os Vindimadores da Vidigueira" (Ethnic/Audivis, 1994)
Capa do duplo CD "O 'Cante' Alentejano" (Public-Art, 1998)
Design – Incograf
Capa do CD "Cantes ao Menino: Corais Polifónicos Alentejanos" (Imagem Imenso, 1999)
Capa do CD "Do Alentejo ao Barreiro", do Grupo Coral Alentejano "Os Amigos do Barreiro" (Musicartes, 2004)
[imagem a inserir logo que possível]
Capa do CD "Abram-se Lá Essas Portas", do Grupo Coral e Etnográfico do Ateneu Mourense (2008)
Capa do CD/DVD "Monsaraz: Do Natal aos Reis", de: Grupo Coral da Freguesia de Monsaraz; Grupo À Capela; Manuel Sérgio e José Farinha; Quarteto de Cordas Baccus (Grupo Cultural e Desportivo da Freguesia de Monsaraz, 2014)
Concepção gráfica – João Fructuosa
Capa do livro/CD "Cante ao Menino, Janeiras, Reis do Concelho de Serpa" (Confraria do Cante Alentejano, 2019)
Coordenação, textos e transcrições musicais – Armando Torrão
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Outros artigos com repertório natalício:
Miguel Torga: "Natal"
Música portuguesa de Natal
Celina da Piedade: "Este Natal"
António Gedeão: "Dia de Natal", por Afonso Dias
Vozes do Imaginário: "Não Há Noite Mais Alegre"
Miguel Torga: "Natividade"
Um Natal à viola da terra, por Rafael Carvalho
Cantos de Natal da Galiza e de Portugal
Canções portuguesas de Natal harmonizadas/musicadas por Fernando Lopes-Graça
Um Natal madeirense com o grupo Xarabanda
"Ó Meu Menino Jesus" (tradicional do Alto Alentejo)
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Outros artigos com modas por grupos corais alentejanos:
Celebrando a Ronda dos Quatro Caminhos
O canto alentejano é património da Humanidade
Grupo Coral "Os Ganhões de Castro Verde": "Grândola, Vila Morena"
Grupo Coral "Os Ceifeiros de Cuba": "No Tempo da Primavera"
Grupo Coral da Casa do Povo de Santo Aleixo da Restauração: "É Lindo na Primavera"
21 dezembro 2024
Carlos do Carmo: "Gaivota" (Alexandre O'Neill)
© Câmara Municipal de Lisboa
(in https://www.facebook.com/camaradelisboa)
O fado "Gaivota", cujos versos Alexandre O'Neill escreveu expressamente para Amália cantar, com música de Alain Oulman, no filme "Fado Corrido" (1964), de Jorge Brum do Canto, tornou-se, sobretudo a partir da publicação da regravação presente no álbum "Com Que Voz" (1970), uma das mais brilhantes pérolas amalianas. Inumeráveis fadistas, e não só, gravaram-no ao longo das seis décadas já decorridas, mas nenhum(a) o fez, a nosso ouvir, tão primorosamente quanto Carlos do Carmo na versão, com orquestração de Jorge Costa Pinto, incluída no álbum sem título editado em 1969. Foi precisamente esse maravilhoso registo que achámos por bem realçar nesta data em que o criador de "Lisboa, Menina e Moça" faria 85 anos de idade, dois escassos dias após o centenário do nascimento de Alexandre O'Neill. Boa escuta!
É extenso o rol dos artistas portugueses (vivos ou mortos) de mérito amplamente reconhecido sobre os quais foi estampado o ferrete de "intocável!" por quem manda na 'playlist' da Antena 1. Em Carlos do Carmo tal ferrete de proscrição é particularmente chocante e revoltante atendendo à dimensão e à importância do magistral intérprete na História da Música Portuguesa. E aqui uma pergunta se impõe formular: valerá realmente a pena os pagantes da contribuição do audiovisual continuarem a suportar uma rádio que despreza os nossos valores musicais mais elevados ao mesmo tempo que se empenha a promover a mediocridade?
Gaivota
Poema: Alexandre O'Neill (De "Dispersos: 1942-1985", in "Poesias Completas & Dispersos", Org. Maria Antónia Oliveira, Lisboa: Assírio & Alvim, 1917 – p. 584-585)
Música: Alain Oulman
Orquestração: Jorge Costa Pinto
Intérprete: Carlos do Carmo* (in LP "Carlos do Carmo", Tecla, 1969, reed. Edisom, 1984, Movieplay, 2003, Série "Carlos do Carmo 50 Anos", Vol. 01, Universal Music, 2013)
Criação: Amália Rodrigues (in EP "Trechos do Filme Fado Corrido", Columbia/VC, 1964; LP "Fado Português", Columbia/VC, 1965, reed. EMI-VC, 1992, Edições Valentim de Carvalho/Som Livre, 2007, Edições Valentim de Carvalho, 2015)
[instrumental]
Se uma gaivota viesse
trazer-me o céu de Lisboa
no desenho que fizesse,
nesse céu onde o olhar
é uma asa que não voa,
esmorece e cai no mar.
Que perfeito coração
no meu peito bateria,
meu amor, na tua mão,
nessa mão onde cabia
perfeito o meu coração.
Se um português marinheiro
dos sete mares andarilho
fosse, quem sabe, o primeiro
a contar-me o que inventasse,
se um olhar de novo brilho
ao meu olhar se enlaçasse.
Que perfeito coração
no meu peito bateria,
meu amor, na tua mão,
nessa mão onde cabia
perfeito o meu coração.
Se ao dizer adeus à vida
as aves todas do céu
me dessem na despedida
o teu olhar derradeiro,
esse olhar que era só teu,
amor que foste o primeiro.
Que perfeito coração
morreria no meu peito,
meu amor, na tua mão,
nessa mão onde perfeito
bateu o meu coração.
* Carlos do Carmo – voz
Orquestra de Jorge Costa Pinto
José Fontes Rocha – guitarra portuguesa
Gravado nos Estúdios Valentim de Carvalho, Paço d'Arcos
Técnico de som – Hugo Ribeiro
Remasterização – Fernando Nunes (edição de 2013)
URL: https://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_do_Carmo
https://www.museudofado.pt/fado/personalidade/carlos-do-carmo
https://music.youtube.com/channel/UCXqGi0cZitdJx1_A8s-NR6w
Capa do LP "Carlos do Carmo" (Tecla, 1969)
Fotografia – Augusto Cabrita
Capa do EP "Gaivota", de Carlos do Carmo (Tecla, 1970)
Capa da mais recente reedição em CD do álbum "Carlos do Carmo", Vol. 01 da Série "Carlos do Carmo: 50 Anos" (Universal Music, 2013)
Design – adaptação por Bloodymary, Braun & Caeser da capa do EP "An Evening at Faia (A Rua do Desencanto)" (Philips 430.822 PE, 1969)
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Outros artigos com repertório de Carlos do Carmo:
A infância e a música portuguesa
Em memória de Bernardo Sassetti (1970-2012)
Ser Poeta
Em memória de Urbano Tavares Rodrigues (1923-2013)
Celebrando Lucília do Carmo
Em memória de Vasco Graça Moura (1942-2014)
Celebrando Carlos Paredes
Em memória de Fernando Alvim (1934-2015)
Em memória de Júlio Pomar (1926-2018)
António Botto: "Homem que vens de humanas desventuras"
Carlos do Carmo: "O Madrugar de um Sonho"
Carlos do Carmo: "A Voz Que Eu Tenho"
Carlos do Carmo: "Fado Varina" (Ary dos Santos)
09 dezembro 2024
Celebrando Jorge Croner de Vasconcellos
VASCONCELLOS Moniz de Bettencourt, Jorge Croner de Sant'Anna e (n. Lisboa, 11 Abr. 1910; m. Lisboa, 9 Dez. 1974). Compositor, professor e pianista. Jorge Croner de Vasconcellos descende de uma família de músicos notáveis no âmbito da música erudita. O pai, Alexandre Bettencourt (1868-1945), eminente violinista, discípulo durante quatro anos em Paris do mestre Hubert Léonard, foi professor no Conservatório Nacional (classe de Violino). Mathilde das Nogueiras (1859-1941), irmã do pai, foi cantora de ópera de nomeada, tendo-se associado em Paris com a famosa Pauline Viardot-Garcia. A mãe, Laura Croner (1887-1962), violinista e pianista de talento, provinha de uma longa linhagem musical, começada em Portugal nos princípios do séc. XIX por Joseph Croner, músico germânico, cujos dois filhos — António José Croner (1826-1888) e Raphael José Croner (1828-1884), bisavô e tio-bisavô de Jorge Croner de Vasconcellos — foram concertistas notáveis, respectivamente na flauta e no clarinete. Cezaltina Croner (1864-?) e Regina Croner Cascais (1903-1982), filha e neta de Raphael, ambas pianistas, continuaram juntamente com Jorge Croner de Vasconcellos a linha musical até os nossos dias. Começando Solfejo e Piano com a mãe, Jorge Croner de Vasconcellos estudou depois Piano com Alexandre Rey Colaço e Composição com Luís de Freitas Branco, Francisco de Lacerda e Eduardo Libório, cursando contemporaneamente Ciências Histórico-Filosóficas na Faculdade de Letras (Universidade de Lisboa). Em 1934 recebeu da Junta de Educação Nacional uma bolsa para estudar em Paris, onde se manteve até ao Verão de 1937. Aí estudou Harmonia, Contraponto e História da Música com Nadia Boulanger; Composição, primeiro com Paul Dukas, depois com Roger Ducasse; Piano com Giraud-Latarse; Interpretação com Alfred Cortot. Beneficiou ainda dos ensinamentos de Igor Stravinski. Em 1938 foi nomeado professor interino de Composição do Conservatório Nacional, lugar que desempenhou até à morte. A obra de Jorge Croner de Vasconcellos cobre praticamente todos os géneros de música de câmara e sinfónica, exceptuando a ópera. Tecnicamente, caracteriza-se pelo relevo conferido à dissonância, como elemento estrutural e colorístico. Serviu-se com liberdade e discrição dos idiomas correntes antes do fim da II Guerra Mundial — modalismo, escala de tons inteiros, politonalismo, formação de acordes por sobreposição de intervalos diferentes da 3.ª.
Conservou da música tonal a ideia de centro tonal e de cadência, mas alargou aos 12 tons o conceito de tonalidade, e praticou cadências a intervalos diversos da 5.ª descendente ou 4.ª ascendente. Como Paul Hindemith, seu contemporâneo, procurou uma linguagem musical que superasse o cromatismo romântico herdado de Wagner e o atonalismo da Segunda Escola de Viena. Porém, o instinto meridional afastou-o dos sistemas intelectuais estanques. O seu estilo exibe variedade e vitalidade dos ritmos, opulência da harmonia e, em geral, elegância e concisão. Do ponto de vista expressivo, pode talvez sintetizar-se: um etos frequentemente melancólico; expressão directa da emoção; claridade e transparência da forma; capacidade de exprimir paixão, mas dificuldade na expressão da força; por vezes, franco sentido humorístico. Como professor, evitou o dogmatismo, tomou-se num guia experiente e seguro. A sua classe de Composição favoreceu a eclosão de personalidades as mais diversas, desde Constança Capdeville a Maria de Lourdes Martins, Armando Santiago, Filipe de Sousa, entre outros. Excelente pianista, quer como acompanhador quer a solo, abandonou a carreira de solista após 1943, por motivos de saúde.
GIL MIRANDA
(in "Enciclopédia da Música em Portugal
no Século XX", Dir. Salwa Castelo-Branco,
Lisboa: Temas e Debates/Círculo de
Leitores, 2010 – Vol. IV, p. 1317)
OBRA
Canto e piano
(Publicação: Obras para Canto e Piano, Lisboa: Musicoteca, 1996)
- Três Redondilhas de Camões (1927):
1. Descalça vai para a fonte
2. Puz meus olhos numa funda
3. Na fonte está Leonor
- Ciclo d'Antero [de Quental]: 5. No Turbilhão (1927)
- Senhora, partem tam tristes meus olhos [Joam Rodriguez de Castell Branco] (1936)
- Baylemos nos ia todas tres [Airas Nunes] (1936)
- En esta vida mortal [Diogo Brandão] (1937)
- Comigo me desavim [Francisco Sá de Miranda] (1938)
- O Viajante [Miguel Claro] (1944)
- Tenho barcos, tenho remos [Popular] (1945)
- Eu hei-de cantar bem alto [Popular] (1945)
- O adro tem quatro quinas [Popular] (1945)
- Ó alendroeiro [Popular] (1945)
- Canção [Afonso Lopes Vieira] (1948)
- Canção da almotolia [Afonso Lopes Vieira] (1948)
- Não: não digas nada! [Fernando Pessoa] (1950)
- Ao desconcerto do mundo [Luís de Camões] (1972)
Canto, flauta e quarteto de cordas
- Lembranças, tristes cuidados [Jorge de Resende] (1938)
Canto e órgão
- Erros meus, má fortuna, amor ardente [Luís de Camões] (1972)
Piano solo
(Publicação: Obras para Piano, Lisboa: Musicoteca, 1996)
- Peça para dois pianos (1930)
- Tocata a Carlos Seixas n.º 1 (1937)
- Scherzo (1937)
- Tocata a Carlos Seixas n.º 3 (1941)
- Trio da Tocata n.º 3 (1941)
- Tocata a Carlos Seixas n.º 2 (1942)
- Partita (1960)
- Canção (1973)
Coro a cappella
- Santa Cecília, Padroeira nossa (1935)
- Em Belém vila do amor [Gil Vicente] (1936)
- Formoso Tejo meu [Francisco Rodrigues Lobo] (1937)
- A formosura desta fresca serra [Luís de Camões] (1937)
- Oito Cantos do Natal [Popular] (1974)
Quarteto de cordas
- Rapsódia (1935)
Orquestra
Poemas sinfónicos
- Poemeto sinfónico [adaptação de texto de H.W. Longfellow] (1928)
- A Vela Vermelha [texto do Presidente da CML, António Vitorino da França Borges] (1961)
Bailados
- A Faina do Mar [texto próprio] (1936-37)
- A Lenda das Amendoeiras [Fernanda de Castro] (1940)
- Coimbra [adaptação de texto de Francis Graça] (1959)
Obra coral sinfónica
- Vilancico para a festa de Santa Cecília [adaptação do texto de dois vilancicos do século XVIII] (1967)
[https://www.bnportugal.gov.pt/images/stories/agenda/2010/jorge_croner_de_vasconcellos.pdf]
A obra musical de Jorge Croner de Vasconcellos, embora não seja vasta, inclui peças de tocante beleza e algumas delas são canções, a começar pelas maravilhosas "Três Redondilhas de Camões", musicadas em 1927, tinha então o compositor a jovem idade de 17 anos.
E é justamente com registos de canções que o celebramos na presente data, a pretexto do cinquentenário da morte, apresentando a integral para canto e piano (17 peças), na interpretação da soprano Ana Madalena Moreira e do pianista Lucjan Luc, seguida de "Lembranças, tristes cuidados", pelo João Roiz Ensemble e a soprano Marina Pacheco, e de "Fermoso Tejo meu", pelo Coro de Câmara de Lisboa, sob a direcção Teresita Gutierrez Marques. Neste conjunto pontifica alguma da melhor poesia portuguesa que a música de Jorge Croner de Vasconcellos serve admiravelmente elevando-a a um patamar de superior encantamento. Boa escuta e melhor fruição poético-musical!
Andámos, ao longo do dia, a 'picar' a emissão da Antena 2 (a escuta continuada seria um suplício, sobretudo por causa daquele autêntico flagelo que são os cartuchos de publicidade disparados ao virar de cada hora e também a seguir aos noticiários) e a única evocação de Jorge Croner de Vasconcellos que lográmos apanhar foi a feita por João Rodrigues Pedro, no espaço "Baile de Máscaras", com a leitura de uma resenha biográfica e a transmissão das já citadas "Três Redondilhas de Camões", cantadas por Ana Madalena Moreira, com acompanhamento ao piano pelo polaco Lucjan Luc. Enaltecemos o zelo e o profissionalismo de João Rodrigues Pedro, mas temos também de apontar o dedo acusador à direcção de programas por ter deixado passar a efeméride em vão. E se tal inacção é assaz reprovável, mais grave ainda é a inexistência na grelha de um espaço regular consagrado a compositores portugueses, e de uma rubrica reservada à canção erudita portuguesa. Esses espaços musicais de conceito editorial definido existiram durante o consulado de João Pereira Bastos, mas foram leviana e irresponsavelmente suprimidos. Resultado: Jorge Croner de Vasconcellos e tantos outros compositores nacionais, que são bastante negligenciados pelos animadores dos espaços alargados de música a esmo, deixaram de ter cabal e conveniente divulgação na rádio que tem como missão (primeira) divulgar a música portuguesa.
Descalça vai para a fonte
Poema (vilancete em redondilha maior): Luís de Camões (in "Rimas", org. Dom António Álvares da Cunha, Lisboa, 1668; "Obras de Luís de Camões", Porto: Lello & Irmão Editores, 1970 – p. 834-835)
Música: Jorge Croner de Vasconcellos ("Três Redondilhas de Camões", N.º 1, 1927)
Intérpretes: Ana Madalena Moreira* & Lucjan Luc (in CD "Croner de Vasconcellos, Ivo Cruz, Vianna da Motta", Numérica, 2001)
MOTE
Descalça vai para a fonte
Leonor pela verdura;
vai formosa, e não segura.
VOLTAS
Leva na cabeça o pote,
o testo nas mãos de prata,
cinta de fina escarlata,
sainho de chamalote;
traz a vasquinha de cote,
mais branca que a neve pura;
vai formosa, e não segura.
Descobre a touca a garganta,
cabelos d'ouro trançado,
fita de cor de encarnado...
tão linda que o mundo espanta!
Chove nela graça tanta,
que dá graça à formosura;
vai formosa, e não segura. [bis]
Notas:
escarlata – tecido de lã de cor vermelha muito viva;
sainho – casaco curto que se vestia por cima da blusa;
chamalote – tecido de pêlo ou lã geralmente com seda, talvez assemelhando-se ao actual cetim;
vasquinha – saia com muitas pregas em volta da cintura;
de cote – de uso quotidiano.
* Ana Madalena Moreira – voz (soprano)
Lucjan Luc – piano
Puz meus olhos numa funda
Poema (cantiga em redondilha maior): Luís de Camões (in "Rimas", org. Fernão Rodrigues Lobo Soropita, Lisboa, 1595; "Obras de Luís de Camões", Porto: Lello & Irmão Editores, 1970 – p. 770)
Música: Jorge Croner de Vasconcellos ("Três Redondilhas de Camões", N.º 2, 1927)
Intérpretes: Ana Madalena Moreira* & Lucjan Luc (in CD "Croner de Vasconcellos, Ivo Cruz, Vianna da Motta", Numérica, 2001)
MOTE
Pus meus olhos numa funda,
e fiz um tiro com ela
às grades duma janela. [bis]
VOLTA
Uma dama, de malvada,
tomou seus olhos na mão,
e tirou-me uma pedrada
com eles ao coração.
Armei minha funda então,
e pus os meus olhos nela:
trape! quebrei-lhe a janela.
* Ana Madalena Moreira – voz (soprano)
Lucjan Luc – piano
Na fonte está Leonor
Poema (vilancete em redondilha maior): Luís de Camões (in "Rimas", org. Domingos Fernandes, Lisboa, 1616; "Obras de Luís de Camões", Porto: Lello & Irmão Editores, 1970 – p. 812-813)
Música: Jorge Croner de Vasconcellos ("Três Redondilhas de Camões", N.º 3, 1927)
Intérpretes: Ana Madalena Moreira* & Lucjan Luc (in CD "Croner de Vasconcellos, Ivo Cruz, Vianna da Motta", Numérica, 2001)
CANTIGA ALHEIA
Na fonte está Leonor
lavando a talha e chorando,
às amigas perguntando:
— Vistes lá o meu amor?
VOLTAS
Posto o pensamento nele,
porque a tudo o amor obriga,
cantava, mas a cantiga
eram suspiros por ele.
Nisto estava Leonor
o seu desejo enganando,
às amigas perguntando:
— Vistes lá o meu amor?
O rosto sobre uma mão,
os olhos no chão pregados,
que, de chorar já cansados,
algum descanso lhe dão.
Desta sorte Leonor
suspende de quando em quando
sua dor; e, em si tornando,
mais pesada sente a dor.
Não deita dos olhos água,
que não quer que a dor se abrande
amor, porque, em mágoa grande,
seca as lágrimas a mágoa.
Despois que de seu amor
soube, novas perguntando,
de improviso a vi chorando.
Olhai que extremos de dor!
* Ana Madalena Moreira – voz (soprano)
Lucjan Luc – piano
No Turbilhão
Poema: Antero de Quental ("Os Sonetos Completos de Anthero de Quental", publicados por J. P. Oliveira Martins, Porto: Livraria Portuense de Lopes & C.ª Editores, 1886 – p. 92; "Antero de Quental: Sonetos", Ed. organizada, prefaciada e anotada por António Sérgio, Col. Clássicos Sá da Costa, Lisboa: Livraria Sá da Costa Editora, 6.ª edição, 1979 – p. 89; "Antero de Quental: Poesia Completa", Org. e pref. Fernando Pinto do Amaral, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2001 – p. 288-289)
Música: Jorge Croner de Vasconcellos (1927)
Intérpretes: Ana Madalena Moreira* & Lucjan Luc (in CD "Croner de Vasconcellos, Ivo Cruz, Vianna da Motta", Numérica, 2001)
(A Jayme Batalha Reis)
No meu sonho desfilam as visões,
Espectros dos meus próprios pensamentos,
Como um bando levado pelos ventos,
Arrebatado em vastos turbilhões...
Numa espiral, de estranhas contorções,
E donde saem gritos e lamentos,
Vejo-os passar, em grupos nevoentos,
Distingo-lhes, a espaços, as feições...
— Fantasmas de mim mesmo e da minha alma,
Que me fitais com formidável calma,
Levados na onda turba do escarcéu,
Quem sois vós, meus irmãos e meus algozes?
Quem sois, visões misérrimas e atrozes?
Ai de mim! ai de mim! e quem sou eu?!...
* Ana Madalena Moreira – voz (soprano)
Lucjan Luc – piano
Senhora, partem tam tristes meus olhos
Poema: Joam Rodriguez de Castell Branco (in "Cancioneiro Geral", ordenado e emendado por Garcia de Resende, Almeirim/Lisboa: Hermã de Cãpos, 1516 – f. 107v; "Cancioneiro Geral de Garcia de Resende", Fixação do texto e estudo por Aida Fernanda Dias, Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1990-2003 – Vol. II, p. 324, poema n.º 396)
Música: Jorge Croner de Vasconcellos (1936)
Intérpretes: Ana Madalena Moreira* & Lucjan Luc (in CD "Croner de Vasconcellos, Ivo Cruz, Vianna da Motta", Numérica, 2001)
Senhora, partem tão tristes
meus olhos por vós, meu bem,
que nunca tão tristes vistes
outros nenhuns por ninguém.
Tão tristes, tão saudosos,
tão doentes da partida,
tão cansados, tão chorosos,
da morte mais desejosos
cem mil vezes que da vida.
Partem tão tristes os tristes,
tão fora d'esperar bem,
que nunca tão tristes vistes
outros nenhuns por ninguém.
* Ana Madalena Moreira – voz (soprano)
Lucjan Luc – piano
Baylemos nos ia todas tres
Poema [Cantiga de amigo (bailada)]: Airas Nunes (Séc. XIII, in "Cancioneiro da Biblioteca Nacional", B 879 – f. 186r / "Cancioneiro da Vaticana", V 462 – f. 73v; "500 Cantigas d'Amigo", Ed. crítica de Rip Cohen, Col. Obras Clássicas da Literatura Portuguesa, Porto: Campo das letras, 2002 – p. 317)
Música: Jorge Croner de Vasconcellos (1936)
Intérpretes: Ana Madalena Moreira* & Lucjan Luc (in CD "Croner de Vasconcellos, Ivo Cruz, Vianna da Motta", Numérica, 2001)
Baylemos nos ia todas tres, ay amigas,
so aquestas avelaneyras frolidas,
e quen for velida, como nos, velidas,
se amigo amar,
so aquestas avelaneyras frolidas
verrá baylar.
Baylemos nos ia todas tres, ay irmanas,
so aqueste ramo destas avelanas,
e quen for louçana, como nos, louçanas,
se amigo amar,
so aqueste ramo destas avelanas
verrá baylar.
Por Deus, ay amigas, mentr'al non fazemos
so aqueste ramo frolido bailemos,
e quen ben parecer, como nos parecemos,
se amigo amar,
so aqueste ramo, sol que nos baylemos,
verrá baylar.
* Ana Madalena Moreira – voz (soprano)
Lucjan Luc – piano
En esta vida mortal
Poema: Diogo Brandão (in "Cancioneiro Geral", ordenado e emendado por Garcia de Resende, Almeirim/Lisboa: Hermã de Cãpos, 1516 – f. 94v; "Cancioneiro Geral de Garcia de Resende", Fixação do texto e estudo por Aida Fernanda Dias, Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1990-2003 – Vol. II, p. 238, poema n.º 350)
Música: Jorge Croner de Vasconcellos (1937)
Intérpretes: Ana Madalena Moreira* & Lucjan Luc (in CD "Croner de Vasconcellos, Ivo Cruz, Vianna da Motta", Numérica, 2001)
En esta vida mortal
nom ha hy prazer que dure,
nem menos tamanho mal
que por tempo se nam cure.
Assi bem aventurados
casos, bem acontecidos,
como outros desastrados,
tam cedo como passados,
sam de todo esquecidos.
É uma regra geral
nam haver hy bem que dure,
nem menos tamanho mal
que por tempo se nam cure.
* Ana Madalena Moreira – voz (soprano)
Lucjan Luc – piano
Comigo me desavim
Poema: Francisco Sá de Miranda (in "Cancioneiro Geral", ordenado e emendado por Garcia de Resende, Almeirim/Lisboa: Hermã de Cãpos, 1516 – f. 109v; "Cancioneiro Geral de Garcia de Resende", Fixação do texto e estudo por Aida Fernanda Dias, Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1990-2003 – Vol. II, p. 338, poema n.º 415)
Música: Jorge Croner de Vasconcellos (1938)
Intérpretes: Ana Madalena Moreira* & Lucjan Luc (in CD "Croner de Vasconcellos, Ivo Cruz, Vianna da Motta", Numérica, 2001)
Comigo me desavim,
Vejo-m'em grande perigo,
não posso viver comigo
nem posso fugir de mim.
Antes qu'este mal tivesse,
da outra gente fugia;
agora já fugiria
de mim, se de mim pudesse.
Que cabo espero ou que fim
deste cuidado que sigo,
pois trago a mim comigo
tamanho imigo de mim?
[instrumental]
* Ana Madalena Moreira – voz (soprano)
Lucjan Luc – piano
O Viajante
Poema: Miguel Claro (pseudónimo de Eduardo Miguel Monteiro Libório, 1900-1946) (in "Eduardo Libório: Poesias, Desenhos e Correspondência", Pref., introd., org. e notas de Gil Miranda, Col. Arte e Artistas, Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2010 – p. 65)
Música: Jorge Croner de Vasconcellos (1944)
Intérpretes: Ana Madalena Moreira* & Lucjan Luc (in CD "Croner de Vasconcellos, Ivo Cruz, Vianna da Motta", Numérica, 2001)
Gosto tanto de sonhar
E de dormir...
Esquecer o tempo que passou
E não pensar no que há-de vir...
Viver a vida verdadeira
A noute inteira:
Fechar os olhos, e partir...
Tudo em silêncio, tudo apagado,
E eu suspenso
Maravilhado,
A espreitar para o que está do outro lado...
Se me esquecesse de voltar...
Oh! Se pudesse ficar assim,
Horas sem fim,
Sem acordar,
A viajar dentro de mim...
* Ana Madalena Moreira – voz (soprano)
Lucjan Luc – piano
Tenho barcos, tenho remos
Letra e música: Popular
Harmonização: Jorge Croner de Vasconcellos (1945)
Intérpretes: Ana Madalena Moreira* & Lucjan Luc (in CD "Croner de Vasconcellos, Ivo Cruz, Vianna da Motta", Numérica, 2001)
Tenho barcos, tenho remos,
Tenho navios no mar;
Tenho um amor tão bonito,
Olé, menina, olé!
Não me deixam namorar.
Tenho barcos, tenho remos,
Tenho navios no mar;
Tenho um amor tão bonito,
Olé, menina, olé!
Não me deixam namorar.
[instrumental]
* Ana Madalena Moreira – voz (soprano)
Lucjan Luc – piano
O adro tem quatro quinas
Letra e música: Popular
Harmonização: Jorge Croner de Vasconcellos (1945)
Intérpretes: Ana Madalena Moreira* & Lucjan Luc (in CD "Croner de Vasconcellos, Ivo Cruz, Vianna da Motta", Numérica, 2001)
Ai, o adro tem quatro quinas, [bis]
Também tem cinco janelas;
Ó ai, ó larilóló!
Ai, também tem cinco meninas; [bis]
Quem me dera uma delas!
Ó ai, ó larilóló!
[instrumental]
* Ana Madalena Moreira – voz (soprano)
Lucjan Luc – piano
Eu hei-de cantar bem alto
Letra e música: Popular
Harmonização: Jorge Croner de Vasconcellos (1945)
Intérpretes: Ana Madalena Moreira* & Lucjan Luc (in CD "Croner de Vasconcellos, Ivo Cruz, Vianna da Motta", Numérica, 2001)
Eu hei-de cantar bem alto, [bis]
Ai, quem dormir há-de acordar; [bis]
Ailarai ó lariloléla!
Ailarai ó larilóló!
Só a mãe do meu amor [bis]
Ai, a dormir há-de ficar. [bis]
Ailarai ó lariloléla!
Ailarai ó larilóló!
Menina qu'estás à janela, [bis]
Ai, encostada à vidraça... [bis]
Ailarai ó lariloléla!
Ailarai ó larilóló!
Tem nariz de perdigueiro, [bis]
Ai, venha comigo pr'à caça! [bis]
Ailarai ó lariloléla!
Ailarai ó larilóló!
[instrumental]
* Ana Madalena Moreira – voz (soprano)
Lucjan Luc – piano
Ó alendroeiro
Letra e música: Popular
Harmonização: Jorge Croner de Vasconcellos (1945)
Intérpretes: Ana Madalena Moreira* & Lucjan Luc (in CD "Croner de Vasconcellos, Ivo Cruz, Vianna da Motta", Numérica, 2001)
Ó alendroeiro,
onde está teu lendroal?
Teu amor primeiro
foi meu rival.
Nossa Senhora é mãe,
é mãe de quem mãe não tem;
Quando minha mãe morrer,
será minha mãe também.
Ó alendroeiro,
onde está teu lendroal?
Teu amor primeiro
foi meu rival.
[instrumental]
* Ana Madalena Moreira – voz (soprano)
Lucjan Luc – piano
Canção
Poema: Afonso Lopes Vieira (De "Cancioneiro III: Canções de Saudade e Amor", in "Os Versos de Afonso Lopes Vieira", Lisboa: Sociedade Editora Portugal-Brasil, 1927 – p. 265-266; "Afonso Lopes Vieira: Antologia Poética", Escolha e comentário de Nuno Sampayo, Col. Poesia e Verdade, Lisboa: Guimarães Editores, 1966 – p. 126)
Música: Jorge Croner de Vasconcellos (1948)
Intérpretes: Ana Madalena Moreira* & Lucjan Luc (in CD "Croner de Vasconcellos, Ivo Cruz, Vianna da Motta", Numérica, 2001)
Nesta hora o meu desejo
co'as nuvens lilases vai...
O dia morre num beijo,
o beijo morre num ai.
Oh nuvens de este sol-pôr,
saudades assemelhando,
sois um raminho que eu mando
cá de longe ao meu amor.
[instrumental]
* Ana Madalena Moreira – voz (soprano)
Lucjan Luc – piano
Canção da Almotolia
Poema: Afonso Lopes Vieira (De "Cancioneiro I", in "Os Versos de Afonso Lopes Vieira", Lisboa: Sociedade Editora Portugal-Brasil, 1927 – p. 213)
Música: Jorge Croner de Vasconcellos (1948)
Intérpretes: Ana Madalena Moreira* & Lucjan Luc (in CD "Croner de Vasconcellos, Ivo Cruz, Vianna da Motta", Numérica, 2001)
[instrumental]
Em casa do cavador
vinho é o pranto, pão é a dor.
Só há um regalo à mesa
depois do cansado dia:
tempera a ceia à pobreza
o azeite da almotolia.
Foi feita da mesma terra
que eles cavaram,
e oleiros pobres vidraram
o vaso que a mesa alegra.
Que, em casa do cavador,
vinho é o pranto, pão é a dor.
* Ana Madalena Moreira – voz (soprano)
Lucjan Luc – piano
Não: não digas nada!
Poema: Fernando Pessoa (in "Poesias de Fernando Pessoa", Col. Obras Completas de Fernando Pessoa, Vol. I, Lisboa: Edições Ática, 1942, 14.ª edição, 1993 – p. 132)
Música: Jorge Croner de Vasconcellos (1950)
Intérpretes: Ana Madalena Moreira* & Lucjan Luc (in CD "Croner de Vasconcellos, Ivo Cruz, Vianna da Motta", Numérica, 2001)
Não: não digas nada!
Supor o que dirá
A tua boca velada
É ouvi-lo já.
É ouvi-lo melhor
Do que o dirias.
O que és não vem à flor
Das frases e dos dias.
És melhor do que tu.
Não digas nada; sê!
Graça do corpo nu
Que invisível se vê.
5/6-2-1931
* Ana Madalena Moreira – voz (soprano)
Lucjan Luc – piano
Ao desconcerto do Mundo
Poema (esparsa em redondilha maior): Luís de Camões (ligeiramente adaptado) [texto original >> abaixo]
Música: Jorge Croner de Vasconcellos (1972)
Intérpretes: Ana Madalena Moreira* & Lucjan Luc (in CD "Croner de Vasconcellos, Ivo Cruz, Vianna da Motta", Numérica, 2001)
Os bons vi sempre passar
no mundo graves tormentos;
e, para mais me espantar,
os maus vi sempre nadar
em mar de contentamentos.
Cuidando de alcançar assim
o bem tão mal ordenado,
fui mau, mas fui castigado:
assim que, só para mim
anda o Mundo concertado.
[instrumental]
Os bons vi sempre passar
no mundo graves tormentos;
e, para mais me espantar,
os maus vi sempre nadar
em mar de contentamentos.
* Ana Madalena Moreira – voz (soprano)
Lucjan Luc – piano (Yamaha CFIII – Grand piano)
Coordenação de produção – Ilídio Moreira
Produção executiva – Fernando Rocha
Gravado, editado e masterizado no Aurastudio, Paços de Brandão (Santa Maria da Feira), em Junho de 1999, por Jorge Fidalgo
URL: https://anamadalenamoreira.weebly.com/
https://www.meloteca.com/portfolio-item/ana-madalena-moreira/
https://anamadalenamoreira.blogspot.com/
https://www.facebook.com/anamrlmoreira
https://www.youtube.com/@anamoreira8323/videos
https://music.youtube.com/channel/UC3HMmYTloa2oBd1_RI70UNg
Ao desconcerto do Mundo
(Luís de Camões, in "Rimas", org. Estêvão Lopes, Lisboa, 1598; "Obras de Luís de Camões", Porto: Lello & Irmão Editores, 1970 – p. 801)
Os bons vi sempre passar
no mundo graves tormentos;
e, para mais me espantar,
os maus vi sempre nadar
em mar de contentamentos.
Cuidando alcançar assim
o bem tão mal ordenado,
fui mau, mas fui castigado:
assim que, só para mim
anda o Mundo concertado.
Lembranças, tristes cuidados
Poema: Jorge de Resende (in "Cancioneiro Geral", ordenado e emendado por Garcia de Resende, Almeirim/Lisboa: Hermã de Cãpos, 1516 – f. 186v; "Cancioneiro Geral de Garcia de Resende", Fixação do texto e estudo por Aida Fernanda Dias, Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1990-2003 – Vol. IV, p. 31, poema n.º 664)
Música: Jorge Croner de Vasconcellos (1938)
Intérpretes: João Roiz Ensemble* & Marina Pacheco (in CD "Cantiga Partindo-se", Câmara Municipal de Castelo Branco, 2017)
[instrumental]
Lembranças, tristes cuidados
magoam meu coração,
quando cuido nos passados
dias que passados são.
Que a vida me custasse
todo outro padecer,
folgaria de sofrer
se o passado não lembrasse,
mas por que sejam dobrados
meus males mais do que são,
cuido sempre em bens passados,
que perdi bem sem razão.
[instrumental]
* João Roiz Ensemble:
Vasken Fermanian – violino
João Mendes – violino
João Pedro Delgado – viola de arco
Ricardo Mota – violoncelo
Manuel Luís Cochofel – flauta transversal
Marina Pacheco – voz (soprano)
Captação, edição e masterização – Luís Marques (United Studios Multimedia Collective)
URL: https://www.facebook.com/ensemblejoaoroiz/
https://www.youtube.com/@joaoroiz1710/videos
https://www.youtube.com/playlist?list=PLuUD9dzjdhkN3EPY3sRbfzhdrpzHqAp6i
Fermoso Tejo meu
Poema: Francisco Rodrigues Lobo (in "Poesias de Francisco Rodrigues Lobo", Selecção, pref. e notas de Afonso Lopes Vieira, Col. Clássicos Sá da Costa, Lisboa: Livraria Sá da Costa Editora, 1940 – p. 83)
Música: Jorge Croner de Vasconcellos (1937)
Intérpretes: Coro de Câmara de Lisboa*, dir. Teresita Gutierrez Marques (in CD "Música Coral Portuguesa do Século XX", Numérica, 1999)
Fermoso Tejo meu, quão diferente
Te vejo e vi, me vês agora e viste:
Turvo te vejo a ti, tu a mim triste,
Claro te vi eu já, tu a mim contente.
A ti foi-te trocando a grossa enchente
A quem teu largo campo não resiste;
A mim trocou-me a vista em que consiste
O meu viver contente ou descontente.
Já que somos no mal participantes,
Sejamo-lo no bem. Oh! quem me dera
Que fossemos em tudo semelhantes!
Mas lá virá então a fresca primavera:
Tu tornarás a ser quem eras d'antes,
Eu não sei se serei quem d'antes era.
* Coro de Câmara de Lisboa:
Sopranos – Jael Martins, Lucina Silva, Mafalda Nascimento, Matilde de Castro, Susana de Oliveira, Teresa Cordeiro
Contraltos – Ana Ferro, Isabel Torres, Luzia Rocha, Marta Gregório, Sílvia Fontão
Tenores – Aníbal Coutinho, Carlos Quintelas, José Pereira, Pedro Marques, Sérgio Fontão, Vítor Gonçalves
Baixos – António Marques, João Camacho, Jorge Leal, Marcelo Tusto, Pedro Figueira, Pedro Pires
Direcção – Teresita Gutierrez Marques
Produção – Teresita Gutierrez Marques, António Marques, Jorge Leal, Sérgio Fontão
Gravado na Igreja Anglicana de S. Jorge, Lisboa, em 1998
URL: https://corodecamaradelisboa.com/
https://www.meloteca.com/portfolio-item/coro-de-camara-de-lisboa/
https://www.facebook.com/corodecamaradelisboa/
https://www.youtube.com/@corodecamaradelisboa
https://www.youtube.com/@DoTempoDosSonhos/videos?query=coro+camara+lisboa
Ana Madalena Moreira, soprano
Lucjan Luc, pianista (polaco)
Marina Pacheco, soprano
Teresita Gutierrez Marques, maestrina (filipina)
Fotografia – Carlos Santos
Capa do CD "Croner de Vasconcellos, Ivo Cruz, Vianna da Motta", de Ana Madalena Moreira & Lucjan Luc (Numérica, 2001)
Fotografia – Fernando Rocha
Design – Numérica
Capa do CD "Cantiga Partindo-se", de João Roiz Ensemble (Câmara Municipal de Castelo Branco, Fev. 2017)
Concepção – Jorge Portugal Design
Capa do CD "Música Coral Portuguesa do Século XX", do Coro de Câmara de Lisboa, dir. Teresita Gutierrez Marques (Numérica, 1999)
Capa do livro "Jorge Croner de Vasconcellos: Vida e Obra Musical", de Gil Miranda (Lisboa: Musicoteca, 1992)
01 dezembro 2024
Fausto Bordalo Dias: "Uns Vão Bem e Outros Mal"
© LPP - Lisboa para Pessoas
(in https://lisboaparapessoas.pt/)
Muitos jovens portugueses, desconhecendo que a canção "Uns Vão Bem e Outros Mal" foi gravada no Inverno de 1976/77, ao ouvirem-na, hoje, pela primeira vez, poderão afirmar, e com inteira legitimidade: «esta bela canção bailada, de inspiração tradicional, trata de problemas candentes actuais que a nós, jovens, dizem muito respeito e nos afectam de sobremaneira». E, de facto, a letra de Fausto Bordalo Dias, descontando algumas referências de contexto que remetem para o Portugal do rescaldo do PREC, ao dar enfoque à crise da habitação, ao desemprego e ao trabalho indigentemente remunerado, toca em cheio em pontos muito negros da realidade portuguesa hodierna que, embora não sendo exclusivos de um só escalão etário, afectam mais agudamente os jovens adultos. E se são eles os mais atingidos em questões sociais que, volvido quase meio século, se mantêm não resolvidas ou que, o tendo sido em parte, retrocederam, não é de admirar que esses enjeitados pela democracia a encarem com muita desconfiança, para não dizer hostilidade, e dêem o seu apoio a forças político-partidárias protofascistas. E se isso é preocupante, maiores são ainda os motivos de preocupação quando as principais e mais sistémicas forças políticas do país, que deviam ser as mais interessadas em zelar pela democracia, mostram incapacidade e falta de empenho na efectiva resolução dos problemas que afectam a maioria dos jovens (aqueles que são oriundos das classes menos privilegiadas, obviamente). E uma vez que aumentou, nos últimos anos, o número dos que vivem mal, resultado do incremento das desigualdades sociais, o verso de Fausto, «uns vão bem e outros mal» até poderia modificar-se para a seguinte forma: «uns vão bem e muitos outros mal». E o presente dia em que o país reflecte (ou devia reflectir) sobre si mesmo é assaz apropriado para darmos destaque a essa canção de teor tão assustadoramente actual, tendo em mente que a sua audição atenta e reflexiva possa contribuir para o tão necessário fomento da justiça social, que é – convém ter cabal noção disto – o principal pilar de sustentação das democracias modernas. Boa escuta pró-activa!
Quem foi ouvinte da TSF-Rádio Jornal, em 2023, desde 20 de Março até 22 de Dezembro, de segunda a sexta-feira, teve a oportunidade de escutar múltiplas vezes um fragmento desta canção de Fausto, precisamente o correspondente ao dístico "E assim se faz Portugal, / uns vão bem e outros mal", pois serviu de indicativo à soberba crónica "Assim se faz Portugal" em que Maria Rueff lia textos de humor, sátira e reflexão escritos por Luísa Costa Gomes, Filipe Homem Fonseca, Afonso Cruz e Manuel Monteiro (linguista). E vale bem a pena visitar o arquivo, por exemplo na plataforma Apple Podcasts, porque é o Portugal hodierno que ali está admiravelmente retratado. Quem preferir a leitura poderá ler o livro homónimo, com chancela Minotauro, onde estão compilados os textos das primeiras 80 crónicas.
Fausto terá, certamente, ficado honrado por alguém se ter lembrado de usar um pedacinho de uma sua antiga e semi-esquecida canção como indicativo de uma crónica em que, de modo superiormente inteligente, se disseca a realidade portuguesa do tempo presente. Palpitamos também que aquele lamiré terá impelido muitos ouvintes a irem à procura da canção integral e os que foram não tiveram dificuldade em encontrá-la, já que está em vários canais do YouTube. Essas pessoas e todas as outras podem, aqui e agora, (re)ouvir este cativante espécime do superlativo legado musical/fonográfico de Fausto Bordalo Dias e, desse modo, honrarem a sua memória.
Na pública Antena 1, escusado seria referi-lo, é virtualmente impossível ouvir esta e tantas outras das canções menos conhecidas de Fausto Bordalo Dias. Já assim acontecia em vida do genial cantautor e nem a morte, ocorrida em Julho passado, fez alterar tão vergonhoso estado de coisas. De facto, só muito esporadicamente algo do autor de "Madrugada dos Trapeiros" surge na 'playlist', e esse algo é invariavelmente uma das suas canções mais batidas, fazendo transparecer a ideia aos menos bem informados de que o seu repertório se resume a um reduzido lote.
Uns Vão Bem e Outros Mal
Letra e música: Fausto Bordalo Dias
Intérprete: Fausto Bordalo Dias* (in LP "Madrugada dos Trapeiros", Orfeu, 1977, reed. Movieplay, 1999)
[instrumental]
Senhoras e meus senhores,
façam roda por favor!...
Senhoras e meus senhores,
façam roda por favor,
cada um com o seu par!
Aqui não há desamores,
se é tudo trabalhador
o baile vai começar.
Senhoras e meus senhores,
batam certos os pezinhos,
como bate este tambor!
Não queremos cá opressores,
se estivermos bem juntinhos
vai-se embora o mandador. [bis]
Faz lá como tu quiseres, [3x]
folha seca cai ao chão; [bis]
eu não quero o que tu queres, [3x]
que eu sou doutra condição. [bis]
[instrumental]
De velhas casas vazias,
palácios abandonados,
os pobres fizeram lares;
mas agora todos os dias,
os polícias bem armados
desocupam os andares.
P'ra que servem essas casas,
a não ser p'ra o senhorio
viver da especulação?
Quem governa faz tábua-rasa,
mas lamenta com fastio
a crise da habitação.
E assim se faz Portugal,
uns vão bem e outros mal.
Faz lá como tu quiseres, [3x]
folha seca cai ao chão; [bis]
eu não quero o que tu queres, [3x]
que eu sou doutra condição. [bis]
[instrumental]
Tanta gente sem trabalho,
não tem pão nem tem sardinha
e nem tem onde morar;
do frio faz agasalho,
que a gente está tão magrinha
da fome que anda a rapar.
O governo dá solução:
manda os pobres emigrar
e os emigrantes que regressaram;
mas com tanto desemprego,
os ricos podem voltar
porque nunca trabalharam.
E assim se faz Portugal,
uns vão bem e outros mal.
Faz lá como tu quiseres, [3x]
folha seca cai ao chão; [bis]
eu não quero o que tu queres, [3x]
que eu sou doutra condição. [bis]
[instrumental]
E como pode outro alguém,
tendo interesses tão diferentes,
governar trabalhadores,
se aquele que vive bem
vivendo dos seus serventes
têm diferentes valores?
Não nos venham com cantigas,
não cantamos p'ra esquecer;
nós cantamos p'ra lembrar
que só muda esta vida
quando tiver o poder
o que vive a trabalhar.
Segura bem o teu par,
que o baile vai terminar!
Faz lá como tu quiseres, [3x]
folha seca cai ao chão; [bis]
eu não quero o que tu queres, [3x]
que eu sou doutra condição. [bis]
[instrumental]
* Fausto Bordalo Dias – voz e guitarras acústicas
Hélder Reis – acordeão
Rui Monteiro – percussão (adufes, bombos, caixa de guerra e ferrinhos)
Aristides, Fernando Laranjeira, Sabine – coros
Gravado nos Estúdios Arnaldo Trindade, Lisboa, durante o Inverno de 1976/77
Engenheiro de som – Moreno Pinto
URL: https://www.facebook.com/p/Fausto-Bordalo-Dias-P%C3%A1gina-Oficial-100044468348123/
https://fausto-bordalodias.blogspot.com/p/discografia.html
https://viriatoteles.com/livros/contas-a-vida/41-fausto-bordalo-dias.html
https://viriatoteles.com/imprensa/imprensa-1990-2000/89-por-favor-leiam-estes-discos.html
https://music.youtube.com/channel/UCH_869XTh5lFDKiCKvmuV_w
https://www.youtube.com/channel/UCh5tYA07B0Uur5Mo1gbPmYQ/videos?query=fausto
Capa do LP "Madrugada dos Trapeiros", de Fausto Bordalo Dias (Orfeu, 1977)
Arranjo gráfico – José Brandão
Capa do livro "Assim se Faz Portugal", de Luísa Costa Gomes, Filipe Homem Fonseca, Afonso Cruz e Manuel Monteiro; prefácio de Maria Rueff (Coimbra: Minotauro, Out. 2023)
Fotografia (Maria Rueff) – Paulo Spranger / Global Imagens
Concepção – Joana Carvalho
Reúne os textos das 80 crónicas radiodifundidas de 20 de Março a 7 de Julho de 2023.
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