Ressalvando as eventuais omissões, impossíveis de evitar em trabalhos desta natureza, aqui fica o rol das melhores obras discográficas de música portuguesa que em 2008 fizeram anos de edição (em decénios ou múltiplos de quinquénios).
Procissão, de João Villaret
(LP, Columbia?/Valentim de Carvalho, 1963; CD, EMI-VC, 1991; Edições Valentim de Carvalho/Iplay, 2008)
Parecerá um pouco abusivo referenciar aqui João Villaret, um dos maiores actores portugueses de sempre, e que à partida pouco terá a ver com música. Mas não se pode esquecer que Villaret obteve extraordinário sucesso com os seus recitativos que, editados em disco, fizeram grande sucesso entre nós, e não sem motivo. Natural de Lisboa, onde nasceu a 10 de Maio de 1913, Villaret dedicou-se ao teatro depois de terminar o liceu e durante os anos trinta e quarenta obteve uma ascensão vertiginosa triunfando nos palcos do teatro declamado e ligeiro e no cinema. Na sétima arte, entrou nos seguintes filmes: "Bocage" (1936), de Leitão de Barros, onde encarnou o rei D. João VI; "O Pai Tirano" (1941), de António Lopes Ribeiro; "O Violino do João" (1944), de Braz Alves; "Inês de Castro" (1945), de Leitão de Barros; "Camões" (1946), também de Leitão de Barros, onde desempenhou o papel de D. João III; "Três Espelhos" (1947), co-produção luso-espanhola realizada por Ladisdao Vadja; "Frei Luís de Sousa" (1950), de António Lopes Ribeiro, onde encarnou a figura do aio Telmo Pais, talvez o seu desempenho mais sublime; e "O Primo Basílio" (1959), igualmente de António Lopes Ribeiro.
O seu amor pela poesia levou-a a tornar-se num dos recitadores mais extraordinários que Portugal conheceu, tendo inclusive deslumbrado o público da RTP com uma série de programas que aí apresentou. E o registo do seu recital no Teatro de São Luiz, lançado em álbum, ainda hoje se mantém disponível. João Villaret tinha também um especial apreço pelo teatro de revista, onde se estreou em 1941 para escândalo daqueles que consideravam o género uma arte menor. Em 1947, Aníbal Nazaré, António Porto e Nelson de Barros escrevem-lhe o "Fado Falado", que cria na revista "'Tá Bem ou Não 'Tá?", verdadeira peça de antologia da história da música e do teatro popular portugueses. Um recitativo sobre uma melodia de fado onde a letra, que jogava habilmente com a mitologia do género, era não cantada mas verdadeiramente "representada" por Villaret, que assim juntou ao cânone da música portuguesa mais um clássico. Outros êxitos, como "A Vida É um Corridinho", de 1952, ou a célebre "Procissão", de 1955, se lhe juntariam. João Villaret faleceu no apogeu da carreira, a 21 de Janeiro de 1961, vítima de diabetes.
Neste disco, além dos temas cantados ou semi-cantados como "Procissão", "Rosa Araújo" ou o belo e tocante "Santo António", João Villaret dá voz, com o seu estilo inconfundível e inimitável, a alguns dos maiores poetas de língua portuguesa, de Camões a Pessoa, passando por Almeida Garrett, Mário de Sá-Carneiro, José Régio, António Botto ou Carlos Queirós, sem esquecer importantes autores da lusofonia, como os cabo-verdianos Jorge Barbosa, Osvaldo Alcântara, Ovídio Martins ou Manuel Lopes.
Uma obra de referência obrigatória do património discográfico português!
Alinhamento:
1. Procissão (António Lopes Ribeiro)
2. Rosa Araújo (José Galhardo / João Nobre)
3. Quadras Populares (Popular)
4. Santo António (Fernando Santos / João Nobre)
5. Georges, Anda Ver Meu País de Marinheiros (António Nobre)
6. Sinfonia do Ribatejo (Fernando Santos / João Nobre)
7. Poema do Mar (Jorge Barbosa)
8. Escritório (Nuno de Miranda)
9. Círculo (Aguinaldo Fonseca)
10. Faminto (Osvaldo Alcântara)
11. Ignoto Deo (Ovídio Martins)
12. Poema de Quem Ficou (Manuel Lopes)
13. Abandono (Pedro C. de Azevedo)
14. Carta de Amor (José Régio)
15. Cinco Sentidos (Almeida Garrett)
16. Três Sonetos de Camões (Luís de Camões)
17. Serradura (Mário de Sá-Carneiro)
18. Abismo (Mário de Sá-Carneiro)
19. Homem Que Vens de Humanas Desventuras (António Botto)
20. Sol Nulo dos Dias Vãos (Fernando Pessoa)
21. Ó Tocadora de Harpa (Fernando Pessoa)
22. Da Hora Absurda (Fernando Pessoa)
23. Primeiro É a Angústia (Álvaro de Campos)
24. Profecia (Carlos Queirós)
25. Varina (Carlos Queirós)
Técnico de gravação – Hugo Ribeiro
Montagem digital (1991) – Miguel Gonçalves
Baladas de Coimbra, de José Afonso
(EP, Rapsódia, 1963; LP "Baladas e Fados de Coimbra", Edisco, 1982; CD "Os Vampiros", Edisco, 1987, 2006)
«Em Outubro de 1962, surgiu o segundo EP de José Afonso, com os temas "Menino de Oiro" (José Afonso), "Tenho Barcos, Tenho Remos" (popular / José Afonso), "No Lago do Breu" (José Afonso) e "Senhor Poeta" (Manuel Alegre-António Barahona / José Afonso). Cerca de um ano depois, ainda sob a etiqueta Rapsódia, foi lançado o terceiro EP de José Afonso, integrado por "Os Vampiros" (José Afonso), "Canção Vai... e Vem" (Paulo Armando / José Afonso), Menino do Bairro Negro (José Afonso) e As Pombas (José Afonso / Luís de Andrade 'Pignatelli'). Em face da apreensão deste disco pela Censura fascista e para, de certo modo, tentar minorar o prejuízo que daí adveio, a Rapsódia lançou, de seguida, um outro disco com "Canção Vai... e Vem" e "As Pombas", nas versões originais, e "Menino do Bairro Negro" e "Os Vampiros", em versões instrumentais [executadas à viola por Rui Pato].
Registe-se, desde já, o facto de os temas dos três primeiros EPs de José Afonso terem sido, em 1982, editados num álbum designado "Baladas e Fados de Coimbra", edição que se impunha mas que, na nossa opinião, foi mal cuidada e um tanto "apressada".» (Mário Correia, in "Música Popular Portuguesa: Um Ponto de Partida", Centelha/Mundo da Canção, 1984).
Posteriormente, à edição em CD desta compilação será dado o título genérico de "Os Vampiros".
Apesar de proibida, a balada "Os Vampiros", tornar-se-á, juntamente com a "Trova do Vento que Passa" (gravada no mesmo ano por Adriano Correia de Oliveira), um dos hinos da resistência ao regime ditatorial até ao 25 de Abril de 1974.Cite-se a propósito um texto do próprio José Afonso, sobre este seu tema emblemático, criado, curiosamente, sem a intenção vincadamente política que depois viria a adquirir: «Numa viagem que fiz a Coimbra apercebi-me da inutilidade de se cantar o cor-de-rosa e o bonitinho, muito em voga nas nossas composições radiofónicas e no nosso 'musichall' de exportação. Se lhe déssemos uma certa dignidade e lhe atribuíssemos, pela urgência dos temas tratados, um mínimo de valor educativo, conseguiríamos talvez fabricar um novo tipo de canção cuja actualidade poderia repercutir-se no espírito narcotizado do público, molestando-lhe a consciência adormecida em vez de o distrair. Foi essa a intenção que orientou a génese de "Vampiros", entidades destinadas ao desempenho duma função essencialmente laxante ao contrário do que poderá supor o ouvinte menos atento. A fauna hiper-nutrida de alguns parasitas do sangue alheio serviu de bode expiatório. Descarreguei a bílis e fiz uma canção para servir de pasto às aranhas e às moscas. Casualmente acabou-se-me o dinheiro e fiquei em Pombal com um amigo chamado [Manuel] Pité. A noite apanhou-nos desprevenidos e enregelados num pinhal que me lembrou o do rei e outros ambientes 'brr' herdados do Velho Testamento.» (José Afonso, in "Cantares", Nova Realidade, Tomar, 1966; Fora do Texto, 4.ª ed., Coimbra, 1995).
Alinhamento:
1. Os Vampiros
2. Canção Vai... e Vem (Paulo Armando sobre refrão popular algarvio / José Afonso)
3. Menino do Bairro Negro
4. As Pombas (José Afonso / Luís de Andrade 'Pignatelli')
Letras e músicas de José Afonso, excepto onde indicado.
José Afonso – voz
Rui Pato – viola
Capa – Fernando Aroso
Trova do Vento Que Passa, de Adriano Correia de Oliveira
(EP, Orfeu, 1963)
Em 1962, com o EP "Fados de Coimbra", Adriano Correia de Oliveira rompera com o tradicional acompanhamento de duas guitarras e duas violas, substituindo-o por guitarra e viola ou simplesmente por viola como é o caso de "Minha Mãe" (letra e música de José Afonso, sobre quadra popular) mas é com o EP "Trova do Vento Que Passa" que essa revolução estética verdadeiramente se afirma. Exclusivamente preenchido com poemas de Manuel Alegre ("Trova do Vento Que Passa", "Pensamento", "Capa Negra, Rosa Negra" e "Trova do Amor Lusíada"), o disco torna-se um êxito estrondoso, e faz de Adriano Correia de Oliveira, nas palavras do próprio Manuel Alegre, «um artista em permanente movimento, agitando as águas mais fundas do subterrâneo rio da História, lutando, solidário, ao lado dos que abriam os caboucos da Revolução dos Cravos».
Sobre a importância deste disco para a renovação da música portuguesa, é oportuno citar as palavras de Mário Correia: «Pela análise dos temas atrás referidos de imediato se constata que estava dada a ruptura (numa perspectiva de continuidade) com o fado de Coimbra e se estava decididamente numa nova fase da evolução da música popular portuguesa dos nossos dias: o movimento da "balada" ou "trova", para alguns; a fase do "canto de protesto" ou "canto de intervenção" para outros. Sem nos preocuparmos, pelo menos por agora, com a definição (necessária) dos conceitos, queremos apenas salientar os aspectos mais flagrantes deste "salto" qualitativo: — na tradição da utilização do texto elaborado, pelo fado de Coimbra, assiste-se a uma renovação da poesia portuguesa na canção, que assume uma feição de nítida contestação e resistência ao regime, um regime que impunha, recorde-se, a partir de 1961, uma guerra colonial e uma repressão extremamente violenta que nos domínios da canção leva algumas vozes importantes para o exílio (Manuel Alegre, Luís Cília, Daniel Filipe, Francisco Fanhais, Sérgio Godinho, José Mário Branco, entre muitos outros); — a progressiva abertura às formas musicais populares gradualmente entendidas como a raiz necessária para um "cancioneiro" vivo e actuante, quer em termos culturais quer em termos políticos e sociais; — o esboçar de uma alternativa válida ao canto velho, facto que o poder de então vislumbrou, como se pode comprovar pelas suas tentativas de esvaziar o conteúdo periférico da "balada", protegendo o intelectualismo oco e vazio, criando a noção de "baladeiro", com evidente sentido pejorativo e desinformativo, mediante a qual se pretendia reduzir as obras de José Afonso, Adriano Correia de Oliveira, Luís Cília, entre outros, a trabalhos sem importância que não interessavam às massas; — o contributo determinante para o estímulo criativo (simples, exigindo uma viola, infelizmente nem sempre bem utilizada) e a criação de condições mínimas para fazer chegar às gentes portuguesas as vozes que no exílio começavam a cantar (Luís Cília).» (Mário Correia, in "Música Popular Portuguesa: Um Ponto de Partida", Centelha/Mundo da Canção, 1984).
Alinhamento:
1. Trova do Vento Que Passa (música de António Portugal)
2. Pensamento
3. Capa Negra, Rosa Negra
4. Trova do Amor Lusíada
Poemas de Manuel Alegre
Músicas de António Portugal e Adriano Correia de Oliveira, excepto onde indicado.
Músicos:
Adriano Correia de Oliveira – voz
António Portugal – guitarra
Rui Pato – viola
Capa – Fernando Aroso
Cantares do Andarilho, de José Afonso
(LP, Orfeu, 1968, 1982; CD, Movieplay, 1987, 1996)
«Este disco, saído em 1968, marca o início da fase mais importante (até em termos de regularidade editorial) da obra de José Afonso. Depois das gravações de fados de Coimbra (1953 e 1956) e das primeiras baladas e canções de intervenção (1960-1964), José Afonso, com Zélia, a sua segunda mulher, parte para Moçambique, ao encontro dos filhos do seu primeiro casamento, dos seus pais e irmãos. Sobre esta e outras experiências e vivências africanas, importa o depoimento do cantor: "Se houve alguma coisa em África que me marcou definitivamente foi a realidade colonial. Quando eu parti ia preparado para enfrentá-la: sabia quais os seus contornos e o papel que me cabia como professor, quais os alunos que ia ensinar. Sabia também que ia ser um veículo de transmissão ideológica de uma classe dominante. Sabia que tudo ia ser muito mais violento que tudo quanto tinha experimentado até aqui. Custou-me muitíssimo ir para África, mas hoje não estou nada arrependido."
"O meu baptismo político começa em África. Estava a dois passos do oprimido".
Durante este período (1964-1967), e embora não tenha realizado novas gravações, nem por isso José Afonso deixou de escrever e de compor. É desse tempo, por exemplo, a música criada para a peça de Bertolt Brecht, "A Excepção e a Regra", cujos temas principais viria mais tarde a deixar registados em "Eu Vou Ser Como a Toupeira” (1972), "Coro dos Tribunais” (1974) e "Enquanto Há Força" (1978). Regressado a Portugal, José Afonso vai residir para Setúbal, decidido a ser professor, uma vez que não pensava seriamente em seguir uma carreira de músico profissional. Começa então a ser convidado para cantar em colectividades da margem sul e a ser solicitado para participar em actividades culturais académicas, sobretudo em Coimbra e em Lisboa. Depois de uma actuação no Cineclube do Barreiro – que levou à prisão os membros da sua direcção – José Afonso começou a ser frequentemente interrogado pela PIDE de Setúbal. Todo este processo culminou com a sua expulsão do ensino, o que lhe provocou uma dupla depressão: uma, financeira, por razões óbvias; e outra, psíquica, mais dura de roer, que o levou ao internamento numa clínica para tratamento psiquiátrico.
José Afonso, que anteriormente tinha gravado, com sucesso nacional, para editoras como a Rapsódia, Valentim de Carvalho e Ofir, baladas e canções de intervenção inesquecíveis como a "Balada do Outono", "Menino d'Oiro", "Os Vampiros", "No Lago do Breu" e muitas outras, vê subitamente essas portas a fecharem-se: ninguém queria as canções de José Afonso; porque ninguém queria confrontar-se com a PIDE, que perseguia o cantor com toda a sua conhecida sanha. Mas, felizmente, nem todos as portas se fecharam. Numa derradeira tentativa, o António Portugal e o Rui Pato foram ao Porto, falar com o Arnaldo Trindade, para cuja editora – Discos Orfeu – já o Adriano gravava. Arnaldo Trindade aceitou, assumiu os riscos, e fez ao Zeca uma proposta 'sui generis': a troco de uma mensalidade [15 mil escudos], o cantor comprometia-se a gravar um LP por ano. E, com isto, se matavam dois coelhos duma só cajadada: o Zeca ficava com a garantia de gravar e, para além disso, adquiria também alguma estabilidade financeira. Este acordo, que vigorou de 1968 até 1981 (isto é, durante 14 anos), proporcionou a edição dos 11 LP's Orfeu de José Afonso, cerca de 75% da sua obra total original. E foi assim que, em 1968, José Afonso, acompanhado de Rui Pato, entrou nos Estúdios Polysom, em Lisboa, onde Moreno Pinto, o técnico de som, tentava fazer prodígios com uma máquina obsoleta de 4 pistas. Aí se gravaram os "Cantares do Andarilho". De todos os temas, um deles – "Vejam Bem", aliás um dos maiores êxitos do disco – tem uma história que merece ser contada e que o Rui Pato (que me ajudou nestes textos, e a quem quero agradecer) há tempos me relatou, para surpresa minha. Em 1967, o Zeca queria concorrer – e concorreu! – ao Festival RTP da Canção, exactamente com "Vejam Bem". Apareceu em Coimbra, falou com o Rui Pato e, como o regulamento do festival exigia a apresentação de uma partitura com a parte de piano – que nenhum deles sabia escrever – lá conseguiram desenrascar a coisa pedindo a um músico, o Sr. Pires, que pusesse as notas na pauta. Assim se fez. Como o concurso era sob pseudónimo, o Zeca estava convencido de que a canção poderia ser apurada pelo júri de selecção. Mas não foi. E desta vez não foi por causa da Censura, mas tão simplesmente por culpa da surdez auditiva e mental de um júri que não chegou a perceber que estava a passar ao lado de uma das mais belas canções da música portuguesa."Cantares do Andarilho" marcou, assim, o início de uma série de gravações que iriam erigir a obra musical e poética de José Afonso a mares e marés nunca antes navegados na música popular portuguesa. Mas este disco marcou também a confirmação do talento de Rui Pato, viola solitária e solidária com José Afonso ao longo de muitos anos e canções. E também, na dimensão audiovisual, o som dedicado do Moreno Pinto e as capas do José Santa-Bárbara. Ambos, com o seu talento, foram também companheiros do Zeca até ao fim das caminhadas do andarilho. Na edição original deste disco, o trabalho foi ainda enriquecido pelo texto de apresentação de Urbano Tavares Rodrigues, a quem passo a palavra:
"A noite das lágrimas e da raiva. A madrugada das carícias e do sorriso. O dia claro da festa colectiva. Tudo isso se encontra na poesia cantada de José Afonso, cantada por José Afonso. A luminosa gargalhada do povo, o seu suor de sangue, nas horas de esforço ingrato e de absurda expiação. O lirismo primaveril e feminino das bailias que não morreram. E o orvalho da esperança. E os ecos de um grande coro de fraternidade sonhada e assumida. José Afonso, trovador, é o mais puro veio de água que torna o presente em futuro, que à tradição arranca a chama do amanhã. No tumulto da contestação, na marcha de mãos dadas, com flores entre os lábios, é ele a figura de proa, o arauto, o aedo, o humilde, o múltiplo, o doce, o soberbo cantador da revolta e da bonança. Singelo José Afonso do Algarve doirado, dos barcos de vela panda, do Alentejo infinito sem redenção, dos pinhais, da melancolia, dos amores sem medida, do sabor de ser irmão... José Afonso é a primeira voz da massa que avança em lume de vaga, é a mais alta crista e a mais terna faúlha de luar na praia cólera da poesia, da balada nova."» (José Niza, in livrete da edição de 1996).
Sobre este belíssimo álbum de José Afonso, também vale a pena atentar na apreciação de Viriato Teles: «Nestes Cantares, Zeca alia a sua criatividade à mais genuína inspiração popular, quer através da utilização de melodias tradicionais (como "Senhora do Almortão" ou "Resineiro Engraçado", posteriormente gravado também por Amália Rodrigues), quer tomando-as apenas como um ponto de partida para a criação de novos temas, mantendo, no entanto, a sua estrutura formal. São os casos, por exemplo, de "Natal dos Simples", da "Balada do Sino" ou dessa comovente "Canção de Embalar", sem dúvida um dos mais belos temas de Zeca e, por que não dizê-lo, do nosso cancioneiro popular. "Cantares do Andarilho" regista ainda uma incursão de José Afonso na poesia de Camões ("Endechas a Bárbara Escrava"), um tema da fase que o próprio Zeca classificou de 'franciscana' ("O Tecto na Montanha") e também as primeiras experiências de inspiração vagamente surrealista ("Chamaram-me Cigano") ao jeito de Bettencourt. Regista, por outro lado, uma canção que, a par de "Os Vampiros", da "Trova do Vento que Passa" e, mais tarde, de "Grândola, Vila Morena", vai tornar-se uma espécie de hino da geração de 70: "Vejam Bem".» (Viriato Teles).
Composto originalmente para o filme "O Anúncio", "Vejam Bem" adquire um significado mais claro à luz desta sinopse do argumento: «Um homem procura emprego num escritório, dirige-se ao gerente de uma firma conceituada, a capatazes e mestres-de-obra. Em vão! Privado de fundos, vê-se obrigado a dormir ao relento e a roubar para comer. Na retrete de um restaurante, único lugar onde não é visto, devora apressadamente dois ovos que metera ao bolso, aproveitando-se da algazarra geral.» (in "Cantares", de José Afonso, Nova Realidade, Tomar, 1966; Fora do Texto, 4.ª ed., Coimbra, 1995).
Alinhamento:
1. Natal dos Simples
2. Balada do Sino
3. Resineiro Engraçado (Popular – Beira Alta)
4. Canção de Embalar
5. O Cavaleiro e o Anjo
6. Saudadinha (Popular – Açores)
7. Tecto na Montanha
8. Endechas a Bárbara Escrava (poema de Luís de Camões)
9. Chamaram-me Cigano
10. Senhora do Almortão (Popular – Beira Baixa)
11. Vejam Bem
12. Cantares de Andarilho (letra de António Quadros - pintor)
Letras e músicas de José Afonso, excepto onde indicado.
Músicos:
José Afonso – voz
Rui Pato – viola
Gravado nos Estúdios Polysom, Lisboa, em 1968
Técnico de som – Moreno Pinto
Capa original – Fernando Aroso
Capa da 2.ª edição (1982) – José Santa-Bárbara
Pré-Histórias, de Sérgio Godinho
(LP, Guilda da Música/Sassetti, 1973; CD, Philips/Polygram, 1990; CD, Universal Music, 2001)
«Um ano volvido sobre a falada e reconhecida estreia em "Os Sobreviventes" (1972), o segundo álbum de Sérgio Godinho evidencia claros sinais de evolução e sintomas de desejo de constante mudança que o tempo tornaria característica regular em toda a sua obra posterior. Depois de um relativamente longo tempo de residência em Paris, com alguns episódios pelo meio (entre os quais a sua primeira prisão, no Brasil, quando se tinha juntado ao Living Theatre), Sérgio Godinho encontra novo porto na Holanda, onde, em pleno processo de pedido de asilo político, chegou a levantar a hipótese de fazer um curso de cinema, cumprindo assim um sonho antigo, anterior mesmo aos dias da música como protagonista. Mas a língua não ajudou, e as canções continuaram a falar mais alto. A sua ligação com Sheila, canadiana que colaborou nos seus primeiros discos, levá-lo-ia ao Canadá... "Pré-Histórias" é, assim, um disco viajado. Algumas canções começaram a nascer ainda em Paris (como "A Noite Passada", que foi aí começada), outras no Brasil (entre elas "Barnabé", que deu os primeiros passos em Ouro Preto), as últimas já na Holanda (como "O Homem dos Sete Instrumentos"). Por razões pragmáticas "Pré-Histórias" acabou por ser gravado em França, no Chateau d'Hérouville, tal como o primeiro álbum. O disco não é verbal nem tematicamente tão "denso" quanto o primeiro. Mantém-se viva uma natural, não amordaçada e incontornável consciência política ansiosa de urgentes transformações. "Barnabé" mostra nas entrelinhas mais um novo retrato de realidades lusas em tempos de agonia do regime. Mas o progressivo afastamento de Portugal, sobretudo no período canadiano, onde o contacto com as realidades portuguesas era, naturalmente, menos frequente, impede um acompanhamento a par e passo dos acontecimentos. Talvez por isso mesmo outros espaços entram em cena. Um deles, a necessidade do exercício da memória e do garantir da ligação a raízes, expresso em "Porto Porto" (uma espécie de "pai" de "O Porto Aqui Tão Perto"), um dinâmico percurso virtual e simbólico, feito à distância, pelas ruas de uma cidade, entre gentes, humores e lugares que a escrita revela familiares e antigos. Mais que em "Os Sobreviventes", o disco reflecte uma atenção maior a elementos da música tradicional portuguesa. Um fascínio pelo trabalho de Michel Giacometti, uma admiração continuada pela obra de José Afonso e uma confessa adesão ao lado "pícaro" de algumas canções de António Mafra sugeriram caminhos, que a personalidade de Sérgio Godinho talhou de um modo muito particular, num todo onde as influências folk também foram marcantes. Em "O'Neill" revela-se a admiração por uma obra poética: a de Alexandre O'Neill, de quem Sérgio Godinho canta palavras para as quais compôs música sua. Um dos clássicos maiores de toda a obra de Sérgio Godinho surge no alinhamento deste seu segundo álbum. Trata-se de "A Noite Passada", uma das suas mais belas canções de amor que, de certa forma, serviu de mote ao baptismo do seu primeiro álbum ao vivo ("Noites Passadas"), em 1995. Incrivelmente belo é ainda "Pode Alguém Ser Quem Não É", a única canção de toda a sua discografia que mais tarde mereceu nova versão de estúdio, registada com arranjo diferente em "Na Vida Real" (1986). Tal coma acontecera no álbum de estreia, "Pré-Histórias" foi um disco premiado, uma vez mais pela Casa da Imprensa, que o aponta como "Disco do ano". De comum, ambos os discos tiveram igual sorte junto ao mercado português, isto é, foram retirados pela censura pouco depois das respectivas edições. Jorge Constante Pereira, futuro colaborador regular de Sérgio Godinho, sobretudo em trabalhos para públicos infantis, é uma das personagens com a história mais curiosa na criação deste disco. Amigo desde os dias de Genebra, Sérgio Godinho tinha-o proposto para a escrita dos arranjos, situação que a editora (Sassetti) rejeitou na ressaca de um artigo por este escrito então no "Diário de Lisboa". Firme na concretização da vontade, a colaboração foi mesmo assim em frente, apesar de não "oficial" nem na extensão inicialmente desejada. Para contornar a situação, Jorge Constante Pereira fez, em estúdio, o papel de um amigo suíço. E, para seu nome a creditar na capa, nada melhor que Moillesullaz, nome de uma linha de eléctrico em Genebra. Nessa mesma capa o título do álbum mostrava "Pré-Histórias". Estávamos em 1973 e, depois de um álbum com o título "Os Sobreviventes", o díptico ante-revolução parecia premonitório do tiro a quente, à queima-roupa, que se seguiria depois de Abril de 74.» (Nuno Galopim, Março de 2001).
Alinhamento:
1. Barnabé
2. A Noite Passada
3. Aprendi a Amar
4. Eh! Meu irmão (ou mais uma canção de medo)
5. Porto, Porto
6. O'Neill (alguns poemas com endereço)
7. Pode Alguém Ser Quem Não É
8. Até Domingo Que Vem
9. Já a Vista me Fraqueja
10. O Homem dos 7 Instrumentos
Letras e músicas de Sérgio Godinho, excepto o tema 6 que tem poema de Alexandre O'Neill.
Músicos:
Sérgio Godinho – voz e viola
Christian Padovan – viola baixo eléctrica
Michel Delaporte – percussões
Jean Moillesullaz (Jorge Constante Pereira) – flauta e xilofone
Sheila Charlesworth, Carlos Vaz, Maureen Loadsman – vozes
Gravado no Strawbery Studio, Chateau d'Hérouville (perto de Paris), em Julho de 1972
Técnico de som – Gilles Sallé (?)
Desenho da capa – José Soares
Venham Mais Cinco, de José Afonso
(LP, Orfeu, 1973; CD, Movieplay, 1987, 1996)
«"Venham Mais Cinco" é o segundo álbum "francês" com arranjos e direcção musical de José Mário Branco e é um dos pontos mais altos da carreira discográfica de José Afonso. É inútil discutir se é melhor que "Cantigas do Maio", tanto mais que é evidente a sua complementaridade. Partindo das mesmas premissas de extrapolação da balada para outras paisagens musicais, o disco de 1973 triplicou o número de músicos empregues dois anos antes, 18 no total. José Niza recorda a razão de tão grande número de convidados: "É o disco com mais músicos porque cada canção foi encenada de acordo com determinado tipo de sonoridades e de instrumentos." José Mário Branco imprimiu a "Venham Mais Cinco" o seu estilo, tal como o fizera em "Cantigas do Maio". Recorreu de novo a Michel Delaporte e ao seu arsenal de percussões, mas num contexto de diversificação de horizontes sonoros, acrescentou instrumentos como o violino, o violoncelo, a harpa e o saxofone, até então ausentes na discografia de Zeca Afonso, enquanto este, por seu turno, introduziu um elemento estranho na paleta do seu director musical, sob a figura do guitarrista brasileiro Yório Gonçalves. A unidade musical que formava o reportório de "Cantigas do Maio" deu lugar a uma diversidade em "Venham Mais Cinco", onde as suas intuições foram exploradas numa multiplicidade de direcções. E à maior variação sonora correspondeu logicamente uma mais declarada liberdade poética. "Venham Mais Cinco" é um típico hino dos anos de resistência, "Adeus, ó Serra da Lapa" será uma forma mais lírica de dizer o mesmo, mas já "A Formiga no Carreiro" cruza a evidente metáfora de insurreição no refrão com a fábula surrealista dos versos. Antes, José Afonso já cortejara o paradoxo, mas este é o álbum em que mais se afastou do discurso inteligível. Temas como "Gastão era perfeito" e "Nefretite Não Tinha Papeira" revelam um humor corrosivo, mas também desconcertante, enquanto "Paz, Poeta e Pombas" é quase um poema fonético. Foi aqui que José Afonso celebrou por excelência a desordem do discurso verbal e musical, porventura a forma superlativa de sagrar a revolução. E por isso mesmo, se "Cantigas do Maio" é o seu álbum mais aclamado, "Venham Mais Cinco" é uma das suas obras mais enigmáticas e perenes, ontem resistente a um regime político, hoje a uma cultural boçal.» (Luís Maio, in "Os Melhores Álbuns da Música Popular Portuguesa: 1960-1997", Público/FNAC, 1998).
Refira-se ainda, a título de curiosidade, que alguns temas deste álbum, entre os quais "Era Um Redondo Vocábulo" (que muitos consideram a mais sublime composição de José Afonso), foram concebidos durante o período em que o autor esteve detido na prisão de Caxias, em Abril e Maio de 1973.
Alinhamento:
1. Rio Largo de Profundis
2. Era Um Redondo Vocábulo
3. Nefretite Não Tinha Papeira
4. Adeus, ó Serra da Lapa
5. Venham Mais Cinco
6. A Formiga no Carreiro
1. Que Amor Não Me Engana
8. Paz, Poeta e Pombas
9. Se Voaras Mais ao Perto
10. Gastão Era Perfeito
Letras e músicas de José Afonso
Instrumentos / Músicos:
Viola – Yório Gonçalves
- Tema 1:
Fole do João – José Mário Branco
Violino – Michel Cron
Percussões – Michel Delaporte e José Mário Branco
Palmas – Mário Jorge Bonito, Jorge Luz, José Mário Branco e José Afonso
- Tema 2:
Tampura, cuíca, roca e pratos – Michel Delaporte
Piano – José Mário Branco
- Tema 3:
Bombo, pandeiro, reco-reco, a-go-go e chocalho – Michel Delaporte
Voz do alto – José Mário Branco
Coros – José Mário Branco e José Afonso
- Tema 4:
Trompas – Alain Noel, André Carradot e Michel Bergès
- Tema 5:
Bombo, maracas e tumbadora – Michel Delaporte
Coro a quatro vozes – José Mário Branco
Voz feminina Janine De Waleymie
- Tema 6:
Harpa – Jean Claude Dubois
Quena – Ricardo Galeazzi
Pandeireta – José Mário Branco
Coro das formigas – José Mário Branco
- Tema 7:
Harpa – Jean Claude Dubois
Flauta – Lockood
Violoncelo – Benedetti
- Tema 8:
Tumbadora, chocalho, reco-reco, maracas, campainha e tarola – Michel Delaporte
Órgão Hammond – José Mário Branco
Trompetes – Jean Claude Naude e Michel Buzon
Saxofone tenor – Michel Grenu
Trombone – Marcel Perdigon
Coros – José Mário Branco
- Tema 9:
Tambor – Michel Delaporte
Coros – José Afonso e José Mário Branco
- Tema 10:
Piano Pipper e efeitos de sopro – José Mário Branco
Arranjos e direcção musical – José Mário Branco
Produção – José Niza
Gravado no Estúdio Aquarium, Paris, de 10 a 20 de Outubro de 1973
Técnico de som – Gilles Sallé
Capa – José Santa-Bárbara
Guitarra Toca Baixinho, de Tristão da Silva
(LP, Tecla, 1973; CD, Movieplay, 1999)
Nascido na Penha de França, Lisboa, a 18 de Julho de 1927, Manuel Augusto Martins Tristão da Silva transportará consigo, ao longo da vida, uma identidade, um 'pathos' genuinamente lisboeta. Começa a cantar fado castiço aos dez anos de idade, nas matinées dominicais do Café Mondego, onde ganha o epítote de "Miúdo do Alto do Pina". Assim se manterá por largos anos, repartindo esta actividade amadora com profissões próprias dos rapazes dos bairros pobres da capital: primeiro marçano, depois marceneiro.Antevê na rádio o grande salto para a consagração. Para tanto transforma o seu repertório, aproximando-se do fado-canção, então mais aceite nos microfones da Emissora Nacional. Porém, será sucessivamente reprovado na sua admissão à estação oficial. Por influência e acção do maestro Belo Marques fará uma série de gravações que, somadas ao repentino e esmagador êxito de "Nem às Paredes Confesso" (1954) e de "Maria Morena" contribuíram para que a prestação de provas à Emissora fosse finalmente bem sucedida. Pouco depois, é o segundo artista português a actuar na RTP, num programa transmitido da Feira Popular de Lisboa, à data instalada no terreno onde hoje se situa a Fundação Calouste Gulbenkian. A carreira de Tristão da Silva estava definitivamente lançada, assente num estilo muito pessoal: voz de base grave, com uma bela tessitura, interpretação repousada, estilo romântico. Com "Da Janela do Meu Quarto", "Calçada da Glória", "Aquela Janela Virada p'ró Mar", "Ai se os Meus Olhos Falassem", o cantor estabelecerá uma sólida reputação e conquistará um público fiel, não só em Portugal como em África, no Brasil e noutros países da América Latina. Veio a falecer em Lisboa, a 10 de Janeiro de 1978, na sequência de um desastre de automóvel.
Alinhamento:
1. Guitarra Toca Baixinho (Marcello Marrochi, Di-Bari Nicola, Tariciotti Vittorio, Franco Evangelist; versão portuguesa de Francisco José)
2. Carroça da Vida (Frederico de Brito)
3. Em Que Mundos Nasci (Artur Ribeiro / Joaquim Campos)
4. Quem Faz de Conta (Jerónimo Bragança / Jorge Costa Pinto)
5. Aquela Janela Virada p'ró Mar (Frederico de Brito)
6. Gostei de Ti (Guilherme Pereira da Rosa / Jorge Costa Pinto)
7. O Fado Nem Sempre é Fado (Guilherme Pereira da Rosa / Popular)
8. Ando a Fingir (Matos Maia / Alfredo Duarte "Merceneiro")
9. Grão de Areia (António Rocha / Casimiro Ramos)
10. O Cacilheiro (César de Oliveira e Paulo Fonseca / Carlos Dias)
11. Nem às Paredes Confesso (Artur Ribeiro / Ferrer Trindade e Max)
12. Ando à Procura de Mim (Aníbal Nazaré / Popular – Fado Menor)
Tristão da Silva – voz
Conjunto de guitarras – António Chainho
Arranjos e direcção de orquestra – Jorge Costa Pinto
Mestre, de Petrus Castrus
(LP, Sassetti, 1973; CD, CNM, 2007)
«O projecto musical de Pedro Castro surgiu logo no princípio da década de 70, numa recusa do rock quadrado que se vinha praticando na década anterior e que ele próprio protagonizara, na adolescência. Antigo guitarrista dos Sheiks e dos Chinchilas, Pedro Castro criou os Petrus Castrus com o seu irmão, José Castro. A intenção era produzir uma música mais reflectida, que atribuísse um suplemento de sentido à palavra, fugindo instrumentalmente aos 'clichés' do que se vinha praticando, ainda muito arreigado ao rock'n'rol (dos anos 50 e ao som dos Beatles de contornos imberbes (ou seja, anteriores a "Revolver" e mesmo a "Rubber Soul"). Os irmãos Castro convidaram João Seixas e Júlio Pereira, dois jovens músicos dos Play-Boys (grupo que praticava uma música mais violenta do que então se usava, podendo aqui encontrar-se a génese do 'heavy' português). O quinto elemento, Rui Reis, era um pianista de formação clássica. Esta união de naturezas, formações e intenções divergentes foi o fermento para a criação da primeira banda de rock progressivo em Portugal. O rock sinfónico dos Tantra ou de José Cid seria a consequência desta primeira abordagem. É certo que também existiam José Cid e o Quarteto 1111, os Música Novarum e a Filarmónica Fraude (de Nuno Rodrigues e António Pinho respectivamente). Estes últimos foram mesmo os precursores da sátira que depois os Petrus Castrus praticaram. O recurso ao surrealismo, ao absurdo e até a um inesperado calão era uma estratégia de choque solidificada pela intencionalidade da construção musical, em que o esmero da execução e das estruturas de composição era pensado, e não amanhado ao som do que era usual fazer. Em 1971 é lançado pela Valentim de Carvalho o primeiro EP da banda, incluindo os temas "Marasmo", "Ovo de Chumbo" e "Batucada vulgaris". No ano seguinte, com "Tudo isto e tudo mais", "Familiada" e "Moscas, sol e gente", fortalece-se o pendor corrosivo e social, que a banda explorará com outras possibilidades no álbum "Mestre", valendo-se da poesia de Ary dos Santos, Bocage e, mestre dos mestres, Alexandre O'Neill. Proposto à Sassetti, o álbum será gravado, em Novembro de 1972, nos estúdios Strawberry do Castelo de Hérouville, em França, onde José Afonso e Sérgio Godinho também gravaram.
Nos estúdios Strawberry trabalha então José Mário Branco. Petrus Castrus não é propriamente um dos projectos em Mário Branco participou activamente, como aconteceu com "Cantigas do Maio" ou "Os Sobreviventes". A sua presença foi no entanto determinante para um músico que então integrava o grupo: Júlio Pereira. Este primeiro contacto será a semente da completa reformulação musical do seu trabalho, que só acontecerá a solo já na segunda metade dos anos 70, primeiro parcelarmente, com "Fernandinho Vai ao Vinho" e depois, defintivamente com "Lisboémia". No texto da contracapa, Tito Lívio refere as influências dos Emerson, Lake and Palmer, Yes, Procol Harum, Pink Floyd e mesmo Paul McCartney, adiantando que o primeiro álbum dos Petrus Castrus se distingue por ser "um trabalho consciente, lúcido e intencional, patente numa instrumentação significativa e frequentemente critica".
"A pança do patrão não lhe cabe na pele/ A mulher do gerente não lhe cabe na cama./ Limitada e anónima apenas é fiel/ Ao leite condensado que o capital derrama." Tal como o poema "S.A.R.L.", de Ary dos Santos, "Mestre" é um álbum apertado e constrangido. Há uma vontade de afirmação pela diferença, mas esta música "não cabe" na sua realidade. Daí a emproada vocação para descrever de forma enfática o país, quer através de personagens tutelares ("Mestre"), quer através da pobreza cega ("Pátria Amada"). Em "Tiahuanaco", o terceiro e último tema com texto de Pedro Castro, afirma-se: "Onde estão os senhores do mundo,/ Os portadores da verdade,/ Vindos do fundo do Céu?/ Onde estão,/ Se a verdade morreu?" A melancolia sem redenção possível deste "país relativo" sublinha-se no próprio futuro dos Petrus Castrus. Depois do 25 de Abril o grupo interrompeu a actividade. "Não estava para funcionar em termos militância política", esclareceu Pedro Castro (em "25 Anos de Rock'n Portugal", de António A. Duarte). Em 1978, os irmãos Castro e o baterista Urbano Oliveira (com os convidados Lena d'Água, Nuno Rodrigues, Fernando Girão e o baixista Rui Serrão) ainda gravam uma ópera-rock, "Ascensão e Queda". Segundo Júlio Pereira, que abandonou o grupo depois do álbum, Rui Reis será músico de hotel, provavelmente na Suíça. José Castro, depois de se formar em Economia, tornou-se missionário e partiu para o Brasil. Pedro Castro, engenheiro químico, ainda esteve ligado à produção de espectáculos. É estranha, a história de dois irmãos que procuraram fazer música, mas não carreira. "Porque os outros vão à sombra dos abrigos/ E tu vais de mãos dadas com os perigos/ Porque os outros calculam mas tu não." Será esta a razão, aventada por Sophia de Mello Breyner em "Porque"? Que sentimento triste, o deste "país por conhecer, por escrever, por ler...» (Rui Catalão, in "Os Melhores Álbuns da Música Popular Portuguesa: 1960-1997", Público/FNAC, 1998).
Alinhamento:
1. Mestre
2. Pátria Amada
3. Porque (Sophia de Mello Breyner Andresen / Rui Reis)
4. País Relativo (poema de Alexandre O'Neill)
5. Macaco (poema de Alexandre O'Neill)
6. S.A.R.L. (poema de Ary dos Santos)
7. Pasárgada (poema de Manuel Bandeira)
8. Velho Avarento (poema de Bocage)
9. Tiahuanaco
10. História do Azul do Mar (letra de António Cena)
11. Só Mais Nada (poema de Fernando Pessoa)
Letras e músicas de José Castro e Pedro Castro, excepto onde indicado.
Músicos:
Pedro Castro – viola baixo, guitarras acústicas, voz, kazoo
José Castro – piano, xilofone, voz
Rui Reis – piano, órgão, cravo
Júlio Pereira – viola solo, baixo
João Seixas – bateria, percussão
José Mário Branco – xilofone (em "S.A.R.L.")
Gravado no Strawberry Studio, Chateau d'Hérouville (perto de Paris), em Novembro de 1972
Técnico de som – Gilles Sallé
Capa – José Soares
Fotos – Vidal
Nota: Na edição em CD (CNM, 2007), ao alinhamento original foram adicionados dois temas bónus gravados em 1977 – "Agente Altamente Secreto" e de "Pouca Terra" –, previstos para edição em single mas que acabariam por permanecer inéditos.
Foi também acrescentado um segundo CD constituído por um conjunto de 16 novas composições da autoria de José Castro, gravadas entre 2000 e 2005, com a colaboração de Pedro Castro e do seu filho, Luís Filipe Castro.
Faixas bónus no CD 1:
12. Agente Altamente Secreto
13. Pouca Terra
CD 2:
1. Sonhar com Leões
2. Não Cobiçarás (a Mulher do Próximo)
3. Toni, o Estripador
4. Quando o Challenger Explodiu
5. A Verdade Desportiva
6. Dedo no Gatilho
7. Urgência Hospitalar
8. Amor e Ódio
9. Seita Violenta
10. Perder um Filho
11. Esperança de Vida (Idade Mérdea)
12. Chamei por Ti
13. Cervantes Não Existe
14. Morte Anunciada dum Taxista Obeso
15. Saudades dum Chato
16. Confesso Que Errei
Remasterização – José Fortes
Encontro, de Amália Rodrigues & Don Byas
(LP, Columbia/VC, 1973; CD, EMI-VC, 1988; Edições Valentim de Carvalho/Som Livre, 2007)
«"Don Byas passou por Lisboa várias vezes. Eu e ele éramos muito amigos, e ele chegou mesmo a participar no meu casamento. O disco do Don com a Amália foi uma ideia que eu tive com a intenção de ter um músico de jazz ligado ao fado." É assim que Luiz Villas-Boas recorda o "Encontro" por ele promovido em 1968 entre o sax-tenor norte-americano e a cantora de fado portuguesa. O disco saiu acompanhado de um texto de Villas Boas em que o seu projecto era assim esclarecido: "Pensámos numa (...) hipótese: a de juntarmos ao grupo normal de acompanhamento de fado (guitarras portuguesas e violas) um elemento improvisador que conferisse aos temas uma certa espontaneidade, bem como uma valorização melódica e harmónica, e que por sua vez agisse como um estímulo à capacidade interpretativa de Amália." Hoje é, porém, difícil saber como e quando ocorreram as gravações. Mesmo Vítor Pavão dos Santos, o grande especialista em Amália, tem dúvidas a esse respeito: "Não sei bem, mas penso que a Amália me contou que o Don Byas tinha cá vindo para um festival de jazz, e foi no dia em que ele se ia embora que o disco foi gravado." Em qualquer caso, o saxofonista terá tido pouco tempo para ensaiar o encontro, confirma Villas-Boas: "Eles não se conheciam. Eu levei o Byas à Amália, mas ele agarrou-se facilmente ao reportório dela, porque era um grande músico. Em relação à Amália, ela estava um bocado apreensiva, porque não era a área dela." A falta de preparação e demais receios poderão ter determinado a escolha do reportório de 12 fados. Diz Pavão dos Santos: "Por um lado, há uma coisas que são um bocado mais conhecidas, mesmo internacionalmente, por causa do Don Byas, como seja o 'Lisboa Antiga'. Por outro, há coisas como 'Cansaço', que era uma das coisas que ela mais gostava de cantar." Partindo destas premissas, "Encontro" soa como um projecto extraordinariamente aliciante. Então por que razão esteve o lançamento do disco congelado de 1968 até 1973, sendo o álbum lançado já depois do desaparecimento de Don Byas? Villas Boas lamenta o atraso, mas não vai muito além disso: "Fizeram-se as gravações, depois nem sei muito bem o que é que aconteceu. São estas coisas à portuguesa. Na altura, fez-se força, mas no fim de contas deixaram o projecto pendurado e até se disseram coisas que não correspondiam à verdade." Pavão dos Santos já avança um pouco mais, embora as razões precisas também lhe escapem: "Na Valentim de Carvalho, ou na Amália, ou mesmo em ambas as partes houve uma certa dúvida se interessava que o disco saísse ou não. Dúvidas que se levantaram pela ligação ao jazz, que poderia parecer pretensiosa e fazer confusão ao público dela. Mas, segundo a Amália me contou, várias pessoas também lhe disseram que ela cantava muito bem nesse disco. Até me lembro de ela me contar uma vez que foi um acompanhador que lhe disse que dificilmente cantaria melhor. Nessa altura, quem tratava da Amália na Valentim de Carvalho era o João Belchior Viegas e ele sempre foi um grande defensor desse disco." Depois disso, e embora muito se tenha falado da capacidade de improviso de Amália, sugerindo analogias com o jazz, a fadista não voltaria a experimentar esse tipo de conexões. Com uma excepção, segundo Vítor Pavão dos Santos: "Uma das melhores aproximações que ela tem ao jazz é no 'Porompompero', gravação feita em Itália em 1978, que surgiu em Portugal integrada num disco ao vivo lançado por ocasião das comemorações do cinquentenário (1995)."
Fossem quais fossem as razões objectivas que motivaram o adiamento deste disco por cinco anos, haverá uma razão psicológica subjacente: "Encontro" seria, em 1968, uma ideia demasiado ousada para Portugal. Juntar a maior cantora de fado deste século e um músico de jazz sob um conceito de improviso era pôr em causa as convenções do género e correr o risco de o público fiel à cantora não entender o seu gesto — embora antes, Amália já tivesse forçado com êxito a estreiteza de vistas dos meios fadistas tradicionais.
Seria talvez um escândalo, mesmo em 1973, quando "Encontro" acabou por ser lançado, se o cruzamento entre o fado e o jazz tivesse sido levado ao limite, ou se a osmose idealizada por Villas Boas sob a forma de improviso a dois tivesse realmente ocorrido. Em vez disso, porém, o que aconteceu foi um disco de fados clássicos cantados por Amália no seu estilo peculiar, onde Don Byas é introduzido quase marginalmente. Uma vez ou outra, o sax-tenor esboça curtos solos, mas mais frequentemente secunda e decalca com inegável elegância e não inferior discrição as melodias desempenhadas pelas guitarras. Não é um desencontro, antes um encontro em que um dos interlocutores tem a seu cargo a maior parte das despesas da conversa e o outro se limita a pontuar-lhe o discurso, prolongando-lhe as ideias ou dando-lhe as deixas para continuar a falar.
Então, o que tem "Encontro" de especial? Justamente a eloquência e o requinte do discurso de Amália, além de lançar pistas para um futuro diálogo, mais fundo, entre o jazz e o fado. Fosse pelo desafio da presença de Byas, fosse tão-só pela inspiração do momento — e é preciso lembrar que estas 12 canções foram gravadas de uma assentada, sem preparação —, Amália registou aqui versões definitivas de alguns dos fados que a imortalizaram. "Encontro" vale sobretudo por isso, ou como inefável encontro da fadista consigo própria.» (Luís Maio, in "Os Melhores Álbuns da Música Popular Portuguesa: 1960-1997", Público/FNAC, 1998).
Alinhamento:
1. Povo Que Lavas no Rio [Pedro Homem de Mello / Joaquim Campos (Fado Vitória)]
2. Solidão (David Mourão-Ferreira / Francisco Ferrer Trindade)
3. Estranha Forma de Vida [Amália Rodrigues / Alfredo Duarte "Marceneiro" (Fado Bailado)]
4. Libertação (David Mourão-Ferreira / Santos Moreira)
5. Cansaço [Luís Macedo / Joaquim Campos (Fado Tango)]
6. Rua do Capelão (João Alves Coelho / Frederico de Freitas)
7. Ai Mouraria (Amadeu do Vale / Frederico Valério)
8. Não É Desgraça Ser Pobre (Norberto de Araújo / Santos Moreira)
9. Coimbra (José Galhardo / Raul Ferrão)
10. Lisboa Antiga (José Galhardo - Amadeu do Vale / Raul Portela)
11. Há Festa na Mouraria (Gabriel de Oliveira / Alfredo Duarte "Marceneiro")
12. Maldição [Armando Vieira Pinto / Alfredo Duarte "Marceneiro" (Fado Cravo)]
Músicos:
Amália Rodrigues – voz
Don Byas – saxofone
José Fontes Rocha – 1.ª guitarra portuguesa
Carlos Gonçalves – 2.ª guitarra portuguesa
Pedro Leal – viola
Joel Pina – viola baixo
Gravado nos Estúdios Valentim de Carvalho, em 1968
Técnico de som – Hugo Ribeiro
Montagem digital (1991) – Miguel Gonçalves
Fotos – Augusto Cabrita
Fados de Coimbra, de Adriano Correia de Oliveira
(LP, Orfeu, 1973)
Adriano Correia de Oliveira estreou-se discograficamente em 1960 com o EP "Noite de Coimbra", que integrava "Fado da Mentira", "Balada dos Sinos", "Canta Coração" e "Chula". Em 1961, outros dois EPs se seguiram, "Balada do Estudante" e "Fados de Coimbra" (com quatro temas cada), tendo estes primeiros três discos sido compilados, em 1973, num LP genericamente intitulado "Fados de Coimbra".
Sobre o percurso inicial de Adriano e da importância que o fado de Coimbra teve para o seu amadurecimento interpretativo, assim disserta Paulo Sucena:
«Adriano Correia de Oliveira chegou a Coimbra, em Outubro de 1959, para frequentar o 1.º ano de Direito, num "tempo de paixão histórica", ainda que, naturalmente, por razões diferentes daquelas que levaram Eduardo Lourenço a classificar daquele modo o tempo em que surgiu e se desenvolveu o movimento neo-realista. Na verdade, a guerra colonial com seu cortejo de mortos e estropiados, pungente adubo da economia salazarista, a repressão que se abatia sobre o povo português, com inúmeras prisões e grande violência nas ruas, como se verificou, por exemplo, nas manifestações do 1.º de Maio de 1962 e 1963, a opressão política, económica, social e cultural que subjugava a nação portuguesa, a vontade dos estudantes de usufruirem plenamente a liberdade associativa e de lutar por uma verdadeira autonomia universitária, levaram a que muita gente – operários industriais e agrícolas, empregados, intelectuais e estudantes – participasse activamente na luta contra o fascismo durane a década de sessenta com uma determinação e mobilizaão idênticas às do tempo a que se referia Eduardo Lourenço. Foi um período que argamassou vontades e gerou movimentos de diversa ordem que deixaram marcas de transformação naquele tempo histórico. Esse "tempo de paixão histórica" viveu-o Adriano intensamente e desde logo cedo. Logo nos seus primeiros discos, ainda de fados de Coimbra, o jovem trovador vai não só dar atenção ao nosso riquissimo filão popular (basta lembrar a "Canção de Fornos" em que, ainda a principiar, a sua voz se lança, aberta e pura, em busca da "oitava acima") mas também a autores cuja poesia reflectia as circunstâncias históricas e sociais em que ele soltava o seu Canto ou/e configurava as aspirações de liberdade dos estudantes e do povo português, como na "Trova do Amor Lusíada", de Manuel Alegre: ("Meu amor disse que eu tinha/ Na boca um gosto a saudade/ E uns cabelos onde nascem/ Os ventos e a liberdade). Ao citarmos estes dois títulos do EP "Fados de Coimbra" (1961) fizemo-lo também com o propósito de assinalar que o fado de Coimbra foi a escola de canto de Adriano Correia de Oliveira. Não o fado eivado de um romantismo decadente mas o que de Edmundo Bettencourt a José Afonso, de António Menano a Machado Soares e Luiz Goes, de Artur Paredes a António Brojo e Antonio Portugal (para só citar alguns dos maiores, a título de exemplo e sem propósitos de exclusões) jamais foi um produto de alienação. E foram eles, na verdade, que ensinaram o jovem Adriano a colocar a voz, a respirar nos tempos certos, a atacar, a segurar ou a esvanecer as sílabas musicais, a valorizar fonológica e semanticamente os matizes das palavras, enfim, a dar aos receptores um canto, limpo, verbal e musicalmente. Algum desse canto era e continuou a ser de raiz popular e essa vertente da obra de Adriano – a da recuperação e da recriação da música popular portuguesa – foi conscientemente assumida numa dupla perspectiva, cultural e política: a da pesquisa, no respeito pelo que de genuíno fora produzido pelo povo português neste domínio, e a do afrontamento com o folclore de plástico e com o que mais tarde, João Paulo Guerra viria a apelidar de "nacional-cançonetismo".» (Paulo Sucena, in "Obra Completa", de Adriano Correia de Oliveira, Movieplay, 1994).
Alinhamento:
1. Fado da Mentira (popular / Alexandre de Rezende)
2. Balada dos Sinos (Eduardo de Melo)
3. Canta Coração (Eduardo de Melo / Adriano Correia de Oliveira)
4. Chula (popular; arr. de António Portugal)
5. Fado da Promessa (Adriano Correia de Oliveira / Luiz Goes)
6. Fado dos Olhos Claros (Edmundo de Bettencourt / Mário Faria Fonseca)
7. Contemplação (Leitão Nobre)
8. Balada do Estudante (Manuel Alegre e António Aleixo – 3.ª quadra modificada / António Menano; arr. de Paulo Alão)
9. Canção de Fornos (popular / Francisco Menano; arr. de António Brojo e António Portugal)
10. Balada da Esperança (Paulo Armando sobre refrão popular / José Afonso; arr. de Paulo Alão)
11. Trova do Amor Lusíada (Manuel Alegre / Adriano Correia de Oliveira e António Portugal)
12. Fado do Fim do Ano (Afonso Lopes Vieira – 1.ª quadra, e Fernando Machado Soares / António Portugal)
Músicos:
Adriano Correia de Oliveira – voz
António Portugal e Eduardo de Melo (guitarras), Durval Moreirinhas e Jorge Moutinho (violas) – temas 1 a 4
António Brojo e António Portugal (guitarras), Paulo Alão e Jorge Moutinho (violas) – restantes temas
Temas originalmente publicados nos EPs: "Noite de Coimbra" (1960), "Balada do Estudante" (1961) e "Fados de Coimbra" (1961), todos com chancela Orfeu.
Carlos Paredes / José Afonso / Luiz Goes
(LP, Columbia/Valentim de Carvalho, 1973; CD, EMI-VC, 1991; Edições Valentim de Carvalho/Iplay, 2008)
Em 1964, é editado pela Columbia/Valentim de Carvalho, o EP "Cantares de José Afonso" integrando os temas "Coro dos Caídos", "Maria" (dedicado a Zélia, sua segunda mulher), "Canção do Mar" e "Ó Vila de Olhão". Devido à explícita denúncia da exploração a que eram sujeitos os pescadores daquela localidade algarvia ("Larga, ó pescador / O que tens na mão / Que o peixe que levas / É do teu patrão / / Limpa o teu suor / No camisolão / Que o peixe que levas / É do cais de Olhão"), o último tema seria proibido pela Censura, levando à sua substituição, na segunda edição do EP, por uma versão instrumental do Conjunto de Guitarras de Jorge Fontes. E foi com os outros temas, e à falta de mais repertório de José Afonso para formar um LP individual, que, em 1973, a Valentim de Carvalho decidiu recorrer a outros dois artistas da casa, talvez os maiores da música de matriz coimbrã – Carlos Paredes e Luiz Goes. E assim surge esta compilação de doze temas, integrando três de José Afonso ("Coro dos Caídos", "Maria" e "Canção do Mar"), quatro de Luiz Goes ("Alegria", "Homem Só, Meu Irmão", "Boneca de Trapo" e "Canção do Regresso"), extraídos do álbum "Canções do Mar e da Vida" (1969), e cinco de Carlos Paredes ("Variações em Ré Maior", "Divertimento", "Canção dos Verdes Anos", "Melodia n.° 2" e "Fantasia"), extraídos do LP "Guitarra Portuguesa" (1967).
Além da curiosidade de reunir no mesmo disco três dos nomes maiores da música portuguesa de todos os tempos, o principal motivo de interesse deste álbum está no facto de disponibilizar três belas baladas de José Afonso nunca incluídas nos CDs que integram o repertório estilisticamente similar que o cantor gravou, entre 1960 e 67, para as etiquetas Rapsódia e Ofir – "Os Vampiros" (Edisco, 1987, 2006) e "Baladas e Canções" (EMI-VC, 1996). Uma obra que – no dizer de Mário Correia – constitui um documento digno de ser retido numa discoteca que se pretenda completa.
Alinhamento:
1. Coro dos Caídos (José Afonso)
2. Alegria (Edmundo de Bettencourt / António Toscano)
3. Variações em ré maior (Carlos Paredes)
4. Homem Só, Meu Irmão (Luiz Goes)
5. Maria (José Afonso)
6. Divertimento (Carlos Paredes)
7. Boneca de Trapo (Luiz Goes)
8. Canção do Mar (José Afonso)
9. Canção Verdes Anos (Carlos Paredes)
10. Canção do Regresso (Luiz Goes)
11. Melodia n.º 2 (Carlos Paredes)
12. Fantasia (Carlos Paredes)
Músicos:
Temas de José Afonso (1, 5 e 8):
José Afonso – voz
Rui Pato – viola
Temas de Luiz Goes (2, 4, 7 e 10):
Luiz Goes – voz
João Bagão – guitarra (2, 10)
Aires Máximo de Aguilar – guitarra (2)
António Toscano – viola (2)
Fernando Neto – viola (2)
João Figueiredo Gomes – viola (4, 7, 10)
Temas de Carlos Paredes (3, 6, 9, 11 e 12):
Carlos Paredes – guitarra
Fernando Alvim – viola
Temas originalmente publicados, respectivamente, nos seguintes discos: "Cantares de José Afonso" (EP, Columbia/Valentim de Carvalho, 1964), "Canções do Mar e da Vida" (LP, Columbia/Valentim de Carvalho, 1969) e "Guitarra Portuguesa" (LP, Columbia/Valentim de Carvalho, 1967).
Gravações efectuadas nos Estúdios Valentim de Carvalho, Paço d'Arcos
Técnico de som – Hugo Ribeiro
O Cante da Terra, de Grupo Cantadores do Redondo
(LP, Orfeu, 1978; CD, Movieplay, 1997)
«Através do disco "O Cante da Terra", o Grupo Cantadores do Redondo recreou de modo francamente positivo e autêntico os cantares do Alto e Baixo Alentejo. Editado em 1978, este trabalho, que não hesitamos em considerar como de "música étnica", recria a música de raiz popular, conferindo-lhe uma expressividade pouco vulgar. E, neste sentido, vamos encontrar amostras de uma tradição riquíssima: a dos "dezedores de décimas", representada neste álbum pelo almocreve Joaquim da Louça. Destaque, ainda, para o rigor e a profundidade do "cante" e para o cuidado — sinónimo de preocupação em termos de autenticidade — posto na utilização da instrumentação: solidó, nuns-nuns, castanholas, adufes, gaitas e almofariz. Temas incluídos: "É na Vila Do Redondo", "Quando Caiu a Neve", "Décimas e Saias da Camisinha Azul", Rosa Branca Desmaiada", "Saias dos Foros", "Borloleta Mensageira", "Cavaleiro Real", "Décimas e Saias do Redondo", "As Nuvens Que Andam no Ar", "Saias de Santo Aleixo" e "Oh Menina Florentina".
"Eu devo o meu corpo à terra/ a terra mo está devendo/ que a terra mo pague em vida/ que eu pago à terra em morrendo" — "O Cante da Terra": um diálogo alentejano intenso.» (Mário Correia, in "Música Popular Portuguesa: Um Ponto de Partida", Centelha/Mundo da Canção, 1984).
Acrescente-se que um dos Cantadores do Redondo, Janita Salomé, duas décadas mais tarde, voltaria a revisitar e a celebrar o cante, mas numa perspectiva menos purista (álbum "Vozes do Sul: uma celebração do cante alentejano").
Alinhamento:
1. É na Vila do Redondo (Vitorino)
2. Quando Caiu a Neve (Barrancos, Baixo Alentejo)
3. Décimas e Saias da Camisinha Azul (S. Romão, Vila Viçosa)
4. Rosa Branca Desmaiada (Baixo Alentejo)
5. Saias dos Foros (Redondo, Alto Alentejo)
6. Borboleta Mensageira (Barrancos, Baixo Alentejo)
7. Cavaleiro Real (Redondo, Alto Alentejo)
8. Décimas e Saias do Redondo (Redondo, Alto Alentejo)
9. As Nuvens Que Andam no Ar (Baixo Alentejo)
10. Saias de Santo Aleixo (Santo Aleixo, Alto Alentejo)
11. Oh Menina Florentina (Baixo Alentejo)
Todos os temas são populares com recolha e arranjos do Grupo Cantadores do Redondo, excepto "É Na Vila do Redondo", com letra e música de Vitorino.
Cantadores:
Adriano, Albardeiro, António Eduardo, António Cristino, Bagulho, Baíco, Carlos, Carmelo, Catronga, Diniz, Farias, Jaleca, Janita, Luidegardo, Morgadinho, Palmeiro, Talocas, Tonico, Vitorino, Zé Rui, Zézinho, M.C.P.
Instrumentos / Músicos:
Solidó – Vitorino
Num-Nuns – Baíco, Albardeiro e Diniz
Castanholas – Zézinho, Adriano, Morgadinho, Carlos
Adufes – Janita, Palineiro, Bagulho, Catronga
Gaitas – Luidegardo e Carmelo
Almofariz – Janita
Dezedor de décimas – Joaquim da Louça
Técnicos de som – Moreno Pinto e Manuel Cunha
Fotos e arranjo gráfico da capa original – A. Carmelo
O Sangue Não Dá Flor, de Manuel Freire
(LP, Tecla, 1978)
«Em 1968, fez a sua aparição discográfica Manuel Freire, com um EP contendo "Dedicatória" (F. M. Bernardes), "Livre" (Carlos de Oliveira), "Eles" (do próprio Manuel Freire), e "Pedro o Soldado" (Manuel Alegre). Acontecia, tal como com Luís Cília e alguns outros, o encontro com a melhor poesia do "nosso amargo cancioneiro". Ainda em 1968, Manuel Freire — que tinha andado a cantar pelas ruas de Paris "para equilibrar as finanças" — surgiu com um disco, incluindo "Lutaremos, Meu Amor" (Daniel Filipe), "Trova" (Manuel Alegre), "Trova do Emigrante" (Manuel Alegre) e "O Sangue Não Dá Flor", com o qual começaram os seus problemas com a PIDE ou, melhor dizendo, os problemas da PIDE com ele, dado que Manuel Freire assumiu sempre o canto da resistência sem cedências ou desânimos. Em 1978, a Tecla editou um álbum, com o título "O Sangue Não Dá Flor", no qual se incluíram todos os temas atrás citados (e instrumentais como "Manhã Brilhante", "Simplicidade" e "Improviso Tropical", todos da autoria do Fernando Alvim e "Estudo a Duas Cores", de Pedro Caldeira Cabral).» (Mário Correia, in "Música Popular Portuguesa: Um Ponto de Partida", Centelha/Mundo da Canção, 1984).
Alinhamento:
1. Dedicatória (poema de Fernando Miguel Bernardes)
2. Livre (poema de Carlos de Oliveira)
3. Trova (poema de Manuel Alegre)
4. Lutaremos, Meu Amor (poema de Daniel Filipe)
5. Manhã Brilhante (instrumental – Fernando Alvim)
6. Simplicidade (instrumental – Fernando Alvim)
7. Trova do Emigrante (poema de Manuel Alegre)
8. Eles (poema de Manuel Freire)
9. Pedro o Soldado (poema de Manuel Alegre)
10. O Sangue Não Dá Flor (poema de Manuel Freire)
11. Estudo a Duas Cores (instrumental – Pedro Caldeira Cabral)
12. Improviso Tropical (instrumental – Fernando Alvim)
Música de Manuel Freire, excepto nos temas instrumentais.
Músicos:
Manuel Freire – voz e viola
Fernando Alvim – viola
Pedro Caldeira Cabral – guitarra portuguesa (5, 6, 11, 12)
Nota: Esta edição tem o mesmo conteúdo da compilação "Dedicatória" (Tecla, 1972), com excepção da canção "O Sangue Não Dá Flor", que estava proibida e fora substituída pelo instrumental "Andando Só", da autoria de Fernando Alvim, executado pelo próprio (viola) e por Pedro Caldeira Cabral (viola e guitarra portuguesa).
Os temas não instrumentais foram originalmente publicados nos seguintes discos: "Dedicatória" (EP, Tagus, 1968) e "Trovas, Trovas, Trovas" (EP, Tagus, 1968).
Devolta, de Manuel Freire
(LP, Diapasão/Lamiré, 1978)
«Depois de ter sido o responsável pela música do álbum "Pretextos para Dizer..." (1978), de Mário Viegas, Luís Cília surge no álbum "Devolta", de Manuel Freire, no qual assina a música e assume o trabalho de arranjos e direcção musical. Este álbum marca um regresso (bastante desejado) de Manuel Freire, essencialmente caracterizado pela manutenção de uma das mais expressivas tradições do canto da resistência, que teve nele um dos seus mais destacados iniciadores: a tradição da grande poesia em "Devolta" assinada por Carlos de Oliveira ("Carta a Ângela"), António Borges Coelho ("Paisagem"), José Saramago ("Dia Não"), Pedro Támen ("Redond/ilha"), Eugénio de Andrade ("Variações em Tom Menor" e "Fecundou-te"), Fernando Morgado ("Canção"), José Gomes Ferreira ("Aqui Ficas") e Mário Dionísio ("Canto de Esperança"). Destaque para o envolvimento austero no campo instrumental: viola (Luís Cília), sintetizador e piano (Vasco Pimentel), guitarra (Pedro Caldeira Cabral) e viola baixo (Celso de Carvalho). "Devolta", na sua essência global, revela-nos a eterna vigência e a superior expressividade de um canto marcado pela poesia de qualidade com suporte musical em sublinhado, música-veículo, como "forma de dizer coisas às pessoas, de levar as pessoas a debruçarem-se sobre os seus próprios problemas" (Manuel Freire).» (Mário Correia, in "Música Popular Portuguesa: Um Ponto de Partida", Centelha/Mundo da Canção, 1984).
Alinhamento:
1. Carta a Ângela (Carlos de Oliveira)
2. Paisagem (António Borges Coelho)
3. Dia Não (José Saramago)
4. Redond/ilha (Pedro Támen)
5. Variações em Tom Menor (Eugénio de Andrade)
6. Assim Cantamos (Manuel Correia)
7. Fecundou-te (Eugénio de Andrade)
8. Canção (Fernando Morgado)
9. Aqui Ficas (José Gomes Ferreira)
10. Canto de Esperança (Mário Dionísio)
11. Paisagem II (instrumental)
Poemas dos autores indicados.
Música de Luís Cília.
Músicos:
Manuel Freire – voz
Luís Cília – viola, coros
Pedro Caldeira Cabral – guitarra portuguesa
Celso de Carvalho – viola baixo
Vasco Pimentel – sintetizador ARP Omni, piano
Arranjos e direcção musical – Luís Cília
Produção – Lamiré
Gravado nos Estúdios Musicorde, Lisboa
Técnicos de som – Rui Remígio e Luís Flor
Capa, fotos e arranjo gráfico – Judite Cília
Pretextos para Dizer..., de Mário Viegas
(LP, Orfeu, 1978; CD/Livro, Público, 2006)
«Como pretextos para dizer, Mário Viegas escolheu sete poemas e sete poetas. Destes sete, três são estrangeiros: Pablo Neruda, traduzido por Fernando Assis Pacheco ("Ode ao Pão"); Nicolás Guillén, traduzido por Manuel Seabra ("Há Muito Tempo"); e Vinicius de Moraes ("A Morte na Madrugada"). Os outros quatro são portugueses, todos eles enormes como, aliás, os anteriores: José de Almada Negreiros, com o "Manifesto Anti-Dantas", um texto que Mário Viegas elevou aos supremos limites da arte de dizer; Manuel da Fonseca, com "Domingo", que o recitador dizia desde a sua juventude; Jorge de Sena, um outro poeta que Mário Viegas elegeu como um dos seus preferidos ("Carta a Meus Filhos sobre os Fuzilamentos de Goya"); e, finalmente, Eugénio de Andrade ("Requiem para Pier Paolo Pasolini"). Depois das experiências musicais que constam dos discos anteriores — às quais o Mário Viegas se rendeu — desta vez foi ele próprio que convidou Luís Cília para compor a música original de alguns dos poemas. Este foi também o último disco do Mário Viegas em que a sua voz foi envolvida pela música.» (José Niza, in livro/CD "Pretextos para Dizer", Público, 2006).
José António Salvador escreveu em 1979, para a página "Espectáculos" do extinto "Diário Popular", o interessante texto que se segue: «"Provavelmente já te encontrarás à vontade entre os anjos". Este verso, de um poema de Eugénio de Andrade à memória de Ruy Belo, foi dito por Mário Viegas quase no fim da festa-convívio para apresentação do seu último LP, "Pretextos para Dizer...". Um pouco antes, do mesmo Eugénio de Andrade, esse poeta do Porto, da água, dos frutos, da luz, um pouco antes, Mário Viegas lia o poema à memória de Jorge de Sena: "Escreveste como o sangue canta/ de-ses-pe-ra-da-men-te". Mário Viegas, Eugénio de Andrade, a voz di-ta daquele, os versos es-cri-tos deste, foram os momentos mais da emoção discreta mas firme da poesia que se bebe. Os dois vivos trouxeram à gente que enchia "A Barraca", Jorge de Sena e Ruy Belo, esses poetas amigos entre os anjos, desde que o ano passado [1978] abandonaram esta residência. Mário Viegas teve o cuidado de re-ler Almada Negreiros (inscrito no seu novo LP com o "Manifesto anti-Dantas"), leu inéditos do Zeca Afonso (aliás presente neste lançamento do disco, ao lado de Otelo Saraiva de Carvalho) e es-ti-lha-çou a assistência com textos exemplares de Mário Henrique Leiria (o do Gin-Tónico, em contos novos e velhos). Mas o que é afinal este "Pretextos para Dizer"? É o quinto LP de Mário Viegas, que publicou o seu primeiro disco em 1969, e constitui, de certa maneira, um prolongamento do seu trabalho desenvolvido na RDP, onde realizou 34 programas semanais, de Julho de 1978 a Fevereiro de 1979. Tratava-se do programa "Palavras Ditas", de que foi responsável com Júlio Isidro, mas que as "remodelações" efectuadas na emissora-oficial-comercial-nacionalizada não pouparam, apesar da sua audiência e qualidade indiscutíveis.
O disco como é? Importa ouvi-lo (...). É um todo a ouvir, como quem reproduz as palavras de Mário Viegas: "Quando não me foi possível ser actor agarrei-me à poesia. Era uma maneira de andar sozinho por onde queria, a dizer o que queria. (...) Há 15 anos que sou declamador. Villaret foi o melhor, mas essa escola acabou. (...) Agora há os declamadores de comícios. Não entro na demagogia porque para isso bastam os discursos dos partidos. (...) Não entro em leituras brancas, porque não sou racista. A arte não foge à luta de classes. Leio para trabalhadores e estudantes. Dizer coisas às pessoas são pretextos para falar de mim. E estar com elas."»
Alinhamento:
1. Manifesto Anti-Dantas (José de Almada Negreiros)
2. Domingo (Manuel da Fonseca / música de Luís Cília)
3. Ode ao Pão (Pablo Neruda; tradução de Fernando Assis Pacheco)
4. Há Muito Tempo (Nicolás Guillén; tradução de Manuel Seabra)
5. Carta a Meus Filhos sobre os Fuzilamentos de Goya (Jorge de Sena / música de Luís Cília)
6. A Morte da Madrugada (Vinicius de Moraes / música de Luís Cília)
7. Requiem para Pier Paolo Pasolini (Eugénio de Andrade / música de Luís Cília)
Poemas recitados por Mário Viegas.
Música original de Luís Cília (2, 5, 6, 7).
Gravado nos Estúdios Arnaldo Trindade, Lisboa
Técnico de som – Moreno Pinto
Design gráfico – João Massapina
Fotografias – Luís Carvalho
Canções de Ex-Cravo e Malviver, de Carlos Mendes
(LP, Toma Lá Disco, 1978)
«Numa linha que consideramos muito semelhante — onde a herança da tradição europeia de música ligeira está bem presente — Carlos Mendes surgiu, em 1978, com um trabalho assente em poemas de Joaquim Pessoa e música do próprio Carlos Mendes, "Canções de Ex-Cravo e Malviver". Uma viagem ímpar pela Lisboa do nosso (des)contentamento, reflectindo com uma enorme dose de humanismo os mais diversos tipos de pessoas/situações citadinas. Reviva-se, por exemplo, aquela pérola que constitui a canção "Amélia Dos Olhos Doces", expoente máximo de uma via esgotada no panorama da música portuguesa (o que não significa, de modo algum, uma proposta rejeitada). "Lisboa Meu Amor", "Palavras", "Cantar De Vivo Para Um Camarada Morto", "Nocturno", "Monólogo do Operário", "Ruas de Lisboa", "Balada do Medo", "Canto Chão", "No Silêncio da Espera" e "Amélia Dos Olhos Doces", contaram com o apoio instrumental de um vasto número de músicos, entre os quais salientamos Hélder Reis, Pedro Caldeira Cabral, Paulo Godinho, Júlio Pereira, Pedro Osório, Guilherme Inês, Armindo Neves e Ana Bela Chaves, tendo os arranjos e a direcção musical sido da responsabilidade de Pedro Osório.» (Mário Correia, in "Música Popular Portuguesa: Um Ponto de Partida", Centelha/Mundo da Canção, 1984).
Alinhamento:
1. Lisboa, Meu Amor
2. Palavras
3. Cantar de Vivo para um Camarada Morto
4. Nocturno
5. Monólogo do Operário
6. Ruas de Lisboa
7. Balada do Medo
8. Canto Chão
9. No Silêncio da Espera
10. Amélia dos Olhos Doces
Poemas de Joaquim Pessoa.
Música de Carlos Mendes.
Músicos:
Hélder Reis, Pedro Caldeira Cabral, Paulo Godinho, Júlio Pereira, António Anjos, Manuel Gomes, Ilídio Gomes, Fernando Calazans, António Dias, Jorge Gonçalves, Jorge Lé, Manuel Teixeira, Ana Bela Chaves, Luís Almeida, Rogério Gomes, João Murcho, Tereza Portugal, Pedro Osório, Guilherme Scarpa Inês, Armindo Neves
Coros:
Luísa Basto, Paulo de Carvalho, Adelaide Ferreira, Fernando Tordo, Argentina Rocha, Pedro Osório
Arranjos e direcção musical – Pedro Osório
Gravado nos Estúdios da Rádio Triunfo, em 1977
Técnico de som – José Manuel Fortes
Capa – Artur Henriques
Lisboémia, de Júlio Pereira
(LP, EMI/Valentim de Carvalho, 1978)
«De modo assaz diferente, Júlio Pereira surgiu, no mesmo ano, com um trabalho igualmente centrado na vida da capital, "Lisboémia". Consideramos este álbum como uma das mais conseguidas propostas então surgidas no seio da tendência para uma fusão de géneros musicais (fado, marchas populares, cantos de expressão básica tradicional, música essencialmente urbana) e um ultrapassar das características definidoras e limitadoras do canto de intervenção, mercê de uma profunda autópsia de variadas situações/tipos da vida lisboeta e não só. Júlio Pereira assume toda uma herança musical que não hesita em colocar em confronto e o resultado apresentou-se como um caminho aberto rumo à construção da música popular portuguesa. Com música, textos, orquestração e direcção musical de Júlio Pereira, "Lisboémia" propõe-nos o seguinte roteiro: "Cabo Ruivo", "Alvalade/Avenida de Roma", "Praça do Chile/Intendente", "Alfama", "Rossio", "Cais do Sodré", "Bairro Alto", "Avenida da Liberdade", "Saldanha/Entre-Campos", "Sete-Rios/Belém" e "Lisboémia", sendo as zonas sucessivamente percorridas com músicos como Paulo Godinho, Júlio Pereira, Rui Reis, Guilherme Inês, Shila, Jaime Queimado, João Seixas, Hélder Reis e Pedro Caldeira Cabral, entre muitos outros, e narradores dos mais diversos personagens tais como José Mário Branco, António Portanet, Duarte Mendes, Eugénia Meio e Castro, José Manuel Osório, Mário Viegas, Shila, Lia Gama, entre outros. "Lisboémia" introduziu-nos, juntamente com outras obras igualmente surgidas em 1978, no universo sonoro da génese imediata da nova música popular. Em definitiva construção.» (Mário Correia, in "Música Popular Portuguesa: Um Ponto de Partida", Centelha/Mundo da Canção, 1984).
Alinhamento:
1. Cabo Ruivo (Zona 1)
2. Alvalade / Avenida de Roma (Zona 2)
3. Praça do Chile / Intendente (Zona 3)
4. Alfama (Zona 4)
5. Rossio (Zona 5)
6. Cais do Sodré (Zona 6)
7. Bairro Alto (Zona 7)
8. Avenida da Liberdade (Zona 8)
9. Saldanha / Entre-Campos (Zona 9)
10. Sete-Rios / Belém (Zona 10)
11. Lisboémia
Letras e músicas de Júlio Pereira.
Músicos e vozes:
Júlio Pereira – guitarra espanhola (1), guitarra de 6 cordas (1), guitarra de 12 cordas (1), bouzouki solo (1, 6, 11), reco-reco (1, 5, 11), palmas (1), [voz] narrador (1, 2, 3, 5, 6, 7, 9, 10, 11), guitarras acústicas (2, 3, 5, 6, 7, 9, 10, 11), banjo (2, 8), [sintetizador] Moog computado (2), coro (4), [voz] ambiente (4), porta-moedas (5), pandeireta (6), guizos (6), efeito de dois papéis (7), piano clássico (9), harpa de lata (9), fava (9), castanhola (9)
Paulo Godinho – guitarra baixo (1, 2, 3, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11)
Jaime Queimado – bombo (1, 6), [voz] retornado (5), caixinha de madeira (11)
João Seixas – maracas (1), congas (5), bongós (5), adufe (6), efeito de madeira com eco (9), bombo (9, 11), pandeireta (9)
Guilherme Scarpa Inês – madeiras (1, 11), bateria (2, 5, 6, 8, 9), bombo (4), tarola (4), ferrinhos (6), caixinha (8), pandeireta (11)
Isabel Constela – castanholas (1)
Shila (Sheila Charlesworth) – palmas (1), colheres de pau (4), coro (4, 9), [voz] ambiente (4), [voz] turista (5), [voz] bailarina (8)
Géninha (Eugénia Melo e Castro) – palmas (1), [voz] prostituta (3), coro (4, 9), [voz] ambiente (4), [voz] baladeira (7)
José Mário Branco – [voz] Silva (1), [voz] vendedor ambulante (5), [voz] Chico Fino (5), [voz] actor de teatro independente (7)
António Portanet – [voz] Toyca Cigano (1)
Rui Reis – [sintetizador] Moog computado (2), piano eléctrico (3, 7, 11), [sintetizador] Moog (5, 9), piano clássico (6)
Pedro Caldeira Cabral – guitarra portuguesa (3, 5, 7)
Rui Cardoso – flauta solo (3, 10), saxofone solo (3, 6)
Fernando Calazans – violino (3, 10)
António Anjos – violino (3, 10)
Manuel Gomes – violino (3, 10)
Ilídio Gomes – violino (3, 10)
Floriana Oliveira – violino (3, 10)
Leonor Moreira – violino (3, 10)
Kevin Vaughan – violino (3, 10)
Rogério Gomes – violino (3, 10)
Tereza Portugal – violoncelo (3, 10)
João Murcho – violoncelo (3, 10)
António Lages – tuba (4)
Isidro Mestre – clarinete (4, 9)
Laureano Martins – flautim (4, 9
José Luís Simões – trombones (4, 8)
Mário de Jesus – trompete solo (4, 9)
Hélder Reis – acordeão (4, 5, 7, 9, 11)
Lena (Helena Maria Vaz) (GAC - Vozes na Luta) – coro (4, 6, 11), [voz] ambiente (4)
José Manuel Damas (GAC - Vozes na Luta) – coro (4, 6, 9, 11), [voz] ambiente (4)
Guida A. Silva (GAC - Vozes na Luta) – coro (4, 6, 9, 11), [voz] ambiente (4)
Luís Pedro Faro (GAC - Vozes na Luta) – coro (4, 6, 9, 11), [voz] ambiente (4)
José Bissau – coro (4), [voz] ambiente (4), ruídos executados com a boca (10)
Isabel – coro (4), [voz] ambiente (4)
Carlos – coro (4), [voz] ambiente (4)
Jaime Machado – coro (4, 9), [voz] Ambiente (4)
Rui Oliveira Vaz (GAC - Vozes na Luta) – coro (4, 6, 9, 11), [voz] ambiente (4)
Vanda M. Moura (GAC - Vozes na Luta) – coro (4, 6, 9, 11), [voz] ambiente (4)
Jaime Manuel Cruz (GAC - Vozes na Luta) – coro (6, 9, 11)
Bé – coro (4), [voz] ambiente (4)
José Machado – violino solo (5)
Mário Viegas – [voz] cauteleiro (5), [voz] Arnaldo Mão Leve (5), [voz] travesti (8)
Duarte Mendes – [voz] especulador (5), [voz] Dé-Dé (5), [voz] jornalista (7), [voz] estudante (9)
Ricardo Pais – [voz] dealer (5), [voz] jornaleiro (7), [voz] apresentador (8)
Fernando Júdice – contrabaixo (6)
Lia Gama – [voz] Ruth Oliúde (5), [voz] Menina da Barraca de Tiros (9)
Raul Mendes – harmónica solo (7, 10)
Eugénia Bettencourt – [voz] fadista (7)
José Manuel Osório – [voz] tasqueiro (7)
José de Carvalho – vibra-slap (9)
Arranjos e direcção musical – Júlio Pereira
Direcção de produção – Júlio Pereira
Produção – Valentim de Carvalho
Gravado e misturado nos Estúdios Valentim de Carvalho, Paço d'Arcos, de 23 de Janeiro a 10 de Fevereiro 1978
Técnicos de som – Hugo Ribeiro, Fernando Cortês, Júlio Pereira e Jaime Queimado
Capa e ilustrações – Carlos Zíngaro
Fotografia – Carlos Gil
Pano-Cru, de Sérgio Godinho
(LP, Orfeu, 1978; CD, Movieplay, 1991, 1999)
«"É um disco em que – à excepção de um trecho, 'O Homem-Fantasma', com arranjo do Zíngaro – os arranjos são consequência da contribuição dos outros músicos". Sérgio Godinho, naquele que para muitos é o seu melhor disco de sempre, prefere repartir responsabilidades e dividir os louros por toda a equipa. "Foi um método de trabalho em que peguei numa série de pessoas, nomeadamente o Guilherme Inês, o Zíngaro, o meu irmão Paulo, ou o Pedro Osório, e trabalhámos até encontrar soluções que me conviessem. De uma maneira informal e sem arranjos pré-escritos". Uma opção "que vinha um bocado de trás" e "consequência de um trabalho que nunca deixou de acontecer mas foi talvez assumido de uma maneira mais funda neste disco". Desta união de esforços resultaram uma "simplicidade instrumental e arranjos bastante básicos", mas que o autor considera "bastante eficazes". "Tem um som, agora com a história do CD, que eu ouvi e achei muito límpido. O próprio som do Moreno Pinto, um técnico que na altura fazia trabalhos muito bons, agrada-me muito".Disco de clássicos, "Pano-Cru" corresponde a um pico de inspiração na carreira discográfica de Sérgio Godinho. "Tínhamos saído um pouco da ressaca pós-PREC. Estava-se num período de mudança muito rápida e havia uma energia criativa que sentia à minha volta. A minha energia estava então mais virada para o futuro do que para lamentar o passado. Não gosto de chorar sobre o leite derramado. Havia coisas que se tinham perdido, mas, por outro lado, estavam em elaboração outras que, para mim, eram exaltantes, como o facto de poder trabalhar ao vivo com os músicos que eu queria, algo que na altura do PREC não era possível. Nessa altura, por exemplo, o Zíngaro tocava muitas vezes comigo. Tudo isto se reflecte no disco que foi imediatamente testado ao vivo numa digressão que fiz, de genérico, 'Sete anos de canções', correspondente à aparição de uma cooperativa, a Era Nova. Onde estavam o Zeca, o Fausto, o Vitorino, e da qual a primeira iniciativa foi esta digressão, um pouco por inspiração do Camilo Mortágua, que era um bocado a 'alma pater' desta cooperativa. Foram 24 espectáculos em 20 capitais de distrito. De uma maneira, para a altura, heróica, e da qual saímos com magros resultados financeiros. Fomos a sítios onde não havia nada e nos chegavam a perguntar se íamos tocar 'variedades'".Entre todas as canções de "Pano-Cru" há uma que permanece, de uma maneira quase obsessiva, na memória: "O primeiro dia". "Curiosamente, não começou por ser um 'hit' evidente. Demorou até ser interiorizada". Sérgio Godinho define-a como "uma canção de ruptura, de repensar as coisas e encontrar uma certa sabedoria para o futuro". "Nesse aspecto", diz, "é uma canção que me persegue. No espectáculo 'Escritor de Canções' fiz questão de não a cantar, para a deixar repousar um bocado."
"Balada da Rita", do filme "Kilas, o Mau da Fita", é outro momento inesquecível de "Pano-Cru". Uma canção "assumida no feminino", e "cantada por um homem". "Foi composta para ser cantada por uma mulher, a Lia Gama, aliás, como acontece na primeira versão, numa edição raríssima, da banda-sonora, e no próprio filme". Sérgio Godinho deixou, no entanto, sempre no ar a possibilidade de ser ele a cantá-la. "Agrada-me essa ambiguidade de cantar na primeira pessoa do feminino, uma coisa que, curiosamente, foram sobretudo os brasileiros a fazer, o Caetano, o Chico, mas que não existe muito na música americana ou na francesa. Há uma espécie de pudor em relação a isso". Uma canção, ainda, que o músico considera de "difícil versificação, porque tem três rimas seguidas diferentes que têm que rimar com outras três".
Uma canção que Sérgio Godinho nunca cantou ao vivo é "2.º Andar, Direito", a conversa nocturna entre dois amantes que se tornou num dos temas mais apreciados pelos admiradores deste compositor-intérprete. "É uma canção de frases, de diálogo, que curiosamente foi objecto de um exercício da Escola de Cinema, quando o Ricardo Pais era lá professor. Ele propôs aos alunos fazer uma planificação, um 'script' a partir dela. Há uma sugestão de diálogo permanente, de situações imagéticas. Houve mesmo um filme de dez minutos feito com esses 'scripts' para a televisão, pelo Ricardo Nogueira, que nunca mais vi".É a vertente cinematográfica da obra de Sérgio Godinho aqui já a fazer-se sentir e que o autor mais tarde viria a desenvolver através da sua linguagem própria. Como um realizador que planifica a vida em 'sketches', Sérgio Godinho observa do exterior, através da lente ou, neste caso, do vizinho que vive no apartamento ao lado do dos amantes. "Aliás, nesse tal filme de dez minutos, eu fazia precisamente de vizinho. Há um volte-face nessa canção. Está a ser contada por um narrador que depois se descobre ser um terceiro personagem. A partir daí, o narrador passa a ser eu, eu compositor, eu autor da canção. A introdução de um elemento inesperado, uma nova personagem, rouba o protagonismo ao casal. Existe um lado ficcional que pode ser cinematográfico". Um "exercício de ficção", ao contrário de "O Primeiro Dia", que tem "algo de autobiográfico".
O que distingue um disco bom de um disco mágico é esse pequeno nada capaz de desencadear emoções, de accionar maquinismos escondidos da imaginação, de estabelecer, enfim, cumplicidades várias com o auditor. "Pano-Cru" é um disco mágico. Equilibrando, sem custo aparente, o registo popular ("O Galo é o Dono dos Ovos", "Venho Aqui Falar", "Lá Isso É") com o intimismo ("O Primeiro Dia", "2.º Andar, Direito"), a sátira de costumes ("A Vida É Feita de Pequenos Nadas", "O Homem-Fantasma") e a crónica de amores ou de personagens ("Feiticeira", "Balada da Rita"), sente-se nele o domínio da arte da narração, o casamento perfeito entre a intenção, o som e a palavra. Gerado num período conturbado da nossa História, três anos passados sobre o golpe de Abril, a densidade e a tensão presentes em cada canção ocultam-se por detrás da fluência e facilidade com que se desenrola esta espécie de "thriller" psicológico do português ainda tonto da Revolução. Se o microcosmos de "2.º Andar, Direito" – reflectindo as preocupações e dúvidas existenciais de quem acordara estremunhado da opressão dos corpos e dos sentimentos e redescobrira a liberdade e o prazer da fala – desencadeia de imediato um "feedback" emocional em todos os que acompanharam de perto esses tempos de mudança, "O Primeiro Dia", uma das melhores canções de sempre da música popular portuguesa, é o tema intemporal por excelência, relógio implacável da nossa própria existência. "Pano-Cru" é ainda a confirmação de Sérgio Godinho como organizador não só de palavras, como de imagens. Aqui realizador de um filme em corrida eterna contra o tempo. Um filme, como se pode escutar no genérico final, ainda e sempre "por acabar".» (Fernando Magalhães, in "Público": Suplemento "Pop Rock", 15.11.1995).
Alinhamento:
1. A Vida É Feita de Pequenos Nadas
2. O Primeiro Dia
3. O Galo é o Dono dos Ovos
4. Balada da Rita (do filme "Kilas, o Mau da Fita")
5. Venho Aqui Falar 6. Lá Isso É
7. Feiticeira
8. O Homem-Fantasma
9. 2.º Andar, Direito
10. Pano-Cru
Letras e músicas de Sérgio Godinho
Instrumentos / Músicos:
- Tema 1:
Viola – Sérgio Godinho
Baixo – Paulo Godinho
Violino e cavaquinho – Carlos Zíngaro
Bateria – Guilherme Scarpa Inês
Percussões – Shila
Coros – Shila, Eugénia Melo e Castro e Cara d'Anjo
- Tema 2:
Piano e acordeão – Pedro Osório
Baixo – Paulo Godinho
Viola e Coros – Sérgio Godinho
- Tema 3:
Viola – Sérgio Godinho
Baixo – Paulo Godinho
Bateria – Guilherme Scarpa Inês
Ferrinhos – Carlinhos Tumbadoura
Galo – Carlos Vaz
Galinhas – Shila, Eugénia Melo e Castro
- Tema 4:
Viola e percussões – Sérgio Godinho
Baixo – Paulo Godinho
Acordeão – Pedro Osório
Violino – Carlos Zíngaro
Coros – Shila, Eugénia Melo e Castro
- Tema 5:
Viola – Sérgio Godinho
Baixo – Paulo Godinho
Bateria – Guilherme Scarpa Inês
Tumbadoras – Carlinhos Tumbadoura
Violino – Carlos Zíngaro
Acordeão – Pedro Osório
Coros – Fausto e Shila
- Tema 6:
Viola – Sérgio Godinho
Baixo – Paulo Godinho
Acordeão – Pedro Osório
Bateria e percussões – Guilherme Scarpa Inês
Coros – Fausto, Shila, Carlos Vaz, Hermínio
Coros da multidão – Grupo Coral "Lá Isso São" constituído por: Alain, Aura, Luciano, Hermínio, Carlos, Carmo, Teresa e Eduardo
- Tema 7:
Viola – Sérgio Godinho
Baixo – Paulo Godinho
Tumbadoras – Carlinhos Tumbadoura
Outras percussões – Shila
Viola solo – Armindo Neves
- Tema 8:
Viola – Sérgio Godinho
Trombone – José Custódio
Clarinete – Fernando de Sousa
Clarinete baixo – Fernandes dos Santos
Trompete – Manuel Cachão
Coros – Cara d'Anjo, Shila, Eugénia Melo e Castro
Ferrinhos – Moreno Pinto
Arranjo – Carlos Zíngaro
- Tema 9:
Viola – Sérgio Godinho
Baixo – Paulo Godinho
Harmónica – Raul Mendes
Locutor – Hugo Lourenço
- Tema 10:
Viola – Sérgio Godinho
Baixo – Paulo Godinho
Bateria – Guilherme Scarpa Inês
Arranjos – Sérgio Godinho com a colaboração dos músicos presentes.
Arranjo de "O Homem-Fantasma" – Carlos Zíngaro
Gravado nos Estúdios Arnaldo Trindade, Lisboa, em Março e Abril de 1978
Técnico de som – Moreno Pinto
Capa – José Brandão
Fotos – Nádia Feres Vilela
Em Nome da Vida, de Trovante
(LP, Mundo Novo/Editorial Caminho, 1978)
«A fragilidade e o imediatismo de "Chão Nosso" (primarismos musicais/instrumentais fortemente académicos, a incapacidade de tornar o belo seguro, espaços sonoros desaproveitados, inspiração inesperadamente maltratada pelo desejo de dizer muita coisa e com uma carga expressiva muito intensa em tão pouco tempo), sofreram um forte safanão na obra "Em Nome da Vida". Com efeito, é neste trabalho que surge bem evidenciada a procura criteriosa de uma coerência harmoniosa e global do texto musical: as raízes populares portuguesas estão lá, juntamente com elementos sonoros de outras origens (de natureza 'afro', por exemplo). O processo de fusão apresenta agora seguros indícios de correcção e equilíbrio. Do ponto de vista temático, há que realçar uma maior unidade das propostas apresentadas, sendo de salientar a dificuldade vocal em digerir textos longos (didáctico-ingénuos) de Francisco Viana ("Em Nome da Vida"). "Em Nome da Vida", sendo um trabalho de mudança e de aperfeiçoamento, é o álbum das hesitações a ultrapassar, das arestas a limar, em definitivo. É nele que melhor se definem aquelas que serão as futuras coordenadas do grupo: para quem só descobriu Trovante com a obra "Baile no Bosque" recuar até "Em Nome da Vida" é, no mínimo, obrigatório. Tanto mais que existem no mesmo seguros pontos de referência: a colaboração de Fausto nos arranjos e a vasta panóplia de instrumentos utilizados (será interessante pô-los em confronto: flautas, violas acústicas, adufes, bombo, ferrinhos, bandolim, viola, merengue, marimbas, reco-reco, alaúde, por um lado; sax alto, trompetes, violoncelo, piano, mini-Moog, multimen string ensemble, por outro). O projecto deste álbum era, sem dúvida, ambicioso e algo de mais sublime do que acabou por se consubstanciar. É todavia uma obra verdadeira, sem truques, amostra plena dos Trovante de então.» (Mário Correia, in "Música Popular Portuguesa: Um Ponto de Partida", Centelha/Mundo da Canção, 1984).
Alinhamento:
1. Em Nome da Vida
2. Certeza de Trigo
3. Evoé
4. Para Ti
5. Senhora Minha
6. Homem Só
7. Uma Noite
8. Pombas da Paz
9. Cantemos Victor Jara
10. Terra Morena
Letras de Francisco Viana.
Músicas de Trovante.
Trovante:
Artur Costa – saxofone alto, flauta alto, flauta soprano, viola acústica, voz
João Gil – violas acústicas, voz
João Nuno Represas – percussões, flauta alto, flauta soprano, voz
Luís Represas – voz solo, viola acústica, bandolim, viola baixo
Manuel Faria – piano, sintetizador Mini-Moog, Multimen String Ensemble, acordeão, voz
Colaboração de:
Fausto – viola merengue (3), voz (5)
João Murcho – violoncelo (1)
Manuel Jorge Veloso – marimbas e reco-reco (3), cadeira (8)
Mário de Jesus – trompetes (1)
Paulo Godinho – viola baixo
Pedro Caldeira Cabral – alaúde (4, 8)
Rui Cardoso – flautas transversais (1, 5)
Arranjos – Fausto e Trovante (1, 4, 5, 8) e Trovante
Direcção de produção – Manuel Jorge Veloso
Produção – Editorial Caminho
Gravado nos Estúdios Arnaldo Trindade, Lisboa, na primeira quinzena de Novembro de 1978
Engenheiros de som – Moreno Pinto e Manuel Cunha
Fotos – José Pessoa
Capa – João Nuno Represas
Vol. 1, de Paulo de Carvalho
(LP, Toma Lá Disco, 1978)
[colocar citação]
Alinhamento:
1. Gostava de Vos Ver Aqui
2. Amanhã, um Filho (letra de Fernando Assis Pacheco)
3. Domingo de Praia
4. Lugar Comum, Tão Bonito (Parte 1)
5. Lugar Comum, Tão Bonito (Parte 2)
6. Nini dos Meus Quinze Anos (letra de Fernando Assis Pacheco)
7. Amor Livre (letra de José Carlos Ary dos Santos)
8. A Marcha da Vida
9. Cab'Verde na Estrela (Parte 1) (letra de Fernando Assis Pacheco)
10. Cab'Verde na Estrela (Parte 2)
Letras de Paulo de Carvalho, excepto onde indicado.
Música de Paulo de Carvalho.
Músicos:
Paulo de Carvalho – voz
Pedro Osório – teclas
Vítor Mamede – bateria
Zé Eduardo – baixo eléctrico, contrabaixo
Armindo Neves – violas eléctrica e acústica
Carlinhos – percussão
José Luís Simões – trombone, viola eléctrica
Constantino – trompete
Helena Isabel, Adelaide Ferreira, Argentina Rocha – coros
Colaboração de:
José Nuno Martins – voz falada (1)
Arranjos – Pedro Osório
Produção – Toma Lá Disco
Gravado nos Estúdios da Rádio Triunfo, Lisboa, em Agosto de 1978
Engenheiro de som - José Manuel Fortes
Capa – Luís Beato
10 000 Anos Depois Entre Vénus e Marte, de José Cid
[LP, Orfeu, 1978; CD, Art Sublime (EUA), 1994; CD, Movieplay, 1999]
«"Entre a bruma densa da manhã que quer romper, o planeta Terra já não pode mais viver. Uma nuvem de cimento e de betão que lhe rouba a luz e a razão, guerras nucleares, poluição, nunca mais verá o sol" ("O Último Dia na Terra") Em 1977, vivia-se ainda o clima da guerra fria e o catastrofismo da mensagem nuclear usava-se com devota crença. O álbum conceptual de José Cid, "10 000 Anos Depois entre Vénus e Marte", colou-se ao dispositivo, numa época em que as especulações — científicas, paranormais e sobrenaturais — incitavam a fantasia, sob a inspiração do rock sinfónico, dos livros e dos programas de Arthur C. Clarke e Carl Sagan. A era espacial tinha uma década e os gostos de deriva cósmica eram um "must", que José Cid recorda, evocando a parte inicial do argumento, em que "há um cenário de terceira guerra mundial, um último dia na Terra, em que as pessoas se programam para ressuscitarem milénios depois". "10 000 Anos Depois..." começa com a despedida do planeta, a que se segue o Armagedão: "A tua cidade é uma vala comum, todos os caminhos vão a lugar nenhum." Sobrevém a fuga: "Foge na tua nave no espaço, só." Mas com o herói acompanhado: "Vem, amiga, na nave que comando." Depois é a descoberta, no espaço, de "Mellotron, o Planeta Fantástico" (o "mellotron" é um instrumento de fitas gravadas em cada tecla, que são lidas por cabeças de gravador quando se carrega nas teclas que o compõem. A profusão de sons orquestrais criados provocou, por parte de Cid, a sua elevação a planeta.), até que o planeta, "entre Vénus e Marte", milhares de anos depois, regressa ao inicial vazio idílico em que nasceu a aventura humana. O regresso dos astronautas revela um par Adão-Eva em jeito de sequela bíblica. O argumento é tão ingénuo como a idade da amamentação mas se a literatura em que se sustenta tem o tom épico um rei de fraldas, as calmas modelações rítmicas acompanham com prazer a deambulação dos sintetizadores, criando prometedoras texturas sonoras, que figuram nos divertidos desenhos de Isabel, então a mulher de Zé Nabo, o baixista e guitarrista do álbum: "Claro que é uma história muito 'naïf'. Os desenhos também o são. É uma história de ficção escrita e desenhada de forma 'naïf'. É um contra-senso, mas a arte também vive do contra-senso." Com efeito, à sofisticação instrumental opunham-se as cândidas mensagens a que hoje se chama “ecologistas”, mas que então eram nutridas pela "paz" e pelo "amor". "Quando apareci com este álbum, os comentários na minha editora foram: 'Lá vem mais uma maluqueira do José Cid.'" Como na Orfeu se queixavam de que era um tipo de música sem mercado que a tornasse comerciável, Cid propôs: "Então eu dou-lhes o álbum, editem-no." Foram seus os custos de produção. "10 000 Anos Depois..." surgiu no seguimento do processo de desagregação do Quarteto 1111, que vinha dos anos 60. O último trabalho do grupo, "Onde, Quando, Como, Porquê, Cantamos Pessoas Vivas", de 1974, fora mesmo o baptismo do rock sinfónico português. "Mas que pecava pelas más misturas. A ideia não funcionou", observa Cid. O seu pioneirismo foi apenas seguido pelos Tantra, com "Mistérios e Maravilhas" [1977], e pelos Beatnicks, de Lena d'Água, que nunca chegaram a lançar qualquer álbum. No ano anterior à edição de "10 000 Anos Depois...", Cid gravara o tema de 12 minutos "Vida (Sons do Quotidiano)", na Decca em formato EP, com os músicos Guilherme Scarpa Inês, José Carrapa e Zé Nabo. Cid inverteu depois caminhos e concorreu ao Festival da Eurovisão, em 1980, no que foi uma das melhores classificações portuguesas de sempre [7.º lugar], com "Um Grande, Grande Amor". A melhor justificação para a montanha russa que tem sido a sua carreira é o próprio José Cid quem a dá: "Não me fixo muito, num dia acordo astronauta, e no outro já acordo campino."
"10 000 Anos Depois..." é um disco incontornável para compreender a dinâmica da cultura pop depois do 25 de Abril. Que o rock sinfónico seja branqueado da memória é uma opção indefensável no que refere à História. (...) Durante muitos anos, José Cid foi um dos poucos músicos a conseguir verter para a língua portuguesa novas estéticas musicais da música pop anglo-americana. Muitas terão sido oportunistas, mas não deixaram também de ser convincentes, bem concebidas, com um traço próprio. "10 000 Anos Depois..." recusa a flatulência virtuosística e prolongada de muitas peças semelhantes, através de variações rítmicas e harmónicas, denunciadoras da competência dos músicos. Até para copiar, há que ter engenho. José Cid, por muito que custe aos sisudos do gosto instituído, teve-o.» (Rui Catalão, in "Os Melhores Álbuns da Música Popular Portuguesa: 1960-1997", Público/FNAC, 1998).
Alinhamento:
1. O Último Dia na Terra
2. O Caos (Manuel Lamas / Mike Sargeant)
3. Fuga para o Espaço
4. Mellotron, o Planeta Fantástico
5. 10.000 Anos Depois entre Vénus e Marte (José Cid / Zé Nabo)
6. A Partir do Zero (José Cid / Ramon Galarza)
7. Memos (instrumental)
Letras e músicas de José Cid, excepto onde indicado.
Músicos:
José Cid – mellotron, Moog, ensemble de cordas, pianos, sintetizadores, voz
Zé Nabo – viola solo, viola baixo, viola de 12 cordas, viola acústica
Ramon Galarza – bateria, percussões
Mike Sargeant – viola solo, viola de 12 cordas (em "O Caos")
Arranjos e produção – José Cid
Gravado nos Estúdios Arnaldo Trindade, Campolide, em 1977-1978
Técnicos de som – Jorge Barata e Moreno Pinto
Capa e desenhos – Isabel
Disto & Daquilo, de Disto & Daquilo
(LP, Diapasão/Sassetti, 1983)
«"O ser popular não implica necessariamente o purismo das recolhas musicais, nem sequer a adaptação das mesmas com arranjos subordinados a esquemas ditos populares. Optamos por assumir apenas a nossa cultura, as nossas raízes etno-musicais e assimilar as influências adquiridas por uma vivência urbana." (Disto & Daquilo)A nova música popular portuguesa conhece, no tempo que passa, uma fase de intenso trabalho orientado para as mais diversas tendências estético-expressivas, reflectindo toda uma maturidade de processos e de intenções que corresponde a uma busca consciente e global de um padrão simultaneamente universalizante e identificador. A heterogeneidade da proposta apresentada pelo grupo Disto & Daquilo, de recente formação, exibe essa tendência de globalizar em termos musicais de raiz basicamente popular toda uma série de vivências essencialmente urbanas, tendo como fio condutor a essência dos ritmos populares. A proposta assenta em coordenadas bem definidas: assumir a raiz com uma sensibilidade que projecta uma vivência múltipla de estados e situações, sem preocupações formalistas, ultrapassar a mera estilização heterodoxa (absolutamente necessária mas a dever ser entendida como mero ponto de partida) com a força e a coragem de um sentir novo perante as "velhas" coisas. A música popular nunca se fez nem virá a fazer em laboratórios: nasce no meio social, incorporando as influências que sobre esse mesmo meio se fazem sentir, numa simbiose dinâmica, vivida. O contributo deste trabalho do grupo Disto & Daquilo assume uma feição francamente estimulante no panorama da nova música popular portuguesa ao inserir-se de forma particularmente conseguida numa das suas mais válidas linhas de força: correspondendo a um trabalho/esforço de estilização a partir do elemento tradicional, procura quebrar as barreiras da bitonalidade dominante e caracterizadora desse mesmo elemento, desdobrando-se em acordes que correspondem à integração/assimilação de elementos de composição de diversas origens, de tal modo equilibrada que não se percam as referências culturais portuguesas. Fausto equacionou esta importante proposta numa obra fundamental da discografia portuguesa, o duplo álbum "Por Este Rio Acima", e se aqui o referimos é sobretudo porque pensamos que tal trabalho está a ser correctamente ouvido e analisado, como sucede com este disco do Disto & Daquilo, essencialmente devido à presença como responsável de produção de Eduardo Paes Mamede. É claro que todo este processo complexo de simbiose está sujeito a um desenvolvimento desigual, sobretudo devido a diferentes graus de sensibilidade e distintas vivências musicais do urbano e do rural, mas não é por isso que deixa de corresponder a um movimento dinâmico — ainda um tanto desencontrado e disperso mas com toda uma riqueza e multiplicidade de propostas invulgar — que vai projectar num futuro próximo as bases seguras da nova música popular portuguesa. Estamos certos de que não deixará de assim acontecer e é nesta perspectiva que inserimos o trabalho deste grupo. Utilizando toda uma instrumentação austeramente expressiva, Disto & Daquilo construiu toda uma reflexão sonora de singelos espaços e sugestivos ambientes, percorrendo uma vasta gama de referenciais, os quais registamos: "Disto & Daquilo" (Disto & Daquilo), "Schula" (Popular - Disto & Daquilo), "Timpanas (O Que É Feito Do?)" (Frederico de Freitas - Disto & Daquilo), "Conde d'Alemanha" (Tradicional - adap. de Disto & Daquilo), "Sonho (do) Velho" (Disto & Daquilo / Adriano Fialho), "Doces do Diabo" (Disto & Daquilo), "Pierrot Bêbado" (Fernando Pessoa / Disto & Daquilo), "Cantiga de Aboiar" (Tradicional - Disto & Daquilo) e "Danza" (Luís Pipo) — do tradicional ao popular, da construção de novos temas ao reflectir de velhas e novas situações, eis a viagem proposta pelo grupo de forma particularmente convidativa.» (Mário Correia, in "Música Popular Portuguesa: Um Ponto de Partida", Centelha/Mundo da Canção, 1984).
Alinhamento:
1. Disto & Daquilo (Disto & Daquilo)
2. Schula (Popular - Disto & Daquilo)
3. Timpanas (O Que É Feito Do?) (instrumental) (Frederico de Freitas - Disto & Daquilo)
4. Conde d'Alemanha (Tradicional, adap. Disto & Daquilo)
5. Sonho (do) Velho (Disto & Daquilo - Adriano Fialho)
6. Doces do Diabo (instrumental) (Disto & Daquilo)
7. Pierrot Bêbado (Fernando Pessoa / Disto & Daquilo)
8. Cantiga de Aboiar (Tradicional, adap. Disto & Daquilo)
9. Danza (instrumental) (Luís Pipo)
Músicos:
Zé António – viola e voz
Carlos Sequeira – viola folk, viola braguesa, bandolim, metalofone e voz
Rogerinho – acordeão
Luís Alegria – flauta transversal, flauta de bisel e flauta de êmbolo
Cristóvão – flauta transversal, flauta de cana, gaita-de-foles e voz
Carlos Curto – contrabaixo, percussões e voz
Fernando Santos – percussões
Rui Rosado – percussões
Xico Fragoso – violino e voz
Lola, Tina, Brandão, Sílvia Sequeira, Ana Sustelo, Tozé – vozes
Assistência na organização – Damásio
Produção – Eduardo Paes Mamede / Sassetti
Gravado no Angel Studio, Lisboa, em Maio e Junho de 1983
Captação e misturas – José Fortes e Rui Novais
Capa e design gráfico – Dalton Salem Asseff
Fotografia – Alexandre Carvalho
Rimando contra a Maré, de Rosa dos Ventos
(LP, Diapasão/Sassetti, 1983)
«"A canção acaba por sair como repositório das nossas diferentes vivências culturais. Não somos puristas nem 'rockistas' mas, como de início estávamos muito virados para o movimento pujante e jovem da música popular portuguesa, é natural que sejam introduzidas na música que fazemos, características da nossa música tradicional. (...) Quando partimos para este trabalho não tivemos uma grande preocupação de fazer uma coisa dentro deste ou daquele estilo. As nossas canções são muito portuguesas, com muitos traços da música tradicional, mas também temos influências da música anglo-saxónica dos anos 60, desde os Byrds aos Beatles, passando pelos Crosby, Stills, Nash & Young..." Na altura em que este disco surgiu, em Fevereiro de 1983, estavam ainda frescas as experiências mais ou menos orientadas neste mesmo sentido de três grupos então de recente aparição — Pedra d'Hera, Charanga e Construção — cujas propostas consideramos então como integradas numa corrente post-trovantismo, que definíamos como uma tendência dos mais diversos elementos/influências de outras culturas. Hoje torna-se evidente constatar que cada vez se tornam mais difíceis e um tanto inúteis as classificações parcelares de todo um movimento de múltiplas e diversificadas acções, embora seja por vezes desejável uma sistematização dessas mesmas tendências ou atitudes. Assim, no que concerne à música tradicional, não deixamos de considerar três fases distintas da sua abordagem: a das recolhas discográficas e inventário de publicações com a sua recolha relacionadas; a da estilização mais ou menos heterodoxa, correspondendo a uma linha de primado da recriação da música tradicional, evidenciada nos trabalhos de Almanaque, GAC-Vozes na Luta, Brigada Victor Jara, GEFAC, Raízes, Terra a Terra, Trigo Limpo, Vai de Roda, entre muitos outros; a linha de criação tendo como ponto de partida a música tradicional mas com o primado a incidir na incorporação de outros elementos culturais (procura do elemento universalizante) e operando uma fusão inter-regional intensa, evidente nas obras de Trovante, Charanga, Pedra d'Hera, Construção, Rosa dos Ventos e Disto & Daquilo, ao nível de grupos, e nos trabalhos de Pedro Barroso, Júlio Pereira, José Afonso e Fausto, entre outros (de uma maneira geral importa constatar que todos os nomes verdadeiramente representativos da nova música popular portuguesa se inscrevem, aos mais distintos níveis, neste processo). Por outro lado, torna-se igualmente evidente que todas estas atitudes coexistem, por vezes mesmo ao nível de um mesmo criador, sendo ainda de referir a existência de propostas que não apresentam qualquer afinidade de princípios com a música tradicional, nem mesmo ao nível da mais remota e mínima influência, e que não é por isso que não constituem seguras amostras de música popular (caso de um Fernando Tordo, por exemplo, essencialmente mais próximo da chamada música europeia). Multiplicidade no seio da unidade em construção: assim entendemos o movimento actual em torno da música popular portuguesa. Rosa dos Ventos é um grupo cujo primeiro trabalho, "Rimando Contra a Maré", nos veio colocar perante todas estas questões de forma particularmente intensa devido ao facto de se tratar de uma obra em que resulta evidente o desejo de assumir as mais amplas referências culturais (como pano de fundo) características das atitudes atrás descritas. O grupo evolui em formas globais de música popular nas quais a dominante tradicional nem sempre tem o mesmo peso, assumindo a dimensão múltipla do invulgar poder de criação de José Medeiros, em torno do qual o trabalho do Rosa dos Ventos parece gravitar, sendo de destacar igualmente o labor de João Miguel, um dos outros elementos determinantes da estrutura sonora do grupo. Estrutura sonora que se caracteriza pela elaboração de uma música muito cuidada, contendo em si todo um trabalho de pesquisa intenso e um certo desejo de "retorno às origens". Integram "Rimando Contra a Maré" os seguintes trechos: "Cantiga de Amor" (letra de José Medeiros, música de João Miguel), "Canção para Maria" (José Medeiros), "Baladilha" (José Medeiros), "Em Jeito de Sapateia" (José Medeiros), "Novo Amanhecer" (letra de Luísa Mareante, música de João Miguel), "O Voo do Pássaro" (letra de João Manuel e José Medeiros, música de João Miguel), "Invenção" (letra de José Fanha, música de Eduardo Paes Mamede), "O Espanto das Caravelas" (letra de Fernando Reis Jr., música de João Miguel), "Feira Antiga Feira Nova" (letra de José Medeiros, música de João Miguel e José Medeiros), "Vai de Roda" (João Miguel) e "Rimando contra a Maré" (José Medeiros). "Rimando Contra a Maré" é um trabalho importante no panorama em construção da nova música popular portuguesa: "Nós / Viemos p'ra desvendar / Um cantar que deu à luz / Um tempo que nos seduz / Viemos p'ra descobrir / Que o mar guarda uma paixão / Nas cordas de um violino / Viemos p'ra navegar / Cantigas de dor e fé / Rimando contra a maré".» (Mário Correia, in "Música Popular Portuguesa: Um Ponto de Partida", Centelha/Mundo da Canção, 1984).
Alinhamento:
1. Cantiga de Amor (José Medeiros / João Miguel)
2. Canção para Maria (José Medeiros)
3. Baladilha (José Medeiros)
4. Em Jeito de Sapateia (ao Mário Mareante) (José Medeiros)
5. Novo Amanhecer (Luísa Mareante / João Miguel)
6. O Voo do Pássaro (João Manuel e José Medeiros / João Miguel)
7. Invenção (José Fanha / Eduardo Paes Mamede)
8. O Espanto das Caravelas (Fernando Reis Jr. / João Miguel)
9. Feira Antiga, Feira Nova (José Medeiros / João Miguel e José Medeiros)
10. Vai de Roda (João Miguel)
11. Rimando contra a Maré (José Medeiros)
Rosa dos Ventos:
Telmo Palma – viola da terra, guitarras eléctricas, harmónica
Vera Quintanilha – vozes
Elisa – vozes
Tólis – guitarra baixo
João Miguel – guitarra de 12 cordas, guitarras acústicas
José Medeiros – adufe, vozes, piano, batuque, guitarra acústica, cordas
Colaboração de:
Sérgio Mestre – flautas, vozes
Mário Ribeiro – guitarra acústica
Rui Vaz – adufe, percussão, gaita-de-foles, bombo
Pedro Casais – contrabaixo
Rabanal – bateria
Ed (Eduardo Paes Mamede) – percussão, triângulo
Produção – Eduardo Paes Mamede / Sassetti
Técnicos de som – Rui Novais, José Fortes e Luís Flor
Misturas – Rui Novais
Capa e desenhos – José Frazão
Fotografia – Alexandre Carvalho
Estilhaços, de Terra a Terra
(LP, Rádio Triunfo, 1983; CD, Movieplay, 2005)
«Movimentando-se no campo da estilização heterodoxa da música popular tradicional, o grupo Terra a Terra não logrou com os seus primeiros dois trabalhos — os álbuns "Dançando e Purilando" (1980) e "Pelo Toque da Viola" (1982) — guindar-se a um plano de irrefutável qualidade e de segura e autenticamente enraizada expressividade. O jogo de influências exerceu uma considerável tirania criativa mercê do facto de elas mesmas não terem funcionado apenas como pontos de partida/referência de um trabalho de procura, mas antes assumirem a função asfixiante das coisas que por inacabadas nos deixam a incómoda sensação de algo que ficou pelo caminho, inexpressivo, confuso, não autêntico. Jaime Ferreira, um dos elementos do grupo, afirmou que após terem sido criadas condições para "desfazer uma série de equívocos", o grupo apostou em força contra uma imagem que pretende afastar em absoluto: "Uma ambiguidade e uma falsa ingenuidade que definitivamente renegamos". "Estilhaços" exibe mudanças qualitativas assinaláveis que, a nosso ver, marcam acentuada e precisamente a evolução do trabalho do grupo: o aligeiramento da enorme carga vocal do grupo, a melhor e mais criteriosa utilização instrumental e uma redefinição de princípios de base. Parece-nos importante constatar a correcta auto-denúncia da designação de "grupo de recolha", "Não somos um grupo de recolha. O nosso trabalho limita-se ao aproveitamento do património musical existente para, a partir daí, fazermos o que a nossa própria sensibilidade pede. Nesta ordem de ideias, verifica-se a recorrência a fontes dignas de todo o crédito, como sejam os recolhas de César Neves e Gualdino Campos ("Chula de Penafiel", "S. Gonçalo d'Amarante", "Mirandum se Fui a la Guerra"), Fernando Lopes Graça ("Fui-te Ver 'stavas Lavando", "Meu Coletinho aos Ramos"), Michel Giacometti ("Festas de Campo Maior", "Corridinho"), Margot Dias ("Olha o Velho, Olha o Velho") e de Adelino A. das Neves e Melo ("Chula ou Ramalde"). À excepção da última, todas estas cantigas se acham incluídas nesse monumento riquíssimo da cultura musical portuguesa que se chama "Cancioneiro Geral do Povo Português". "Estilhaços" é um trabalho que vem introduzir o grupo Terra a Terra no grande plano de todos quantos recriam a música tradicional com expressividade e autenticidade. Traz-nos a certeza de que finalmente Terra a Terra está no bom caminho: "A cantar a terra o povo anuncia o raiar de um novo dia!"» (Mário Correia, in "Música Popular Portuguesa: Um Ponto de Partida", Centelha/Mundo da Canção, 1984).
Alinhamento:
1. Fui-te Ver 'stavas Lavando (rec. Fernando Lopes-Graça – Alentejo)
2. Chula de Penafiel (rec. César das Neves e Gualdino de Campos – Douro Litoral)
3. Meu Coletinho aos Ramos (rec. Fernando Lopes-Graça – Beira Baixa)
4. Festas de Campo Maior (rec. Michel Giacometti – Alto Alentejo)
5. Olha o Velho, Olha o Velho (rec. Margot Dias – Trás-os-Montes)
6. S. Gonçalo d'Amarante (rec. César das Neves e Gualdino de Campos – Douro Litoral)
7. Mirandum se Fui a la Guerra (rec. César das Neves e Gualdino de Campos e Ferreira Deusdado – Trás-os-Montes)
8. Corridinho (instrumental) (rec. Michel Giacometti – Algarve)
9. Chula ou Ramalde (rec. Adelino António das Neves e Mello – Minho)
10. Vitral (Mário Piçarra)
Todas as recolhas integram a obra "Cancioneiro Popular Português", de Michel Giacometti e Fernando Lopes-Graça (Lisboa: Círculo de Leitores, 1981), excepto "Chula ou Ramalde", que faz parte de "Músicas e Canções Populares", de Adelino António das Neves e Mello (Lisboa: Imprensa Nacional, 1872).
Terra a Terra:
Beatriz Alexandre – coros
Fernanda Lopes – voz solo, coros
Jaime Ferreira – flautas, voz solo, coros, percussões
Júlia Paula – voz solo, coros, percussões
Luísa Vasconcelos – voz solo, coros, percussões
Marilena – coros
Mário Piçarra – voz solo, coros, viola, percussões
Rui Costa – coros, percussões
António Júlio – voz solo, coros, cavaquinho, braguesa, percussões
Victor Amorim – coros, viola, cavaquinho, bandolim, percussões
Participação especial de:
Aníbal Madeira – guitarra, baixo, bateria, caixa e percussão
Jorge Pedro Reis – violino
Carlos Barreto – contrabaixo
Luís Sá Pessoa – violoncelo
António Carracedo – gaita-de-foles
Arranjos – Jaime Ferreira, Mário Piçarra, Victor Amorim
Direcção musical – Jaime Ferreira, Mário Piçarra
Direcção de produção – Jaime Ferreira e Mário Piçarra
Produção – Rádio Triunfo
Gravado nos Estúdios Rádio Triunfo, Lisboa, de 26 de Abril a 6 de Julho de 1983
Técnicos de som – Jorge Barata e Moreno Pinto
Mistura – Jorge Barata, Jaime Ferreira, Mário Piçarra
Masterização (edição em CD) – José António Regada
Concepção da capa – Jaime Ferreira
Fotografias e arranjo gráfico – Alexandre Carvalho
Vai de Roda, de Vai de Roda
(LP, Orfeu, 1983; CD, Movieplay, 1997)
«"Queremos salientar que aquilo que ouvireis não é textualmente a recolha realizada. Não temos a intenção de reduzir um trabalho deste tipo a rigor documental. É antes um produto nosso sobre um canto tradicional e de raiz. Isto por uma razão: é que as canções populares não são estáticas nem individuais. E como tal, são passíveis de múltiplas interpretações e tratamentos (...) Reafirmando que o nosso folclore — sem aspas — não é estático, vamos buscar ao purismo/recolha aquilo que consideramos válido, ou seja, o manter do tema-texto e sua estrutura musical, e a preservação dos instrumentos tradicionais e rústicos. E vamos buscar à outra — mais livre — a imaginação/liberdade que consideramos ser a premissa mais válida dessa linha, que o purismo como tal não contém, mas que o folclore possui para dar e vender."
Com a edição do disco "Vai de Roda" materializa-se um pouco do que foi o intenso trabalho desenvolvido pela Cooperativa Etno-Cultural Vai de Roda, cujo nascimento ocorreu em 1978. Desde então percorreram sobretudo o Norte do país ("Não por este conter em si quaisquer qualidades a sobrevalorizar, mas porque nos sentimos ligados a ele por raízes pessoais e culturais") e realizaram aturado esforço no campo da música tradicional, "pegando em recolhas já feitas por outros etnólogos e noutros tempos, e recolhendo nós também uma a uma as canções — mesmo que por vezes elas não sejam mais que um pretexto de interpretação espontânea de uma frase melódica — tudo isso nos vai servir para um trabalho de estudo, pesquisa e futuro tratamento musical. Sentindo-as e compreendendo-as, analisando e estruturando mediante as características melódicas e respectivos temas, testamos num esforço colectivo o trabalho elaborado, mediante as nossas capacidades instrumentais e vocais, e tudo o resto que nos ocorre provém da sugestão que parte da recolha inicial".
Para o grupo Vai de Roda, a música tradicional, que para o homem do campo faz parte da sua vida diária, assume "uma função de arte e de dignificação da criatividade artística do povo". Isto é mais que evidente no conteúdo do trabalho agora apresentado, que passamos a referir, o qual é bem mais expressivo que as palavras: "Minha Roda 'stá Parada" (recolha de António Joyce, nas margens do Rio Zêzere), "Quadrilha Mandada" (recolha do grupo em Pias, Cinfães), "Chula" (recolha de António José Espinheira Rio, em Ponte da Barca, Minho), "Bai-te Labar Morena" (recolha de Pedro Homem de Mello, em Gondarém, Alto Minho), "Mineta" (recolha de Michel Giacometti, em Vinhais, Trás-os-Montes), "Moinhos" (letra de José Carlos P. dos Santos; música recolhida por Isabel Afonso, em Granja do Tedo, Beira Alta), "Tenho Um Moinho" (recolha de Marina Graça, em Vilar d'Ossos, Trás-os-Montes), "Contra-Dança I", "Contra-Dança II" e "Eu m'Arrogo pr'á Batalha" (todas do Auto de Floripes, recolhidas pelo grupo na Aldeia das Neves, em Viana do Castelo), "Malhão Velho" (recolha de Tentúgal, no Minho), "Macelada" (recolha de Hubert de Fraysseix/Unesco, em Monsanto, Beira Baixa), "Moda do Bombo-Toque de Santa Luzia" (recolha de Michel Giacometti, em Castelejo, Beira Baixa) e "Oh Que Calma Vai Caindo" (recolha de Rodney Gallop, em Casegas, Castelo Branco).
O tom sequencial, qual ciclo das estações repetindo e renovando "o princípio circular, repetitivo da raiz que o tempo tem", faz deste trabalho uma obra imaginada ao nível de vivência das situações que descreve e recria, de tal modo conseguida e elaborada que se afirma essencialmente como música de ambientes, desenvolvendo-se em grandes e humanos espaços sonoros. Paralelamente à recriação e divulgação da música tradicional, Vai de Roda dedica particular atenção aos instrumentos populares quer construídos pelo próprio grupo ou "já à mão semear", com particular atenção para os que entre nós se encontram em vias de extinção, como é o caso da sanfona portuguesa, "A sanfona portuguesa existiu entre nós até finais do séc. XIX, princípios do séc. XX. Até meados do séc. XIV utilizado como instrumento de corte, no reinado de D. Pedro I de Portugal passa — e por decisão deste, ao despedir os únicos sanfonineiros ao seu serviço — para as mãos dos músicos ambulantes, pedintes e cegos, caindo na descrença e na extinção total".
Afigura-se-nos de extrema importância o esforço do Vai de Roda no sentido de negar e de modo francamente positivo a ignorância e o esquecimento de instrumentos populares como a sanfona, pois acreditamos que a nova música popular portuguesa em construção será tanto mais enraizada e expressiva quanto mais e mais profundo for o conhecimento daquela que tem de constituir a sua espinha dorsal, a imensamente rica música tradicional portuguesa. Acreditamos no canto de raiz transportado pelo Vai de Roda, um grupo que vem introduzir um contributo muito importante na corrente dos lavradores dos campos da música tradicional: um contributo rigoroso, cheio de alegria e amor à terra.
Álbum primorosamente concebido e invulgarmente apresentado, "Vai de Roda" devolve-nos para o que de melhor até hoje se fez no campo da recriação da música tradicional, "No cimo dos montes aprendemos o silêncio e o tempo. Aprendemos a esperança e acreditamos na espontaneidade da vida. Tudo recomeça novamente — E VIVA A MÚSICA!"» (Mário Correia, in "Música Popular Portuguesa: Um Ponto de Partida", Centelha/Mundo da Canção, 1984).
Fernando Magalhães, na apreciação que faz ao disco, não deixa também de frisar a recuperação, pela mão de Manuel António Tentúgal, da sanfona: «Se outra razão não existisse para incluir este primeiro trabalho do grupo do Porto na lista dos melhores de sempre da música portuguesa de raiz tradicional, uma só bastaria para o individualizar e marcar uma posição de diferença perante todos os outros: a recuperação de um instrumento caído em desuso e na decadência, a sanfona. Em "Vai de Roda", Tentúgal faz entrar pela primeira vez, em disco, a sanfona no instrumentário tradicional português. Uma utilização ainda tímida, apoiada sobretudo nos bordões, mas que trouxe para esta área musical uma sonoridade nova que viria a ser explorada em pleno no segundo álbum do grupo, "Terreiro das Bruxas" [1990]. Não se tratou, de forma alguma, de uma opção gratuita, de uma tentativa isolada para tornar mais exótica uma música que sempre procurou conforto na facilidade das braguesas e dos cavaquinhos, mas antes o resultado de um estudo aprofundado das suas origens e potencialidades de transmutação. Tentúgal sempre fugiu ao óbvio e esta fuga levou-o a procurar nas catacumbas da música antiga – Idade Média e Renascimento – um veio esquecido ou menosprezado pela maioria dos discípulos e aprendizes da MPP, onde tanto a sensibilidade contemporânea como a sua irmã tradicional se pudessem reconhecer. É precisamente nos temas onde a sanfona faz a sua aparição, seja no de abertura "Minha roda 'stá parada”, cujos adereços sonoros antecipavam já a estética de encenação sonora presente em "Terreiro das Bruxas", seja na versão de "Mineta" (mais interiorizada que o arquétipo inscrito no primeiro álbum da Ronda dos Quatro Caminhos) ou ainda no ambientalismo étnico do instrumental que fecha o disco, "Oh Que Calma Vai Caindo", que a música se aprofunda e ganha maior poder de sugestão. Uma visão da tradição fixada ainda na fidelidade possível às formas originais e cativa do respeito pelo dogma das recolhas, mas onde era já nítida a subjectividade de leitura e a vontade de conceptualização.» (Fernando Magalhães, in "Os Melhores Álbuns da Música Popular Portuguesa: 1960-1997", Público/FNAC, 1998).
Alinhamento:
1. Minha Roda 'sta Parada (Rec. António Joyce – margens do Zêzere, Beira Baixa)
Quadrilha Mandada (Rec. Vai de Roda – Pias, Cinfães, Douro Litoral)
2. Chula (Rec. António José Espinheira Rio – Ponte da Barca, Minho)
3. Bai-te Labar, Morena (Rec. Pedro Homem de Mello – Gondarém, Alto Minho)
4. Mineta (Rec. Michel Giacometti – Vinhais, Trás-os-Montes)
5. Moinhos (Letra de José Carlos P. dos Santos / Música: Rec. Isabel Afonso – Granja do Tedo, Beira Alta)
Tenho um Moinho (Rec. Marina Graça – Vilar d'Ossos, Trás-os-Montes)
6. Contra-Dança I (Auto da Floripes – Tema dos Turcos) (Rec. Vai de Roda – Aldeia das Neves, Minho)
7. Malhão Velho (Rec. Manuel António Tentúgal – Minho)
8. Macelada (Rec. Hubert de Fraysseix – Monsanto, Beira Baixa)
Moda do Bombo (Toque de Santa Luzia) (Rec. Michel Giacometti – Castelejo, Beira Baixa)
9. Eu m'Arrogo pr'á Batalha (Auto da Floripes) (Rec. Vai de Roda – Aldeia das Neves, Minho)
Contra-Dança II (Auto da Floripes – Tema dos Cristãos) (Rec. Vai de Roda – Aldeia das Neves, Minho)
10. Oh Que Calma Vai Caindo (Rec. Rodney Gallop – Casegas, Castelo Branco, Beira Baixa)
Músicos:
Manuel António Tentúgal – voz solo, sanfona portuguesa, banjolim, harmónio, cavaquinho, violino, braguesa, viola com arco, baixo acústico, gaita-de-foles, ponteira, ocarina soprano, tambor e congas marroquinas, adufe, pandeireta, bombo, caixa, coros, grilos e arreiocos
Abi Feijó – pífaro de barro, ponteira, ocarina soprano, carrilhão de canas, demónio da floresta, piassába no bombo, címbalos, canas e foguetório, palmas
Agostinho Couto – guitarra, braguesa, baixo acústico, búzio, demónio da floresta, garrafa com garfo, canas, sineta, caixa de ovos, coros e foguetório; concepção da braguesa em "Contra-Dança I" e "Quadrilha Mandada"
Amílcar Sardinha – voz solo, gaita-de-beiços, cavaquinho, trancanholas, pandeiro com milho, sarronca, bombo, palmas, almofariz, sino, canas e coros
Carlos Adolfo – guitarra, cavaquinho, conchas, garrafa com garfo, palmas, paulitos, coros e foguetório; concepção de guitarra clássica em "Mineta"
Fernando Carvalho – adufe, bombo, caixa, baixo acústico, pandeireta, genebres, forma com milho, ocarina baixo, cuco, guizos, sino, palmas, paulitos, corno, coros, gritos, arreiocos e foguetório
Gi – voz, canas e palmas
Isabel Leal – voz, guitarra, canas e palmas
Nanda – voz, pinhas e palmas
Né Santelmo – voz, canas, carrilhão de seixos, chocalhos e palmas
Paula – voz, chocalhos e palmas
Preciosa Branco – voz, canas, carrilhão de chaves, chocalhos e palmas
Raul – banjolim, guitarra, baixo acústico, pandeireta, caixa, timbalão, caixa de ovos, palmas, garrafa com garfo, canas, sineta e coros
Músicos convidados:
Isabel Afonso – voz solo
Mina – segunda voz, em "Moinhos"
Zé Vítor – flauta sopranino
Arranjos e direcção musical – Manuel António Tentúgal
Produção artística – Vai de Roda
Gravado nos Estúdios da Rádio Triunfo, em 11, 12 e 13 de Maio e 27, 28 e 29 de Junho de 1983
Técnicos de som – Moreno Pinto e Jorge Barata
Mistura – Moreno Pinto, Manuel António Tentúgal e Abi Feijó
Capa e arranjo gráfico – Né Santelmo e Abi Feijó
Texto narrativo – Fernando Carvalho
Braguesa, de Júlio Pereira
(LP, Triângulo/Sassetti, 1983; CD, CNM, 1994, 2008)
«É um mundo sonoro diferente do proporcionado com o cavaquinho [no álbum homónimo, de 1981], este que nos traz Júlio Pereira com a viola braguesa. Embora todo o processo de aproximação e ligação cultural ao instrumento tenha sido em tudo semelhante ao que se desenvolveu com o cavaquinho, a abordagem à viola braguesa apresenta-se, a nosso ver, de forma mais intensa, elaborada e enraizada, os ambientes musicais em que evolui são mais complexos e expressivos. Para tal terá com certeza contribuído a experiência anterior mas foi mais determinante o facto de a braguesa ser um instrumento com maiores possibilidades musicais. «O cavaquinho", afirma Júlio Pereira, "é reguila, saltitante, vivo. O mundo sonoro da viola braguesa é diferente, intimista, melancólico".
Independentemente da validade de cada uma das obras, parece-nos que "Braguesa" é um trabalho incomparavelmente superior, não se pretendendo com isto cometer o erro de comparar dois trabalhos com características muito próprias sobretudo ditadas pelas diferentes potencialidades de cada um dos instrumentos dominantes. Mas, no fundo, com a "Braguesa" reedita-se o reencontro com as nossas mais profundas e marcantes tradições musicais de raiz popular, de uma forma criativamente assumida através de uma leitura dinâmica que não renega todo um complexo conjunto de variados elementos influenciadores, oriundos de distintas formas e géneros musicais. E nesta atitude determinante pensamos residir muito do actual vigor e expressividade da música popular dos nossos dias. Só assim se compreende a importância de assumir toda uma herança cultural: operar, dentro dos limites do possível, a fusão inter-regional e submeter o trabalho criativo ao jogo interactivo das influências, num confronto de sensibilidades e referenciais enriquecedor e universalizante. "Braguesa" é um trabalho com a incomensurável dimensão da nossa essência projectada culturalmente no cruzamento das culturas que se cruzam dentro de nós próprios e que afinal nos definem como habitantes já não da longínqua e perdida aldeia de fechadas tradições e hábitos próprios mas de todo um universo aberto e globalizante, no seio do qual é decisivo sabermos continuar a sermos nós mesmos. Ao nível instrumental colaboraram neste trabalho: José Manuel Marreiros (piano), Pedro Caldeira Cabral (viola da gamba, ocarina), Carlos Zíngaro (violino), Rui Cardoso (saxofone soprano, flauta transversal, flautim), Sérgio Mestre (flauta transversal), Rui Júnior (caixas, tablas), Janita Salomé (paus, adufes, trancanholas), António Serafim (oboé), Guilherme Inês (bombo) e Edgar Caramelo (saxofone), além do próprio Júlio Pereira (cavaquinhos, braguesas, viola acústica, baixo acústico, genebres, guizos, piano eléctrico, baixo eléctrico, bombo, tambores, harmónio, paus). Destaque ainda para a colaboração vocal de Orlando Costa, Janita Salomé, Cramol-Grupo de Canto de Mulheres da Biblioteca Operária Oeirense, Catarina Salomé, Marta Salomé e Amélia Muge. Os temas incluídos, todos com arranjo de Júlio Pereira e de raiz popular, são do Minho ("Rosinhas", "Laurindinha
Laranja Laranja", "Vira Velho" — recolha de Adriano Correia de Oliveira — e "Vai-te Lavar Morena"), de Trás-os-Montes ("Ó Aninhas, Ó Aninhas", "Olha a Triste Viuvinha", e "Murinheira" — recolha do GAC), da Beira Baixa ("Milho Verde" — recolha de Ernesto Veiga de Oliveira), do Douro Litoral ("O Anel Que Tu Me Deste" — recolha de Fernando Lopes Graça), do Alentejo ("Ó Minha Amora Madura" — recolha de José Afonso), de Júlio Pereira ("Quatro Elementos") e de Orlando Costa ("Saudades Não Venhais Juntas").
"Braguesa" — um trabalho fundamental da música popular portuguesa.» (Mário Correia, in "Música Popular Portuguesa: Um Ponto de Partida", Centelha/Mundo da Canção, 1984). Pela justeza da sua apreciação, vale também a pena atentar nas palavras de Fernando Magalhães: «O sucesso com que foi acolhido "Cavaquinho", um álbum que deixou marcas no modo de sentir e fazer música tradicional portuguesa, fez aumentar as responsabilidades de Júlio Pereira, curiosamente um músico saído da escola do rock. "Braguesa" constituiu a melhor resposta ao imediatismo e apelo popular do álbum anterior, forçado a obedecer às exigências de um instrumento, o cavaquinho, demasiado arreigado à tradição minhota com as suas características de vincada extroversão. A braguesa, pelo contrário, de sonoridade menos cerrada, permitiu a Júlio Pereira libertar-se para uma visão mais pessoal e experimentalista do universo tradicional. Não foram só os horizontes geográficos que se alargaram, agora num roteiro que descia de Trás-os-Montes ao Alentejo: a própria noção de interpretação incorporou novos conceitos e possibilidades estilísticas, a começar pelo enriquecimento das estruturas rítmicas populares, desde sempre uma das particularidades formais da obra deste autor. A isso acrescentou-se uma diversificação e exploração tímbrica, que em "Milho Verde" anunciava já as futuras incursões no tratamento computorizado dos sons e em "Ó Aninhas, ó Aninhas" e "Murinheira", dois tradicionais transmontanos, se manifestava num conhecimento, não apenas intuitivo, no primeiro caso, das cadências que neste século andam associadas à música antiga e, em "Murinheira", de algumas das premissas hoje seguidas na chamada "world music". Dois extremos que ilustram, ao nível dos arranjos, toda uma atitude demonstrada por um músico que chegou a estar enredado nas malhas de um estilo inconfundível, sem, contudo, deixar de manter a necessária distância de si próprio, de maneira a, nas alturas devidas, romper com o passado e dar o salto seguinte na escala da sua evolução pessoal. "Braguesa", no perfeito equilíbrio que estabelece entre a voz popular e a erudição do perfeccionista (sintetizado de modo exemplar num tema como "Olha a Triste Viuvinha”), representa a matriz dessa evolução que vem caminhando dos espaços rasgados do nosso folclore, para os espaços milimétricos e labirínticos que são os da arte, pessoal e intransmissível, de Júlio Pereira, aqui desenhados sem preconceitos de qualquer espécie no tema final, "Quatro elementos".» (Fernando Magalhães, in "Os Melhores Álbuns da Música Popular Portuguesa: 1960-1997", Público/FNAC, 1998).
Alinhamento:
1. Rosinhas (Ó Rosinha do Meio / Vira de Sta. Marta) (Popular – Minho)
2. Laurindinha Laranja Laranja (Popular – Minho)
3. Saudades Não Venhais Juntas (Orlando Costa)
4. Ó Aninhas, Ó Aninhas (Popular – Trás-os-Montes)
5. Vira Velho (Popular/rec. Adriano Correia de Oliveira – Minho)
6. Milho Verde (Popular/rec. Ernesto Veiga de Oliveira – Beira Baixa)
7. O Anel Que Tu Me Deste (Popular/rec. Fernando Lopes Graça – Douro Litoral)
8. Vai-te Lavar, Morena (Popular – Minho)
9. Olha a Triste Viuvinha (Popular – Trás-os-Montes)
10. Ó Minha Amora Madura (Popular/rec. José Afonso – Alentejo)
11. Murinheira (Popular/rec. G.A.C. – Trás-os-Montes)
12. Quatro Elementos (Júlio Pereira)
Músicos:
Júlio Pereira – braguesas, cavaquinho, viola acústica, baixo acústico, genebres, guizos, piano eléctrico, baixo eléctrico, bombo, viola eléctrica, tambores, harmónio, paus, palmas
Orlando Costa – voz (3, 12)
Janita Salomé – voz, paus, adufes, trancanholas, palmas
José Manuel Marreiros – piano (3)
Pedro Caldeira Cabral – viola da gamba, ocarina
Carlos Zíngaro – violino
Sérgio Mestre – flauta transversal (4, 9)
Rui Cardoso – saxofones soprano, flauta transversal, flautim
Rui Júnior – caixas, tablas
Cramol – Grupo de Canto de Mulheres da Biblioteca Operária Oeirense – vozes (6)
António Serafim – oboé (8)
Catarina Salomé e Marta Salomé – vozes (9)
Amélia Muge – voz (12)
Guilherme Inês – bombo (12)
Edgar Caramelo – saxofone (12)
Arranjos e direcção musical – Júlio Pereira
Direcção de produção – Júlio Pereira
Gravado no Angel Studio I, Lisboa, em Fevereiro e Março de 1983
Técnico de som – José Manuel Fortes
Mistura – José Manuel Fortes e Júlio Pereira
Capa e arranjo gráfico – Celeste Dias Santos
Fotos da capa – João Firmino
Reportagem fotográfica – Félix Fernandes
Fotos pormenor – Amélia Muge e Carmo Romão
Texto "Violas Portuguesas", por Ernesto Veiga de Oliveira (in "Separata do Vol. 1 das Actas do V Colóquio Internacional de Estudos Luso-Brasileiros")
O Ó, Que Som Tem, de Rui Júnior
(LP, Diapasão/Sassetti, 1983)
«"O Ó, Que Som Tem?", o projecto de percussões de Rui Júnior, editado em 1983, representa a visão pessoal deste músico, em cujo currículo figuram colaborações com Júlio Pereira, Fausto, José Afonso, José Mário Branco, Sérgio Godinho, Janita Salomé, Vitorino, Rão Kyao, Jorge Palma, António Pinho Vargas e Amélia Muge, ou seja, a nata do que se convencionou chamar "música popular portuguesa"."O Ó, Que Som Tem?" resultou, nas palavras do seu mentor, da "necessidade de poder compor e interpretar com instrumentos de percussão". Na altura, ninguém tinha muita experiência de estúdio. "Ninguém sabia como seria meter percussionistas num estúdio e gravar um disco." Para Rui Júnior, "o José Fortes [engenheiro de som] foi muito útil em todo o trabalho", por estar "mentalmente muito disponível", mas também por ter "disponibilizado o estúdio".Rui Júnior recorda que o grupo, na ocasião, encheu o chão com uma quantidade de canas. "Queríamos um som de canas. Fomos a um canavial que havia lá perto, cortámos as canas, levámo-las para o estúdio e fizemos várias experiências, batendo com elas no chão. Depois íamos buscar mais e voltávamos a experimentar. Acabou por ficar tudo sujo." "Por isso", acrescenta, "há que louvar também a disponibilidade da senhora que fazia as limpezas!"A gravação representou para todos "uma descoberta". "Em estúdio o som tem que ser tratado de outra maneira. Tivemos, em conjunto com o José Fortes, de proceder a experiências ao nível da captação. Onde e como se deviam captar os bombos, por exemplo. Neste caso, a ideia foi obter um som mais ou menos de ar livre, através da utilização de uma sala muito grande, na maior parte das vezes com os microfones no ar, por cima de nós e a uma certa distância.""O Ó, Que Som Tem?" demorou uma semana a ser gravado. Durante esse período, as coisas "correram bem ao nível da gravação, embora menos ao nível da produção". Rui Júnior refere a este propósito a existência de "algumas faíscas", entre ele e o produtor da Sassetti. "A ideia deles era diferente da minha. O meu disco resultou de uma aposta da Sassetti, no seguimento do 'Cavaquinho', do Júlio Pereira, e do 'Por Este Rio Acima', do Fausto, dois discos em que participei. Quando lhes falei no novo projecto, pensaram logo em mais uma coisa dentro do mesmo estilo, música popular, tum tum tum, isto vai ser canja. Quando se começaram a aperceber que não ia ter os mesmos ingredientes, com sintetizadores, uns coros, umas coisas bonitas e tal, é que foi pior. A ideia deles era limar, uniformizar, para obter um som que pudesse ser mais vendável. Por isso fiz muita questão que a 'master' não fosse tocada por ninguém. O produtor praticamente não teve influência. Tive que me impor para impedir que houvesse mudanças."O que, por outras palavras, significa que Rui Júnior sempre se regeu e continua a reger exclusivamente por critérios de ordem estética e nunca de ordem comercial. "Guio-me pelo meu gosto pessoal, como única forma de coerência." Sobre este aspecto o percussionista cita o tema de abertura do álbum, "Recolhimento", onde mistura coros gregorianos com adufes. "Hoje [1995] já se ouve os mesmos cânticos gregorianos sobre uma batida funk... Eu fiz isso doze anos antes, porque gostava, talvez por influência da minha mãe, que cantava nas igrejas, 'Avés-Marias', essas coisas. Achei que não havia ligação mais bonita que a dos cantos com aquele ritmo."E, afinal de contas, o ó, que som tem? "É um jogo de sons que me foi sugerido pelo meu pai, a propósito de uma das brincadeiras que tinha, quando era pequenino. Um miúdo voltava-se para outro e perguntava: 'O ó, que som tem? ' O outro respondia: 'Ora de ó, ora de u.' Uma espécie de mini-ladainha."
É sabido que as percussões, na música tradicional portuguesa, não primam pela subtileza. É mais bombos e foguetório, pés bem assentes na terra e gritar muito de baixo para o alto. É certo que no Minho ou nas Beiras há quem bata com mão mais ligeira o adufe, como a já mítica Catarina Chitas, de Penha Garcia. Só que depois ouvimos todas aquelas senhoras da Galiza a manejarem as pandeiretas como se estas tivessem asas, e olhamos desconsolados para o nosso descomunal umbigo em forma de bombo.Rui Júnior achou que não tinha que ser necessariamente assim. Armou-se de um grupo de amigos – e de percussões – e decidiu inverter o processo. Nas suas mãos e nas dos seus companheiros, as peles, os sinos, os tubos, as madeiras, as pinhas, as canas, até os bombos, transformaram-se em utensílios nobres, para a construção de polirritmias que devem tanto à música portuguesa como a África, ao Brasil e à Índia, quando não a batimentos ainda mais primevos."O Ó, Que Som Tem?" representa não só a emancipação e dignificação de uma classe de instrumentos, as percussões, como a instauração de uma estética que hoje é cultivada em todo o mundo mas que em Portugal não teve seguidores. Para Rui Júnior, as percussões, do simples tambor às canas que chocam contra o chão, devem cantar uma melodia, ter um discurso próprio para além da simples marcação de tempos. Razão pela qual o músico se veio a especializar anos mais tarde nas "tablas" indianas, instrumento de grande riqueza cromática, capaz de, com as suas alturas variadas, fazer o que ele lhes pede, isto é, cantar.
No disco, é visível esta conjugação entre, por um lado, a estilização da linguagem percussiva e, por outro, a ligação aos alicerces rítmicos tradicionais, não só portugueses, como já foi dito. Emblemático desta dialéctica entre o apego às raízes e o desejo de renovação é o tema de abertura, "Recolhimento", onde a fusão do canto gregoriano e da gaita-de-foles com os adufes, o vibrafone e os sinos lhe confere uma dimensão de religiosidade que hoje é apregoada por muitos e aviltada por alguns.» (Fernando Magalhães, in "Público": Suplemento "Pop Rock", 19.04.1995).
Alinhamento:
1. Recolhimento (Rui Júnior, inspirado no canto gregoriano)
2. Transição – Samba – Assim Sim (Rui Júnior, baseado em ritmos populares)
3. Incerteza (no original "Uncertalnly", Mustapha El Iraki)
4. Capoeiro (a minha angústia) (Rui Júnior)
5. Moby Dick (Dominique) (Rui Júnior, José Martins)
6. Intro-Malhoa (Mustapha El Iraki – Rui Júnior)
7. Marimbando (A manda que passe à minha porta, e o meu adufe) (Rui Júnior)
8. Frase feliz (no original "Happy phrase") (Mustapha El Iraki)
9. Eira (Rui Vaz, Rui Júnior)
10. Carolina vem à varanda (versão de tema popular)
Músicos:
Rui Júnior – pau de chuva, adufe, sino, tumbadoras, guizos, caixixi, bongos, palmas, caixa, a-go-go, cuíca, apito, bombo, tablas, timbalão, paus, berimbau, marimba, bongos, ferrinhos, chocalhos, garrafas, canas, voz
Rui Vaz – pau de chuva, adufe, caixa, gaita-de-foles, paus, canas, voz
José Martins – pau de chuva, adufe, vibrafone, marimba, ferrinhos, timbalão, pandeireta, garrafas, caixa, paus, chocalhos, canas, palmas, voz
José Salgueiro – pau de chuva, adufe, bombo, caixa, garrafas, paus, chocalho, palmas, efeitos, ferrinhos, canas, voz
Fernando Molina – pau de chuva, adufe, bombo, caixa, garrafas, paus, bongos, chocalhos, canas, voz
João Nuno – bombo, caixa, pinhas, garrafas, paus, tumbadora, chocalhos, canas, voz
Convidados:
Tânia – choro de bebé
Janita Salomé – trancanholas, bendir
Carlos Loureiro – garrafas
Tó Sequeira – chocalhos
Dá – canas, voz
Mina – canas, voz
Arranjos – Rui Júnior
Produção – Sassetti
Produtor delegado – Rui Júnior
Gravado no Angel Studio, Lisboa, em 1983
Técnico de som – José Manuel Fortes
Fotografia – Carlos Augusto
Flor de la Mar, de Vitorino
(LP, EMI-VC, 1983; CD, EMI-VC, 1992; Edições Valentim de Carvalho/Som Livre, 2008)
«Recordo o verbo. Vitorino tem a dimensão das grandes planuras alentejanas onde nasceu. Percorrendo os caminhos feitos — "Semear Salsa ao Reguinho" (1975), "Os Malteses" (1977), "Não Há terra Que Resista: Contraponto" (1979), "Romances" (1981) e "Flor de la Mar" (1983) — adivinha-se-lhe o rumo seguramente definido, "Não quero ser o cantor da pátria alentejana, já passei um terço da minha vida fora do Alentejo. Quero conquistar a universalidade e 'Flor de la Mar' é um passo nesse sentido".
Neste sentido, importa realmente constatar que o trabalho de Vitorino rejeita categoricamente o vulgar entendimento de que o ser nacional implica "um quadro estreito, fechado num certo limite de 'provincianismo' cultural", atitude que conduz necessariamente ao chauvinismo nacionalista e ao 'fetichismo' pelo passado e as suas tradições, sob o pretexto da preservação da originalidade e da pureza. "'Flor de la Mar' é uma tentativa de recriar uma outra linguagem, a procura de um outro som, embora tendo sempre como referente a música popular alentejana", afirmou Vitorino. Pensamos poder realmente falar-se em termos de procura autêntica de uma universalidade emancipadora da música popular na obra de Vitorino, facto de sobremaneira evidenciado pela evolução patenteada na sua obra: acentua-se cada vez mais esse percurso do particular (música popular alentejana) para o geral (música popular portuguesa), através da sucessiva incorporação de elementos sonoros diversos à base/referente tradicional. Porque este aspecto nos parece realmente de importância fundamental, propomos um comentário indirecto deste trabalho de Vitorino através do seu confronto com as expressivas palavras de Hélder Pacheco, "É evidente que uma concepção inovadora do papel das tradições culturais não visa a esclerose do pensamento criador em torno de 'um regresso ao passado' e de ideias feitas de estereótipos 'nacionalisticamente' voltados para fora da História, esquecendo a 'saída em frente' que a modernização do País exige. O aspecto fundamental da questão é que o nacional sempre revestiu, no que os povos têm de património colectivo e de relações fraternas, uma condição universal pela perspectiva histórica das suas inter-penetrações materiais e espirituais, pelo que as culturas nacionais exprimem de comum a todos os homens, pelo que designam de propósitos coerentes com as necessidades e aspirações das comunidades. A cultura que permanece profundamente nacional, porque identificada com o povo que a cria numa situação concreta, está imbuída de um conteúdo social e ético que aproxima a nação que a produz do conjunto de toda a Humanidade. A passagem do nacional ao universal é o caminho que permite a cada povo, mantendo a sua identidade, participar na construção da cultura do seu país e do mundo. Aliás, a vida prova, também, que a assimilação da experiência artística dos diversos povos e países não tem de conduzir a uma cultura neutra e inócua no plano nacional..."
Estas reflexões enquadram-se perfeitamente na obra de Vitorino, como de resto na da maioria dos cultores da música popular dos nossos dias, servindo, a nosso ver, para uma análise mais profunda e correctamente situada.
Com direcção musical e arranjos de Vitorino, Pedro Caldeira Cabral e Janita Salomé e produção de Vitorino e Manuel Salomé, "Flor de la Mar" arranca a navegação com dois temas de origem rural, "Cantiga de Roda" e "Saias da Feira do S. Mateus". "Guadiana" constitui uma reflexão ecológica "falando de um rio que já está quase seco e sobre o qual outras ameaças continuam a pairar; é uma forma de intervir politicamente através de símbolos e também de chamar a atenção para a cultura alentejana, que é marginalizada pelos meios de comunicação mas que continua muito forte e muito viva", afirma Vitorino. Seguem-se quatro temas servidos por quatro poemas de outros tantos poetas que constituem, no dizer de Vitorino, "uma homenagem de amizade ao convívio, ao copo amigo e a algumas noitadas": José Carlos Gonzalez ("Cervejaria da Trindade", "É o tema no qual aparece mais vincado o traço boémio, ao mesmo tempo que satiriza uma certa marginalidade, um certo meio intelectual urbano"), Herberto Hélder ("Aos Amigos", "É uma evocação do Adriano Correia de Oliveira e é inspirada na canção urbana tradicional francesa"), Eduardo Guerra Carneiro ("Dama de Copas", "É um personagem criado pelo Eduardo Guerra Carneiro que vem do mundo do Dashiell Hammett, inserido num tema musical de ambiente lírico e no qual as vozes das crianças, no final, aparecem para desfazer o peso do ambiente") e Luís de Andrade 'Pignatelli' ("Sonetilho para Um Adolescente", tema que introduz a temática marítima, desenvolvida na segunda parte do disco). As reflexões do segundo lado prendem-se essencialmente com a velha questão do mar e dos portugueses, através das quais Vitorino reflecte hoje a importância de uma nova leitura de uma nova viagem: "Queda do Império", "Lua... Lua...", "Marcha Ingénua", "Guerrilheiro Urbano" e "Flor de la Mar I e II".» (Mário Correia).
É o próprio Vitorino quem nos explicita: «Na altura eu estava muito encantado — aliás, continuo — pelas aventuras da marinhagem. Quando estávamos na escola, eram-nos impostos os nomes dos navegadores e dos descobridores. Mas a realidade que acompanhava toda aquela aventura era escondida, ou pelo menos não era destacada. É o outro lado das descobertas que acho interessante: as miscigenações com as raças locais e toda a faina dos navios — o que deveria ser cantado, porque há todo um romanceiro marinheiro fantástico. Chamei ao disco "Flor de la Mar" por certas razões: era um galeão com nome, com uma fama temível em todo o Oriente, solidamente construído e fortemente armado. Na segunda armada foi o Vasco da Gama, que era vice-rei da Índia, e foi nele que haveria de morrer o Afonso de Albuquerque. O galeão afundou-se numa tempestade ao largo de Malaca com uma fortuna fantástica de saque, que os Portugueses faziam naquelas águas. "Flor de la Mar" é para mim um símbolo da aventura da marinhagem. Não do chefe, do nome que nos era impingido pela História sobretudo na Segunda República, em que os Descobrimentos foram reduzidos a uma série de datas e de nomes correspondentes. Há uma intenção conceptual no disco, que tem a ver com a banda desenhada. Porque a música que eu fiz foi inspirada em imagens ficcionadas: foi tudo inventado na base de uma realidade que está longe, inevitavelmente.» Vitorino, no entanto, faz questão de não equiparar o seu trabalho à obra "Por Este Rio acima" que Fausto Bordalo Dias gravara no ano anterior: «"Por Este Rio acima" é um álbum muito mais rigoroso que o "Flor de la Mar". O Fausto é um homem que pensa mais as coisas e grava menos discos que eu. Põe muito mais espaço entre os discos e é muito mais cuidadoso. Eu sou muito mais espontâneo e lúdico. Além disso, trabalho em cima do joelho, mas é um método. Não é por acaso — é porque eu quero.» E acrescenta: «Este disco tinha um tempo específico, foi feito no ponto alto do chamado "rock português". Isto foi um bocado um contraponto a um mau rock português que se fazia ainda e que depois melhorou, embora depois decaísse. O rock português é efémero, a música popular portuguesa não.» (Vitorino).
E retomando as palavras de Mário Correia: «A música criada por Vitorino continua a transportar-nos para grandes espaços expressivos, culturalmente assimilados e historicamente dinamizados pelo jogo de contradições e intervenções, e a introduzir-nos em ambientes impossíveis de viver por termos a sensação de já terem sido vividos. A estrutura sonora criada por Vitorino demonstra o quão forte é a música produzida por toda uma sensibilidade correctamente orientada e enraizada na autenticidade das origens que não se renegam, antes se assumem como determinantes de uma personalidade cultural intensa. "Flor de la Mar" devolve-nos para o inefável prazer de ouvir a nossa música popular emergindo de um passado que se assume em toda a complexidade de um presente que é voragem controlada pela consciência colectiva de um devir urgente, autêntico e humanizado, pleno de uma nova e dinâmica dimensão para a nossa essência em constante mutação e confronto.» (Mário Correia, in "Música Popular Portuguesa: Um Ponto de Partida", Centelha/Mundo da Canção, 1984).
Alinhamento:
1. Cantiga de Roda (Popular; recolha e adaptação de Vitorino)
2. Saias da Feira do S. Mateus (Popular – Elvas; recolha e adaptação de Vitorino)
3. Guadiana
4. Cervejaria da Trindade (poema de José Carlos Gonzalez)
5. Aos Amigos (poema de Herberto Hélder)
6. Dama de Copas (poema de Eduardo Guerra Carneiro)
7. Sonetilho para uma Adolescente (poema de Luís de Andrade 'Pignatelli')
8. Queda do Império
9. Lua... Lua
10. Marcha Ingénua
11. Guerrilheiro Urbano
12. Flor de la Mar I
13. Flor de la Mar II
Letras e músicas de Vitorino, excepto onde indicado.
Instrumentos / Músicos:
- Tema 1:
Vozes – Alexandre Vieira, Catarina Vieira, Carla Teles, Dora, Daniel Vieira, Ernesto Vieira, Marta Teles, Marta Vieira e Patrícia Vieira
- Tema 2:
Concertina – Vitorino
Acordeão – Baíco
Trancanholas, adufe, bendir – Janita Salomé
Quadra cantada por Sérgio Godinho, gentilmente cedido por Polygram Discos SARL
Vozes – Janita Salomé, Baíco, João Lucas e Jaime (Metro)
- Tema 3:
Violas Ovation – Janita Salomé, Carlos Salomé, Vitorino
Acordeão – Baíco
Viola de gamba – Pedro Caldeira Cabral
Percussões – Rui Júnior
- Tema 4:
Viola – Francisco Perez Andión (Paquito)
Guitarra, viola baixo – Pedro Caldeira Cabral
- Tema 5:
Piano – João Lucas
Viola da gamba – Pedro Caldeira Cabral
Flauta – Tó Pinheiro da Silva
Baixo acústico – Pedro Wallenstein
- Tema 6:
Guitarra, viola baixo – Pedro Caldeira Cabral
Coros – Janita Salomé
Viola Ovation – Peter Meier
Vozes – Alexandre Vieira, Dora, Marta Vieira e Patrícia Vieira
- Tema 7:
Piano – João Lucas
Viola da gamba – Pedro Caldeira Cabral
Flauta – Sérgio Mestre
Violas Ovation – Peter Meier, Carlos Salomé
- Tema 8:
Arranjo para banda e direcção – Sílvio Pleno
Trompas – António P. da Costa, Francisco C. Frazão
Trompetes – António R. Gomes, António F. Casquinha
Trombone – João N. Costa
Tuba – Domingos Gaspar
Bombardino – Manuel de Faria
Flauta e flautim – António Laureano Martins
Saxofone soprano – José Salomé Vieira
Bateria – José A. Pires
Caixas – José R. Vitorino, António S. de Oliveira
Clarinete – Sílvio Pleno
Acordeão – Baíco
Acordeão – João Lucas
Violas Ovation – Carlos Salomé, Vitorino
Baixo acústico – Pedro Wallenstein
Voz feminina – Filipa Pais
- Tema 9:
Violas Ovation – Janita Salomé, Carlos Salomé, Vitorino
Acordeão – Baíco
Flauta indiana – Pedro Caldeira Cabral
Baixo acústico – Pedro Wallenstein
Percussões – Rui Júnior
- Tema 10:
Arranjo para banda e direcção – Sílvio Pleno
Trompas – António P. da Costa, Francisco C. Frazão
Trompetes – António R. Gomes, António F. Casquinha
Trombone – João N. Costa
Tuba – Domingos Gaspar
Bombardino – Manuel de Faria
Flauta e flautim – António Laureano Martins
Saxofone soprano – José Salomé Vieira
Bateria – José A. Pires
Caixas – José R. Vitorino, António S. de Oliveira
Clarinete – Sílvio Pleno
Acordeão – Baíco, João Lucas
Violas Ovation – Carlos Salomé, Vitorino
Baixo acústico – Pedro Wallenstein
Tuna – Baíco, João Lucas, Pedro Melo, Manuel Vieira e Carlos Salomé
Vozes – Vitorino, Baíco, Carlos Salomé, João Lucas, Manuel Vieira e Mimi
- Tema 11:
Piano – João Lucas
Acordeão – João Lucas
Cravo – Vitorino
Viola Ovation – Rui Veloso
Baixo – Pedro Ayres, gentilmente cedido por Polygram Discos SARL
- Tema 12:
Oboé – António Serafim
Violino – Carlos Passos
Viola de arco – Teresa Ribeiro
Violoncelo – Luísa Vasconcelos
Contrabaixo – Carlos Barreto
Arranjo – Luís Cília
- Tema 13:
Percussão – Rui Júnior
Direcção musical e arranjos – Vitorino, Pedro Caldeira Cabral e Janita Salomé
Produção – Vitorino, Manuel Salomé e Francisco Vasconcelos
Gravado nos Estúdios Valentim de Carvalho, Paço d'Arcos
Técnicos de som – António Pinheiro da Silva e Pedro Vasconcelos
Técnico assistente – José Valverde
Capa – Renato Cruz
Fotografia – Luís Vasconcelos
A Cantar ao Sol, de Janita Salomé
(LP, EMI-VC, 1983; CD, EMI-VC, 1995)
Depois da estreia discográfica em nome individual, com "Melro" (1980), Janita Salomé faz várias digressões no estrangeiro com José Afonso, Pedro Caldeira Cabral e Vitorino, e participa, em 1981, na gravação dos álbuns "Cavaquinho" e "Fados de Coimbra e Outras Canções", respectivamente de Júlio Pereira e José Afonso. E será precisamente nesse ano, em Paris, quando acompanhava José Afonso, que tudo se torna claro. Janita assiste, deslumbrado, a um concerto de um grupo de Marrocos e aí nasce a sua paixão pela música árabe. Encontra finalmente a estrela que norteará a sua música: a procura dos laços que unem a tradição popular alentejana com a música tradicional magrebina, numa meritória tentativa de trazer à tona os vestígios deixados na nossa música pelos Árabes durante os séculos em que permaneceram na Península Ibérica, mais concretamente no território que hoje constitui o sul de Portugal. Em Fevereiro de 1982, faz a primeira viagem ao Norte de Africa, a que se seguirão outras. Janita conta-nos: «Em Marrocos descobri o ancestral do Alentejo, de alguma forma, na fisionomia daquela gente, na maneira de estar, na gastronomia e deixei-me envolver e trouxe comigo tudo isso, toda essa experiência – aprendi inclusive a tocar todos aqueles instrumentos, aprendi muitas técnicas com músicos, camponeses magrebinos». E assim nasce o LP "A Cantar ao Sol", gravado por António Pinheiro da Silva para a Valentim de Carvalho, nos Estúdios de Paço d'Arcos. Lançado em Dezembro de 1983, este segundo álbum de Janita tem uma repercussão bem superior à do disco de 1980, apesar de Janita ainda ser olhado como "o irmão do Vitorino". Com produção de João Gil (na altura, músico do grupo Trovante) e composições do próprio Janita Salomé, nos temas de autor, o trabalho conta com a participação instrumental de Júlio Pereira (violas acústicas, braguesas, viola ovation), Pedro Caldeira Cabral (alaúde, ghaita), Sérgio Mestre (flauta), José Manuel Marreiros (piano), Carlos Zíngaro (violino) e Janita Salomé (percussões). Era desejo de Janita associar ao trabalho músicos de Casablanca, que conhecera nas suas viagens, mas devido a questões orçamentais isso acabou por não se concretizar. Além dos temas tradicionais ("Extravagante", "Pavão", "S. João" e "Saias") fazem parte do alinhamento: "Tardes de Casablanca" (poema de Hipólito Clemente), "Cantar ao Sol" (poema de João Manuel Pinheiro), "Não é Fácil o Amor" (poema de Luís de Andrade 'Pignatelli'), "Quando Chegou a Lua Cheia" (poema de Janita Salomé), e "Na Palestina" (instrumental com vocalizos). A apresentação do trabalho dá-se num espectáculo realizado na Aula Magna que esgota a lotação. O álbum é considerado um dos melhores trabalhos da música popular portuguesa do ano e vale a Janita Salomé três prémios: Se7e de Ouro (atribuído pelo Jornal "Se7e") na categoria de música popular/tradicional e Prémio Revelação das revistas "Música & Som" e "Nova Gente".
Aquando da reedição em CD, o disco mereceu a Fernando Magalhães as seguintes palavras: «Que bom que era, em 1983, ouvir a voz ao sol, a voz de sol, de Janita Salomé. Sentarmo-nos numa tarde à sombra de uma rua em Casablanca atentos a ouvir os ecos de um Alentejo lá mais para Norte... Ouvimos este disco, esta voz, depurados como o muro e as paredes de uma cidade assombrada de sol da capa, e percebemos [...] que a voz vibrante e vibrátil de Janita, as suas percussões e as cordas de Júlio Pereira e Pedro Caldeira Cabral, eram suficientes para tecer o feitiço. Veículos ao serviço de uma música aberta às influências do Norte de África, do ar e dos pássaros, filtradas pela individualidade de um alentejano do universo. Brilhante, a luz antiga transportada na "ghaita", supomos que marroquina, de Pedro Caldeira Cabral, em "Extravagante". Profundo e elevado o "cante", em "Pavão". Mais próximo do Mediterrâneo e das moiras encantadas, em "São João". Nem a "heresia" de ter subido à Beira Baixa para se deixar contagiar pela alegria de umas "Saias" retira a "A Cantar ao Sol" o sabor dos grandes espaços e das grandes sedes cósmicas que em "Não É Fácil Amor" se abrigam e concentram no recato de um coração do tamanho do mundo. Uma das grandes, uma das maiores composições de Janita Salomé de sempre. Por fim, a partida, para as estrelas que brilham na "escuridão vinda do Oriente", em "Quando Chegou a Lua Cheia", e no instrumental "Na Palestina", alimentado pelo violino de Carlos Zíngaro.» (Fernando Magalhães, in "Público": Suplemento "Pop Rock", 05.07.1995).
Alinhamento:
1. Tardes de Casablanca (Hipólito Clemente / Janita Salomé)
2. Cantar ao Sol (João Manuel Pinheiro / Janita Salomé)
3. Extravagante (Popular – Alentejo)
4. Pavão (Popular – Alentejo)
5. S. João (Popular – Redondo, Alentejo)
6. Saias (Popular – Idanha-a-Nova, Beira Baixa)
7. Não É Fácil o Amor (Luís de Andrade 'Pignatelli' / Janita Salomé)
8. Quando Chegou a Lua Cheia (Janita Salomé)
9. Na Palestina (instrumental) (Janita Salomé)
Músicos:
Janita Salomé – voz, bendir, tam-tam, daadô, taarija, címbalos, pandeiretas, trancanholas, adufe, tamboril da Provença, palmas
Júlio Pereira – violas acústicas, baixo, viola Ovation (do Sérgio Godinho), braguesas, palmas
Sérgio Mestre – flautas
Pedro Caldeira Cabral – alaúde e ghaita (3)
José Manuel Marreiros – piano (7)
Carlos Zíngaro – violino (9)
Coros – Vitorino, Janita Salomé, Alexandre Salomé Vieira, Carlos Salomé Vieira, José António Salomé Vieira, Manuel Salomé Vieira, António Eduardo Martins Teles, José Rui Salomé Vieira, Joaquim Hipólito Clemente
Arranjos – Júlio Pereira e Janita Salomé (1, 2, 6), Janita Salomé e Pedro Caldeira Cabral (3), Janita Salomé (4, 5, 9), Janita Salomé e José Manuel Marreiros (7), Júlio Pereira (8)
Produção – João Gil
Gravado nos Estúdios Valentim de Carvalho, Paço d'Arcos, em 1983
Engenheiro de som – António Pinheiro da Silva
Técnico assistente – José Valverde
Capa – Fátima Rolo Duarte
Fotografia – Luís Vasconcelos
Do Lado de Cá de Mim, de Pedro Barroso
(LP, Rádio Triunfo, 1983; CD, Movieplay, 2003)
Em 1983, Pedro Barroso apresenta-nos "Do Lado de Cá de Mim", um trabalho na linha do álbum anterior, "Cantos à Terra-Madre" (1982), mas, e fazendo jus ao título, explorando também um tom mais intimista, prenúncio da postura estética que o cantor posteriormente assumirá de forma exímia. Pedro Barroso explicita: «Se, por um lado, assumo o som português – a chula, o corridinho, os malhões, etc. – também procuro fazer a música que me agrada; tenho a estrada suficiente para emitir opinião do ponto de vista étnico-social; o cantor de eira aparece, nos recitais, cruzado com devaneios intimistas que falam de mim». Exemplos desse lado mais intimista, que mais que ser egotista interpela o ouvinte, são: "Balada do Desespero" que termina inesperadamente com Fernando Correia a relatar uma jogada de futebol que termina em golo, em jeito de sublime ironia, como se numa bola a entrar numa baliza residisse a suprema realização espiritual/cultural de tantas e tantas existências banais e sem rasgo; e "Canção para Regressar", uma balada de terna esperança "para ouvir à lareira num dia frio". Destaque ainda para "Anarcristos I e II", duas reflexões sociológicas sobre o Portugal profundo, numa altura em que a visita do papa João Paulo II servia para disfarçar e mitigar a crua realidade sócio-económica de um país onde os sonhos trazidos com o 25 de Abril de 1974 ainda estavam por realizar: a primeira tendo como pano de fundo o interior ignorado e esquecido, e a heroicidade da gente anónima que aí labuta e não desiste, personificada no pastor José Jerónimo Rodrigues, da herdade de Camões, no concelho de Avis (Alto Alentejo); e a segunda sobre o obscurantismo/charlatanismo religioso exemplificado na Santinha da Ladeira (curiosamente, nascida em casa dos avós paternos do artista). Deste álbum, dois temas alcançariam grande sucesso: "Ai Consta", em ritmo de chula, e "Viva Quem Canta", este um eloquente testemunho do cantor-poeta da portugalidade: «Viva quem canta / Que quem canta é quem diz / Quem diz o que vai no peito / No peito vai-me um país / [...] Para quem canta por cantar / Pouco mais se pediria / Mas quem canta p'ra sentir / P'ra explicar-se e p'ra ser / Pensem só quanto haveria ainda por dizer».
Os poemas, as composições e a direcção musical são assinados por Pedro Barroso, e a execução instrumental é do próprio Pedro Barroso (viola de 6 e de 12 cordas, percussão, concertina, bombo, cavaquinho, pandeireta, caixa, adufes), Pedro Fragoso da Silva (piano, viola braguesa), Luís Sá Pessoa (violoncelo), Zé Calhau (flautas), António Chainho (guitarra portuguesa) e Carlos Augusto (violas). Referência ainda para a participação vocal do Cramol-Coro da Biblioteca Operária Oeirense.
Nas palavras de Mário Correia, o disco «é um dos trabalhos mais expressivamente intimistas de Pedro Barroso, através do qual se confronta com uma realidade que ora o desanima ora o empolga, facto que se reflecte na evolução rítmica dos temas apresentados». E Mário Correia acrescenta: «Pedro Barroso é aliás um dos casos mais inesperadamente interessantes e produtivos da nossa música popular: sempre à procura de uma especificidade caracterizadora em constante construção, revela-se um talento inegável de fazedor de melodias e um animador de ritmos diversos, reflectindo na música uma sede de globalidade criativa. Atento à realidade que se esforça por compreender e "alterar", Pedro Barroso é uma analista crítico e interventivo, por vezes directo e contundente, um dos mais libertos e fogosos criadores da "geração dos cantores de quilometragem generosa que continuam a recusar a efémera moeda de troca de ser vedeta pela traição do esquecimento das coisas fundamentais"» (in "Música Popular Portuguesa: Um Ponto de Partida", Centelha/Mundo da Canção, 1984).
Segundo Viriato Teles, "Do Lado de Cá de Mim" é um «disco onde se fala de gente igual à gente, realidades incómodas, interrogações e angústias cada vez mais dolorosas. No fim de contas, são estas as coisas de que vale a pena falar, ainda que doa».
Alinhamento:
1. Fado Afinal
2. Ai Consta
3. Anarcristos e Viagens I
4. Anarcristos e Viagens II
5. Viva Quem Canta
6. Balada do Desespero
7. Canção para Regressar
Letras e músicas de Pedro Barroso.
Músicos:
Pedro Barroso – voz, viola de 6 e de 12 cordas, percussões, concertina, bombo, cavaquinho, pandeireta, caixa, adufes
Pedro Fragoso da Silva – piano, violas braguesas
Luís Sá Pessoa – violoncelo
Zé Calhau – flautas (transversais e de bisel)
António Chainho – guitarra portuguesa
Carlos Augusto – violas
Cramol-Coro da Biblioteca Operária Oeirense – coros
Fernando Correia – excerto de relato de futebol (gravação cedida por Moreno Pinto)
Arranjos e direcção musical – Pedro Barroso
Gravado nos Estúdios Rádio Triunfo, Lisboa, em Janeiro de 1983
Som e misturas – Moreno Pinto
Masterização – José António Regada (edição em CD)
Capa e fotos – A. Carvalho
Desenho – Maria Pureza Oliveira
Memória de Adriano, de Adriano Correia de Oliveira
(2LP, Orfeu/Rádio Triunfo, 1983; CD, Movieplay, 1992)
«A memória de Adriano Correia de Oliveira é um canto de resistência e de esperança que não cessará de ouvir-se enquanto os homens comungarem da sede de liberdade e de justiça que deu forma e dimensão colectiva à sua voz. Um ano após a sua morte o canto permanece raiz e essência das coisas verdadeiras, para lá do silêncio oficial e das homenagens e evocações apressadas.
De "Memória de Adriano" importa reter o belo poema de Viale Moutinho, "Composição de Memórias", e um texto de José Niza que não hesitamos em reproduzir:
"Era um rapazinho magro e muito alto que, de viola eléctrica na mão, entrava numa sala do velho Palácio dos Grilos, antiga sede da Associação Académica de Coimbra. Nessa sala, onde durante muitos anos vivera o Cardeal Cerejeira, contígua de outra onde António de Oliveira Salazar dormira e congeminara a ditadura, havia um ensaio de um conjunto de música ligeira. Foi em 1959 e o rapaz chamava-se Adriano. Tinha acabado o liceu no Porto, entrara para a Faculdade de Direito e, como prémio, os pais tinham-lhe dado uma reluzente viola. No entanto, a breve trecho, a viola eléctrica cedeu o lugar às guitarras do fado de Coimbra e, quanto a estudos jurídicos, o Adriano cedo se perdeu — e encontrou — metido em coisas de maior urgência e importância. Integrado numa geração de coragem, preocupada com os destinos do país, cercada, por um lado, por uma polícia política implacável e, do outro, ameaçada pelas guias de marcha para as guerras de África, o Adriano rapidamente se apercebeu de que a canção era uma grande arma de luta, uma arma difícil de calar porque — íntima e portátil — em todo o sítio e a toda a hora se podia, cantando, falar e lutar pela Liberdade.
E foi isso que ele fez, durante mais de vinte anos, com coragem, perseverança e generosidade, sabendo sempre para onde ia e o que queria. Não cedeu, não se vergou a coisa nenhuma, não transigiu com o fácil, não se vendeu por preço nenhum. Desafiou a PIDE/DGS como nenhum outro trovador da sua geração. Cantou os maiores poetas, cantando os maiores temas. Levou a esperança na Liberdade a todos os cantos de Portugal. Denunciou a guerra, a injustiça. Cantou a emigração. Minou o fascismo. E, numa manhã de Abril, em 1974, era também a voz de Adriano que trazia aos portugueses a bela notícia da libertação. Ele foi, de viola às costas, um capitão de Abril. Ele foi o arauto da esperança: 'Há sempre alguém que resiste/ Há sempre alguém que diz não'.
Ele foi, também, com o Zeca Afonso, o protagonista da grande viragem da música popular portuguesa, a ponte entre o tradicional fado de Coimbra e a nova canção que hoje é cantada.
Ele era um homem bom, um bom amigo. Um homem que fazia da amizade um padrão de comportamento, superior a qualquer outro. Por isso tinha amigos, os que conhecia e os que apenas o conheciam. Os que o mantêm vivo cantando as suas canções. Os que choram ao ouvir a sua voz, tão viva como dantes.
Este disco é uma homenagem ao Adriano. Uma evocação feita por quem, solidário com o Adriano e a sua mensagem (nos tempos em que editar as suas canções era um risco assumido e não um negócio editorial), foi um dos seus grandes amigos, Arnaldo Trindade, um amigo nosso. Um disco que ficará sobretudo para os jovens de uma geração que saía das maternidades quando o Adriano saiu para a rua com as suas canções. Uma geração à qual o Adriano legou o País de Abril e a Liberdade. A melhor homenagem que podem fazer-lhe é lutar por Ela".» (Mário Correia, in "Música Popular Portuguesa: Um Ponto de Partida", Centelha/Mundo da Canção, 1984).
Alinhamento:
1. Trova do Vento Que Passa (Manuel Alegre / António Portugal)
2. Capa Negra, Rosa Negra (Manuel Alegre / Adriano Correia de Oliveira e António Portugal)
3. Trova do Amor Lusíada (Manuel Alegre / Adriano Correia de Oliveira e António Portugal)
4. Barcas Novas (Fiama Hasse Pais Brandão / Adriano Correia de Oliveira e Rui Pato)
5. Pátria (António Ferreira Guedes / Adriano Correia de Oliveira e António Portugal)
6. Para Que Quero Eu Olhos (Popular)
7. Sou Barco (António Borges Coelho / Luís Cília)
8. Margem Sul (Canção Patuleia) (Urbano Tavares Rodrigues / Adriano Correia de Oliveira)
9. Pedro Soldado (Manuel Alegre / Adriano Correia de Oliveira)
10. Lira (Popular – Açores)
11. Menina dos Olhos Tristes (Reinaldo Ferreira / José Afonso)
12. Erguem-se Muros (António Ferreira Guedes / Adriano Correia de Oliveira)
13. Canção com Lágrimas (Manuel Alegre / Adriano Correia de Oliveira)
14. Canção do Soldado (No Cerco do Porto) (Urbano Tavares Rodrigues / Adriano Correia de Oliveira)
15. Cantar de Emigração (Rosalía de Castro / José Niza)
16. O Sol Préguntou à Lua (Popular – Açores; arr. Carlos Alberto Moniz)
17. Sapateia (Popular – Açores; arr. Carlos Alberto Moniz)
18. Tejo Que Levas as Águas (Manuel da Fonseca / Adriano Correia de Oliveira)
19. As Balas (Manuel da Fonseca / Adriano Correia de Oliveira)
20. No Vale Escuro (Manuel da Fonseca / Adriano Correia de Oliveira)
21. Recado a Helena (Manuel da Fonseca / Adriano Correia de Oliveira)
22. Cantiga de Montemaior (Manuel da Fonseca / Adriano Correia de Oliveira)
Single sem capa incluído ao álbum com os seguintes temas inéditos:
1. Canção do Linho (Alfredo Vieira de Sousa / Adriano Correia de Oliveira)
2. Tão Forte Sopra o Vento (Alfredo Vieira de Sousa / Adriano Correia de Oliveira)
Temas originalmente publicados nos seguintes discos: "Trova do Vento Que Passa" (EP, Orfeu, 1963); "Lira" (EP, Orfeu, 1964); "Menina dos Olhos Tristes" (EP, Orfeu, 1964); "Elegia" (EP, Orfeu, 1967); "Margem Sul" (LP, Orfeu, 1967); "Cantaremos" (LP, Orfeu, 1970) e "Que Nunca Mais" (LP, Orfeu, 1975).
Contradições, de Luís Cília
(LP, Diapasão/Sassetti, 1983)
«Luís Cília permanece como um dos mais representativos cantores de um canto de intervenção cujo vigor e acutilância não tem seguido a corrente de quantos se têm entretido com rodriguinhos estéreis e conformistas. Luís Cília teima (e ainda bem!) em prosseguir na senda do dito mordaz, do humor demolidor de compadrios e situações (soluções?) de compromisso, que tem vindo a instalar-se de modo crescente entre os mais responsáveis criadores da nova música portuguesa: a competição crescente entre si e uma certa perda de solidariedade activa, que tem constituído o principal factor de não construção de alternativas válidas aos grandes meios de comunicação social em termos de divulgação regular do trabalho realizado. Cília reafirma a necessidade de tudo ser posto em causa, numa altura em que, forçoso é reconhecê-lo, se corre o risco de se andar um para cada lado, num dispersar de esforços que deixa o movimento ao sabor de um acaso que o não é, pois é por demais sabido como o mundo do espectáculo em Portugal é feito pelos detentores dos meios de produção e difusão. "Contradições" insere-se na linha de "Marginal" (1981), apresentando cantigas que constituem uma constante na obra do seu autor: musicalização da poesia de qualidade e composição de temas nos quais o humor crítico e irreverente serve a desmontagem/análise de factos e situações da nossa vida de pequenas misérias. "Cantigas", "Arte Poética" e "Elegia por Antecipação à Minha Morte Tranquila" constituem o encontro com a poesia de Armindo Rodrigues e a música de Luís Cília, uma música feita de grandes espaços e de expressivos ambientes. A relação poesia-música afigura-se-nos perfeita e francamente inspirada, resultando num todo harmonioso invulgar, conferindo a "Contradições" a dimensão das coisas pensadas com todo o rigor criativo. Se alguém ainda tivesse dúvidas da excelência musical de Cília por certo as perderia com as três composições apontadas; e se porventura ainda se tiver coragem para recusar Cília invocando falsas questões vocais, pensamos que basta ouvir com toda a atenção "Cantigas" ou "Arte Poética" para assistir ao desmoronamento absoluto de tais argumentos. No lado segundo de "Contradições", o encontro com a composição que através do humor desmonta toda uma série de situações anómalas constitui uma lufada de crítica fresca e fortemente interventiva: "Inventário" (ou de como se pode e deve equacionar o panorama da cantiga com todas as suas bizarrias promocionais), "A Traidora" (um tema de Georges Brassens adaptado por Cília e está tudo dito), "Maldita Cocaína" (um recriar muito oportuno de uma canção de Almeida Amaral/Cruz e Sousa, da revista "Charivari", 1929), "A Máfia Lusitana" (palavras para quê?) e "Hino do Sacanavenense" (isto de andarmos sempre a converter as derrotas em vitórias tem que se lhe diga). São cantigas que não hesitamos em considerar dignas da já velha censura radiofónica que revela especial predilecção pelo trabalho incómodo de Cília, mas que valem como testemunhos ímpares de uma atitude coerente e revitalizadora (porque intervém sem concessões).
Destaque para a participação de Fausto, Sérgio Godinho, Alfredo Vieira de Sousa, Francisco Fanhais, Vitorino e Pedro Casaes no "Hino Do Sacanavenense" e para a colaboração instrumental de José Eduardo (contrabaixo), Vitorino Gomes (violino), António Anjos (violino), Vasco Broco (violino), Alexandra Mendes (violino), António Oliveira e Silva (violeta), Luiza Vasconcelos (violoncelo), Pedro Caldeira Cabral (guitarra), Mário Laginha (teclas), Artur Moreira (clarinete), Carlos Martins (saxofones tenor), Fernando Ribeiro (acordeão) e José Salgueiro (percussão).
"Contradições" traz a marca inconfundível de um Cília que permanece igual a si próprio em todos os aspectos, assumindo a sua evolução sem elementos estranhos à sua obra, o que inevitavelmente lhe continuará a valer os mimos habituais dos agentes oficiais da miopia cultural deste pais. Para mal deles mesmos. Porque apesar de ter havido notícia de um louvor da música que Luis Cília compôs para o filme de Monique Rutler, "Jogo de Mão", não seremos com certeza profetas de coisa nenhuma se afirmarmos que com "Contradições" ou sem "Contradições" algumas "contradições" persistirão. Para nós, agora e sempre, a certeza de que Cília continua a ser "homem de fé segura, de um momento e de um lugar". O que garante a importância dos seus trabalhos. (Mário Correia, in "Música Popular Portuguesa: Um Ponto de Partida", Centelha/Mundo da Canção, 1984).
Alinhamento:
1. Cantigas (poema de Armindo Rodrigues)
2. Arte Poética (poema de Armindo Rodrigues)
3. Elegia por Antecipação à Minha Morte Tranquila (poema de Armindo Rodrigues)
4. Inventário
5. A Traidora (George Brassens, adap. Luís Cília / George Brassens)
6. Maldita Cocaína (Almeida Amaral / Cruz e Sousa)
7. A Máfia Lusitana
8. Hino do Sacanavenense
Letras e música de Luís Cília, excepto onde indicado.
Músicos:
Luís Cília – voz, viola, preparação de fitas magnéticas
José Eduardo – contrabaixo
Vitorino Gomes – violino
Alexandra Mendes – violino
António Anjos – violino
Vasco Broco – violino
António Oliveira e Silva – violeta
Luiza Vasconcelos – violoncelo
Artur Moreira – clarinete
Mário Laginha – sintetizador, piano
José Salgueiro – percussão
Carlos Martins – saxofone tenor
Pedro Caldeira Cabral – guitarra portuguesa
Fernando Ribeiro – acordeão
Alfredo Vieira de Sousa, Vitorino, Francisco Fanhais, Sérgio Godinho, Fausto e Pedro Casaes – vozes (8)
Arranjos e direcção musical – Luís Cília
Produção – Sassetti
Gravado nos Estúdios Rádio Triunfo, Lisboa, de 12 a 20 de Setembro de 1983
Técnicos de som – Moreno Pinto e Paulo Junqueiro
Misturas – Moreno Pinto
Capa, fotos e grafismo – Maria Judite Cília
Ao Vivo no Coliseu, de José Afonso
(2LP, Diapasão/Sassetti, 1983; CD, Strauss, 1993; CNM, 2003)
«Mais que um registo, este duplo-álbum é o retrato de uma vida e de um percurso musical e poético extremamente rico, parte integrante da história de todos e de cada um de nós. Desde os sonhos adolescentes das margens do Mondego até às utopias desejadas do presente, da inquietação de "Os Vampiros" à esperança colectiva de "Grândola", da simplicidade da "Canção de Embalar" à raiva de "A Morte Saiu à Rua", é um José Afonso vivo e actuante, ainda contemplativo e por vezes até ingénuo que encontramos neste disco, lembrança memorável daquela noite de 29 de Janeiro de 1983, quando Lisboa se pareceu novamente com uma "cidade sem muros nem ameias". É também, um José Afonso muito humano, já afectado pela doença, mas disposto a resistir, que se comove com os primeiros versos de "Saudades de Coimbra" e se entusiasma com "Um Homem Novo Veio da Mata", é principalmente este Zeca muito verdadeiro que se encontra ao longo destas 17 canções. Um disco perfeito? Longe disso. Mas é precisamente essa 'imperfeição' que faz dele um documento autêntico, precioso, gratificante. Como todas as memórias das pequenas emoções (As reedições posteriores em CD são francamente piores do que o original em vinil. A primeira, ainda da responsabilidade da editora Sassetti, divide as canções com sucessões de 'fade-outs' sem o mínimo rigor estético ou técnico. A segunda, já com o selo da Strauss, pelo contrário, inclui a gravação integral do espectáculo. Curioso como documento, mas de duvidosa legitimidade, já que não apenas adultera o trabalho de Eduardo Paes Mamede, responsável pela produção do disco original, como desrespeita a vontade do próprio Zeca, que foi, em última análise, quem decidiu as canções que deveriam ou não ser incluídas no disco.)» (Viriato Teles).
Alinhamento:
1. Balada do Mondego (instrumental – música de Artur Paredes)
2. Saudades de Coimbra (Mário Faria Fonseca / Edmundo de Bettencourt)
3. Senhora do Almortão (Popular – Beira Baixa)
4. Dor na Planície (instrumental – música de Octávio Sérgio)
5. Balada do Outono
6. Canção de Embalar
7. Natal dos Simples
8. Os Vampiros
9. A Morte Saiu à Rua
10. No Comboio Descendente (Fernando Pessoa / José Afonso)
11. Um Homem Novo Veio da Mata
12. Milho Verde (Popular)
13. Papuça
14. Utopia
15. Venham Mais Cinco
16. O Que Faz Falta
17. Grândola, Vila Morena
Letras e músicas de José Afonso, excepto onde indicado.
Nota: Em posteriores reedições em CD, foram incluídos os temas instrumentais "O Anel Que Tu me Deste" e "Murinheira", tocados por Júlio Pereira, e ainda "Era Um Redondo Vocábulo", cantado por José Afonso, no mesmo concerto.
Músicos:
José Afonso – voz
Octávio Sérgio, Lopes de Almeida – guitarras portuguesas
António Sérgio, Durval Moreirinhas, Rui Pato – violas
Fausto Bordalo Dias – viola, coros
Júlio Pereira – viola acústica, braguesa, coros
Rui Castro – viola baixo
Guilherme Inês – congas
Rui Júnior – bombo
Sérgio Mestre – flauta, viola, coros
Janita Salomé – viola, adufe, reco-reco, coros
Francisco Fanhais – coros
Produção – Eduardo Paes Mamede
Gravado ao vivo no Coliseu de Lisboa, a 29 de Janeiro de 1983
Som e misturas – José Fortes
Fotografias – Joaquim Lobo e Alexandre Carvalho
Como se Fora Seu Filho, de José Afonso
(LP, Triângulo/Sassetti, 1983; CD, Strauss, 1994; CNM, 2006)
«Decorreram quatro anos entre a edição de "Fura-Fura" e este "Como se Fora Seu Filho", trabalhos com temas originais de José Afonso, o que não correspondeu de modo algum a um período de silêncio. Do ponto de vista discográfico foram publicados álbuns como "Fados de Coimbra e Outras Canções", em 1981, e "Ao Vivo no Coliseu", em 1983; do ponto de vista de trabalho musical, José Afonso não parou e não deixou de actuar em inúmeras circunstâncias e locais, apesar das contrariedades para tal labor. Mas foram quatro anos em que muito mudou no campo da música popular, uma força imparável em movimento impossível de deter (o poder que o diga!) e uma expressividade fortemente enraizada na nossa realidade cultural e social. E José Afonso demonstra uma vez mais que continua a comandar todo este processo, que as coisas continuam a passar pela atenta análise da sua obra tal é a intensidade das vivências que nela se condensam, fruto de todo um trabalho de verdade que confere à sua música uma vigência sem idade e sem fronteiras de escolas ou tendências. "Como se Fora Seu Filho" é um disco de José Afonso. O que chega para o definir, por mais que os crítico-escrevinhadores da nossa praça da canção se esforcem por negar através das mais descabidas afirmações e comparações. Porque José Afonso assume a canção como uma arte viva em dinâmica reformulação, recusando fósseis e estereótipos que alguns ainda persistem em inventar nas suas criações. Porque José Afonso sabe sempre romper com os limites do próprio poder criativo submetido a pressões e condicionalismos diversos, demonstrando que nada é como antes, definitivo, cristalizado. "Como se Fora Seu Filho" exibe toda a pujança de um homem que se esforça (e consegue!) por permanecer igual a si próprio e isto, quanto a nós, só pode significar todo um enorme e inesgotável manancial de criatividade. Criatividade que é a tónica dominante deste disco por muito que isto custe a muita gente (!?) mais apostada em o "ultrapassar") do que em reconhecer que os caminhos da nova música popular ainda continuam a passar pelo Zeca Afonso de sempre. Este, pensamos, é o doloroso tributo que Zeca Afonso começa a ter de pagar por ser pioneiro vivo, criador inveterado dos novos caminhos, pintor de sugestões que não cessam de renovar-se. Para quê insistir-se na tónica da mi(s)tificação quando ele permanece voz do nosso (des)contentamento?
A responsabilidade pelo trabalho de direcção musical e direcção de produção encontra-se repartida entre Júlio Pereira ("Utopia", "O País Vai de Carrinho" e "Canção da Paciência"), José Mário Branco ("Altos Altentes", "Canarinho" e "Eu Dizia") e Fausto-José Afonso ("Papuça", "A Nau de António Faria", "Canção do Medo"e "Verdade e Mentira"). Este facto não contribuiu, a nosso ver, para qualquer fractura da obra, antes tendo reforçado a diversidade de tratamentos que pode sofrer uma obra inspirada como a de José Afonso sem que isso corresponda à sua descaracterização ou quebra de homogeneidade. Importa destacar a vitalidade de "Como se Fora Seu Filho" à luz destes factos, pois trata-se realmente de um trabalho que só ganhou com essa colaboração em termos de uma mais conseguida reprodução da inspiração de base. E esta traz-nos indubitavelmente um Zeca Afonso vigoroso, de uma maturidade que recorta entre diversas tendências e orientações os seus contornos. Destaque para a colaboração musical de Fausto, Júlio Pereira, José Mário Branco, Sérgio Mestre, Pedro Caldeira Cabral, Carlos Zíngaro, Janita Salomé, Rui Júnior, Pintinhas, Eduardo Paes Mamede, Rui Cardoso, entre outros.
"Como se Fora Seu Filho" — um Zeca Afonso igual a si próprio, a garantia de que a música popular continua a contar com o contributo fundamental dos seus pioneiros. Sempre.» (Mário Correia, in "Música Popular Portuguesa: Um Ponto de Partida", Centelha/Mundo da Canção, 1984).
Pela sua pertinência, citam-se também as palavras de Viriato Teles: «O último disco em que José Afonso participou activa e integralmente [...] constitui um verdadeiro olhar em volta, amadurecido e calmo, só possível por parte de quem viveu a vida com muita intensidade, com muita paixão. Uma autêntica viagem entre a utopia e o desencanto, é o que nos oferece Zeca Afonso neste álbum magnífico, onde é possível descobrir todas as memórias cruzadas dos tempos vividos, os desejos insatisfeitos, os sonhos. Onde pode descobrir-se, por exemplo, um dos mais belos poemas sobre o 25 de Abril ("Papuça"), uma reflexão serena e quase existencial sobre o que se fez e o que ficou por fazer ("Canção da Paciência"), uma certa angústia que não renega, antes reforça, tudo aquilo por que se passou ("Eu Dizia"). E, também, a crítica acutilante ("O País Vai de Carrinho"), o prazer dos sons e das novas experiências ("Canarinho"), a esperança que não morre ("Utopia"). Um disco ao nível dos melhores, capaz de sobreviver aos tempos e às fronteiras.» (Viriato Teles).
Alinhamento (da primeira edição):
1. Papuça
2. Utopia (*)
3. A Nau de António Faria (*)
4. Canção da Paciência (*)
5. O País Vai de Carrinho
6. Canarinho
7. Eu Dizia
8. Canção do Medo (*)
9. Verdade e Mentira (*)
10. Altos Altentes (Popular / José Afonso)
Letras e músicas de José Afonso, excepto onde indicado.
Notas:
1. As cinco canções assinaladas com (*) foram primeiramente escritas para a peça "Fernão Mentes?", levada à cena pela companhia de teatro A Barraca, com encenação de Hélder Costa.
2. Nas reedições em CD foi acrescentado ao alinhamento um tema instrumental, "À Proa", registado nas sessões de gravação de "Como se Fora Seu Filho", que era para constar da edição original em vinil mas que teve de ficar de fora por falta de espaço. Em 1985, outra versão do mesmo tema foi gravada para o álbum "Galinhas do Mato".
Músicos:
José Afonso – voz
Fausto – guitarra eléctrica e acústica, percussões, 2.ª voz
Júlio Pereira – guitarra eléctrica e acústica, polymoog, baixo, reco-reco, tamborete e viola braguesa
Sérgio Mestre – guitarra acústica, flauta
José Mário Branco – piano, flauta vietnamita, pífaro, flautas de bisel e percussões
Carlos Zíngaro – violino
Janita Salomé – polymoog, 2.ª voz, coros
Pedro Casaes – baixo, contrabaixo
Pedro Wallenstein – contrabaixo
Pedro Caldeira Cabral – guitarra portuguesa
Rui Júnior, Pintinhas – percussões
Eduardo Paes Mamede (Ed) – flauta
Rui Júnior – tumbadoras
Edgar Caramelo – saxofone alto
Rui Cardoso – saxofones (tenor, soprano e alto) e clarinete baixo
Maria do Amparo, Guida, Cristina, Lena, Formiga, Isabel, Toinas, Francisco Fanhais e elementos do grupo "Cantaril" – coros
Arranjos e direcção musical – Júlio Pereira, José Mário Branco, Fausto e José Afonso
Gravado no Angel Estúdio 1, Lisboa, de Novembro de 1982 a Abril de 1983
Técnico de som – José Fortes
Remasterização digital (Strauss, 1994) – Fernando Abrantes, no Strauss Studio, em Outubro de 1994
Capa – José Santa-Bárbara
Fotografia – Alexandre Carvalho
Cais das Colinas, de Trovante
(LP, EMI-VC, 1983; CD, EMI-VC, 1988; Edições Valentim de Carvalho/Som Livre, 2007)
«O trabalho do grupo Trovante tem-se vindo a (re)definir de disco para disco, numa prova mais que evidente de que realmente assumem a música em termos evolutivos e dinâmicos, fruto de uma vivência intensa do acto criativo, condição essencial para a criação de uma arte viva, enraizada e actuante. A sensibilidade com que assumem as influências que os cercam é de tal modo aberta e crítica que ficamos sempre com a sensação de que no futuro nada será como antes: cada experiência surge moldada pela profunda vivência das situações (em mutação) que a determinaram. "Chão Nosso" (1977) ficou a marcar um início de quase total entrega à reprodução básica do tradicional; "Em Nome da Terra" (1978) veio dar corpo e forma a uma sonoridade própria e caracterizadora; "Baile no Bosque" foi o culminar de toda uma capacidade surpreendente de partir do tradicional para obter sonoridades universalizadas, um trabalho susceptível de constituir durante muito tempo a imagem de marca do grupo, sobretudo se atendermos a que as primeiras impressões são as que perduram mais tempo (é preciso não esquecer que foi este trabalho que revelou a existência do grupo aos mais amplos níveis) e que não é pacífica e fácil a compreensão da evolução havida entre este trabalho e "Cais das Colinas" (1983), definido pelo próprio grupo como "uma viagem por toda a amálgama de influências que nos marcam", sobretudo evidentes ao nível do jazz, música afro-brasileira, música hispânica e rock.
"Com a raiz da música tradicional portuguesa, buscamos novas formas que incluem outras influências. Estamos cada vez mais dentro da música popular. Não nos afastamos, evoluímos na forma. Afastamo-nos sim da execução pura e simples de música tradicional, desenvolvemos a sua forma".
É notório que a dominante de "Cais das Colinas" se centra no elevado nível da tentativa de fusão intensa, quase homogénea, dos mais diversos géneros musicais, num quebrar de fronteiras ousado entre os diversos tipos de música popular. A este propósito reouça-se, por exemplo, "Ibérica" e "Mulata", dois temas através dos quais se sente que essa fusão foi levada a limites extremos.
"Cais das Colinas" é um trabalho tanto mais difícil de apreender quanto mais intensa, tiver sido a entrega a "Baile no Bosque". Porque neste último a música tradicional funcionava como suporte para todo o jogo de influências, para uma interacção de elementos diversos, mantendo-se sempre acima da estrutura sonora; mas em "Cais das Colinas" o próprio elemento tradicional entra no jogo de assimilação/fusão de elementos de outros géneros musicais, não sendo facilmente referenciável, embora coexistam estes dois ou três temas. É aqui, a nosso ver, que os Trovante demonstram de forma inequívoca uma das principais virtualidades da nova música popular: partir do elemento tradicional para a sua construção não implica de maneira nenhuma amarrar os seus criadores a esquemas cristalizadores, estáticos. Isso seria a negação da música popular em si mesma, reduzindo-a a um momento fugaz de criatividade, limitando-a, impondo-lhe barreiras que não poderia ultrapassar. Ela é dinâmica, flui no movimento e no devir, e partindo do elemento tradicional (com verdade e autenticidade) não tem qualquer receio em incorporar no seu processo criativo os mais diversos elementos que reflectem a interacção cultural dos nossos dias.
"Cais das Colinas" não será, com certeza, um ponto de chegada para os Trovante, "Não se espantem se eu não fico aqui / Há sempre outro ver para o que vi". Através da audição atenta do seu conteúdo — Ibérica (Instrumental — João Gil), Saudade (João Gil), Ribeirinho (Fernando Pessoa / João Gil - José Martins), Lua de Março (Carlos Tê / João Gil), Despertar (Eugénio de Andrade / João Gil - Manuel Faria), Comboio (Luís Represas / João Gil - Manuel Faria), Pedra no Charco (Luís Represas / João Gil - Manuel Faria - Luís Represas), Oração (João Monge / João Gil - Manuel Faria - Luís Represas), Linha das Fronteiras (Sérgio Godinho / João Gil - Manuel Faria) e Mulata (Instrumental - Manuel Faria) — facilmente concluímos que a viagem dos Trovante é interminável, porque não tem fim a aventura da música popular quando vivida com verdade e autenticidade.» (Mário Correia, in "Música Popular Portuguesa: Um Ponto de Partida", Centelha/Mundo da Canção, 1984).
Alinhamento:
1. Ibérica (instrumental – música de João Gil)
2. Saudade (João Gil)
3. Ribeirinho (Fernando Pessoa / João Gil e José Martins)
4. Lua de Março (Carlos Tê / João Gil)
5. Despertar (Eugénio de Andrade / João Gil e Manuel Faria)
6. Comboio (Luís Represas / João Gil e Manuel Faria)
7. Pedra no Charco (Luís Represas / João Gil, Manuel Faria e Luís Represas)
8. Oração (João Monge / João Gil, Manuel Faria e Luís Represas)
9. Linha das Fronteiras (Sérgio Godinho / João Gil e Manuel Faria)
10. Mulata (instrumental – música de Manuel Faria)
11. Baile no Meu Coração (Baião de Dois) (Morais Moreira)
Nota: O tema 11 não fazia parte do LP original, tendo sido só editado em single (EMI-VC, 1983).
Trovante:
Artur Costa – saxofone alto, saxofone tenor, flauta, voz
Fernando Júdice – baixo, contrabaixo
João Gil – guitarra acústica, guitarra semi-acústica, apito, voz
José Martins – bateria, percussões, piano Rhodes, melódica
Luís Represas – voz principal, bandolim, pandeiro, reco-reco
Manuel Faria – piano acústico, pianos Yamaha e Rhodes, sintetizador, acordeão
Participações especiais de:
Vitorino, Carlos Salomé, Manuel Salomé, Rui Veloso e Fernando Girão – coros (8)
Sérgio Godinho – 2.ª voz (9)
Arranjos – Trovante, execepto em "Saudade" (José Martins) e "Comboio" (Manuel Faria)
Gravado nos Estúdios Valentim de Carvalho, Paço d'Arcos, de Novembro de 1982 a Janeiro de 1983
Técnico de som – Hugo Ribeiro
Assistente de captação – J. Brázio
Montagem – Miguel Gonçalves
Capa (concepção e design) – João Fonseca
Fotografias – José Manuel e Pedro Silva Dias
Coincidências, de Sérgio Godinho
(LP, Philips/Polygram, 1983; CD, Philips/Polygram, 1994; CD, Universal Music, 2001)
«De Sérgio Godinho "apenas" há sempre que esperar, disco após disco, o (re)assumir progressivo de um ser-criativo coerente com a sua própria evolução. Desiludam-se, pois, os que procuram argumentar com sinais de "evidente maturidade" num certo disco ou que anunciam "mudanças significativas de atitude estético-ideológica" noutro. A maturidade é algo que se constrói e reformula disco após disco; a atitude do criador sofre a influência do meio em constante mutação (caso contrário é um criador nas nuvens, o que nem de longe nem de perto, se pode considerar em relação a Sérgio Godinho). De repente, nos ensaios/tentativas de crítica discográfica dos escribas-vão-a-todas do nosso reino, agitam-se, em torno de determinadas criações, conceitos-chave que se propagandeiam como verdades absolutas e eternas: "Coincidências" sofreu o impacto de uma súbita deslocação da atenção "crítica" para a superfície de factos que a própria imprensa se encarregou de filtrar. Sérgio Godinho era notícia obrigatória com aquela história da prisão no Brasil, mas notícia mesquinha, com entrelinhas duvidosas, notícia não decidida, a deixar espaço para especulações que todos quantos conhecem Godinho não deixaram de negar de imediato. Na sequência de tudo isso, um disco vinha mesmo a calhar. Era com certeza um repositório das experiências vividas, dizia-se. Afinal não era, constatou-se. Era mais brasileiro que português, pois a música popular brasileira está muito mais desenvolvida que a música popular portuguesa, asseguravam outros. Afinal permanecia mais português que brasileiro. Enfim, um pouco de tudo. Até um crítico que era o único crítico de música popular que nunca tinha falado de Sérgio Godinho passou a esecrever sobre ele. Um acontecimento.
E afinal Sérgio Godinho permanece igual a ele próprio, assumindo as suas múltiplas influências num processo natural de evolução criativa. É isto que, a nosso ver, precisa de ser dito, pois por mais inacreditável que pareça ainda se continua a tentar "amarrar" Sérgio Godinho ao seu primeiro trabalho, "Os Sobreviventes", como se tudo tivesse parado, como se a sua capacidade criadora estivesse perfeitamente cristalizada e inerte. Sérgio Godinho assume, em "Coincidências", como em todos os álbuns anteriores, o desmontar progressivo e dinâmico da sua própria "imagem", permanecendo atento ao real-circundante que critica de acordo com uma sensibilidade que se vai apurando. Nem que, como sucede em "Coincidências", ele parta mais de si próprio para a (re)descoberta do social e do humano, um pouco ao contrário do que sucede nos trabalhos anteriores, nos quais o peso das canções intimistas não é tão grande. A interiorização de "Coincidências" não deixa de ter, contudo, como pontos de partida o "velho" lugar comum, o corriqueiro, os pequenos nadas do quotidiano, características que são uma constante na obra de Sérgio Godinho. É, no fundo, este agradar de pormenores e vivências rotineiras que faz de cada disco de Godinho um disco novo, com a sua maturidade evolutiva própria.
Musicalmente, importa considerar o "enxerto da cultura popular brasileira" na sua obra mais como um ponto de contacto entre culturas afins e de origens mais ou menos comuns do que como uma cedência ou submissão a expressões mais universalizadas, como chegou a ser erradamente sugerido por alguns. Quando se atingiu, como sucede com Sérgio Godinho, uma especificidade musical própria e simultaneamente peculiar e globalizante, não há que temer a interacção cultural, pois isso não pode significar perda de expressividade. "Coincidências" prova que afinal a música popular portuguesa já atingiu um nível de expressividade tal que nada tem a perder com a assimilação critica de elementos de outras culturas. Parece-nos importante acentuar este aspecto, sobretudo porque se assiste a todo um incremento multi-orientado da nova música popular portuguesa que se nem sempre fornece obras equilibradas e expressivas não deixa de constituir um sopro criativo e experimental digno de toda a atenção. Sérgio Godinho está (como sempre esteve) particularmente atento ao problema, "Ao mesmo tempo que há que definir certos parâmetros para a música popular portuguesa (por exemplo, a bateria, no meu disco, tenta ser a percussão de certos tons populares), é muito perigoso sistematizá-los demasiado, cristalizá-los, pois pode haver limitação no risco e na criatividade". "Coincidências" vem reforçar, uma vez mais, a tendência do seu autor paira se assumir ponto de encontro e ponto de partida em termos de influências dominadas pela sua própria maneira de compor/sentir. Aqui reside o carácter fundamental de toda a sua produção.
"Coincidências" contou com arranjos e direcção musical de João Paulo e Luís Caldeira, tendo na produção contado ainda com a colaboração do próprio Sérgio Godinho. Destacam-se, entre outros, os contributos instrumentais de Luís Caldeira (flautas), João Paulo (piano), Guilherme Inês (bateria), José Martins (marimba, percussões, vibrafone), Filipe Larsen (baixo), Luís Sá Pessoa (violoncelo), Pedro Wallenstein (contrabaixo), Rui Júnior (tabla), Júlio Pereira (cavaquinho), Pedro Caldeira Cabral (viola de gamba, guitarra portuguesa) e a participação nos coros de Trovante, Né Ladeiras, Carlos Mendes, Jorge Palma, Lia Gama, entre outros.
Do ponto de vista das cantigas incluídas são de destacar os seguintes grupos, tendo em conta a autoria da letra e música das mesmas:
— Com letra e música de Sérgio Godinho: "O Labirinto", "Tantas Vezes Fui à Guerra", "As Certezas do Meu Mais Brilhante Amor (Coisas do Amor I)", "Não Vás Contar Que Mudei a Fechadura (Coisas do Amor II)", "Não te Deixes Assim Vestir..." e "As Horas Extraordinárias".
— Com letra de Sérgio Godinho e música de: Milton Nascimento ("A Barca dos Amantes"), Novelli ("Um Caso Fatal"), Ivan Lins ("Que Há-de Ser de Nós") e João Bosco ("Num Bilhete de Ida e Volta").
— Com música de Sérgio Godinho e letra de: Chico Buarque ("Um Tempo Que Passou").
"Coincidências" — "...e no centro do centro está o centro da vida como se fosse por isso que me morro e me perco e que só dou por isso quando renasço outra vez... sei que hei-de ser vivo sei que hei-de ser morto... sei que hei-de ser eu de vez já suporto bem a dor já só quero é ser feliz".» (Mário Correia, in "Música Popular Portuguesa: Um Ponto de Partida", Centelha/Mundo da Canção, 1984).
Alinhamento:
1. Introdução (Às Horas Extraordinárias)
2. O Labirinto
3. A Barca dos Amantes (Sérgio Godinho / Milton Nascimento)
4. Tantas Vezes Fui à Guerra
5. As Certezas do Meu Mais Brilhante Amor (Coisas do Amor I)
6. Não Vás Contar Que Mudei a Fechadura (Coisas do Amor II)
7. Caso Fatal (Sérgio Godinho / Novelli)
8. Que Há-de Ser de Nós (Sérgio Godinho / Ivan Lins)
9. Não Te Deixes Assim Vestir...
10. Um Tempo Que Passou (Chico Buarque / Sérgio Godinho)
11. Num Bilhete de Ida e Volta (Sérgio Godinho / João Bosco)
12. As Horas Extraordinárias
Letras e músicas de Sérgio Godinho, excepto onde indicado.
Instrumentos / Músicos:
- Tema 1:
Piano – João Paulo
- Tema 2:
Flautas – Luís Caldeira
Piano – João Paulo
Bateria – Guilherme Inês
Marimba e percussões – José Martins
Baixo – Filipe Larsen
Arranjo – João Paulo
- Tema 3:
Trompa – Adácio Pestana
Piano – João Paulo
Violino – Gerardo van Holstein e Filipe Pereira
Violeta – Zulmira van Holstein
Violoncelo – Luís Sá Pessoa
Contrabaixo – Pedro Wallenstein
Baixo eléctrico – Carlos Amaro
Tabla – Rui Júnior
Arranjo – Luís Caldeira
- Tema 4:
Flauta – Luís Caldeira
Percussões – José Martins
Bateria – Guilherme Inês
Cavaquinho – Júlio Pereira
Guitarra – Sérgio Godinho
Baixo – Filipe Larsen
Coros – Trovante, Né Ladeiras, Isabel Bezelga
Arranjo – João Paulo
- Tema 5:
Guitarra – Dudas
Guitarra portuguesa – Pedro Caldeira Cabral
Contrabaixo – Carlos Amaro
Arranjo – João Paulo
- Tema 6:
Flauta – Luís Caldeira
Trompete – Tomás Pimentel
Trombone – Ismael Santos
Piano – João Paulo
Contrabaixo – Carlos Amaro
Vibrafone – José Martins
Arranjo – Luís Caldeira
- Tema 7:
Flautas – Luís Caldeira
Acordeão – Manuel Faria
Bateria – Guilherme Inês
Percussão – José Martins
Palmas – Macello Urgeghe, José Martins, José Paulo, Luís Caldeira
Viola da gamba – Pedro Caldeira Cabral
Baixo – Filipe Larsen
Coros dos Fatais – Carlos Vaz, Carlos Mendes, Jorge Palma, Lia Gama, Trovantes, Graça, Gabriela, Marcello, Raul
- Tema 8:
Vozes – Sérgio Godinho e Ivan Lins
Flautas – Luís Caldeira
Oboé – António Serafim
Clarinetes – Rogério Gomes, Agostinho Caineta
Clarinete baixo – Rogério Gomes
Piano – João Paulo
Vibrafone – José Martins
Contrabaixo – Carlos Amaro
Arranjo – João Paulo
- Tema 9:
Clarinetes – Rogério Gomes, Agostinho Caineta
Guitarra – Sérgio Godinho
Piano – João Paulo
Bateria – Guilherme Inês
Percussão – José Martins, Macello Urgeghe
Baixo – Filipe Larsen
Coros – Né Ladeiras, Isabel Bezelga
Arranjo – Luís Caldeira
- Tema 10:
Flauta – Luís Caldeira
Oboé – António Serafim
Clarinetes – Agostinho Caineta, Rogério Gomes
Guitarra – Dudas
Contrabaixo – Carlos Amaro
Arranjo – Luís Caldeira
- Tema 11:
Flautas – Luís Caldeira
Piano – João Paulo
Bateria – Guilherme Inês
Violinos – Gerardo van Holstein, Filipe Pereira
Violeta – Zulmira van Holstein
Violoncelo – Luís Sá Pessoa
Contrabaixo – Pedro Wallentein
Baixo eléctrico – Filipe Larsen
Arranjo – Luís Caldeira
- Tema 12:
Guitarra de 12 cordas – Dudas
Violinos – Filipe Pereira, Gerardo van Holstein
Violeta – Zulmira van Holstein
Violoncelo – Luís Sá Pessoa
Contrabaixo – Carlos Amaro
Arranjo – João Paulo
Direcção musical – João Paulo [Esteves da Silva] e Luís Caldeira
Produção – Sérgio Godinho, João Paulo [Esteves da Silva] e Luís Caldeira
Gravado no Angel Studio, Lisboa, de Fevereiro a Abril de 1983
Técnicos de som – Rui Novais e José Fortes
Desenhos da capa e contracapa – René Bertholo
Foto da contracapa – Nuno Calvet
Arranjo gráfico – António Inverno
Adeus Tristeza, de Fernando Tordo
(LP, Dacapo, 1983)
«Depois de um trabalho tão intensamente vivido como o que se desprende do álbum "Adeus Tristeza", editado em 1982, para Fernando Tordo nada será como dantes. Obra de cariz autobiográfico, nela se condensa uma das mais ricas tendências da música popular dos nossos dias: a da tradição/herança da grande música ligeira europeia criada em termos de uma vivência profunda das coisas da vida/entrega de Fernando Tordo. Cantigas de amor ("O Que Ela Fez", "Sem Amor", "Dá P'ra Falar", "N.º 2 – 6.º Andar Frente"), cantos de análise do real-circundante ("Quem Quer Viver", "Que Venha o Dia" e "O Veleiro"), de "Adeus Tristeza" retemos sobretudo o tema que dá o nome ao álbum e "Os Cantores da Minha Terra", duas composições autobiográficas por excelência nas quais se resume uma prática de estar/cantar que Tordo soube assumir com todas as consequências, "Na minha vida tive palmas e fracassos, / fui amargura feita notas e compassos... / fiz cantigas que afinal ninguém ouviu / e o meu futuro foi aquilo que se viu... / cantei de tudo por ser um cantor à solta...", no tema "Adeus Tristeza". "Vou falar deles, vou lembrar, quero-os eternos... quero-os activos... vou falar deles, vou-os lembrar, vê-los contentes, os desprezados, os melhores e os piores, os de voz própria, os já sem voz todos presentes na grande gala em que eles sejam os senhores... Vou falar deles, vou-os lembrar, pedir respeito por todos esses que nunca andaram na berra. Se no amor não se olha ao imperfeito, pois que amem os cantores da minha terra... gente tão bela que achava uma delícia fazer a borla para a ambulância dos bombeiros...", em "Os Cantores da Minha Terra". E agora, Tordo? Porque "por amor ficamos presos à ideia de sonhar" e porque "sofremos as cantigas que envergonham, cantamos as vergonhas que sofremos", não pode ter realmente chegado "a hora da acabar...". E agora, Tordo? "No Oceano Paixão um grande veleiro chamado Canção navega sozinho, e sem tripulação, despreza o mau tempo que faz. Já lhe quiseram mal, quiseram-no encalhar, cortaram os ventos de que precisava e para não ficar longe do mar, andou na estiva. Puseram muito espinho, puseram muita dor, rasgaram as velas que tanto precisava, mas continua a ser louca maravilha..."» (Mário Correia, in "Música Popular Portuguesa: Um Ponto de Partida", Centelha/Mundo da Canção, 1984).
Alinhamento:
1. Adeus Tristeza
2. O Que Ela Fez
3. Quem Quer Viver (Fernando Tordo / José Calvário)
4. Sem Amor
5. Dá P'ra Falar
6. N.º 2 – 6.º Andar Frente
7. Que Venha o Dia
8. O Veleiro / Os Cantores da Minha Terra
Letras e músicas de Fernando Tordo, excepto onde indicado.
Músicos:
Fernando Tordo – voz
José Calvário – teclas, sintetizador
Barry Morgan – bateria
Les Hurdle – guitarra baixo
Paul Keogh – guitarras
Paul Jones – harmónica
Jack Emblo – acordeão
Arranjos e direcção musical – José Calvário
Recados, de Jáfumega
(LP, Polydor/Polygram, 1983)
As origens dos Jáfumega remontam aos Mini-Pop, quarteto portuense que fez algum furor nos anos 70, por ser inteiramente composto por adolescentes cujas capacidades instrumentais eram, aliás, bem maduras para a idade que tinham. Em finais de 1978, ao núcleo dos Mini-Pop, formado pelos irmãos Barreiros – Eugénio (teclados), Mário (guitarras) e Pedro (baixo) – juntam-se Álvaro Marques (bateria), José Nogueira (saxofone, órgão e sintetizador), Luís Portugal (voz e percussão) e ainda António Pinho [Vargas] (Fender Rhodes), oriundo, tal como José Nogueira, do grupo de jazz-rock Abralas, mas que abandonará o projecto pouco depois, ainda antes da gravação do primeiro disco. O grupo adopta o nome de Jáfu'Mega, depois Já'Fumega e finalmente Jáfumega.
De início pesquisando sons e estilos híbridos, os Jáfumega cedo adquirem uma personalidade musical muito própria, sobretudo alicerçada nos excelentes trabalhos de composição de Eugénio Barreiros e José Nogueira. O intercâmbio de experiências e de 'background' dos vários músicos do grupo solidifica a noção de conjunto. Os Jáfumega dedicam-se à construção de um rock de características originais, primorosamente executado, com incursões rítmicas na música negra (jazz, funky e reggae) e de construções harmónicas e melódicas inseridas nas modernas escolas de jazz-rock inglesa e americana. A revelação dos Jáfumega ao grande público acontece no final de 1980 pela mão da editora independente Metro-Som (onde também estavam os UHF), que publica um primeiro álbum, totalmente cantado em inglês, intitulado "Estamos Aí!". Por detrás de um título pouco mais que banal escondia-se uma das estreias mais surpreendentes da música feita em Portugal nesse período pré-boom do rock português: um grupo de excelentes músicos com uma noção muito clara do que devia ser uma canção pop, embora ainda muito ligados ao meio do jazz. A Metro-Som não dispunha dos meios de divulgação de outras companhias, mas o álbum obteve algum sucesso de rádio e a crítica escrita não lhe poupou elogios. Mas a grande surpresa aconteceria na Primavera de 1981 com o monstruoso sucesso de rádio alcançado pelo single Dá-me Lume/Ribeira, sendo o tema da face B inspirado na zona ribeirinha do Porto ("A ponte é uma passagem, / p'rá outra margem..."). Pouco depois, o sexteto assinava contrato com a multinacional PolyGram, que promoveria agressivamente junto da rádio e da imprensa os álbuns "Jáfumega" (1982) e "Recados" (1983). Em ambos os casos, os discos recebem a viva aclamação da crítica, que não se cansa de afirmar estarem ali alguns dos melhores músicos e alguma da melhor música portuguesa do momento, independentemente do rótulo que se lhes pudesse colar e que, muito claramente, pouco tinha a ver com o rock português tal como era geralmente entendido. A rádio também não ficou alheia aos Jáfumega: dos oito temas do álbum "Jáfumega" quatro mereceram extensíssimas passagens na rádio – "Só Sai a Ti (Society)", "Kasbah" e, sobretudo, "Nó Cego" e "Latin'América" – ao passo que "Recados" obtém substanciais êxitos radiofónicos em "Romaria" e "La Dolce Vita". A aclamação crítica e a popularidade de rádio, bem como a carteira de concertos que o grupo acumularia, não coincidiu, contudo, com o volume de vendas esperado pela editora, o que inviabiliazaria a gravação de um novo álbum que já estava na forja, acabando por levar à desintegração do grupo, no ano de 1984, com os vários músicos a tomarem rumos diferentes.
José Nogueira explica assim o fim do projecto: "A questão essencial é que já tinha passado o 'boom' e toda aquela euforia das editoras. Já não queriam gravar tudo o que lhes era proposto e começaram a surgir exigências de comercialismos fáceis e imediatos com que nunca tínhamos pactuado e com os quais não iríamos passar a pactuar". No mesmo sentido vão as palavras de Luís Portugal: "Naquela época, fizemos tudo o que era possível fazer. E, em minha opinião, deixámos coisas intemporais. Por outro lado, o mercado não tinha a abertura que tem hoje e os membros do grupo, excelentes músicos e executantes, sentiam a necessidade de experimentar coisas diferentes. Assim, optámos por uma pausa temporária mas, infelizmente, a paragem foi fatal." (Luís Portugal, in "Clix Porto", 2001)
Para a História da Música Portuguesa, ficou uma discografia escassa mas que integra alguns dos melhores espécimes da música moderna da primeira metade dos anos 80: "Ribeira", "Latin'América", "Kasbah", "La Dolce Vita" e "Romaria", sem esquecer essa autêntica pérola que é "Rústica", sobre poema de Florbela Espanca, com música e voz de Eugénio Barreiros.
Alinhamento:
Recados da Cidade
1. La Dolce Vita (José Soares Martins / José Nogueira)
2. Uma Noite de Amor (Luís Portugal / Mário Barreiros e Luís Portugal)
3. Assim Não (José Soares Martins / José Nogueira)
4. Origem (José Soares Martins / José Nogueira)
Recados do Campo
5. Romaria (José Soares Martins / José Nogueira)
6. O Outro Dia do Ano (José Soares Martins / Eugénio Barreiros)
7. Nordeste (José Soares Martins / José Nogueira)
8. Rústica (Florbela Espanca / Eugénio Barreiros)
Músicos:
Mário Barreiros – guitarras, guitarra sintetizador Roland, programação de bateria electrónica
Eugénio Barreiros – voz, coros, electric grand piano, teclados
Pedro Barreiros – baixo
José Nogueira – sintetizador, saxofone alto e tenor, clarinete, electric grand piano
Álvaro Marques – bateria
Luís Portugal – voz e coros
Kim M'Jojo – percussão
António Reis Gomes – trompete
Arranjos instrumentais – José Nogueira, Mário Barreiros e Jáfumega
Arranjos vocais – Eugénio Barreiros, Luís Portugal e Jáfumega
Arranjos da secção de metais – José Nogueira
Produção – José Nogueira e Mário Barreiros
Gravado e misturado no Angel Studio, Lisboa, de 14 de Março a 22 de Abril de 1983
Técnicos de som – José Fortes e Rui Novais
Design gráfico e fotos – Júlio Alexandre de Matos
Um Homem no País, de Carlos do Carmo
(LP, Philips/Polygram, 1983; CD, Philips/Polygram, 1984)
[colocar citação]
«Do Sul ao Norte, Trovador que canta Província a Província, Carlos do Carmo conta, lírico e lúcido, o povo que somos.» (Manuel da Fonseca).
Alinhamento:
1. Fado Excursionista (Ary dos Santos e José Mário Branco / José Afonso)
2. Fado das Amendoeiras (música de Fernando Tordo)
3. Fado da Madeira (música de José Luís Tinoco)
4. Fado da Serra (música de Joaquim Luís Gomes)
5. Fado da Lezíria (música de Tozé Brito)
6. Fado Transmontano (música de Carlos Paulo)
7. Fado Moliceiro (música de Carlos Paredes)
8. Fado Manguela (Ary dos Santos e José Mário Branco / José Mário Branco)
9. Fado dos Açores (música de Carlos Alberto Moniz)
10. Fado do Trigo (música de António Vitorino de Almeida)
11. Fado do Minho (música de Mário Moniz Pereira)
12. Fado Burrico (música de Paulo de Carvalho)
13. Fado Ultramar (José Mário Branco / Ivan Lins)
Letras de José Carlos Ary dos Santos, execepto onde indicado.
Músicos:
António Chainho – guitarra portuguesa (todos os temas, excepto 7)
José Maria Nóbrega – viola (todos os temas, excepto 7 e 11)
Fernando Correia Martins – baixo (todos os temas, excepto 3, 5, 9, 12 e 13), viola Ovation (2, 7), violino (6), viola (11)
José Pedro Caiado – pífaro (2)
Sérgio Mestre – mandador (2)
Carlos Bica – contrabaixo (3, 5, 13)
António Costa – trompa (4)
Carlos Paredes – guitarra portuguesa (7)
Fernando Alvim – viola (7)
António Serafim – oboé (7)
Rui Cardoso – flautas (7, 12), flautim (11), saxofones (12)
Fernando Ribeiro – acordeão (8)
Irene Lima – violoncelo (8)
Pedro Wallenstein – contrabaixo (9, 12)
Carlos Alberto Moniz – viola Ovation (9)
Coro da Biblioteca Operária Oeirense – António Delfino, João Pestana, Joaquim Fialho, João Almeida, João Romana, Nuno Malato, Domingos Morais, Rui Vaz (10)
Hermenegildo Campos – trombone (12)
António Lages – tuba (12)
Artur Moreira – clarinete (12)
Arranjos – José Mário Branco, excepto em: "Fado da Madeira" (José Luís Tinoco e José Mário Branco), "Fado da Serra" (Joaquim Luís Gomes) e "Fado dos Açores" (Carlos Alberto Moniz e José Mário Branco)
Produção e direcção musical – José Mário Branco
Gravação e mistura – José Manuel Fortes
Capa – António Carmo
Fotografia – Hans Kirmer
Canções para Quase Todos, de Luiz Goes
(LP, EMI-VC, 1983; CD, EMI-VC, 2001)
«Em 1983, Luiz Goes rompe com um silêncio discográfico de onze anos, com a apresentação de "Canções para Quase Todos", no qual se reeditam vivências antigas de uma experiência que conserva toda a actualidade.
Vão longe os tempos de "Coimbra de Ontem e de Hoje" (1967), "Canções do Mar e da Vida" (1969) e "Canções de Amor e de Esperança" (1972) e, no entanto, os cantos persistem com uma vigência não raro dolorosa. Luiz Goes permanece cantando os que andam "em busca da verdade" e só encontram "falsidade em cada sofrimento", fiel a uma luta na qual também é importante cantar, mesmo que não se saiba cantar. E já doía a ausência, "Quem vier, que traga uma canção de amor, tão pura e sentida que a cante de cor..."» (Mário Correia).
O cantor dá as suas razões para tão longo hiato na sua discografia, sobretudo depois da Revolução de 1974: «Nessa altura já não se sentia tanta urgência em dizer coisas. Eu gravei sempre muito pouco. Depois fui sempre arrastado por outros na parte prática e o grupo que me motivava desfez-se. Comecei a não encontrar aquilo que eu precisava que fosse feito. Depois nunca vivi só da música – quem me dera a mim! Se estivesse em Coimbra talvez tivesse sido mais fácil, porque entretanto surgiu uma plêiade de instrumentistas notabilíssimos». Embora Luiz Goes não o diga, houve outros razões mais dramáticas para um tão longo período sem discos: na verdade, o cantor teve graves problemas de saúde, mais concretamente crises de asma que, por mais de uma vez, o deixam à beira da morte. Até que no início dos anos 80 recupera, reconcilia-se com João Bagão e reconstitui o grupo de instrumentistas que o acompanharam no final da década de 60. "Canções Para Quase Todos" é o retrato desse período de sofrimento e da sua superação. É o próprio cantor que confessa: «Houve ali uma necessidade íntima de fazer coisas outra vez. A vida foi andando e eu não pude deixar de traduzir as minhas próprias decepções. No fundo considero-me um humanista. Sempre tive uma grande preocupação com a vida dos outros. Estou sempre com medo de prejudicar, de pisar alguém. Aí está outro motivo porque não gravei mais. Comecei a pensar: "Se vou gravar com este, então não gravo com aquele" e arrependia-me. Ainda hoje sinto o mesmo.»
"Canções para Quase Todos" representa, nas palavras de Mário Correia, «o reencontro com a canção de Coimbra mais expressiva e carregada de um presente que insiste em projectar-nos no futuro: "Canção Para Quase Todos" (Leonel Neves / João Gomes), "Romagem à Lapa" (Leonel Neves / Luiz Goes), "Viagem de Acaso" (Luiz Goes), "Balada dos Meus Amores" (Edmundo de Bettencourt / Luiz Goes), "Teu Corpo" (Luiz Goes), "Aqui" (Miguel Torga / António Toscano), "Canção de Todos os Dias" (Leonel Neves / Durval Moreirinhas), "Dissonância" (Miguel Torga / Luiz Goes), "Requiem pelos Meus Irmãos" (Leonel Neves / João Bagão), "Última Canção de Amor" (Leonel Neves / João Gomes), "Desencontro" (Leonel Neves / João Gomes) e "Regresso da Pesca" (Leonel Neves / António Toscano). Ao nível instrumental de novo o encontro com as violas de João Gomes, António Toscano e Durval Moreirinhas e as guitarras de João Bagão e Aires de Aguilar.
"Canções para Quase Todos" é um disco fundamental da Coimbra dos nossos cantos de esperança, no qual o lirismo dá as mãos à análise dura, por vezes mesmo cruel, da realidade. Daí a enorme verdade que se desprende das suas espiras, uma verdade para "quase todos": «...ou a gente impede a Guerra ou a gente deixa a Terra que é de todos... a nenhuns". Uma obra obrigatória.» (Mário Correia, in "Música Popular Portuguesa: Um Ponto de Partida", Centelha/Mundo da Canção, 1984).
Alinhamento:
1. Canção para Quase Todos (Leonel Neves / João Figueiredo Gomes)
2. Romagem à Lapa (Leonel Neves / Luiz Goes)
3. Viagem de Acaso (Luiz Goes)
4. Balada dos Meus Amores (Edmundo de Bettencourt / Luiz Goes)
5. Teu Corpo (Luiz Goes)
6. Aqui (Miguel Torga / António Toscano)
7. Canção de Todos os Dias (Leonel Neves / Durval Moreirinhas)
8. Dissonância (Miguel Torga / Luiz Goes)
9. Requiem pelos Meus Irmãos (Leonel Neves / João Bagão)
10. Última Canção de Amor (Leonel Neves / João Figueiredo Gomes)
11. Desencontro (Leonel Neves / João Bagão)
12. Regresso da Pesca (Leonel Neves / António Toscano)
Músicos:
João Bagão – guitarra (todos os temas, excepto 1 e 10)
Aires Máximo de Aguilar – guitarra (2, 4-7, 9)
João Figueiredo Gomes – viola (todos os temas)
António Toscano – viola (1, 2, 4-6, 8, 11)
Durval Moreirinhas – viola (1, 3, 7, 8, 11, 12)
Produção – Mário Martins
Gravado nos Estúdios Valentim de Carvalho, Paço d'Arcos, em 1983
Técnico de som – Hugo Ribeiro
Fotos – Luís Vasconcelos
Lágrima, de Amália Rodrigues
(LP, EMI-VC, 1983; CD, EMI-VC, 1995; Edições Valentim de Carvalho/Som Livre, 2007)
Tal como acontecera em "Gostava de Ser Quem Era" (1980), o álbum "Lágrima" é também integralmente constituído por poemas da própria Amália, musicados pelos seus guitarristas Carlos Gonçalves e José Fontes Rocha. E se no primeiro já estava explícito o recorte autobiográfico, é em "Lágrima" que a artista despe a sua alma, pondo a nu a solidão e a profunda angústia existencial que dela se haviam apoderado. É, por isso, o álbum mais triste e desalentado de toda a discografia da autora/cantora, o que está bem patente no tema-título, e em "Flor de Lua", "Ai Minha Doce Loucura", "O Fado Chora-se Bem", "Morrinha", "Ai as Gentes, Ai a Vida", "Amor de Mel, Amor de Fel" e principalmente em "Grito".
[colocar citação]
Alinhamento:
1. Lágrima
2. Flor de Lua
3. Ai Minha Doce Loucura
4. Ai Maria
5. O Fado Chora-se Bem
6. Olha a Ribeirinha
7. Morrinha
8. Ai as Gentes, Ai a Vida
9. Amor de Mel, Amor de Fel
10. Sou Filha das Ervas
11. Asa de Vento
12. Grito
Letras de Amália Rodrigues.
Músicas de Carlos Gonçalves, excepto tema 8 (José Fontes Rocha).
Músicos:
José Fontes Rocha e Carlos Gonçalves – guitarras portuguesas
Jorge Fernando – viola
Joel Pina – viola baixo
Produção – João Belchior Viegas
Gravado nos Estúdios Valentim de Carvalho, Paço d'Arcos, de Outubro de 1982 a Maio de 1983
Técnico de som – Hugo Ribeiro
Fotografia – Luís Vasconcelos
Arranjo gráfico – Guilherme Prosperi
Fado Bailado, de Rão Kyao
(LP, Vertigo/Polygram, 1983; CD, Vertigo/Polygram, 1989)
«"Gosto de fado desde puto, sempre tive essa ligação. O meu pai era amigo da Amália, eu ia muito a casa dela em miúdo. Não sou assíduo frequentador de casas de fado, mas de vez em quando gosto de ouvir os grandes estilistas, como a Argentina Santos e o Manuel de ALmeida. São personalidades que nos marcam, e estas coisas todas ligadas devem ter contribuído para eu fazer um disco de fado." É assim que Rão Kyao justifica um disco que em 1983, data da sua primeira edição, terá sido, para muitos, uma surpresa. Desde finais dos anos 70 que Rão era conhecido nos meios jazzísticos nacionais — o seu primeiro álbum, "Malpertuis", data de 1976. Mas não havia por cá grandes antecedentes de "cross-over" entre diferentes áreas musicais. No que respeita ao fado e ao jazz, o que acontecera antes fora o "Encontro" de Amália Rodrigues e Don Byas (1968), uma experiência que ficou aquém do que o título promete. É Rão quem o confirma: "A ideia foi muito boa, mas o Don teria que se envolver muito mais no fado para fazer uma coisa equiparada à Amália."
Pela sua formação, Rão Kyao tinha, em contrapartida, esse envolvimento. Regressado do Oriente, onde iniciara a sua aprendizagem da "world music" e da conexão com o jazz, trazia na bagagem uma série de projectos de gravação, que revelou a Luís Pedro Fonseca, seu produtor e colaborador habitual. Fazer um disco de fado era uma das ideias, mas, tendo em conta a experiência algo fracassada de Don Byas, o músico português optou por outra aproximação, ao mesmo tempo mais sistemática e mais intuitiva. "O fado vive da maneira como se 'estila', e neste álbum escolhi fados que dessem sobretudo essa liberdade." Partindo desta conceptualização, Rão pôde então libertar o sentimento: "O fado é um estilo de música por que tenho grande respeito e, se algum mérito tem 'Fado Bailado', é que o toquei com grande sinceridade. Às vezes há tipos que não estão no fado e que o tocam sempre com a ideia de que sabem mais do que aquilo. Não vão a lado nenhum, porque o fado é que sabe mais." Daí que "Fado Bailado" não seja um álbum de fados tocados por uma banda de jazz convencional, mas um disco interpretado por uma formação típica do fado, ou em que o acompanhamento é assegurado por guitarra portuguesa e violas, com a diferença de no lugar do canto surgir o saxofone. "Para já, é um instrumento a que sempre me dediquei mais. Ao mesmo tempo, para fazer uma tonalidade de voz de homem, o sax era mais adequado." E há ainda uma terceira consequência que Rão extraiu da autenticidade fadista que quis imprimir ao seu álbum de 1983: "Os discos de fado são, em geral, feitos rapidamente. Assim aconteceu com o meu. Posso ter revisto uma ou duas coisas, mas basicamente foi feito sem pensar muito. Quis tocar como estava a sair. Fiz exactamente como um cantor de fado." Um cantor de fado que se preze deve recriar os clássicos. Fiel a essa tradição, Rão baseou o reportório em "standards" propícios ao 'estilar', acessíveis ao improviso dessa outra "voz" que quis fazer do seu sax tenor. Assim se justifica a presença de temas como "Fado Bailado", que abre e dá nome ao disco. Além dos oito clássicos, Rão incluiu ainda dois temas de sua autoria onde quis ir um pouco mais longe do que substituir a voz pelo sax. Eis as suas razões: "'Dedicatória' é um tema romântico, tocado numa espécie de toada, entre o fado e um certo sabor folclórico, que eu achei que ficaria bem. O outro é 'Contemplação', que mostra mais a influência da música indiana em mim e foi tocado só com acompanhamento de acordeão. Porque há outras coisas que tenho dentro da minha cabeça, mas que estão, no fundo, ligadas com fado.” O saxofonista Rão Kyao é, ao fim e ao cabo, um fadista? Manuel de Almeida, a lenda viva do fado, que chamou Rão para o soberbo "Eu Fadista Me Confesso" (1987), é dessa opinião. E no texto que acompanha a reedição de "Fado Bailado" também se lê: "Rão revela-se um óptimo fadista." Já Rão é menos categórico: "Não sei, sou capaz de tocar o fado menor ou o mouraria à minha maneira. Tenho uma identificação, sei o que é uma curva melódica e cantar uma frase com sentido fadista, isso sem dúvida. Mas nunca pensei se sou fadista ou não."» (Luís Maio, in "Os Melhores Álbuns da Música Popular Portuguesa: 1960-1997", Público/FNAC, 1998).
Alinhamento:
1. Fado Bailado (Alfredo Marceneiro)
2. Ai Mouraria (Amadeu Augusto dos Santos / Frederico Valério)
3. Canção do Mar (Ferrer Trindade)
4. Fado Dois Tons (Popular)
5. Dedicatória (Rão Kyao)
6. Fado Vitória (Joaquim Campos)
7. Fado Vianinha (Francisco Viana, "Vianinha")
8. Foi Deus (Alberto Janes)
9. Fado Corrido (Popular)
10. Contemplação (Rão Kyao)
Músicos:
Rão Kyao – saxofone
António Chainho – guitarra portuguesa
José Maria Nóbrega – viola, viola baixo
Siegfried Sugg – acordeão (10)
Produção – Luís Pedro Fonseca
Gravado nos Estúdios da Rádio Triunfo, Lisboa
Engenheiro de som – Moreno Pinto
Fotografias – Pedro Castello Lopes
A Guitarra Portuguesa nos Salões do Séc. XVIII, de Pedro Caldeira Cabral
(LP, Orfeu/Rádio Triunfo, 1983)
«A guitarra do séc. XVIII, que foi conhecida em vários países da Europa sob os nomes de "english guitar", "cistre" e "cetra", difere consideravelmente nas dimensões, técnica e afinação do instrumento popular que hoje conhecemos ligado à música de tradição oral de Norte a Sul do país. Este instrumento tem origem na cítara do Renascimento, criada em Itália na 2.ª metade do séc. XV e introduzida em Portugal no séc. XVI. No séc. XVIII, a guitarra aparece ligada às novas práticas musicais da burguesia (Hausmusik) sendo instrumento muito em voga nos salões das grandes capitais da Europa. Compositores importantes como Francesco Geminiani, Johann Sebastian Bach, J. F. Zuckert, G. Rush e Rudolf Straube interessaram-se pelo instrumento escrevendo para ele sonatas, fantasias, lições minuettos e canções. Em Portugal os nomes mais representativos foram os de António Silva Leite, Manuel José Vidigal e A. Pereyra da Costa.» (Pedro Caldeira Cabral).
«Para documentar justamente essa fase da guitarra, Pedro Caldeira Cabral lançou mão de composições de António da Silva Leite ("Sonata I" e "Sonata II", ambas extraídas de uma obra publicada em 1792), Manuel José Vidigal ("Minuetto I" e "Minuetto VI"), Rudolf Straube ("Sonata I", extraída de uma colecção de peças datada de 1768) e Francesco Geminiani ("Sonata VI", 1760), tendo sido acompanhado por excelentes músicos: António Oliveira e Silva (violino barroco), Pedro Rodrigues (1.° trompa), António Melo (2.° trompa), Miguel Ivo Cruz (violoncelo) e Magdalena van Zeller (cravo). O resultado foi a apresentação de um documento de inegável valor e de execução sublime. Imprescindível pelo esclarecimento cultural que transporta.» (Mário Correia, in "Música Popular Portuguesa: Um Ponto de Partida", Centelha/Mundo da Canção, 1984).
Alinhamento:
1. Sonata I: Allegro – Minuetto – Rondò (António da Silva Leite, 1792)
2. Minuetto I (Manuel José Vidigal)
3. Minuetto VI (Manuel José Vidigal)
4. Sonata II: Allegretto – Adágio – Allegro (António da Silva Leite, 1792)
5. Sonata I: Largo – Allegro Moderato – Allegretto con Varia (Rudolf Straube, 1768)
6. Sonata VI: Andante – Adágio – Canone Intinito Spirito (Francesco Geminiani, 1760)
Musicos:
Pedro Caldeira Cabral – guitarra portuguesa
Antonio Oliveira e Silva – violino barroco
Pedro Rodrigues – trompa
António Melo – trompa
Miguel Ivo Cruz – violoncelo
Magdalena van Zeller – cravo
Instrumentos:
Guitarra de Domingos José de Araujo, 1812
Violino Barroco Anónimo Português, Séc. XVIII
Trompas: 2 "Cors d'Orchestre" de Courtois, Séc. XVIII
"Cor-Solo" de Marcel-Auguste Raoux, ca. 1816
Trompa "Omnitonica" Cerveny, Séc. XIX
Cravo: Cópia de Modelo Italiano do Séc. XVII
Viola da Gamba: Anónimo Português, Séc. XVIII
Violoncelo Barroco: Cópia de Stradivarius Séc. XIX
Gravado nos Estúdios Rádio Triunfo, Lisboa
Técnicos de som – Moreno Pinto, Jorge Barata e Paulo Junqueiro
Diapositivo – Roberto Santandreu
Design de capa – Jan van Dijck
Concerto em Frankfurt, de Carlos Paredes
(LP, Phillips/Polygram, 1983; CD, Phillips/Polygram, 1990)
Gravado ao vivo no concerto que Carlos Paredes deu na Ópera de Frankfurt, em 1982, em primeira parte de Carlos do Carmo, este álbum – o único registo oficial em palco da carreira do guitarrista – foi registado sem o conhecimento do músico. Em entrevistas posteriores, o próprio Paredes confessou que tal decisão acabou por ser pelo melhor – o nervosismo de saber que estava a ser gravado poderia ter afectado a sua performance. À altura da sua edição original, o disco compunha-se inteiramente de material inédito em disco: de um lado, encontrávamos os "Seis Cantos Improvisados sobre a Cidade" (posteriormente retrabalhados em "Espelho de Sons"). E, do outro, a mais recente versão da suite da "Fábula" em que Paredes vinha trabalhando desde 1973 (cuja primeira encarnação seria finalmente lançada em 1996 no CD "Na Corrente", e cujas outras iterações podem ser encontradas em "O Oiro e o Trigo" e "Espelho de Sons").
Citando Mário Correia, «Carlos Paredes trouxe nova dimensão para a guitarra portuguesa do convívio com o colectivo: ninguém como ele consegue libertar de um instrumento tamanha dose de portugalidade, conseguindo um diálogo enorme entre quem o ouve e a terra de onde os sons parecem brotar. Temos de deixar as palavras bem amarradas quando falamos do trabalho de Carlos Paredes pois parece-nos que o melhor entendimento da sua obra é o fruir da sua força telúrica num silêncio repleto de vivências e diálogos com a nossa essência. Ouvir Paredes, todos o sentimos, é estremecer por completo, é sentir as entranhas da nossa condição de povo serem revolvidas, como se da terra lavrada para receber novas sementes se tratasse. Ouvir Paredes é um acto eminentemente cultural, porque a guitarra portuguesa, nas suas mãos, se assume cultura de todos nós. É um vulcão de cultura rebentando estrondoso e formidável dentro de nós próprios: Paredes não toca; toca-nos, com todas as nossas grandezas e misérias. E assim reaprendemos a dimensão do humano. "Concerto em Frankfurt" — com a guitarra portuguesa nas mãos o concerto de Paredes é sempre um concerto dentro de todos nós onde quer que aconteça. (Mário Correia, in "Música Popular Portuguesa: Um Ponto de Partida", Centelha/Mundo da Canção, 1984).
Alinhamento:
SEIS CANTOS IMPROVISADOS SOBRE A CIDADE:
1. Canto do Amanhecer
2. Canto de Trabalho
3. Canto de Embalar
4. Canto de Amor
5. Canto de Rua
6. Canto do Rio
SEIS GUITARRADAS SOBRE UMA FÁBULA:
7. A Montanha e a Planície
8. Dança Palaciana
9. Sede
10. Dança dos Camponeses
11. «In Memoriam»
12. Festa da Primavera
13. VARIAÇÕES
Composições de Carlos Paredes, excepto "Variações" (Artur Paredes).
Músicos:
Carlos Paredes – guitarra portuguesa
Fernando Alvim – viola
Gravado ao vivo na Ópera de Frankfurt, Alemanha Ocidental, em 1982
Realização e produção do espectáculo – Teo Ferrer de Mesquita
Estúdio móvel de Dick van Schuppen
Produtor e engenheiro de som – José Manuel Fortes
Negro Fado, de Vitorino
(LP, EMI-VC, 1988; CD, EMI-VC, 1988)
Seguindo-se ao maxi "Joana Rosa" (1986), "Negro Fado" surge em 1988, com produção de António Emiliano. Ainda mais ousado que o precedente "Sul" (1985), o presente álbum não logra atingir o nível de vendas que fora alcançado por "Flor de la Mar" (1983) e "Leitaria Garrett" (1984). Ainda assim, temas como "Flor de Jacarandá", "Marcha de Alcântara", além do tema-título "Negro Fado" e da versão criuola de "Joana Rosa" tornam-se grandes sucessos de rádio.
No ano seguinte, "Negro Fado" é distinguido com o prestigioso Prémio José Afonso, atribuído pela Câmara Municipal da Amadora.
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Alinhamento:
1. Negro Fado
2. Marcha de Alcântara
3. Rouxinol Repenica o Cante (popular; adap. de Vitorino)
4. Joana Rosa (Vitorino; versão crioula de Zuca Moniz)
5. Tango Mariñero
6. Flor de Jacarandá
7. Do Outro Lado do Tejo (letra de Manuel Alegre e Vitorino)
8. Valsa do Passeio Público
9. Cantiga de Amigo (letra de Luís de Andrade Pignatelli e Vitorino)
10. Vou-me Embora
Letras e músicas de Vitorino, execepto onde indicado.
Músicos:
Yuri Ferreira – baixo
José Neves – guitarra eléctrica
Zé Zé – guitarra eléctrica (4)
Tito Paris – cavaquinho e baixo (4)
Rui Alves – bateria e percussões
José Manuel Marreiros – piano e teclas
Pedro Caldeira Cabral – guitarra portuguesa
João Lucas – acordeão e teclas
Carlos Salomé – guitarra
Carlos Martins – saxofones
António Emiliano – teclas (7, 8, 9, 10)
Arranjos – José Manuel Marreiros (1, 3, 5, 6), João Lucas (2), Vitorino (4) e António Emiliano (7, 8, 9, 10)
Produção – Vitorino, António Emiliano e José Manuel Marreiros
Gravado nos Estúdios Valentim de Carvalho, Paço d'Arcos
Engenheiros de som – Paulo Neves, Amândio Bastos e Pedro Vasconcelos
Fotografia – António Homem Cardoso
Capa e arranjo grafico – Fátima Rolo Duarte
Pedro Barroso, de Pedro Barroso
(LP, Schiu!/Transmédia, 1988)
Com chancela da Transmédia, entretanto falida, Pedro Barroso publica, em 1988, um álbum cujo título genérico é o seu próprio nome. O autor/compositor continua a centrar-se nas temáticas que lhe são caras: o amor e a mulher ("Anúncio Confidencial", "Música de Mar", "Tem Dias"), o sonho como lema de vida ("D. Sebastião", "Estrela d'Alva"), um fresco do quotidiano onde se vende "o lixo do luxo" ("Feira da Ladra"), a amizade e a fraternidade ("Balada a Deuladeu"), a portugalidade ("Diz-me o que é ser português", com letra e música de Luís Maduro). Completam o alinhamento dois temas instrumentais: "Abertura (Canto do Barroso)" e "Nocturno", no início e no fecho, respectivamente.
Os poemas e as composições são da autoria de Pedro Barroso, salvo onde indicado em contrário. Com direcção musical e produção também de Pedro Barroso, no elenco de instrumentistas contam-se Pedro Barroso (violas, caixa, bombo, metalofone), José Carlos Gonçalves (violoncelo), António Chainho (guitarra portuguesa), Pedro Fragoso (piano, viola campaniça, viola, guitarra portuguesa), Ana Paula Tavares (gaita-de-foles, palheta), Carlos Carlos (acordeão), Zé Calhau (flauta transversal, adufe) e Gonçalo Lacerda (viola).
Pedro Barroso apresenta-nos assim o disco, em tom de fina ironia: «Deuladeu Martins – mulher de outros séculos e outras guerras – amassou e ofereceu, com o coração na garganta, o último pão aos sitiantes [da vila de Monção], os quais, perturbados com esse alarde de súbita fartura de quem era suposto estar mais faminto do que eles, levantaram cerco. Eu, porém, não possuo bens tão concretos como o pão para distribuir. Apenas aqui vos deixo, como sempre, estes bordados de alma, cantos da terra e do mar, esperas sebastiânicas, portugalidades desregradas, cantos da eira, namoros brejeiros, visões da maresia. Pouco alimento, portanto. Donde o cerco continuará. Aliás, falei ontem mesmo com o futuro e diz que o rio Tejo ainda não chegou.» (Pedro Barroso).
Infelizmente, o álbum ainda não foi transcrito para CD, pelo que faço questão de lembrar a quem possui a matriz para a importância cultural da sua reedição.
Alinhamento:
1. Abertura (Canto do Barroso) (instrumental)
2. Anúncio Confidencial
3. Música de Mar (Pedro Barroso / Imanol)
4. D. Sebastião
5. Estrela d'Alva (Pedro Barroso / Pedro Fragoso da Silva)
6. Feira da Ladra
7. Balada a Deuladeu
8. Tem Dias
9. Diz-me o que é ser português (Luís Maduro)
10. Nocturno (instrumental)
Letras e músicas de Pedro Barroso, excepto onde indicado.
Músicos:
Pedro Barroso – voz, violas, caixa, bombo, metalofone
José Carlos Gonçalves – violoncelo, viola baixo
António Chainho – guitarra portuguesa
Pedro Fragoso da Silva – piano, viola campaniça, viola, guitarra portuguesa, ferros
Ana Paula Tavares – gaita-de-foles, palheta
Carlos Carlos – acordeão
Zé Calhau – flauta transversal, adufe
Gonçalo Lacerda – viola
Grupo Etnográfico e Excursionista Alcacerense "Os Fragozinhos" – violas campaniças, cavaquinhos
Tuna das Relvas de Olival Basto – contrabaixo, violoncelos, violinos
Luís Maduro – viola
Arranjos – Pedro Barroso, com a colaboração colegial de todos os músicos
Arranjo de "Estrela d'Alva" – Pedro Fragoso da Silva
Direcção musical e produção – Pedro Barroso
Gravado nos Estúdios Musicorde, Lisboa
Técnico de som – Rui Remígio
Capa – Mestre Martins Correia
Ao Vivo, de Rui Veloso
(2LP, EMI-VC, 1988; CD, EMI-VC, 198?)
Na sequência do retumbante sucesso que foi o álbum "Rui Veloso" (1986), o músico realiza nos Coliseus de Lisboa e Porto as suas primeiras grandes produções em palco, que registam lotações esgotadas. Os concertos são gravados e dos espectáculos dados no Porto será retirado o alinhamento do primeiro disco ao vivo de Rui Veloso. Além do mais destacado repertório dos quatro álbuns gravados até à data – "Ar de Rock" (1980), "Fora de Moda" (1982), "Guardador de Margens" (1983) e do já referido "Rui Veloso" (1986) –, o alinhamento integra ainda um inedito – "Fado do Ladrão Enamorado" –, que pouco depois Nuno da Câmara Pereira também gravará (no álbum "A Terra, o Mar e o Céu", 1988) e uma versão do tema "Everyday I have the blues", do 'bluesman' norte-americano T-Bone Walker.
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Alinhamento:
1. Sayago Blues
2. Sei duma Camponesa
3. Bairro do Oriente
4. Chico Fininho
5. Saiu para a Rua
6. Balada da Fiandeira
7. Everyday I have the blues
8. A Ilha
9. A Gente Não Lê
10. Guardador de Margens
11. Fado do Ladrão Enamorado
12. Afurada
13. Estrela do Rock and Roll
14. Cavaleiro Andante
15. Porto Côvo
16. Porto Sentido
Letras de Carlos Tê, excepto em "Everyday I have the blues" (T-Bone Walker).
Músicas de Rui Veloso, excepto em "Everyday I have the blues" (T-Bone Walker).
Produção – Rui Veloso e Amândio Bastos
Gravado no Coliseu do Porto, em 4 e 5 de Junho de 1987
Técnico de gravação – Amândio Bastos
Misturado nos Estúdios Valentim de Carvalho, Paço d'Arcos, por Amândio Bastos, em Novembro de 1987
Montagem digital – Miguel Gonçalves
Capa e arranjo gráfico – Fátima Rolo Duarte
Fotografias – F. Jorge Castro
O Melhor de Maria Teresa de Noronha
(2LP, EMI-VC, 1988; CD, EMI-VC, 1989)
«Maria Teresa de Noronha foi uma figura incaracterística no meio do fado. Não lhe correspondeu nas desgraças amorosas, na miséria quotidiana, ou até no protagonismo de concursos ou casas de fado. A sua condição social determinou mesmo que fosse intitulada a "voz aristocrática" do fado. Mas no fado não existe hierarquia e todos padecem o seu sentido funesto: "Cansada de ter saudade/ tudo fiz para esquecer/ e hoje tenho saudade/ de saudade já não ter." Iniciando-se como cantora no coro de Ivo Cruz, onde cantava com o irmão D. Vasco de Noronha, Maria Teresa de Noronha moldou o seu talento como lhe convinha a condição: cantando quando queria, recusando os compromissos, a submissão a uma "carreira". Gravou muito, tanto para editoras como para rádio, cantava em concertos de beneficência, em iniciativas diplomáticas ou quando a cumplicidade a fazia aceder. Era uma amadora. Mas preparava o seu trabalho com rigor e exigência, como lembra o seu sobrinho e também fadista Vicente da Câmara: "Trabalhava como uma profissional. Nunca seguiu carreira, nunca fez grandes coisas no estrangeiro, mas o que fazia na Emissora [Nacional] eram coisas com muito profissionalismo." Gravou o primeiro disco — "O Fado dos Cinco Estilos" — em 1939, tinha então 20 anos, exactamente para a Emissora Nacional. Vaticinando a sua "carreira" de recusas, em que actuou tanto menos quanto mais eram os admiradores e os pedidos, o single foi impresso ao contrário, sendo a leitura feita da parte de dentro para a extremidade do disco. Em 1946 cantou no Brasil, na sequência do voo inaugural da TAP Lisboa-Rio de Janeiro. Três anos depois casava-se com José António Sabrosa, conde de Sabrosa, e as suas actuações tornaram-se ainda mais esparsas. "Não havia imposições familiares, só que naquele tempo não era costume. Uma senhora cantar na Emissora era uma coisa quase que mal vista. Quando apareceu a cantar, havia um certo receio. Não da família, que sobre esse aspecto era bastante aberta, não pensava nada disso, mas não era costume. A ideia era que os artistas eram tidos como uma classe depravada, com mau carácter", recorda Vicente da Câmara.
José António Sabrosa é autor de alguns dos fados que Maria Teresa de Noronha cantava e era um executante considerado de guitarra: "Tocava guitarra muito bem, mas, curiosamente, ela não gostava da maneira dele a 'apanhar'." Apesar de ser um "músico extraordinário, Maria Teresa de Noronha preferia escutar o marido a cantar com ele. Assim, depois de Fernando Pinto Coelho e Abel Negrão, os seus habituais acompanhadores foram os que integram as gravações deste "o Melhor de... ". Temas registados em 1961, "Fado Vianinha", "Alexandrino". "No Amor Não Há Segredos", "Mouraria" ou "Fado João" constituíram as primeiras experiências de gravações estereofónicas, que a Valentim de Carvalho interrompeu durante essa década até 1969, segundo o técnico de som Hugo Ribeiro, quando os discos passaram a ser gravados em Paço d'Arcos. Também nesta antologia se encontram algumas das derradeiras gravações de Maria Teresa de Noronha, que datam de 1972 (os restantes fados desse ano encontram-se no segundo volume). No ano seguinte deixou igualmente de actuar ao vivo. Entrevistas também nunca as dera e preferiu, até morrer (sofria da doença de Parkinson) no dia 5 de Julho de 1993, os aromas de Sintra. "Ficou sempre no fado clássico, nunca deu aquele salto em frente que a Amália deu." O vínculo à tradição, por parte de Maria Teresa de Noronha, podia comprovar a afirmação de Vicente da Câmara. No entanto, como considerar apenas conservadora a primeira mulher a iniciar-se no fado de Coimbra? Mais do que a conveniência, era um sentido de dignidade — do respeito pelo que era autêntico — o que a movia nas suas convicções: "Nunca cantou fado de revista nem nada disso, o que cantava era o rigoroso, o 'Corrido', o 'Menor' e o 'Mouraria'." "No nosso tempo — continua Vicente da Câmara — quem cantava o 'Corrido', o 'Menor' e o 'Mouraria' é que cantava o fado, quem não cantava esses fados era porque não sabia cantar. Mais tarde, as meninas todas vieram cantar os fados da Amália. Já eram fados com música feita, em que não havia improviso." Em "Fado Vianinha" cantou: "Devagar se vai ao longe/ e eu bem vou devagarinho/ vamos ver se me não perco/ nos atalhos do caminho." Os territórios do improviso no fado foram sempre esses, os da "Rosa humilde e perfumada".
Alfredo Marceneiro, Carlos Ramos ou o próprio Vicente da Câmara, citado nesta página, são alguns dos colegas de Maria Teresa de Noronha que se mantiveram no fado clássico sem concessões. Eram os tempos em que se escutava quem sabia improvisar e, a quem o fazia, exigia-se-lhe "estilo". Qual seria então o estilo de Maria Teresa de Noronha? "Sou essa rosa caprichosa sem ser má", cantou em "Rosa Enjeitada", com poema de José Galhardo. Longe do dramatismo, do virtuosismo ou das provocações maliciosas, Maria Teresa de Noronha infiltrou-se no intervalo em que as guitarras "gemem" para, aí, murmurar as visões permitidas pela sua religiosidade. Como no poema de José Mariano, em "Pintadinho", quando tão transparentemente canta: "Fiquei na sombra discreta." "Fado da Defesa", que reúne na composição o seu marido e um dos seus poetas favoritos, António Calém, transporta-nos para a compreensão de um tempo amoroso, que é onde reside, distante, a mais frágil e preciosa ideia do fado: "É tão longa a viagem / que só te vejo em miragem / num sonho que não tem fim." Como prova de que, se o fado permite um alento inovador, recusa a mera busca na forma, podendo mesmo constranger-se aos desígnios mais tradicionais para descobrir as veredas em que se acede à saudade, "que é como a luz". "Se o apagar de uma chama/ uma agonia traduz/ no coração de quem ama/ a saudade é como a luz." Em "Minha Luz" Maria Teresa de Noronha explica a vitalidade de um "clássico": é que a paixão tem o fôlego de quem espera pelo futuro.» (Rui Catalão, in "Os Melhores Álbuns da Música Popular Portuguesa: 1960-1997", Público/FNAC, 1998).
Alinhamento:
1. Rosa Enjeitada (José Galhardo / Raul Ferrão)
2. Fado Vianinha (Popular / Francisco Viana)
3. Alexandrino (Carlos Freire / Alfredo Duarte "Marceneiro")
4. Fado Velhinho (Rita Mariano de Carvalho / Joaquim Campos)
5. Canção de Uma Tricana (António Sousa Freitas / João Bagão)
6. Fado Boémio (Frederico de Brito / Renato Varela)
7. No Amor Não Há Segredos (Hernâni Correia / Carlos Ramos)
8. Mouraria (Maria Helena Guerreiro / Jaime Santos)
9. Cantiga de Amor e Saudade (Leonel Neves / João Bagão)
10. Fado João (Maria Carlota de Noronha / D. João de Noronha)
11. Fado Rita (Rita Mariano de Carvalho / Alfredo Duarte "Marceneiro")
12. Fado Menor e Maior (Maria Teresa de Noronha / Vicente Arnoso)
13. Saudade das Saudades (D. António de Bragança / José António Sabrosa)
14. Mentira (Miguel de Barros / Miguel Ramos)
15. Mouraria Antigo (Popular)
16. Pinóia (Popular / Casimiro Ramos)
17. O Vento (Maria da Graça Ferrão / Américo Duarte)
18. Minha Guitarra (José António Sabrosa)
19. Fado Hilário (Augusto Hilário)
20. Fado da Defesa (António Cálem / José António Sabrosa)
21. Pombalinho (C. Nozes / M. Franklin)
22. Quatro Versos (Miguel de Barros / Popular)
23. Pintadinho (José Mariano / Maria Teresa de Noronha)
24. Minha Luz (José Mariano / Popular)
Músicos:
Maria Teresa de Noronha – voz
Raul Nery – guitarra portuguesa
Joaquim do Vale – viola
Joel Pina – viola baixo
António Chainho – guitarra portuguesa
João Bagão – guitarra portuguesa
Compilação organizada por Mário Martins
Edições originais, no formato EP e LP, em 1961, 1962, 1967 e 1972
Técnico de som – Hugo Ribeiro
Montagem digital – Fernando Paulo
Capa – Fátima Rolo Duarte
Espelho de Sons, de Carlos Paredes
(LP, Philips/Polygram, 1988; CD, Philips/Polygram, 198?)
Em Fevereiro de 1988, sai, pela PolyGram, o álbum "Espelho de Sons", gravado no ano anterior por José Manuel Fortes, e com produção de Tozé Brito, tendo o acompanhamento sido repartido entre Luísa Maria Amaro (viola de cordas de nylon) e Fernando Alvim (viola de cordas de metal).
Quem apenas recordar a versão editada em LP de "Espelho de Sons" recordará apenas metade do trabalho. De facto, do LP para o CD o álbum "inchou" para o dobro do tamanho, surgindo re-sequenciado em oito suites (A. Coimbra e o Mondego / B. Os Amadores / C. A Canção / D. O Teatro / E. Lisboa e o Tejo / F. A Dança / G. A Mãe e o Lar / H. Contrates), Carlos Paredes reutiliza e retrabalha muito do material gravado no "Concerto de Frankfurt" e mesmo composições mais antigas. É o caso de "Canção de Alcipe", tema alusivo à Marquesa de Alorna criado por Armando Rodrigues e Afonso Correia Leite para a banda sonora do filme "Bocage" (1936), de Leitão de Barros, que Carlos Paredes gravara para o single "Balada de Coimbra" (1971). O álbum entra directamente para o 3.º lugar do top oficial de vendas e virá a ser premiado com um Se7e de Ouro (atribuído pelo Jornal Se7e) na categoria de música popular/tradicional.
É o próprio Carlos Paredes quem nos apresenta a obra: «Segundo a experiência pessoal de cada um, a música tradicional de guitarra portuguesa, quando realizada e escutada ao vivo, tem permanecido na memória de várias gerações, ligada a determinadas imagens e situações. Não é que ela nos pretenda dar, como uma fotografia, a representação visual do mundo que envolve o guitarrista. Mas, verdadeiramente, a música começa, logo de início, por estar intimamente associada à imagem dos instrumentos. Estes, com os seus mecanismos acústicos e formas características, terão de concordar concretamente com o timbre, a altura e a extensão dos sons que produzem. Por outro lado, não é possível fazer música, satisfatoriamente, sem um local adequado, não só pelas suas condições acústicas mas também, o que não é menos importante, pelo aspecto sugestivo que deve oferecer aos nossos olhos. Tanto assim é, que, desde sempre, se exigiu dos construtores o maior cuidado com o equilíbrio e a beleza das suas criações e se procurou pôr um mínimo de ordem e bom gosto no arranjo dos locais onde, na intimidade ou em público, se pretende gozar a música em plenitude.
Apaixonados executantes de guitarra portuguesa, noutras épocas, procuravam as ruas mais inspiradoras de Coimbra e da capital, as poéticas margens do Mondego ou, como sucedia no século passado, um barco que flutuasse, à noite, nas águas tranquilas do Tejo, para misturar o som dos instrumentos e das suas vozes, directamente, com a paisagem, com a natureza. O mesmo se pode dizer da música de guitarra portuguesa para teatro, como é o caso das populares "cegadas" ou das representações do Teatro de Bonecos de Santo Aleixo. A dança e a canção são também espaços da guitarra portuguesa, da sua música de muitos séculos, se contarmos com os seus remotos antepassados: a cítola, na Idade Média, e o cistre, no Renascimento.
«Espelho de Sons» chamámos nós a este disco. Um espelho onde se cruzam, pelas mãos hábeis dos guitarristas, o som e as imagens das coisas que eles mais amam. Foi assim que, com a repetição diária deste fenómeno, ao longo de várias gerações, alguns géneros de música de guitarra portuguesa tomaram forma e estilo.
Esta a razão porque distribuímos as peças de música, gravadas neste disco, por alguns dos habituais motivos de inspiração (juntamente com outros menos habituais) da música da nossa guitarra. (Carlos Paredes)
Alinhamento (da edição em CD):
A) COIMBRA E O MONDEGO
1. Variações (Gonçalo Paredes)
2. Variações A (Artur Paredes)
3. Variações B (Artur Paredes)
B) OS AMADORES
4. Desenho duma Melodia
5. Amargura
6. O Discurso
C) A CANÇÃO
7. Melodia para um Poeta
8. Canção de Alcipe (Armindo Rodrigues / Afonso Correia Leite)
D) O TEATRO
9. A Noite
10. O Fantoche
E) LISBOA E O TEJO
11. Canto do Amanhecer
12. Serenata
13. Dança Palaciana
14. Canto do Trabalho
15. Jardins de Lisboa (Verdes Anos)
16. Canto de Rua
17. Canto do Rio
F) A DANÇA
18. Prólogo (Abertura para um Bailado)
19. Raiz (Dança Melancólica)
20. Dança de Camponeses
G) A MÃE E O LAR
21. Canto de Embalar
22. Canto de Amor
H) CONTRASTES
23. Sede
24. Canto da Primavera
Composições de Carlos Paredes, excepto onde indicado.
Músicos:
Carlos Paredes – guitarra portuguesa (construída por João Pedro Grázio Júnior)
Fernando Alvim – guitarra clássica de cordas de metal (2, 3, 8, 12, 20, 22)
Luísa Maria Amaro – guitarra clássica de cordas de nylon (restantes temas, excepto 6 e 9, que são excutados sem acompanhamento)
Produção – Tozé Brito
Gravado no Angel Studio 2, Lisboa, em 1987
Técnico de som – José Manuel Fortes
Capa – Carlos Martins Pereira
Texto de Carlos Paredes
A Regra do Fogo, de Luís Cília
(LP, Tejo/Transmédia, 1988)
[colocar citação]
Alinhamento:
1. Memno (dedicado à pintora Maria Helena Vieira da Silva)
2. A Insustentável Certeza do Ser
3. Saxofonia
4. Goodbye Macau
Temas instrumentais com música de Luís Cília.
Músicos:
Luís Cília – programações em Atari 1040 ST
Pedro Caldeira Cabral – guitarra portuguesa
Edgar Caramelo – saxofones alto, tenor e barítono
Direcção musical – Luís Cília
Produção – José Fortes e Luís Cília
Gravado no Angel Studio, Lisboa, em Março de 1988
Técnico de som – José Fortes
Capa – Maria Judite Cília
Modas, de Ganhões de Castro Verde
(CD, Robi Droli, 1993)
«Sardenha, Córsega, Génova são regiões do Mediterrâneo cujas polifonias vocais têm vindo a ser editadas em disco na Europa. Agora chegou a vez do "cante" alentejano, expressão polifónica que se pensa remontar até ao século XII, equivalente português daquelas polifonias, ficar pela primeira vez registado em compacto. Os ganhões – moços da lavoura ou outros serviços do Alentejo, que fazem parte da "ganharia" ou "malta"; indivíduos que vivem do seu trabalho (in "Dicionário da Língua Portuguesa", Porto Editora) – de Castro Verde, vila situada a sul de Beja, cantam a união, o trabalho, o amor e a luta com a Natureza. Vozes colectivas – "Nunca vi um alentejano cantar sozinho", escreveu um dia José Gomes Ferreira – irmanadas num desejo de transcendência, de vitória, de afirmação ou de queixume. Escute-se a pulsação subterrânea que sobe até à superfície pelos pés dos homens que marcam a "cadência". O contraponto melódico dos "pontos" e dos "altos". A voz que, mesmo solitária, nunca está sozinha. Maurizio Martinotti e Beppe Greppi, os dois Ciapa Rusa que gravaram e produziram estas "Modas", nome dado às melodias cantadas pelos corais alentejanos, aveludaram o som, acrescentando-lhe um ligeiro tempo de reverberação. Mário Alves, da Etnia, assina as notas de capa, com informação detalhada, bem como todas as traduções para o inglês, o que confere a este disco um valor adicional como documento.» (Fernando Magalhães, in "Público": Suplemento "Pop Rock", 09.03.1994).
Pelo saber que encerram, aqui se transcrevem as palavras do grande etnógrafo Armando Leça: «No Baixo Alentejo, os corais são a natural exteriorização dos que sentem a necessidade de não estarem sozinhos e, cantando agrupados, assim se livram daquele silêncio amarfanhador das planícies despovoadas; silêncio que humilha os simples, ensimesma os pensadores; planuras imensas, fecundas, nas quais os seres humanos são microscópicos. A paisagem do Baixo Alentejo sem corais, é como catedral gigantesca sem as sonoridades de um órgão!
Quando cantam os Alentejanos? Ao tempo das ceifas, ao varejar do arvoredo, na apanha da azeitona, nas mondas e adiafas. Cantam nas arruadas, nos sábados à noite, aos domingos em passeio e "em calhando", conforme me respondeu um cantador de Serpa.
Que cantam os Alentejanos? A Natureza, o amor, a saudade, as terras naturais, factos históricos como o do Gungunhana ou a morte de Dom Carlos. Cantam o lirismo das coisas silvestres, simples, como a azeitona, o sargaço, a medronheira, o loureiro, a erva-cidreira, o lírio roxo, o trevo, o alecrim...» (Armando Leça, in "Da Música Popular no Baixo Alentejo", Beja, 1941).
Alinhamento:
1. Afonso Henriques Um Dia
2. Nós Somos do Alentejo
3. Pelo Toque da Viola
4. Eu Sou Português
5. A Vila de Castro Verde
6. Já Te Não Lembras de Mim
7. Sou Português Emigrante
8. Vamos Nós Saindo
9. O Almocreve
10. Guardo o Meu Gado no Campo
11. Muito Bem Parece
12. A Ribeira do Sol-Posto
13. Mas Que Noite Tão Serena
14. Ceifeira Linda Ceifeira
15. Nos Campos de Castro Verde
16. Eu Perdi o Meu Anel
17. Vai de Centro ao Centro
Todos os temas são tradicionais da região de Castro Verde (Baixo Alentejo).
Ganhões de Castro Verde:
António Matos (reformado), António Mira (trabalhador rural), António Revez (taxista), Antero Medeiro (moleiro), António Teresa (pastor), Arsénio Graça (motorista), Eugénio Brito (agricultor), Francisco Gonçalves (cantoneiro), Francisco Mestre (trabalhador rural), Francisco Mira (reformado), Homero Mestre (motorista), João Ferraz (pedreiro), Joaquim Canário (motorista), José da Conceição (trabalhador rural), José Coelho (motorista), José Guerreiro (marteleiro), José Jerónimo (tractorista), José Leitão (reformado), José Matos (motorista), José Rosa (agricultor), Manuel Anjos (trabalhador rural), Manuel Coelho (motorista), Manuel Gonçalves (carpinteiro), Manuel Paulo (trabalhador rural), Manuel Pontes (comerciante), Manuel Romão (vigilante), Manuel Silva (reformado)
Gravado no Teatro de Castro Verde, em 28 e 30 de Maio de 1993
Técnicos de gravação – Beppe Greppi e Maurizio Martinotti
Fotografias – Rui Mota
Coordenação de textos – Mário Alves
Desenhos – Joaquim Rosa/Jota - CBS
Histórias do Som, de Toque de Caixa
(CD, Etnia/Numérica, 1993)
O grupo Toque de Caixa nasceu por ocasião dos cantares de Janeiras, no Natal de 1985. O gosto comum pela música tradicional fez com que os seus músicos, um grupo de amigos, prosseguissem a recriação de novos ambientes sonoros. O moderno e o antigo são elementos de fusão para uma "nova música tradicional": "A música realmente inovadora é praticada por aqueles que reconhecem a profundidade e a complexidade da tradição. Para se saber o caminho em frente e consolidá-lo, é bom não esquecer o caminho que está para trás, a história e a sua inegável importância", afirmam os Toque de Caixa.
De Julho a Setembro de 1993, o grupo grava para a editora Numérica o CD "Histórias do Som" que faz a sua aparição em Novembro, em colaboração com a Cooperativa Cultural Etnia. O disco foi considerado o melhor trabalho de música popular portuguesa, desse ano, pela principal crítica especializada.
[colocar citação]
Alinhamento:
1. Encosta do Silêncio (Miguel Teixeira)
2. Agora Baixou o Sol / Alvorada (Tradicional – Trás-os-Montes)
3. Lama Grande (Miguel Teixeira / Emanuel Sousa)
4. Largo do Ouro (Miguel Teixeira)
5. Tirana (Tradicional – Douro Litoral; excerto da tragicomédia "Triunfo do Inverno", de Gil Vicente, 1519)
6. Çapatinho Rebatido (Tradicional – Trás-os-Montes)
7. Senhora Sant'Ana (Miguel Teixeira / Tradicional – Beira Litoral)
8. Valsinha da Canastra (Albertina Canastra)
9. À Saída do Carro (Miguel Teixeira)
10. Aula de Música (Miguel Teixeira / Lenga-Lenga tradicional)
11. Fantasia Minhota (Miguel Teixeira / Tradicional – Minho)
12. Passeio do Entrudo (Miguel Teixeira / Tradicional – Beira Baixa)
13. Encontro (Tradicional – Beira Baixa)
14. O Amigo Vagabundo (Ferrer Leandro)
15. Música do Bombo (Tradicional – Beira Baixa)
Toque de Caixa:
Abílio Machado – voz, guitarra, teclas, percussões
Albertina Canastra – acordeão, concertina, teclas, percussões
Edgar – percussão
Emanuel Sousa – violino, bandolim, acordeão, concertina, teclas, percussões, voz
Horácio Marques – guitarra, viola braguesa, percussões
Luís Viegas – voz, percussões
Miguel Teixeira – guitarra, viola braguesa, rajão, quatro, ocarina, percussões, voz
Rosa Pilão – percussão
Tereza Paiva – gaita-de-foles, flautas, percussões
Arranjos – Toque de Caixa
Direcção musical – Miguel Teixeira
Produção – Miguel Teixeira e Horácio Marques
Gravado e misturado no Aura Studio, em Julho e Setembro de 1993
Técnico de som – Jorge Fidalgo
Mistura – Jorge Fidalgo, Miguel Teixeira e Horácio Marques
Design da capa e ilustrações – Miguel Teixeira e Horácio Marques
As Mais Bonitas, de Vitorino
(CD, EMI-VC, 1993)
«Comecemos pelas mais velhas. Já vão ver que aqui são as mais novas...
"Menina Estás à Janela" apareceu pela primeira vez no primeiro álbum de Vitorino, "Semear Salsa ao Reguinho" (1975). A versão aqui incluída (gravada em Outubro de 1993) é a quarta, já que houve uma primeira recriação em single no início dos anos 80 e uma outra "Menina", mais clássica, em 1984, com o acompanhamento do Opus Ensembie.
"Ó Rama, Ó Que Linda Rama" era o título e a canção mais forte do álbum de Teresa Silva Carvalho que Vitorino produziu em 1977. Alentejana, como a "Menina", a "Rama" ficou naturalmente associada a Vitorino: faltava ser ele a gravá-la, o que apenas sucedeu em 1993.
"Laurinda" é algarvia e apareceu no quarto álbum de Vitorino, "Romances", de 1981. Pelo caminho tinham ficado "Os Malteses" (1977) e "Não Há Terra Que Resista" (1979). Também "Laurinda" foi regravada em 1993.
Quanto a novas versões, ficamos por aqui. As outras gravações seleccionadas são as originais.
Assim: De "Flor de la Mar" (1983): "Queda do Império", "Dama de Copas", "Marcha Ingénua".
De "Leitaria Garrett" (1984): "Tinta Verde", "Tragédia da Rua das Gáveas", "Poema", "Andando pela Vida", "Leitaria Garrett".
De "Sul" (1985): "Sul"
Dum máxi (1986): "Joana Rosa" (uma outra versão, em crioulo, apareceria mais tarde em álbum. A versão portuguesa só tinha sido editada em máxi-single).
De "Negro Fado" (1988): "Flor de Jacarandá", "Vou-me Embora", "Negro Fado".
De "Lua Extravagante" (1991) (que é um álbum do grupo Lua Extravagante e não apenas de Vitorino): "Ilha".
De "Eu Que Me Comovo por Tudo e por Nada" (1992): "Bolero do Coronel Sensível Que Fez Amor em Monsanto", "Tango do Marido Infiel Numa Pensão do Beato", "Ana II".
Pareceu-nos serem estas as mais bonitas. Se calhar, cometemos injustiças. Não, de certeza que as cometemos: porquê deixar de fora "Homens do Largo" ou "Marcha de Alcântara" ou "Cervejaria da Trindade"? As mais bonitas de Vitorino não cabem num disco só.» (nota do editor).
Alinhamento:
1. Menina Estás à Janela (popular; recolha e adaptação de Vitorino)
2. Tinta Verde
3. Queda do Império
4. Tragédia da Rua das Gáveas
5. Sul
6. Joana Rosa
7. Tango do Marido Infiel Numa Pensão do Beato (letra de António Lobo Antunes)
8. Andando pela Vida
9. Dama de Copas (letra de Eduardo Guerra Carneiro)
10. Leitaria Garrett
11. Marcha Ingénua
12. Ó Rama, Ó Que Linda Rama (popular; recolha e adaptação de Vitorino)
13. Negro Fado
14. Flor de Jacarandá
15. Poema (letra de António José Forte)
16. Ilha
17. Bolero do Coronel Sensível Que Fez Amor em Monsanto (letra de António Lobo Antunes)
18. Ana II (letra de António Lobo Antunes)
19. Laurinda (popular; recolha e adaptação de Vitorino)
20. Vou-me Embora
Letras e músicas de Vitorino, excepto onde indicado.
Temas 1, 12 e 19:
Produção e arranjos – Manuel Faria
Gravados nos Estúdios Play It Again, em 1993
Técnico de som – Vítor Mingates
Os demais temas foram originalmente publicados nos seguintes discos (por ordem cronológica): "Flor de la Mar" (LP, EMI-VC, 1983); "Leitaria Garrett" (LP, EMI-VC, 1984); "Sul" (LP, EMI-VC, 1985); "Joana Rosa" (Máxi-Single, EMI-VC, 1986), "Negro Fado" (LP, EMI-VC, 1988), "Lua Extravagante" (CD, EMI-VC, 1991) e "Eu Que me Comovo por Tudo e por Nada" (CD, EMI-VC, 1992).
Fotografia – José Melo
Design gráfico – Fátima Rolo Duarte
A Lenda do Quarteto 1111, de Quarteto 1111
(CD, EMI-VC, 1993; Edições Valentim de Carvalho/Som Livre, 2007)
«A aventura do Quarteto 1111 conteve alguns dos momentos raros — senão mesmo os únicos — em que o pop português anterior aos anos 80 nos deu a ilusão de sintonia com o que se passava lá fora. De facto, os primeiros grupos que fizeram Rook'n'Roll fizeram-no quase sempre como grupos de baile que incluíam também no seu reportório a Bossa Nova ou o Cha-Cha-Cha. Mais tarde, os Sheiks davam um ar dos Beatles dos primeiros tempos, mas os Beatles já tinham mudado e os próprios Sheiks nunca enjeitaram outras claras — mas não menos nobres — influências: basta referir que o seu primeiro disco incluía "Summertime", de Gershwin. E, muito mais tarde, no final da década de 70, já o Quarteto não existia, a breve odisseia dos Tantra denotaria claramente um modelo já então antiquado: os Genesis de 1973-75.
Mas foi sobretudo na utilização da língua portuguesa adaptada ao pop que o caso do Quarteto foi único. Os Sheiks ou o Quinteto Académico eram sempre melhores em inglês e o Conjunto João Paulo, quando cantava em português, era quase sempre em versões quase nunca rock. Antes de 1980 só podemos, salvo erro, destacar rock em português nos primeiros álbuns (de 1975 em diante) de Jorge Palma; só que este demorou até conseguir um sucesso popular.
Temos, assim, as marcas que na sua coincidência notabilizaram os 1111: pop actual, português, atingindo aqui e além o sucesso. Claro que a chave desta coincidência tinha de ser uma canção — "A Lenda d'El-Rei D. Sebastião" — e um compositor, José Cid. Ela e ele furaram o bloqueio que o já então lendário programa de radio "Em Órbita" oferecia à Música Portuguesa. Foi um momento mágico: Londres parecia mais perto mas nem por isso o disco deixava de ter um cunho português. Londres e Portugal são os dois pólos de atracção que norteiam o Quarteto. As sucessivas modas londrinas vêm ao de cima — o medievalismo e o folk de "D. Sebastião", "D. Inês" ou de "Partindo-se" (com um poema do Cancioneiro Geral, de Garcia de Resende); o psicadelismo de "Meu Irmão" ou, sobretudo, "Génese"; o sucumbir final à tentação de cantar em inglês ("Back to the Country", “Ode to the Beatles") e o sonho de internacionalização que transformaria o Quarteto em Green Windows, alguns anos mais tarde.
A marca da outra Música Portuguesa — daqueles a que então chamamos 'Baladeiros' até fixarmos a expressão 'Musica Popular' — faz-se sobretudo sentir no álbum que o Quarteto lançou em 1970. Metade do disco dedica-se ao Racismo (subentenda-se à Guerra Colonial) e a outra metade à Emigração. O 'estrangeirado' Quarteto aproveitava a Primavera Marcelista para expôr as chagas do Regime. "Domingo em Bidonvilie" ou "Maria Negra" são títulos esclarecedores e "As Trovas do Vento Que Passa" com música de António Portugal sobre um poema de Manuel Alegre — fica como a marca mais irrecusável do fascínio que o Quarteto teve pelas trovas de Zeca e Adriano.
Ao longo de cinco anos — o álbum de regresso "Onde, Quando, Como, Porquê Cantamos Pessoas Vivas" de 1975 escapa, pela sua data e estrutura, a esta antologia — o Quarteto 1111 registou um punhado de excelentes canções e a ingenuidade de alguns trechos, em que claramente os meios não estão à altura das intenções, não lhes tira fascínio, volvido, mais ou menos, um quarto de século. E se é verdade que uma nova revolução havia de chegar em 1971 — através dos exilados José Mário Branco e Sérgio Godinho e da gravação em Paris dum álbum de José Afonso — não é menos clara a reviravolta provocada pelo "D. Sebastião", em 1967, e a qualidade e a coragem de muitos dos temas que o Quarteto assinou a seguir. O 1111 transformou-se numa Lenda.
José Cíd — tal como outros — trocaria o Pop pela Canção e tornar-se-ia um 'habitué' no Festival televisivo. Poucos compositores terão escrito tantos êxitos como ele. Mas isso é já outra História.» (David Ferreira).
Alinhamento:
1. Os Faunos
2. A Lenda de El-Rei D. Sebastião
3. Balada para D. Inês
4. Partindo-se (João Roiz de Castel-Branco / José Cid)
5. Dona Vitória
6. Meu Irmão
7. Dragão
8. Os Monstros Sagrados
9. Génese
10. Bissaide (Quarteto 1111)
11. Nas Terras do Fim do Mundo
12. Domingo em Bidonville
13. João Nada
14. As Trovas do Vento Que Passa (Manuel Alegre / António Portugal)
15. Maria Negra (Joaquim Pedro Gonçalves / José Cid)
16. Todo o Mundo e Ninguém (Gil Vicente / Tozé Brito e José Cid)
17. É Tempo de Pensar em Termos de Futuro (Tozé Brito / José Cid)
18. Back to the Country
19. Ode to the Beatles (José Cid / Tozé Brito)
20. Uma Nova Maneira de Encarar o Mundo (José Cid / Tozé Brito)
Letras e músicas de José Cid, excepto onde indicado.
Temas originalmente publicados nos seguintes discos, todos com chancela Columbia/Valentim de Carvalho (por ordem cronológoca de edição):
- A Lenda de El-Rei D. Sebastião (EP, 1967) – 1, 2
- Balada para D. Inês (EP, 1968) – 3, 4, 7
- Dona Vitória (EP, 1968) – 5
- Meu Irmão/Ababilah (Single, 1969) – 6
- Nas Terras do Fim do Mundo/Bissaide (Single, 1969) – 10, 11
- Génese/Os Monstros Sagrados (Single, 1969) – 8, 9
- Quarteto 1111 (LP, 1970) – 12, 13, 14, 15
- Todo o Mundo e Ninguém/É Tempo de Pensar em Termos de Futuro (Single, 1970) – 16, 17
- Back to the Country/Everybody Needs Love, Peace and Food (Single, 1970) – 18
- Ode to the Beatles/1111 (Single, 1971) – 19
- Sabor a Povo/Uma Nova Maneira de Encarar o Mundo (Single, 1972) – 20
Quarteto 1111:
1967 – 1.ª formação: José Cid (voz e teclas), António Moniz Pereira (guitarra eléctrica), Jorge Moniz Pereira (viola baixo) e "Michel" Silveira (bateria)
1968 – 2.ª formação: José Cid (voz e teclas), António Moniz Pereira (guitarra eléctrica), Mário Rui Terra (viola baixo) e "Michel" Silveira (bateria)
1970 – 3.ª formação: José Cid (voz e teclas), António Moniz Pereira (guitarra eléctrica), Tozé Brito (viola baixo) e "Michel" Silveira (bateria)
Partes Sensíveis, de Três Tristes Tigres
(CD, EMI-VC, 1993)
Na sequência da dissolução dos Ban, em 1992 a cantora Ana Deus inicia um novo projecto musical com a escritora e professora universitária Regina Guimarães, responsável pelas letras, e com a teclista Paula Sousa, então em processo de saída dos Repórter Estrábico. O projecto assume o nome de Três Tristes Tigres e inicia, no Verão, a preparação de um primeiro álbum. Pouco depois, assinam contrato com a EMI-Valentim de Carvalho. Em Fevereiro de 1993, iniciam as gravações do álbum de estreia com Telmo Marques, teclista dos GNR, como produtor, e a participação do ex-guitarrista dos GNR, Alexandre Soares. Rui Reininho irá posteriormente "reproduzir" o disco, com as misturas finais a cargo de Telmo Marques. Editado em Outubro desse ano, "Partes Sensíveis" é composto por três versões (uma das quais do clássico de Friedrich Holländer popularizado por Marlene Dietrich "Blue Angel", reintitulado "Anjazul") e 11 inéditos com letras de Regina Guimarães e Ana Deus, e composições do ex-Ban Ricardo Serrano, Ana Deus e Alexandre Soares, com títulos como "A Meiguice Explicada às Ovelhas", "Branca de Neve 1993", "A Alegria de Estar Cansada", "Despotável" ou "Ao Deus Dará". Dentro de uma estética "tecno-pop-cabaret" influenciada em partes distintas por Kurt Weill e pelos GNR, o álbum é muitíssimo bem recebido pela crítica e dele sai um single que se torna um grande êxito de rádio, "O Mundo a Meus Pés", a canção pop mais acessível de todo o disco. O álbum é apresentado ao vivo no Teatro da Trindade, em Lisboa, com a participação de Alexandre Soares e do percussionista Rui Júnior. «Projecto de mulheres adultas que, sem recorrer ao panfletismo, reflectem a sua sensibilidade e sensualidade como alternativa aos modelos masculinos. Pelo cruzamento de domínios artísticos, assumem um álbum arrojado, recheado de ideias originais e sugestivas e que consegue ser melodicamente acessível. No entanto, a promoção pela canção "Mundo a Meus Pés" recalcou momentaneamente a faceta mais interessante deste álbum.» (in "Os Melhores Álbuns da Música Popular Portuguesa: 1960-1997", Público/FNAC, 1998).
Alinhamento:
1. O Mundo a Meus Pés (Regina Guimarães / Ana Deus – Ricardo Serrano)
2. Competição Desleal (Regina Guimarães / Ana Deus – Alexandre Soares – Ricardo Serrano)
3. A Meiguice Explicada às Ovelhas (Regina Guimarães / Paula Sousa)
4. Anjazul (Friedrich Holländer; versão de Regina Guimarães)
5. Descapotável (Regina Guimarães / Ana Deus – Ricardo Serrano)
6. Loreta (Louva-a-Deus) (Regina Guimarães / Ana Deus – Ricardo Serrano)
7. Ao Deus Dará (Regina Guimarães / Ana Deus – Ricardo Serrano)
8. Letra Morta (Regina Guimarães / Ana Deus – Ricardo Serrano – Paula Sousa)
9. Branca de Neve 1993 (Brigitte Fontaine / Olivier Bloch – Lainé; versão de Regina Guimarães)
10. Subida aos Céus (Brigitte Fontaine / Alain Clavier; versão de Regina Guimarães)
11. Mulher a Dias (Regina Guimarães / Paula Sousa – Ana Deus)
12. Os Rebanhos (Regina Guimarães / Paula Sousa)
13. A Alegria de Estar Cansada (Regina Guimarães / Ana Deus – Paula Sousa)
14. Epitáfios (Regina Guimarães / Ana Deus – Ricardo Serrano – Alexandre Soares)
Três Tristes Tigres:
Ana Deus – voz
Paula Sousa – piano acústico, teclados
Regina Guimarães
Músicos convidados:
Alexandre Soares – guitarras
Telmo Marques – caixa de ritmos, baixo sintetizado
Arranjos – Três Tristes Tigres
Produção – Telmo Marques
Re-produção – Rui Reininho
Gravado e misturado nos Estúdios Valentim de Carvalho, Paço d'Arcos, de 17 de Fevereiro a 5 de Março de 1993
Técnico de som – Paulo Neves
Misturas – Telmo Marques
Fotografia – Paula Oudman
Capa – Pedro Bacelar e Paulo Monteiro
Ave Mundi Luminar, de Rodrigo Leão & Vox Ensemble
(CD, Columbia/Sony Music, 1993)
Em Julho de 1992, nas pausas do seu trabalho com os Madredeus, onde é teclista e compositor, Rodrigo Leão inicia as gravações de um projecto a solo composto por material que tem vindo a compor em casa, com um computador, pensado para uma formação instrumental de tendência clássica e que pela sua natureza intrínseca não têm cabimento quer nos Madredeus quer no seu grupo mais antigo, os Sétima Legião. E é assim que, em Março de 1993, surge o seu álbum de estreia a solo, de título "Ave Mundi Luminar", com chancela da Sony Music, assinado conjuntamente com o Vox Ensemble, um agrupamento de músicos de formação clássica reunido especificamente para interpretar o material, sob a direcção de Francisco Ribeiro (violoncelista dos Madredeus). O disco é produzido por António Pinheiro da Silva, tem direcção de arranjos do próprio Francisco Ribeiro (que assina a autoria de quatro músicas em parceria com Rodrigo Leão) e conta com a participação especial dos seus colegas dos Madredeus, Teresa Salgueiro (voz) e Gabriel Gomes (acordeão). Muitíssimo bem recebido pela crítica, "Ave Mundi Luminar" transforma-se rapidamente num assinalável êxito comercial, esgotando a primeira tiragem de três mil exemplares logo no primeiro mês de lançamento. Até ao final de 1993, verá edição em Espanha, onde vende 15 mil exemplares, e na Grécia. No ano seguinte, o álbum é lançado, com uma nova capa e através da Sony Classical, em diversos outros países – França, Inglaterra, Bélgica, Holanda, Alemanha, Estados Unidos, Canadá e Itália –, sendo que em Fevereiro atinge a cifra dos cem mil exemplares vendidos, façanha inédita para um disco do género e por um artista português. Dentro de portas, o corolário foi a actuação no Grande Auditório do Centro Cultural de Belém, em Lisboa, num concerto onde além de temas de "Ave Mundi Luminar", Rodrigo Leão incluiu originais gravados para o EP "Mysterium" e ainda dois inéditos, "In Omnem Vitam" e "Pasión".
«Entre o minimalismo e a música barroca, Rodrigo Leão pôs neste disco a costela classicista que nunca pôde ser levada até às últimas consequências nos projectos que ajudou a fundar, Madredeus e Sétima Legião. Este é um álbum que apela mais ao espírito que ao corpo, com soluções de voz própria que acabam por fazer esquecer a estética de onde provêm originalmente. Tem uma virtude rara: sabe dar a escutar o silêncio, o que viria a ser reconhecido aquém e além-fronteiras.» (in "Os Melhores Álbuns da Música Popular Portuguesa: 1960-1997", Público/FNAC, 1998).
Alinhamento:
1. Ave Mundi (Rodrigo Leão / Rodrigo Leão-Francisco Menezes)
2. Movimento (Rodrigo Leão / Francisco Ribeiro)
3. A Espera
4. Carpe Diem (Rodrigo Leão / Francisco Ribeiro-Francisco Ribeiro)
5. Amatorius
6. Vitorial
7. In Excelsis (Rodrigo Leão / Francisco Ribeiro)
8. Espiral II
9. A Espera (Versão)
10. Ruas
11. O Medo
12. Final
13. Humanitá (Rodrigo Leão / Francisco Ribeiro)
Músicas de Rodrigo Leão, excepto onde indicado.
Vox Ensemble (dirigido por Francisco Ribeiro):
Francisco Ribeiro – violoncelo e voz
Maria do Mar – violino
Margarida Araújo – violino
Nuno Rodrigues – oboé e corne inglês
Nuno Guerreiro – voz
António Pinheiro da Silva – flauta transversal
Colaborações especiais:
Teresa Salgueiro – voz
Nair – voz
Gabriel Gomes – acordeão, em "A Espera"
Direcção de arranjos – Francisco Ribeiro
Produção – António Pinheiro da Silva
Assistente de produção – Paulo Abelho
Gravado e misturado na Regiestudio e no Estúdio Tcha Tcha Tcha, Lisboa, de Julho a Setembro de 1992
Técnicos de gravação – José Motor e José Manuel Vasco
Capa – Margarida Ferreira
Meus Olhos Vão pelo Mar..., de Concerto Atlântico
(CD, Alma Records/Luminária, 1993)
«O nome deste grupo é constituído por duas palavras com significado particularmente rico para nós e directamente relacionadas com a música que interpreta. Assim, a palavra "Concerto" era usada no Renascimento para designar conjuntos instrumentais ou grupos de vozes e instrumentos tocando simultaneamente. O "Atlântico" é a matriz, espaço e símbolo, via que possibilita no passado o sonho da expansão e o encontro de culturas e povos que nos enriquece o presente.
O Concerto Atlântico é formado por especialistas na interpretação de música dos séculos XV e XVI, utilizando instrumentos históricos (cópias de instrumentos da época) com critérios interpretativos que valorizam aspectos da expressividade do reportório a que se tem dedicado».
Feita a apresentação do agrupamento, o seu fundador e director, Pedro Caldeira Cabral, ajuda-nos a contextualizar o repertório que integra o presente disco:
«Teria a música acompanhado os portugueses nas suas viagens de Quinhentos? Cremos que sim. A vida quotidiana nas naus quinhentistas é parcialmente conhecida através de relatos que, apesar de fragmentários, nos dão indicações importantes acerca dos tempos de lazer a bordo e da forma de os ocupar. Temos assim, para além de jogos e outros passatempos, várias referências a práticas teatrais (p. ex. "Nau de Santa Bárbara", 1574), e ao transporte de músicos, cantores e instrumentistas nas naus durante todo o século XVI. A mais antiga referência à música a bordo que conhecemos, rica em pormenores, é a descrição do encontro dos portugueses com as gentes do Senegal, em 1455.
Diz-nos Cadamosto: "...também se maravilharam do som duma destas nossas gaitas de fole que eu fiz tocar a um marinheiro meu; e vendo-a vestida de cores e com franjas à roda, pensavam que era algum animal vivo..." Mais tarde, Garcia de Resende oferece-nos uma descrição pormenorizada dos instrumentistas que acompanharam a Infanta Dona Beatriz na sua ida para Sabóia em 1521 numa "...nau grossa de oitocentos tonéis..." na qual seguiam "seis charamelas, três violas de arco, uma citra, oito trombetas e seis atambores e sua capela ordenada" e mais adiante "...E era muyto pera ouvir todas as noites que esteve no mar as muytas e boas músicas que continuamente havia, que faziam muita saudade. E nos dias tantas charamelas, sacabuxas, tantas trombetas e atambores e tão grossa artilharia que se não podiam ouvir"Dá-nos assim o cronista e compilador do Cancioneiro Geral, uma imagem impressiva das cerimónias da partida da Infanta ao referir também noutro local que "...todas as naus, galés, galeões e caravelas da armada, ricamente ataviadas de ricos toldos e marinheiros muyto bem vestidos cada um de suas cores com muytas charamelas, trombetas e atambores..." faziam um ruído que não se ouviam uns aos outros. Fernão Mendes Pinto conta-nos na sua "Peregrinação" acerca da música feita por portugueses em Malaca durante um banquete "festejado com charamelas, trombetas e atabales e com músicas de boas falas à portuguesa, com harpas e doçainas e violas de arco..." e mais adiante fala-nos de um tal Gaspar de Meireles "que era músico e tangia numa viola e cantava mui arrezoadamente" Também temos notícia do cantor Domingos Madeira que acompanhou El-Rei D. Sebastião na viagem a Alcácer Quibir em 1578, cantando romances de mau agoiro. Embora as informações sobre as práticas musicais sejam escassas e omitam geralmente referências explícitas ao reportório então usado, podemos legitimamente supor que o mesmo era constituído por peças de carácter secular (danças, vilancetes, romances, etc.), não excluindo as de tema religioso, do mesmo tipo das que chegaram até nós em grande número em cancioneiros polifónicos portugueses do séc. XVI. Algumas destas peças chegaram até nós em versões fragmentárias, tendo obrigado nalguns casos à sua reconstituição polifónica com base nos inúmeros exemplos dos Cancioneiros ibéricos e em especial no "vocabulário" das peças de Pedro Escobar. Concluindo, fizemos para este disco uma selecção de peças que se constituem como documento vivo, evocando assim, através dos textos literários e dos sons, aspectos menos conhecidos do quotidiano dos que participaram também nessa gesta fabulosa que foram os "achamentos" e as viagens portuguesas de Quinhentos.» (Pedro Caldeira Cabral).
Alinhamento:
1. Propiñan de Melyor (Introdução) (Anónimo, séc. XVI)
2. Meis Ollos Van per lo Mare (Anónimo)
3. Tento sobre Cantus Firmus a 5 (António Carreira)
4. Llove a Menudo (Anónimo)
5. Falai Meus Olhos (Anónimo)
6. Falai Miña Amor (Luys Milan)
7. Tento a Quatro do V tom (D. Heliodoro de Paiva)
8. Puestos Están Frente a Frente (Miguel Leitão d'Andrada?)
9. No Vale das Mais Belas (Anónimo)
10. Lágrimas de Saudade (Anónimo)
11. Passame por Dios Barquero (instrumental) (Pedro de Escobar)
12. Passame por Dios Barquero (Pedro de Escobar)
13. Ojos Morenicos (Pedro de Escobar)
14. Si Tantos Monteros (Anónimo)
15. Ninha Era la Infanta (Gil Vicente / Pedro de Escobar?)
16. Lo Que Queda Es lo Seguro (instrumental) (Pedro de Escobar)
17. Partir Não M'Atrevo (Anónimo)
18. Sospirastes Baldovinos (Luys Milan)
19. Mis Ojos Tristes (Anónimo)
20. Se Me a Mym Não Casão (Anónimo)
21. Canção a Quatro Glosada (António Carreira)
22. Não Tragais Borzeguis Pretos (Anónimo)
23. Propiñan de Melyor (Conclusão) (Anónimo, séc. XVI)
Músicos:
Maria Repas Gonçalves – soprano e tambor
Susana Diniz Moody – contralto e viola da gamba baixa
Kenneth Frazer – viola da gamba baixa
Joaquim António Silva – viola de mão, viola da gamba tenor e bombarda
Pedro Caldeira Cabral – viola da gamba tiple, viola da mão, charamela, flauta travessa, tamboril e gaita
João Nuno Represas – atabales, pandeireta e tambor
Jarret Butler – sacabuxa
Direcção – Pedro Caldeira Cabral
Produção – Luminária-Música / CEDMA (Centro de Estudos e Difusão de Música Antiga)
Gravado na Igreja do Instituto de Odivelas, de 14 a 18 de Outubro de 1993
Técnico de gravação – Jorge Gonçalves
Assistente de gravação – Miguel Lurtie
Misturado nos Estúdios da Luminária, por Fernando Abrantes
Montagem digital – José Manuel Marreiros
Concepção gráfica – Joaquim António Silva
Capa – "Morte de S. Francisco Xavier na ilha de Sanchão" (pormenor), de André Reinoso (c.1585-c.1650)
Fotografia de Laura Castro Caldas Paulo Cintra, gentilmente cedida pela revista "Oceanos"
O Som e a História, de Maio Moço
(CD, Vidisco, 1998)
«Nos princípios da década de 70, um crescente numero de jovens começaram a interessar-se pela musica rural e a interpretá-la com mais ou menos fidelidade, mais ou menos variantes segundo critérios que livremente adoptaram nos agrupamentos dessa área musical que por então começaram a florescer. Os pioneiros deste revivalismo rural foram o Almanaque, em Lisboa, provindo do Coro da Juventude Musical Portuguesa, a Brigada Victor Jara, em Coimbra, e o Vai de Roda, no Porto, grupos que realizaram em 1979 um concerto histórico no Teatro Gil Vicente, em Coimbra, no âmbito das l Jornadas de Cultura Popular.
O Almanaque desenvolvia uma actividade de recolha musical pelas aldeias do país e interpretava seguidamente os exemplares assim colhidos de uma forma que se pretendia o mais fiel ou próxima possível do que se tinha gravado no terreno. Já por essa altura se destacava o trabalho e o empenho de Vítor Reino na condução artística do Almanaque, bem como o seu amor pela música de tradição oral, resultante da experiência de recolha no campo, que sempre acompanhou com enorme interesse e dedicação. Finda a nossa experiência comum no Almanaque seguimos, conforme escrevemos em 1983 no álbum "Desfiando Cantigas", cada qual seu rumo no que à musica tradicional diz respeito, eu através de um trabalho exclusivamente orientado para a recolha e investigação, ele prosseguindo uma actividade de divulgação no campo artístico, de início no grupo Ronda dos Quatro Caminhos e posteriormente no Maio Moço, actividade essa que, de harmonia com o referido texto, assumiu "aspectos diversificados" e uma "abordagem diferente e inovadora" deste tipo de música. Foi o caso de qualquer destes grupos, sem embargo de, em certos exemplares, manter ainda uma reprodução aproximada do original colhido em campo, ter enveredado por interpretações que poderemos situar no campo de heterodoxia, sem que este conceito envolva qualquer juízo de valor, as quais tanto podem ser recriações ou variações sobre a música recolhida, como criações artísticas baseadas nos parâmetros fornecidos pela tradição oral. Esta era, aliás, uma linha que outros grupos da mesma área já haviam seguido, de que se destacava o experimentalismo da Brigada Victor Jara, de feição eruditizante. Se quiséssemos fazer comparação poderíamos dizer que as experiências musicais de renovação do Maio Moço se situam num campo mais popularizante ,em que prevalece o ritmo aberto das modas coreográficas ou dos padrões musicais a elas ligados.
Vítor Reino é uma das pessoas mais habilitadas para tratar, adoptar e compor sobre a música tradicional portuguesa. A par da sua sensibilidade musical, importa salientar a sua enorme experiência de campo (cabe revelar que nos acompanhou em recolhas por todo o país durante mais de dez anos). A sua presença na direcção do Maio Moço é uma garantia de qualidade e respeito pelo género musical a que se dedica, em todas as formas de abordagem que vem praticando desde o tratamento de temas originariamente rurais ate criações de autor naturalmente enquadradas pelas formas herdadas da tradição.A tradição não é estática e, no mundo de hoje, com a transformação das formas de comunicação entre os povos e com as mudanças operadas nos instrumentos musicais a sua renovação assume necessariamente as mais variadas formas. Assim saiba cada povo renovar e desenvolver a sua tradição mantendo o cerne do seu carácter musical. É isso que se espera dos portugueses e dos grupos musicais, revivalistas, ranchos folclóricos e outros que se dedicam a música de expressão étnica.» (José Alberto Sardinha). O grupo Maio Moço apresenta assim a sua compilação: «A presente antologia reúne num único CD 18 dos mais representativos temas gravados pelo Maio Moço, nos cinco discos publicados [de 1987 a 1996], procurando de algum modo traduzir a evolução artística do grupo e a forma peculiar como encara a tradição musical portuguesa.
Que ela possa corresponder às justas exigências do público interessado, dos meios de comunicação social e dos organismos e entidades com preocupações e responsabilidades de índole cultural, motivando aqueles que não tiveram ensejo de conhecer os discos originais para partirem à sua integral descoberta.»
Alinhamento:
1. Quadras ao Gosto Popular (Fernando Pessoa / Vítor Reino)
2. Já Lá Vem o Barco à Vela (Tradicional – Beira Litoral)
3. Saltinho (Tradicional – Madeira)
4. Nau Catrineta (Tradicional / Vítor Reino)
5. Oh Que Lindo Par Eu Levo (Tradicional – Beira Alta)
6. Na Cidade de Lisboa (Gil Vicente / Vítor Reino)
7. Chegou e Bateu (Tradicional – Algarve)
8. Dom Joaquim (Romance da Batalha de Lepanto, 1571 / Vítor Reino)
9. Saias de Nisa (Tradicional – Alto Alentejo)
10. Dança dos Lanceiros (Tradicional – Douro Litoral)
11. Olhos Negros (Almeida Garrett / Vítor Reino, sobre tema tradicional do Minho)
12. Cantiga de Levantar Ferro (Tradicional / Vítor Reino)
13. Este Bailarico é Meu (Tradicional – Ribatejo)
14. Não Sei se Me Engana Helena (Luís Vaz de Camões / Vítor Reino)
15. Triste Noivo (Romance à morte do Príncipe D. Afonso de Portugal, 1491 / Vítor Reino, sobre tema tradicional dos Açores)
16. Menina Virgininha (Tradicional-Bonecos de Santo Aleixo / Vítor Reino)
17. D. Fernando e Leonor Teles (Romance / Vítor Reino)
18. Quando Eu Era Pequenina (Tradicional – Beira Baixa)
Temas do cancioneiro tradicional, execepto onde indicado.
Arranjos – Vítor Reino
Temas originalmente publicados nos seguintes discos (por ordem cronológica de edição): "Inda Canto, Inda Danço" (LP, Vidisco, 1987); "Cantigas de Marear" (LP, Discossete, 1989); "Histórias de Portugal" (CD, Discossete, 1991); "Amores Perfeitos" (CD, Vidisco, 1994); e "Estrada de Santiago" (CD, Vidisco, 1996).
Maio Moço (em 1998):
Ana Rita Reino – bandolim, banjo, cavaquinho, adufe e voz
João Simões Lima – viola braguesa, percussões e voz
Mário Gameiro – guitarra clássica, viola amarantina, viola da terra, viola toeira e voz
Rui Sardinha – baixo, rajão e voz
Vítor Reino – acordeão, concertina, flautas, gaita-de-foles, ponteira, sintetizadores e voz
Antigos elementos:
Rui Sá Sequeira – guitarra clássica e voz
Sérgio Contreiras – percussões e voz
Participaçães especiais:
Henry Sousa – bateria
João Nuno Represas – percussões
Jorge Lé – violino
Maria da Encarnação Portugal – voz solo (18)
Pedro Casaes – baixo
Quim Correia – baixo
Tomás Pimentel – trompete
Muitos (e Bons) Amigos – coros
Capa – Nuno André Lima
Fotografia – Celso Coelho
Novas Vos Trago, de Amélia Muge, Brigada Victor Jara, Gaiteiros de Lisboa, João Afonso e Sérgio Godinho
(CD, Tradisom, 1998)
«A ideia é excelente e capaz de constituir um estímulo adicional para os neurónios dos músicos envolvidos: criar novos arranjos e interpretações para romances da tradição ibérica medieval. O livrete (igualmente excelente, aliás, como toda a apresentação gráfica do CD) que acompanha a edição de "Novas vos Trago" explica em detalhe a origem deste género musical que cruzou continentes e oceanos ao longo da expansão portuguesa nos séculos posteriores e deixou vestígios em territórios geográficos tão distantes como o Brasil e Goa [texto de Pere Ferré disponível no site At-Tambur]. Na origem do projecto está um programa designado "Marés do Som", conjunto de espectáculos e iniciativas musicais enquadrados no ciclo de exposições "Memórias do Oriente" promovido pela Comissão dos Descobrimentos. Foi neste âmbito que surgiu o convite a Amélia Muge, Brigada Victor Jara, Gaiteiros de Lisboa, João Afonso e Sérgio Godinho, tendo presente que o produto musical daí resultante obedeceria a critérios de contemporaneidade e a uma leitura actualizada e vivificante do romanceiro tradicional. Neste sentido, se "Novas vos Trago" traduz as várias sensibilidades dos artistas participantes, representou de igual modo a possibilidade de estes poderem experimentar novos métodos de criação e de se envolverem em contextos poético-musicais divergentes das facetas mais habituais das respectivas obras. É neste aspecto que "Novas vos Trago" se revela particularmente fascinante, no modo como faz sobressair a diversidade a partir da unidade do conceito.
Dez temas (dois por cada artista) compõem o alinhamento de "Novas vos Trago". João Afonso abre o disco com "Morte do Príncipe D. Afonso de Portugal". Este e o outro tema com a sua chancela, "S. Simão", constituem o elo fraco do disco. A voz, demasiado lisa e pouco expressiva do cantor, impede qualquer tipo de profundidade. Parece Fausto com anemia. Os arranjos, simplistas e algo preguiçosos, não ajudam.
Sérgio Godinho aparece a seguir com "O Rei e a Virgem Romeira". Não é um portento, mas soa interessante a maneira como tira partido do naipe de cordas. Em "As Bodas de Paris" está nas suas sete quintas, num tom "andante" sobre a temática do amante e do marido traído que pode voltar a qualquer momento, recorrente em inúmeros romances medievais (pudera, a ida dos fidalgos para a guerra deixava em casa desejos não satisfeitos, não havendo cinto de castidade que lhes valesse...).
Amélia Muge faz questão, como seria de esperar, em correr riscos. O arranjo de José Manuel David (que também toca neste tema trompa, gaita-de-foles, caixa de rufo, tamboril galego, bombo e adufe) e a presença de outros dois Gaiteiros de Lisboa, Pedro Casaes (coros) e Rui Vaz (coros, gaita-de-foles, caixa de rufo e adufe) permitem-lhe fazer dançar a voz, como tanto gosta, em "Donzela Guerreira", um tema feminista "avant la lettre". A toada épica, envolvida pelo coral dos Gaiteiros, regressa em "Dona Olívia". Amélia canta como se a D. Olívia fosse ela num tema que vale ainda pela intervenção de José Manuel David na cromorna e pelo lamento final, a perder-se no fundo das eras, da cantora.
Como um pregão, "Floresvento" anuncia a entrada oficial dos Gaiteiros de Lisboa. Soa completamente medieval, com o toque de ousadia que os Gaiteiros imprimem a tudo o que fazem. A parte da polifonia vocal faz lembrar os Gentle Giant mas a gaita-de-foles repõe de imediato as coisas no lugar certo. Que no caso dos Gaiteiros nunca é o que se espera. "O Falso Cego", faixa que encerra "Novas vos Trago", inicia-se num tom brechtiano e prossegue com uma espantosa e originalíssima polifonia vocal, aspecto em que os Gaiteiros se revelam, cada vez mais, verdadeiros mestres.
A maior e mais agradável surpresa de "Novas vos Trago" é trazida, porém, pela Brigada Victor Jara, que parece ter agarrado a oportunidade para se lançar em voos mais altos do que os que lhe são habituais. "Parto em terras distantes", com arranjo de Alberto Malva, balança com o tom medievo apropriado na voz da convidada Margarida Miranda, apoiada pelo proverbial toque de classe do violino de Manuel Rocha. Mas a surpresa maior e um dos momentos mais tocantes de todo o disco é a vocalização de Lena d'Água, na segunda versão do mesmo tema, desta feita assinado por Ricardo Dias. Diferente de tudo o que fez antes, Lena faz aparecer nos recantos da sua voz uma Idade Média imaginária. O modo como a antiga cantora dos Beatnicks e dos Salada de Frutas coloca aqui a voz e faz uso de ornamentações, permite pensar num novo reposicionamento seu na música popular portuguesa. Lena d'Água, a mesma de "Olha o Robot", quem diria?...
"Novas vos Trago" aproxima a música portuguesa das suas raízes mais longínquas, empurrando-a simultaneamente par o futuro. Um trabalho com cabeça, tronco e membros. Ou uma questão de amor...» (Fernando Magalhães, in "Público": Suplemento "Sons", 11.06.1999).
Alinhamento:
1. Morte do Príncipe D. Afonso de Portugal (música e int. João Afonso)
2. O Rei e a Virgem Romeira (música de Sérgio Godinho; arranjos de Tomás Pimentel / int. Sérgio Godinho)
3. Donzela Guerreira (música de Amélia Muge; arranjos de José Manuel David / int. Amélia Muge)
4. Floresvento (música e arranjos de José Manuel David / int. Gaiteiros de Lisboa)
5. Parto em Terras Distantes (música e arranjos de Aurélio Malva / int. Brigada Victor Jara)
6. As Bodas em Paris (música de Sérgio Godinho; arranjos de Tomás Pimentel / int. Sérgio Godinho)
7. Dona Olívia (música de Amélia Muge; arranjos de José Manuel David / int. Amélia Muge)
8. S. Simão (música e int. João Afonso)
9. Parto em Terras Distantes (2.ª versão) (música e arranjos de Ricardo Dias / int. Brigada Victor Jara)
10. O Falso Cego (música e arranjos de Carlos Guerreiro / int. Gaiteiros de Lisboa)
Romances tradicionais, musicados e interpretados pelos artistas referenciados.
Músicos:
- Temas 1 e 8:
João Afonso – voz solo
Toninho Afonso – vozes
João Frazão – viola
José Moz Carrapa – viola braguesa e viola
- Temas 2 e 6:
Sérgio Godinho – voz e guitarra
Pedro Gonçalves – contrabaixo
José Salgueiro – percussões
Agnes Sarosi – violino
Denys Stetsenko – violino
Lúcio Studer – viola
Bruno Cardoso – violoncelo
- Tema 3:
Amélia Muge – voz solo
José Manuel David – coro, trompa, gaita-de-foles, caixa de rufo, tamboril galego, bombo, adufe
José Martins – viola braguesa, adufe
Pedro Casaes – coro
Rui Vaz – coro, gaita-de-foles, caixa de rufo, adufe
- Tema 4:
Carlos Guerreiro – coro, sanfona, flauta de êmbulo (vento), paus
José Manuel David – coro, trompa, gaita-de-foles, tamboril galego, bombo e chamariz de pedizes (vento)
José Salgueiro – caixa de rufo, shaker
Rui Vaz – voz solo, coro, tamboril galego e tubo estriado (vento)
- Tema 5:
Arnaldo Carvalho – percussões tradicionais
Aurélio Malva – gaita-de-foles e guitarra acústica
Joaquim Teles (Quiné) – bateria e percussões tradicionais
José Tovim – baixo eléctrico
Luís Garção Nunes – guitarra clássica
Manuel Rocha – violino
Ricardo J. Dias – piano
Rui Curto – acordeão
Margarida Miranda – voz
GEFAC (Crupo de Etnografia e Folclore da Academia de Coimbra) – coros
- Tema 7:
Amélia Muge – voz solo
José Manuel David – coro, flauta transversal, trompa, cromorna, bombo
Pedro Casaes – coro
Rui Vaz – coro, caixa de rufo, bombo
- Tema 9:
Arnaldo Carvalho – percussões tradicionais
Aurélio Malva – guitarra clássica
Joaquim Teles (Quiné) – percussões
José Tovim – baixo eléctrico
Luís Garção Nunes – viola beiroa
Manuel Rocha – violino
Ricardo J. Dias – teclados
André Sousa Machado – percussões
Christian Schonberg – programação de teclados
Lena d'Água – voz
Margarida Miranda – voz
- Tema 10:
Carlos Guerreiro – voz solo, coro, flauta de pã, sanfona, túbaros de Orfeu, bombo
José Manuel David – coro, trompa, flauta de pã, kissange
Rui Vaz – coro, sarronca, túbaros de Orfeu
Coordenação científica – Susana Sardo (Universidade de Aveiro)
Coordenação executiva – José Moças
Produção – Tradisom / Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses / Universidade de Aveiro
Gravado, misturado e editado em Pro Tools, nos estúdios da Universidade de Aveiro, de Maio a Agosto de 1998
Técnico de som – João Magalhães (excepto na faixa 9)
Assiatente de gravação – Pedro Valente (excepto na faixa 9)
Tema 9 – gravado e misturado nos Estúdios Clic, por Gonçalo Rui
Concepção gráfica – TOOL-Design & Comunication
Ilustrações – Bibito, Rui Rasquinho e Paulo Nisa
Textos – Pere Ferré (Instituto de Estudos sobre o Romanceiro Velho e Tradicional, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, da UNL)
Taco a Taco, de Amélia Muge
(CD, Mercury/Polygram, 1998)
«A partir de agora, já não há desculpas. Após a publicação de "Taco a Taco", de Amélia Muge, fica definitivamente demonstrado o que o anterior "Todos os Dias" e os dois álbuns dos Gaiteiros de Lisboa haviam deixado perceber: é totalmente possível a existência de uma música popular portuguesa que não esquece a História tal como a escreveram (ou continuam a escrever) José Afonso, José Mário Branco ou Sérgio Godinho, mas parte daí para a exploração de um outro universo onde, em rigor, os conceitos de "popular" e "portuguesa" começam a não fazer muito sentido. Trata-se, então, de música apátrida e sem referência a nenhuma tradição? De modo nenhum. Como aconteceu com os Hedningarna, Varttina ou com as Nouvelles Polyphonies Corses, esta é uma espécie de estética-buraco negro para o interior da qual são aspiradas todas as músicas do mundo, os respectivos códigos genéticos se cruzam e daí resulta qualquer coisa que a própria designação de "world music" também já não é capaz de descrever adequadamente. E, em "Taco a Taco" (tal como em "Bocas do Inferno", dos Gaiteiros de Lisboa), com uma riqueza de ideias por canção francamente superior àquela sobre a qual muitos outros edificam uma carreira inteira.
Aqui, cada tema conta uma história particular e gera o seu próprio cenário. "Ai Flores" é a memória de uma polifonia africana em registo sideral, com citação subliminar de "Cantigas do Maio" incorporada; "O Tolinho da Aldeia" fotografa um patético instantâneo rural sobre pseudo-gamelãs, tambor esquimó, bendir, violoncelos e coro grego de clarinetes; "Há Quem Te Chame Menina" é um assombroso fado-visão sobre a imagem mítica de Lisboa, com a cidade transfigurada em "cavaleiro cheio de mares nas veias" e a guitarra portuguesa de Ricardo Rocha em viagem marítima de descoberta em torno da melodia; e "Taco a Taco" – o tema-título – inventa um prodigioso 'puzzle' vocal de "non sense" fonético que tanto faz lembrar Laurie Anderson corno Sheila Chandra, Anna Homler ou... Amélia Muge. E só a salva inicial de abertura. Porque as restantes dez canções prosseguem e ampliam a panorâmica deste jogo taco-a-taco com os vários anjos e demónios contemporâneos: se "Ainda Bem Que Há Esquimós" é um elogio da diferença em modalidade irónica que se exerce sobre o próprio vocabulário musical (será por acaso que recorda tanto Mari Boine Persen?), "Idades e Médias" oferece uma imprecação quase-rap (à maneira de Sérgio Godinho) sobre um metrónomo esquizóide dirigida contra os fantasmas da nossa bem amada sociedade do espectáculo, "Andor e Conduto" reformula a linguagem das bandas filarmónicas, e "O Robot Que Envelhece" é a teatralização sonora dos últimos momentos de um qualquer Hal 9000 a viver a tragédia final da sua odisseia no tempo. Considere-se ainda a presença de duas límpidas canções clássicas ("Havemos de Nos Ver Outra Vez" e "Rebelde") e a coda em versão "hidden track" com urna bruxa montada num aspirador e ficar-se-á com uma razoável aproximação do que pode ser um sobre-excelente álbum de música sem fronteiras gravado em Portugal.
Como se chega lá? Claro que é indispensável talento (e quando, como aqui, por vezes, se roça o génio, ajuda muito...), é evidente que a colaboração de gente corno José Mário Branco, António José Martins (nos arranjos e produção), Rui Júnior, Carlos Guerreiro, Ricardo Rocha ou Carlos Bica é indispensável, a escolha inteligente dos textos (próprios, tradicionais ou do enorme Grabato Dias) é essencial, mas, talvez mais importante, é a disponibilidade para manter urna antena permanentemente sintonizada sobre os ruídos do mundo e, pelo meio do caos e da desordem aparente, procurar encontrar um rumo. Caso a caso, momento a momento, taco a taco.» (João Lisboa, in "Expresso": Suplemento "Cartaz", 12.09.1998).
Alinhamento:
1. Ai, flores
2. O Tolinho da Aldeia (Grabato Dias / Amélia Muge)
3. Há quem te chame menina
4. Taco a Taco (cata aqui o canto)
5. Inda bem que há esquimós (Grabato Dias / Amélia Muge)
6. Idades e Médias (Amélia Muge / Amélia Muge e José Mário Branco)
7. Amphiguris (popular – Algarve / Amélia Muge)
8. Falas de bem-querer (Grabato Dias / Amélia Muge)
9. Poema de bancada (Grabato Dias / Amélia Muge)
10. Andor e conduto (Grabato Dias / Amélia Muge)
11. Havemos de nos ver outra vez (Teresa Muge)
12. O Robot que envelhece (Grabato Dias / Amélia Muge)
13. Rebelde (aos ciclos) (Grabato Dias / Amélia Muge)
14. À Nave
Letras e músicas de Amélia Muge, excepto onde indicado.
Músicos:
- Tema 1:
Arranjo – António José Martins
Melodia incidental – José Mário Branco
Catarina Anacleto e Luís Sá Pessoa – violoncelos
Nuno Patrício – didjiridum
Rui Júnior – congas
OÓQueSomTem – palmas
António José Martins – guimbarda, maracas
- Tema 2:
Arranjo – António José Martins
Catarina Anacleto e Luís Sá Pessoa – violoncelos
José Carinhas – xilofone, metalofone
Luís Gomes – clarinetes alto e baixo
Rui Júnior – adufes
António José Martins – guitarra acústica preparada, bombo, tambor esquimó, bendir, guizos, pratos, tambor de areia
- Tema 3:
Arranjo – José Mário Branco
Ricardo Rocha – guitarra portuguesa
Carlos Bica – contrabaixo
António José Martins – viola braguesa
- Tema 4:
Arranjo – Amélia Muge
- Tema 5:
Arranjo – Catarina Anacleto e Amélia Muge
Catarina Anacleto – violoncelos
Rui Júnior – tambores esquimó, bilhas
- Tema 6:
Arranjo – José Mário Branco, Amélia Muge e António José Martins
Rui Júnior – congas, bombo, maracas, bloco chinês, tambor falante
José Mário Branco – flauta de êmbolo
António José Martins – timbila
- Tema 7:
Arranjo – António José Martins
Catarina Anacleto e Luís Sá Pessoa – violoncelos
Luís Gomes – clarinetes alto e baixo
João Lobo – timbalões, tarola
OÓQueSomTem – caixas, bombos, paus
António José Martins – ferrinhos, bloco chinês, pandeireta
José Mário Branco – voz "bombo"
António José Martins, Luís Martins Saraiva e Nuno Patrício – "Vozes na Luta"
- Tema 8:
Arranjo – Carlos Bica, José Mário Branco e António José Martins
Carlos Bica – contrabaixo
Pedro Santos – acordeão
Catarina Anacleto – violoncelos
- Tema 9:
Arranjo – António José Martins
José Galissa – kora
Amélia Muge – viola braguesa
Luís Gomes – clarinete alto
Rui Júnior – maracas
Nuno Patrício – adufe
António José Martins – viola braguesa, guitarra acústica preparada, adufe
José Mário Branco e António José Martins – coros
- Tema 10:
Arranjo – José Mário Branco e António José Martins
Concepção de flautas – Carlos Guerreiro
António José Martins – flautas de pã, bombo, pratos
Luís Miguel Cepêda – requinta
Luís Gomes – clarinete alto
Hugo Gaito – saxofone alto
José Augusto Carneiro – trompete
Nuno Carvalho – bombardino
Emídio Coutinho – trombone
Amílcar Gameiro – tuba
José Mário Branco, Paulo Salgado, Rui Júnior, João Afonso, Cristina Antunes, Guida Antunes, Glória Bento, Lara Li – "Encomendadores das Almas"
- Tema 11:
Arranjo – José Mário Branco
Amélia Muge – guitarra acústica
Carlos Bica – contrabaixo
Pedro Santos – acordeão
Catarina Anacleto – violoncelos
- Tema 12:
Arranjo – José Mário Branco
Vasco Broco e António José Miranda – violinos
Alexandra Mendes – viola
Catarina Anacleto – violoncelo
António José Martins – percussões várias
- Tema 13:
Arranjo – José Mário Branco
Amélia Muge – guitarra acústica
- Tema 14:
Arranjo – António José Martins
Catarina Anacleto e Luís Sá Pessoa – violoncelos
António José Martins – bombo, glissandor, kissanje, maracas
Rui Júnior – berimbau
Produção – António José Martins, com a colaboração de José Mário Branco
Produtores executivos – Paulo Salgado e António José Martins
Gravado e misturado no estúdio Noites Longas, em Dezembro de 1997
Técnicos de som – António Pinheiro da Silva e Maria João Castanheira
Misturas – António Pinheiro da Silva e António José Martins
Materização – António Pinheiro da Silva e Rui Neves
Foto interior – Carmo Romão
Ilustrações – Amélia Muge
Concepção gráfica – Cristiana Serejo
Encanto da Lua, de Frei Fado d'El Rei
(CD, Columbia/Sony Music, 1998)
Depois da grande revelação que foi "Danças no Tempo" (1995), os Frei Fado d'El Rei propõem-nos outra obra encantatória, apropriadamente intitulada "Encanto da Lua". Detentores de uma estética muito própria e original, e sem transigir com facilitismos ou modismos de conveniência, os Frei Fado d'El Rei confirmam com este disco a grande valia do seu projecto para a música portuguesa. E a confirmá-lo é a participação de alguns convidados de luxo: os irmãos Vitorino e Janita Salomé, o músico Amadeu Magalhães (do grupo Realejo), a acordeonista Helena Soares e a cantora galega Uxía.
Escrito para o concerto de apresentação de "Encanto da Lua", em Gulpilhares, aqui se transcreve um assertivo texto de Mário Correia:
«A primeira vez que (ou)vi os Frei Fado d'El Rei experimentei uma tão estranha como rara sensação nestas andanças das coisas ligadas às músicas inspiradas pelas raízes: tratava-se, sem dúvida, de um grupo do qual era preciso aprender a gostar.
Porque a primeira certeza era poderosa: um projecto em definição, um projecto em construção com alicerces credíveis nos meandros não lineares da música popular portuguesa. Campo extenso e fértil a exigir amanhos de rigor (re)criativo, que merecia dos Frei Fado d'El Rei uma atenção não imediatista mas uma análise preocupada com a revelação de vertentes menos exploradas ou mesmo normalmente esquecidas ou menosprezadas. Um projecto com os pés bem assentes na terra. E, na música, quem não define um projecto não pode criar obra que perdure.
Mergulharam na essência das raízes ousando (re)visitar os ambientes trovadorescos, percorreram os ritmos tradicionais na demanda de pulsações vitais, procuraram os ecos de diálogos interculturais de antigas pronúncias, rasgaram horizontes carregados de fórmulas feitas e elegeram como limites a imaginação enraizada com sentido de futuro. Definido e corporizado o projecto, a música teria forçosamente de brotar verdadeira em toda a sua extensão, telúrica nas emoções e válida em termos culturais.
Uma opção que não foi cómoda, muito menos devidamente entendida (sopraram ventos adversos de quadrantes críticos porventura pouco dados a assimilar e a compreender ousadias como as de Frei Fado d'El Rei), mas persistiram (ainda bem!) na reafirmação de uma identidade diferenciadora e conseguiram criar o seu universo expressivo. Hoje eles são, acima de tudo e inequivocamente, os Frei Fado d'El Rei.
Estavam de facto fadados para existirem e serem diferentes. Ousaram e correram riscos em nome daquilo em que verdadeiramente acreditavam. Aceitámos o convite e dançámos no tempo com eles. Daí o meu contentamento: hoje já sei gostar dos Frei Fado d'El Rei.» (Mário Correia, 1998).
Os dois timoneiros do grupo, Cristina Bacelar e José Flávio Martins, apresentam-nos assim este belíssimo trabalho discográfico: «A lua é um verdadeiro símbolo mágico, uma companheira absoluta daqueles que amam a noite e dos outros que quase a percebem... Talvez no seu lado oculto esteja o seu verdadeiro encanto. Mas do outro, virado mesmo para nós, reside o misticismo que suscita a contemplação, e a reflexão de algo que, para além de belo e ancestral, atrai e faz mover a nossa música. E porque ela é tão habitual já, falar da lua e da sua cumplicidade com os nossos sonhos e desejos jamais teria fim... Assim o seu encantamento foi total. Esperemos agora que ele se apodere do maior número de pessoas possível e seja infinito. Tal como a lua atrai o mar e provoca as marés...» (Cristina Bacelar e José Flávio Martins).
Alinhamento:
1. Mediantal (José Flávio Martins / Quico SR e José Flávio Martins)
2. Oratório II (José Flávio Martins / Quico SR)
3. Ramo Verde (Variações sobre Cantares de D. Dinis) (Jorge de Sena / Carla Lopes)
4. Bailia de Vigo (Martim Codax, séc. XIII; adap. de José Flávio Martins)
5. Encanto da Lua (José Flávio Martins / José Flávio Martins, Carla Lopes e Quico SR)
6. O Fado das Tranças
7. Perdido em Miragem (instrumental com vocalizos)
8. A Dita Senhora (anónimo do "Cancioneiro Geral", de Garcia de Resende, 1516 / José Flávio Martins e Quico SR)
9. Los Baños de Juanica (Cancioneiro Anónimo Espanhol; adap. de José Flávio Martins)
10. Por ti, Menina
11. O Anel do Meu Amigo (Pêro Gonçalves de Portocarreiro, séc. XIII; adap. de José Flávio Martins)
12. Marés do Sul (instrumental com vocalizos)
13. Onde Pára o Mar (instrumental) (Quico SR, José Flávio Martins e Ricardo V. Costa)
Letras e músicas de José Flávio Martins, excepto onde indicado.
Frei Fado d'El Rei:
Carla Lopes – voz principal, coros, adufe e pandeireta
Cristina Bacelar – guitarra clássica, voz, coros e tréculas
José Flávio Martins – baixo acústico, bandoloncelo, voz, coros e adufe
Ricardo V. Costa – guitarra clássica, castanhola de cana e coros
Quico SR (Frederico Serrano) – teclados, programações, sampling, percussões, voz e coros
Mário Costa – bateria e percussão
Participações especiais:
Vitorino – voz (3)
Amadeu Magalhães – gaita-de-foles (4) e ponteira (6)
Helena Soares – acordeão (5, 13)
Janita Salomé – vocalizos e bendir (7)
Uxía – voz (11)
Arranjos – Quico SR (Frederico Serrano) e Frei Fado d'El Rei
Produção, gravação, mistura e masterização – Quico SR (Frederico Serrano)
Gravado no estúdio de Quico SR (Frederico Serrano), Praia da Aguda, Vila Nova de Gaia
Design gráfico / capa – Marco Sousa Santos / Proto Design
Fotografia – Victor Hugo
Cenários, de Realejo
(CD, Movieplay, 1998)
«Confesso os meus receios: que dizer de algo que foi criado para ser ouvido? Que aqui e agora se procura dar presença máxima às raízes, procurando antecipar a razão de ser do futuro, (re)criando no presente uma música cuja razão de ser é vida e emoção cultural? Ou que são fragmentos culturais de uma memória colectiva não raro adormecida e não menos raro menosprezada? Não isto já todos sabem e nada acrescenta à audição destes "Cenários", do Realejo!
Já sei: avanço pela questão da autenticidade expressiva que dimana de cada composição, com uma originalidade assente na variedade dos estilos musicais aqui soberbamente ilustrados ou sugeridos. Pois, mas já todos sabemos que os cânones tradicionais não podem (nem devem!) ser encarados como algo de estático, parado num tempo determinado, mas sim como expressão de mutações permanentes, de enriquecimentos constantes no diálogo com outros povos e outras culturas. Mas, assim colocadas as coisas, uma vez mais a sensação de estar a limitar-se a simples constatações!
No entanto, uma coisa é certa: com a música do Realejo, a (re)criação inspira-se e alicerça-se nos elementos significantes do nosso legado tradicional, sem menosprezar as pressões estéticas da modernidade, mas de uma contemporaneidade expressiva de tal modo enraizada que as novas composições parecem emergir do mais profundo da nossa mais autêntica tradição. Aqui chegados, dirão alguns: pois, a velha questão da identidade!... Claro que sim, a "velha" questão da identidade, mas não de uma identidade abstracta e criada em vácuo formalista mas sim num contexto de amplas interacções influentes. Tanto mais que nenhuma cultura pode reclamar como própria uma música desligada do intercâmbio e do diálogo com as expressões musicais de outros povos. E é tudo uma questão de equilíbrio expressivo, direi. Mas isso é mais que evidente e nada de original, dirão outros, invocando Nettl: trata-se de um equilíbrio entre a ideia da música tradicional como fenómeno nacional ou regional e o conceito de música folclórica como um tipo de música supranacional.
Embora a música do Realejo se inscreva no contexto das eurofonias tradicionais e de inspiração tradicinal, nunca é de mais reconhecê-lo em termos culturais. Recordo um concerto do Realejo nos palcos Intercélticos: da memória dos sons da surpresa parte hoje para a alegria da (re)criação dos sons da cultura. Mais do que um grupo, o Realejo afirma-se hoje como um verdadeiro projecto cultural. E é aqui que as palavras de revelam de todo inúteis. E porque esta música é acima de tudo emoção da vida, que cesse a crónica e se renove em cada audição o sortilégio da nossa própria (re)descoberta.» (Mário Correia, 1998).
Alinhamento:
1. Amanhecer (Amadeu Magalhães)
2. Music for a Found Harmonium (Simon Jeffes)
3. Bendito das Trovoadas (Tradicional – Beira Baixa)
4. Maragato Son (Tradicional – Paradela, Miranda do Douro)
5. Cenários I (Nau Trevairs, Rondeau – tradicional de Gers; Polka de Force Majeure – Patrick Couton; Polka Piquée d'Allard – tradicional; Rondeau du Savès – tradicional de Gers)
6. Quiçá (Amadeu Magalhães)
7. São Gonçalo de Amarante (Tradicional – Douro Litoral)
8. Cantiga de Realejo (Amadeu Magalhães)
9. Deus te salve, ó Rosa (Tradicional – Aljezur, Algarve)
10. Nunca me canso (Amadeu Magalhães)
11. Final de Inverno (Amadeu Magalhães)
12. Tornelinho (Amadeu Magalhães)
13. Cenários II (Moda de Harmónio – Carregal Fundeiro, Castanheira de Pêra; Frei João – Ilha da Madeira; Escumalha – Moinho da Mata, Montemor-o-Velho)
Recolhas: Michel Giacometti ("Bendito das Trovoadas" e "Maragato Son"), César das Neves e Gualdino de Campos ("São Gonçalo de Amarante"), Fernando Meirelles ("Moda de Harmónio"), Xarabanda ("Frei João") e Júlio Gomes ("Escumalha")
Realejo:
Fernando Meireles – sanfonas, cavaquinhos, bandolim, trancanholas e percussões
Amadeu Magalhães – concertina, gaita-de-foles, flautas, viola braguesa, cavaquinhos, bandolim, bandola, guitarra, sarronca, trancanholas e percussões
Ofélia Ribeiro – violoncelo
Miguel Areia – violino
José Nunes – guitarras e bandolim
Arranjos – Amadeu Magalhães
Gravado nos Estúdios Namouche, Lisboa, por João Pedro de Castro
Misturado nos Estúdios Êxito, por Dominique Borde
Masterizado nos Estúdios Edit, por Dominique Borde e Joaquim Monte
Fotografia do grupo – Miguel Ramos
Fotos e pormenores dos instrumentos – Carlos Barata
Design gráfico e tratamento de imagens em computador – Dupla
Ar, de Danças Ocultas
(CD, EMI-VC, 1998)
«"Ar" também não faria má figura na editora de Manfred Eicher, a ECM. Como no álbum de José Peixoto ["A Vida de Um Dia", 1998] há espaços amplos e profundidade de campo. Em ambos está presente o espírito da paz.
A música das concertinas de Águeda dirigidas por Artur Fernandes respira mais ar do que no álbum de estreia do grupo ["Danças Ocultas", 1995]. Podia ser mais um disco para arrumar na prateleira "Instrumentos". Mas não é. Até porque desarruma a prateleira dos nossos hábitos. Está certo, o tema de abertura é uma homenagem a Piazzolla mas estas danças estão longe de se reduzirem ao tango. Respiram com outra suavidade, no alto de uma montanha, onde o ar é rarefeito. Os Madredeus sonham num "bateau-mouche" no Sena. Philippe Genty poderia pegar no fôlego elegante destas danças para com ele embelezar uma das suas encenações mágicas. Música popular de câmara, experimentação emocional e conceptual, diálogo de sensibilidades, tudo isto paira no "Ar" das Danças Ocultas. Sem esquecer um ar de romaria, sem perder de vista as origens populares do instrumento. Ou será que se perdeu aqui o tom picante, as cores dos balões e o estrépito dos foguetes? O baile que Artur Fernandes comanda, fazendo os foles avançarem para terras desconhecidas mas estranhamente próximas de nós, é outro. Um baile de memórias esquecidas que dançam como fantasmas até de novo se reencontrarem num mundo novo. No alto da tal montanha, onde a pressão é menor e a música se faz ouvir melhor. Onde tudo soa como se fosse transparente.» (Fernando Magalhães, in "Público": Suplemento "Sons", 10.07.1998).
Alinhamento:
1. Escalada
2. N'Aura
3. Dança d'Alba
4. Vaguear (Filipe Ricardo)
5. Quatro Ilusões
6. Bulgar (Artur Fernandes e Francisco Miguel)
7. Contradança
8. Neia (Francisco Miguel)
9. Do Fundo do Mar (Filipe Ricardo)
10. Diatónico
11. Pinguim no Meu Jardim (Bitocas)
12. Hinos à Noite
Composições de Artur Fernandes, excepto onde indicado.
Danças Ocultas:
Artur Fernandes, Filipe Cal, Filipe Ricardo, Francisco Miguel – concertinas
Arranjos – Danças Ocultas, excepto "Diatónico" e "Hinos à Noite" (Danças Ocultas e Gabriel Gomes).
Produção – Gabriel Gomes
Gravado e misturado nos Estúdios Registúdio, de Dezembro de 1997 a Janeiro de 1998
Técnico de som – Paulo Abelho
Assistente de estúdio – Nuno Grácio
Sonoplastia – António Pinheiro da Silva
Mastering – Rui Neves (Estúdios L.M.T.)
Fotografias – Augusto Brázio
Grafismo – Alberto Lopes e Luís Miguel, para Grande Cena
Nota: Os temas "Pinguim no meu jardim" e "Contradança" fazem parte da banda sonora do filme "Mortinho por Chegar a Casa" (1996), realizado por Carlos da Silva e George Sluizer.
Santiago, de Santiago
(CD, Ovação, 1998)
[colocar citação]
Alinhamento:
1. Esus (Pedro Fragoso)
2. Convés (António Prata)
3. Roda do Rio (Carlos Barata)
4. Salatia (Pedro Fragoso)
5. Nortívaga (Carlos Barata)
6. Ribeira das Marés (António Prata)
7. Andarilha (Carlos Barata)
8. Concertina - rondó (Carlos Barata)
9. Sete Luas (João Cavadinhas)
10. Manhãs de S. Miguel (António Prata)
11. Outros Poentes (António Prata)
Músicos:
António Prata – viola, bandolim
Carlos Barata – acordeão, baixo
Inna Rechetnikova – violino, e voz (11)
Pedro Fragoso – teclados
Vítor Costa – bateria, percussões
Coro – António Prata, Carlos Barata, João Cavadinhas, Pedro Fragoso (9)
Arranjos – autores dos temas, com a colaboração de todos os músicos.
Produção e direcção musical – António Prata
Gravado por Miguel Salema, nos Estúdios On Line, em Janeiro de 1998
Assistente de gravação – Kiko
Misturas – Miguel Salema, com Santiago
Capa – João Vaz de Carvalho
Maquetização e arte final – Ana Matias
A Vida de Um Dia, de José Peixoto
(CD, União Lisboa, 1998)
«"A Vida de um Dia" propõe um mergulho salutar no mundo da guitarra clássica. O protagonismo deste emblemático intrumento abrange, neste CD, diversos ângulos de abordagem: é o único timbre instrumental presente no fonograma e a totalidade do reportório está sob a responsabilidade autoral do intérprete. Esta acentuada especificidade poderia produzir efeitos secundários indesejáveis, tais como monotonia auditiva, reiteração estilísfica, etc.. Verifica-se com prazer que esses perigos são neutralizados com mão de mestre por um José Peixoto imaginativo e eficaz, que não repete 'clichés' e que consegue não imitar ninguém e não se plagiar a si próprio. A organização modal arabizante, com distância intervalar de um tom e meio entre sexto e sétimo grau em "Canção Perdida" e "Amarelos e Outros Tons" (faixas 1 e 2), a cadência livre de "Por Trás de um Lamento" (faixa 3), o atraente harpejo politonal que dá início a "Choveu e nem uma Brisa" (faixa 4), o pé rítmico assimétrico de "O Estranho" (faixa 5), a figuração sincopada sobre base de semínimas na secção inicial de "Há dias que não são fáceis" (faixa 6), a atmosfera meditativa e ibérica de "Lugar de Nostalgia" (faixa 7), a subtil harmonização inicial e a energia pulsativa final de "Labirinto" (faixa 8), a flexibilidade de "Memórias de Viagem" (faixa 9) e a enigmática magia de "Noite Nua (faixa 10) perfazem um itinerário musical onde cada obra responde a uma lógica própria. As dez peças revelam panorama guitarrístico profundo e sincero onde a destreza técnica está sempre ao serviço da música e jamais constitui banal exibição de fogo de artifício. O mundo harmónico de José Peixoto é outro dos grandes centros de interesse deste CD. Politonalismo, modalismo e modernos conceitos acerca do relacionamento funcional dos acordes caracterizam um gosto harmónico baseado numa inteligente dosagem da dissonância. Situada algures no meio entre o vanguardismo inovador de um Lopes e Silva e o classicismo apolíneo de um Silvestre Fonseca, a estética de José Peixoto contribui meritoriamente para o enriquecimento da discografia nacional de guitarra clássica.» (Alejandro Erlich Oliva, in "A Capital", 20.08.1999).
Alinhamento:
1. Canção perdida
2. Amarelos e outros tons
3. Por trás de um lamento
4. Choveu e nem uma brisa
5. O Estranho
6. Há dias que não são fáceis
7. Lugar de nostalgia
8. Labirinto
9. Memórias de viagem
10. Noite nua
Todas as composições da autoria de José Peixoto.
José Peixoto – guitarra clássica (feita por René Baarslag, em Lanrajon, Granada – 1997)
Produção – José Peixoto
Gravado e editado na Igreja da Cartuxa, Caxias, nos dias 18 e 19 de Fevereiro de 1998, por José Manuel Fortes
Capa – João Nuno Represas e José Peixoto
Fotografias – Alexander Koch
Lucília do Carmo: Biografias do Fado, de Lucília do Carmo
(CD, EMI-VC, 1998)
«"A minha Mãe foi uma das fadistas mais importantes deste século". A frase, de Carlos do Carmo, só peca por defeito: na verdade, não foi só deste mas será de todos os séculos, por muitos que passem e por muito bons fadistas que apareçam. Enquanto for possível preservar as memórias do Fado, o lugar de Lucília do Carmo como grande figura é inquestionável. Nascida em Portalegre, nos finais de 1920, aí ensaiou os primeiros voos, até sentir que os seus dotes seriam mais apreciados em Lisboa. Não se enganou. Deu nas vistas desde logo, estreando-se como profissional apenas com 17 anos e actuando nas melhores casas típicas de então. Casou com o empresário Alfredo de Almeida, homem cultivado e de apurado sentido artístico — era também actor amador — que seria determinante na modelação da excelente matéria-prima que era a voz de Lucília do Carmo, refinando-lhe as qualidades, cuidando das letras, instilando exigência. Em 1947, abriu uma casa de fados que se tornaria histórica, inicialmente chamada "Adega da Lucília", mais tarde "O Faia". A morte prematura do marido deixou, a Lucília do Carmo, uma viuvez assumida para sempre e um filho que assegurou a direcção da casa, antes e depois de se tornar, por mérito próprio, num consagrado intérprete.
No "Faia", Lucília do Carmo não temeu rodear-se (ao contrário de muitas "estrelas") de grandes vozes no elenco: Alfredo Marceneiro, Carlos Ramos, Tristão da Silva, Maria José da Guia, Beatriz da Conceição, entre muitos outros. A sua personalidade impunha-a, para além de artista, como anfitriã. Foi a penúltima grande dona de uma casa de fados (a última é Argentina Santos). Num contexto quase feudal, à moda antiga, tratada com reverência pelo pessoal, recebia como uma rainha, afável mas distante. Os grandes apreciadores não iam "aos fados", iam "à Lucília". Quando cantava, traçava o xaile de uma forma peculiar, emaranhava os dedos nos cadilhos, torcia-os levemente, semicerrava os olhos e dava primazia à voz, com a maior sobriedade, no que alguém definiu como "um porte de imperatriz". Deixou uma discografia inversamente proporcional ao seu valor. Isto porque era avessa ao estúdio, ao ambiente das gravações, tanto quanto ao palco e às entrevistas. Quem a quisesse ouvir, em êxtase, era na sua casa. Aí, em duas ou três noites de privilégio, Maria Teresa de Noronha em visita e Alfredo Marceneiro deixavam-se ficar. Depois de sair o último cliente e todo o pessoal, apagavam-se as luzes e fechava-se a porta à chave, por dentro. Apenas com os guitarristas, num recanto da sala vazia, cada um dos três monstros sagrados pedia aos outros o que mais gostava de lhes ouvir. E era a magia de soberbas interpretações, na intimidade de grandes senhores de um género musical único, em partilha, na cumplicidade da ausência de testemunhas. Melhor dizendo, havia duas: José António Sabrosa, marido de Maria Teresa de Noronha, e o ainda adolescente Carlos do Carmo que aí decidiu pertencer também à raça dos eleitos. Esta "biografia" permite acompanhar a evolução de Lucília do Carmo. As primeiras gravações patenteiam a voz muito clara e fresca da juventude, de tonalidades mais agudas do que mais tarde nos habituou, mas já com a dicção que lhe foi característica, matizando as vogais, arredondando-as, esculpindo-as a partir da vulgaridade de quem fala para as transformar em arte de quem canta. Os seus inconfundíveis "rr", rolados no ápex da língua — e não guturais, como é apanágio da pronúncia de Lisboa traziam a originalidade de se ouvirem pouco nos fadistas da capital. A maturidade trouxe segurança e cunho pessoal à interpretação. Deu-lhe uma voz mais volumosa e quente, até se apresentar ligeiramente velada com o tempo, o que no Fado é enriquecimento, mais uma cor a acrescentar à paleta que os grandes fadistas conseguem usar em plenitude até muito tarde, para regalo de quem os ouve. Constante foi a melhoria de sensibilidade fadista, o saber transmitir estados de alma enfatizando musicalmente a letra, daquela maneira que nem o poeta suspeita ao escrevê-la. As duas faixas de abertura, gravadas ainda em discos de 78 rotações, em 1958, são já um primor de qualidade, ainda sem grandes arrojos mas perfeitamente reveladoras de que uma voz nova e espectacular havia surgido no Fado de Lisboa. A faixa 2, "Amor Desfeito", mostra uma curiosa transgressão ao Português, exigida pela métrica popular e condescendente, aquele "só tu fostes o culpado". Curiosa, por não ser fruto da ignorância nem do letrista nem da intérprete, logo adiante fiéis às regras em "foste mau, foste cruel". "Foi na Travessa da Palha" (faixa 3), juntamente com "Olhos Garotos" (faixa 4) e "Maria Madalena" (faixa 6, numa gravação posterior) são os primeiros êxitos da Artista, cujas primeiras gravações datam de 1958. Neles Lucília do Carmo se evidencia por adequar as cambiantes melódicas às intenções dos versos, estes provenientes dos melhores letristas que, reparando no seu talento, lhe entregavam as produções, garantia de mútuo sucesso. Teria sido erro não incluir a "Rapsódia de Fados" (faixa 5) por excessivo escrúpulo dela conter imperfeições. Falamos do desrespeito pelo compasso patente no duplo remate do fado Sem Pernas e na entrada para o Mouraria, de resto soberbamente disfarçado pelos guitarristas. São faltas desculpáveis pelo arrebatamento da interpretação, em que o fadista muitas vezes não espera pelos guitarristas e deixa escapar os versos ou os prolonga um pouco mais porque a alma assim lho pede. Uma biografia é isso mesmo, o retrato tão fiel quanto possível de uma carreira. E esta rapsódia é, isso sim, uma portentosa manifestação do talento de Lucília do Carmo, a merecer análise mais detalhada.
Para começar, é uma peça muito difícil, pois são vários fados num só, muito diferentes uns dos outros, havendo até mudanças de tom entre eles. A concentração para produzi-los tem de ser enorme e Lucília do Carmo consegue tratá-los, um por um, de uma forma superior. A letra muito castiça de Linhares Barbosa ajuda a identificá-los, pois menciona quase todos. Em contraste com o "triste Fado Menor" de abertura, o arranque vibrante e pleno de garra daquele "Guitarra toca o Corrido" é, só por si, um paradigma. Opõe-se-lhe a suavidade com que é abordado o "Dois Tons". E que dizer do "Devagar, guitarra amiga..." que inicia o Sem Pernas? O Mouraria, arrastado como compete, é a prova de que se canta diferentemente do Corrido e não é só o desenho melódico da guitarra (aqui a fazer um Mouraria Antigo) que lhe determina a casta. Fado raro, pouco ouvido, é o fado Macau, dando suporte à letra do "Manjerico" (faixa 8) e mostrando-nos uma Lucília do Carmo tão à-vontade nos fados saltadinhos e vivos como nos fados lentos. Chegamos a "Não Voltes à Minha Porta" (faixa 13), uma belíssima letra de Frederico de Brito, a surpreender pelo inesperado conceito com que termina cada sextilha. Pedra de toque para avaliar fadistas, a "Marcha do Marceneiro" tem nesta interpretação de Lucília do Carmo uma das suas mais elevadas expressões. A alternância entre os timbres doces e ásperos, o domínio da dinâmica vocal, das suspensões, podiam ser matéria de estudo, se a houvesse, para novos fadistas.
"Madragoa" (faixa 4), outro ponto alto desta biografia, da carreira da Artista e da História do Fado é um monumento comovente a um bairro, àquilo que deve ser uma letra de fado, a uma voz que sabemos não ter substituta. Ouve-se com a certeza de que mais ninguém cantará este fado como ela cantou. O crescendo de qualidade que José Pracana teve o cuidado de garantir nesta compilação conduz-nos à talvez maior e mais emblemática criação de Lucília do Carmo: "Maria Madalena" (faixa 16). Fazendo parte já do seu segundo disco, esta letra de Gabriel de Oliveira foi regravada em melhores condições dez anos depois, em 1968. Num fado antigo e tradicional, o Mouraria, é inolvidável a impressão que nos causa e, por muitas vezes que se oiça, cada vez se gosta mais.
"Tia Dolores" (faixa 7) combina-se bem com a fase da vida em que Lucília do Carmo a cantou. Com a autoridade de mãe, com uma ou outra ruga na voz dos 48 anos, com todo o calor aveludado do seu timbre único, oferece-nos um Linhares Barbosa originalíssimo no tratamento do tema, por ela transformado em êxito.
Melhor técnica de gravação, apuro de guitarristas da melhor craveira, "Leio em Teus Olhos" (faixa 19) é de 1971: era um dos temas que Maria Teresa de Noronha e Alfredo Marceneiro sempre lhe pediam que cantasse, quando a iam ouvir. A despedida é feita com "Zé Maria" (faixa 20), um fado-marcha, popular, santantonino, de que Lucília do Carmo não foi cultora mas nos deixou como brinde.
Uma palavra para a poética escolhida por esta grande intérprete. À parte algumas letras dedicadas a Lisboa ("Madragoa", "Sete Colinas") e a um ou outro fado descritivo ("Naquela Azenha Velhinha", "Tia Dolores"), Lucília do Carmo cantou principalmente o Amor. Com toda a alma feminina, um amor-drama, contrariado, traído ou impossível, mas sempre intenso. Como em poucos vultos do Fado, o casticismo, a energia austera do seu "estilar" atenuou a fronteira entre fado tradicional e fado-canção. Cultivou os dois, com raro acerto e, sobretudo, com superior bom gosto.» (Daniel Gouveia, Janeiro de 1998).
Alinhamento:
1. Recordações [D. R. / Jaime Mendes (Fado das Algas)]
2. Amor Desfeito [D. R. / Jaime Santos (Fado da Bica)]
3. Foi na Travessa da Palha [Grabriel de Oliveira / Frederico de Brito (Fado Britinho)]
4. Olhos Garotos (João Linhares Barbosa / Jaime Santos)
5. Rapsódia de Fados (João Linhares Barbosa / Popular)
6. Podemos Ser Amigos [João da Mata / Miguel Ramos (Fado Alberto)]
7. Naquela Azenha Velhinha (Frederico de Brito)
8. Manjerico [João Linhares Barbosa / Jaime Santos (Fado Macau)]
9. Loucura [Júlio de Sousa / Júlio de Sousa (Fado Loucura)]
10. Desespero [João Linhares Barbosa / Jaime Santos (Fado Alfacinha)]
11. Ele Há-de Ter o Castigo [D. R. / Pedro Rodrigues (Fado Primavera)]
12. Incerteza [João Linhares Barbosa / Armandinho (Fado da Adiça)]
13. Não Voltes à Minha Mesa (Frederico de Brito / Alfredo Duarte "Marceneiro")
14. Madragoa (José Galhardo / Raul Ferrão)
15. Sete Colinas (Álvaro Leal / Raul Ferrão)
16. Maria Madalena [Gabriel de Oliveira sobre quadra do poema "A Canção das Perdidas", de Augusto Gil / Popular (Fado Mouraria); arr. Lucília do Carmo]
17. Tia Dolores [João Linhares Barbosa / José António Sabrosa (Fado Tia Dolores)]
18. Senhora da Saúde (Francisco dos Santos / Joaquim Campos)
19. Leio em Teus Olhos (Mário Moniz Pereira)
20. Zé Maria (Sá Esteves / Raul Ferrão)
Músicos:
Lucília do Carmo – voz
Jaime Santos – guitarra portuguesa (1, 2, 7-15)
Francisco Carvalhinho – guitarra portuguesa (3-6, 16-18)
Ilídio dos Santos – guitarra portuguesa (13-18)
Conjunto de guitarras de Raul Nery (19)
António Chainho – guitarra portuguesa (20)
Fernando Freitas – guitarra portuguesa (20)
Alfredo Mendes – viola (1, 2)
Martinho d'Assunção – viola (3-12, 20)
Orlando Silva – viola (13-18)
José Maria Nóbrega – viola baixo (13-15, 20)
Liberto Conde – viola baixo (16-18)
Gravações efectuadas por Hugo Ribeiro para a Valentim de Carvalho (etiquetas His Master's Voice e Decca), em 1958, 1960, 1968 e 1971; excepto: temas 13, 14, 15 (gravados por Henk Jansen para a Philips), e 20 (gravado por José Manuel Fortes para a Trova, 1978).
Reportório da Valentim de Carvalho restaurado e remasterizado digitalmente nos estudios de Abbey Road, em Londres, por Terry Burch e Ron Hill, em Setembro de 1997.
Restante repertório remasterizado por Paulo Jorge Ferreira, em Novembro de 1997.
Montagem digital – Paulo Jorge Ferreira
Compilação realizada por José Pracana e coordenada por Jorge Mourinha, com a colaboração de: Carlos do Carmo, eng.º Luís Penedo, da Academia da Guitarra Portuguesa e do Fado, e Hugo Ribeiro (da Valentim de Carvalho), e Nuno Faria e Maria Teresa Beirão (da Polygram Portugal).
Produção executiva – David Ferreira e Jorge Mourinha
Design e tratamento gráfico – Fátima Rolo Duarte, sobre imagens dos arquivos da EMI-Valentim de Carvalho.
Garras dos Sentidos, de Mísia
(CD, Erato, 1998)
«É mesmo quando esta cidade das Caravelas se mostra asténica, é mesmo quando ela grita a pedir misericórdia, que é preciso ir lá meter o nariz e que podemos arriscar-nos a fazer certas perguntas: porque será que o fado foi escolher este cantinho, bem no extremo da Europa, para mergulhar as suas raízes? Que música será esta, que se toca nesta terra quase incógnita? O que será esta "saudade fadista"? Essa "dor que dá prazer, essa felicidade que se sofre"?
Pois é aqui que Mísia grava um disco com os seus músicos. Ambiente de recolhimento e exegeses instrumentais. Busca de uma alquimia. E isto porque o fado, amuleto carregado de uma misteriosa poesia, é uma coisa animista que é preciso seduzir e conquistar. Aparentado ao blues, ao tango e ao rebético pelas suas sonoridades melancólicas, afasta-se deles, no entanto, pelo mecanismo da sua mitologia que transcende os códigos da interpretação ou dos arranjos. No fado, o inefável traduz-se através da vibração da voz. Por vezes, através duma hesitação, um pouco mais longe, através do modular das palavras, sempre para aquém ou para além da nota tocada.
Pois é deste fado, misto de leveza insondável e de pesadas aflições, de fundas feridas e de ternuras, de carícias e de violências, que Mísia declina os claro-escuros, há já vários anos. Mas, embora o clima de tragédia seja o que mais convém a este tipo de canção, ela também soube, embora a contra-corrente do conformismo e do pessimismo que tantas vezes caracterizam este mesmo fado, exprimir-se de uma maneira brincalhona, por vezes quase alegre, e isto ao cantar certos fados contemporâneos. Mas onde esta intérprete, cujo estilo cénico evoca o despojamento do Nô japonês, se distingue, é no tratamento a que ela submete tudo aquilo que canta, reabilitando dessa maneira o classicismo das canções interpretadas, através de uma aproximação que poderíamos apelar de heterodoxa. Pois é preciso dizer que, no que diz respeito ao fado, o caso de Mísia é perfeitamente atípico. Filha de um pai português e de uma mãe catalã, e tendo vivido na cidade do Porto até aos vinte anos, instala-se depois em Barcelona. Foi este afastamento do país natal que fez com que ela passasse a apreciar o fado com um olhar inteiramente novo. E é então que Mísia, fascinada pela força atávica dos seus textos, decide revisitá-lo através da sua sensibilidade feminina. Ninguém poderá negar que o fado, tendo aparecido em meados do século XIX, e tendo mergulhado as suas raízes nos bairros populares de Lisboa, sempre tenha patenteado um grande conformismo pelos tempos fora. E que, no seu repertório, predomine uma visão fatalista da vida e das coisas que, sendo embora própria daquele "banho-maria nostálgico" tão ao gosto de quase todos os lusófonos, soa bastante mal aos ouvidos do mundo actual. Por sentir poucas afinidades com um certo número dessas letras que exaltam os lugares-comuns do subdesenvolvimento, que Mísia depressa fez a sua escolha e resolveu jogar a carta da poética contemporânea. Chegou a ir ainda mais longe atreveu-se a pedir a um certo número de escritores para escreverem as letras dos seus fados, tendo associado a esse seu empreendimento a fina-flor da literatura portuguesa contemporânea. Canta assim poemas de José Saramago e de António Lobo Antunes, de Agustina Bessa-Luís (a grande escritora portuense cujo único poema deu o nome ao presente álbum), ou ainda de certas figuras de proa da nova geração, como Lídia Jorge. E foi seguindo a mesma linha, que veio a solicitar autores/compositores de grande renome, como Vitorino Salomé ou Sérgio Godinho. Não se pode deixar de assinalar que a árvore do fado tradicional possui a particularidade de se desenvolver a partir de um certo número de estilos fundamentais, baptizados com os nomes de "fado menor", "fado corrido" ou "fado mouraria". Mas esta árvore dá ramos que representam uma boa centena de temas musicais. São o cantor ou a cantora que terão de escolher o veículo lírico que mais adaptado lhes parecer ao "sentimento" que o fado que vão cantar lhes provoca. Ora, esta atenção prestada à letra — testemunhada pelo presente álbum, de uma essência exclusivamente literária e, paralelamente, baseado em fados tradicionais antiquíssimos — lembra a todos que, para Mísia, o fado é, acima de tudo, um acto espiritual, que não tem nada a ver com acrobacias vocais. Daí o cuidado que ela tem de o depurar para se aproximar o mais possível da palpitação emotiva. É assim que, através destas gravações, poderemos apreciar de que maneira a cor negra dominante aparece irisada por uma série de cambiantes, no seguimento de um diapasão que vibra ao som de uma meteorologia íntima. A perfeita comunhão com os seus músicos e as escolhas estéticas realizadas (no presente álbum, a escolha do violino e do acordeão, instrumentos utilizados pelos músicos ambulantes do começo do século que, por vezes, também tocavam fados) foram decisivas. E, além de tudo o mais, Mísia teve a sorte de poder contar com uma "tripulação", cujo coração é formado por Ricardo Dias (piano, acordeão e arranjos), Manuel Rocha (violino) e pelo extraordinário Custódio Castelo (à guitarra, essa assinatura rítmica do fado). E é assim que, no Japão ou na Austrália, na Europa ou no Líbano, ela pode partilhar com todos os seus ouvintes a universalidade deste verbo lusitano, deste verbo da impossível utopia, Novo Continente ou felicidade íntima, de que Fernando Pessoa resumia os encantos quando dizia que sempre tinha sido um sonhador irónico e infiel às suas promessas interiores, pois sempre saboreara — sendo outro ou sendo estrangeiro — a derrota dos seus sonhos.» (Frank Tenaille, trad. Ana Côrte-Real).
Alinhamento:
1. Garra dos Sentidos [Agustina Bessa-Luís / Popular (Fado Menor)]
2. Dança de Mágoas [Fernando Pessoa / Raul Ferrão (Fado Carriche)]
3. Estátua Falsa [Mário de Sá-Carneiro / Armando Machado (Fado Súplica)]
4. Fado do Retorno I [Lídia Jorge / Armandinho (Fado Estoril)]
5. Nenhuma Estrela Caiu [José Saramago / Franklin Rodrigues (Fado Franklin de Sextilhas)]
6. Litania [Mário Cláudio / José António Sabrosa)]
7. Não Me Chamem pelo Nome (António Botto / José António Amaral)
8. Sete Luas [Natália Correia / Renato Varela (Fado Varela)]
9. Sou de Vidro [Lídia Jorge / Armando Machado (Fado Santa Luzia)]
10. Fado do Retorno II [Lídia Jorge / Armandinho (Fado Estoril)]
11. Da Vida Quero os Sinais [Mário Cláudio / Joaquim Campos (Fado Tango)]
Músicos:
Mísia – voz
Ricardo J. Dias – acordeão (1-4, 6, 7, 10), piano (10)
Manuel Rocha – violino (1-4, 6-8)
Custódio Castelo – guitarra portuguesa (1-7)
António Chainho – guitarra portuguesa (9)
António Pinto – viola (1-7)
José Moz Carrapa – viola (1-3, 7)
Carlos Manuel Proença – viola (3, 5-6, 9)
José Marino de Freitas – viola baixo (1-7, 9)
Mário Franco – contrabaixo (10, 11)
Quarteto de cordas, em "Da Vida Quero os Sinais" (11):
Fulvio Liviabella – 1.º violino
Ágnes Sárosi – 2.º violino
Massimo Mazzeo – violeta
Jonathan Tortolano – violoncelo
Direcção – João Paulo Esteves da Silva
Arranjos – Ricardo J. Dias, excepto em "Sou de Vidro" (António Chainho, Carlos Manuel Proença e Marino Freitas)
Direcção musical – Ricardo J. Dias
Co-direcção – Mísia
Produtor executivo – Ricardo J. Dias
Gravado nos Estúdios Xangrilá, Lisboa, em Outubro de 1997
Técnico de som – Nuno Pimentel
Mistura – Ricardo J. Dias e Mísia (Studios Plus XXX, Paris)
Técnico de som – Emmanuel Pothier
Masterização – Yves Delaunay (Dyam Studios, Paris)
Fotos e design – C.B. Aragão
Maquete – Aragão & Carlos Pires
Fontes:
- "Enciclopédia da Música Ligeira Portuguesa", dir. Luís Pinheiro de Almeida e João Pinheiro de Almeida, Círculo de Leitores, 1998
- "Os Melhores Álbuns da Música Popular Portuguesa: 1960-1997", coord. Jorge Dias e Luís Maio, Público/FNAC, 1998
- "Música Popular Portuguesa: Um Ponto de Partida", Mário Correia, Centelha/Mundo da Canção, 1984
- Literatura inclusa nos discos citados
- Páginas da internet
Especiais agradecimentos, pela amável cedência de capas originais, fichas técnicas e/ou recensões críticas, a:
- Artistas e respectivos agentes/editoras
- João Carlos Callixto (http://bissaide.blogspot.com/, http://nobregaesousa.blogspot.com, http://vinilvidici.com)
- Luís Pinheiro de Almeida (http://guedelhudos.blogspot.com/)
- Aristides Duarte (http://rockemportugal.blogspot.com/)
- Tiago Carvalho (http://poeira-cosmica-fm.blogspot.com/)
- Octávio Sérgio (http://guitarradecoimbra.blogspot.com)
- Coronel José Anjos de Carvalho
- Avelino Tavares (http://www.discantus.pt/)
E agora a questão que se impõe: quantos dos discos acima destacados (cerca de 70), boa parte dos quais obras-primas absolutas da música portuguesa, estão representados na 'playlist' da Antena 1? Eu garanto que os dedos de uma só mão chegam para os contar. Vai uma aposta? Que as entidades que tem por competência a avalização e fiscalização do serviço prestado pela rádio pública tenham a inciativa de monotorizar a malfadada 'playlist' e depois dir-me-ão se tenho ou não razão. E, por acaso, uma das obrigações da estação de rádio que os contribuintes portugueses finaciam, à luz das disposições consignadas no contrato de concessão do serviço público, não é precisamente divulgar o que de mais valioso existe no património musical português? Pois é! Mas o director de programas, Rui Pêgo, e o seu editor de 'playlist', Ricardo Soares, parecem não comungar desse entendimento e, nessa medida, não pode deixar de se questionar a continuação de tais pessoas nas funções que lhes foram confiadas.
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Ressalvando eventuais omissões, mormente de edições não disponíveis nas principais lojas de discos, aqui ficam os álbuns de música portuguesa mais relevantes da colheita de 2007. A ordem pela qual estão apresentados não corresponde a uma seriação valorativa, seja crescente ou decrescente.
Festival Intercéltico: 15 Anos de Histórias, de Vários
(CD, Mundo da Canção/Som Livre, 2007)
Por iniciativa da Mundo da Canção, e para comemorar os vinte anos de existência do Festival Intercéltico do Porto, é editada, com chancela da Som Livre, a compilação "Festival Intercéltico: 15 Anos de Histórias". Quinze anos e não vinte porque entre a primeira edição, em 1986, e a segunda, em 1991, distam cinco anos. Para figurar no disco foram escolhidos vinte intérpretes: Júlio Pereira ("Celtibera"), Vai de Roda ("Quadrilha"), Maddy Prior ("John Barleycorn"), Sétima Legião ("Por Quem Não Esqueci"), Uxia ("Verdes São os Campos"), Amélia Muge ("Passarinho da Charneca"), Fairport Convention ("Walk Awhile"), Luar na Lubre ("Domingo Ferreiro"), Carlos Nuñez ("Bretoña"), Gaiteiros de Lisboa ("Plantei Amores"), Ronda dos Quatro Caminhos ("Sapateia"), Tri Yann ("Kiss the Children for the Mary"), Kepa Junkera ("Madagaskar"), Roldana Folk ("La Çarandilhera"), De Dannan ("Cameronian Reel, Doon Reel"), Ghalia Bebali & Timnaa ("Luiza"), Brigada Victor Jara ("Cantiga Bailada"), Frei Fado d'El Rei ("Menino do Mar"), Kila ("Crann na bPinginí") e Galandum Galundaina ("Chin Glin Din"). Tratando-se de uma edição comemorativa de um festival faria mais sentido que a mesma fosse composta por registos ao vivo e não por gravações de estúdio, como é o caso. Talvez não existisse material suficiente e de boa qualidade captado ao vivo, de modo a permitir uma amostragem digna e abrangente dos muitos nomes que passaram pelo Intercéltico. Mesmo assim e apesar de algumas ausências importantes (Realejo, Fausto Bordalo Dias, Susana Seivane, Milladoiro, The Chieftains, Dervish, Márta Sebestyén & Muzsikas, etc.), que um CD duplo permitiria obviar, trata-se de uma bela e oportuna compilação de música folk que merece toda a atenção.
O álbum é acompanhado de belos textos de jornalistas e críticos que acompanharam as sucessivas edições do evento, organizado por Avelino Tavares. Um desses textos é assinado por Nuno Pacheco, que aproveita para fazer uma oportuna evocação do seu colega Fernando Magalhães: «Na muito distante chamada instrução primária (hoje conhecida por ensino básico), os alunos eram levados a decorar que nos séculos sexto e quinto antes de Cristo andaram por aqui Celtas e Iberos, que juntos se misturaram em Celtiberos e que daí vieram os Lusitanos, antepassados dos Portugueses. Tudo linear e esquemático, mas fundamental num ponto: a mistura, essencial à nossa formação. O Intercéltico é fiel a essa matriz. Também nele se misturaram culturas e sons desse imenso caldeirão onde fermentam as melhores músicas de raiz europeia, não só nas vertentes mais convencionais ou clássicas mas também nas múltiplas derivações que as sucessivas eras e experiências possibilitaram e possibilitam. Quem se recordar dos primeiros passos da revista "Mundo da Canção", onde tudo afinal começou, em 1969, saberá que houve muitas outras músicas até chegar às intercélticas dos anos 80. Que houve José Afonso, Beatles, Aguaviva, King Crimson, Leo Ferré, Phil Ochs, antes de Márta Sebestyén, The Chieftains, Milladoiro, Luar na Lubre, La Musgaña. Centenas de nomes antes de centenas de nomes. Músicas de mercado e mercados de música. Vozes irmanadas na busca de novos caminhos para tradições a precisarem de ares renovados e menos rarefeitos. Para isso contribuíam os muitos Intercélticos que a MC foi fazendo, diligentemente, ano após ano, sem ceder a modas fáceis mas insistindo em buscar nomes que era preciso ouvir, urgentemente. Um dos jornalistas que, desde os primeiros tempos, se deixou enredar na teia de afectos que ali se teceu, foi o crítico do "Público" Fernando Magalhães, cujo súbito falecimento, em Maio de 2005, deixou um lugar dificilmente preenchível nas abordagens das músicas do mundo, a que se entregava com gosto e sabedoria. Como ao Intercéltico se entregou, ao longo das suas edições. "Quando um juiz se afasta da verdade aparece uma mancha no seu rosto", rezam as leis antigas da Irlanda. Em nenhum rosto correrá risco de surgir mancha se, de franco juízo, disser que o Intercéltico tem sido um marco indelével na história de muitas músicas.» (Nuno Pacheco, jornalista e director-adjunto do "Público", 2007).
E convém ainda não esquecer o contributo fundamental que o Festival Intercéltico teve (e esperamos, continue a ter) no crescente interesse pelas músicas de raiz tradicional em Portugal, não só do público melómano como de muitos músicos, sobretudo da geração mais nova, que a solo ou reunidos em agrupamentos tem produzido trabalhos de grande valia e significado para a música portuguesa (mas ainda muito menosprezados na nossa rádio).
URL: http://www.discantus.pt/
Terra: Antologia 1972-2006, de Ganhões de Castro Verde
(2CD, ACA "Os Ganhões", 2007)
Formados em 1972, os Ganhões de Castro Verde haviam gravado cinco discos de longa duração: "Castro Verde é Nossa Terra" (1975), "Os Ganhões de Castro Verde" (1980), "Modas" (1994), "É Tão Grande o Alentejo" (1997) e "O Círculo que Leva a Lua" (2003). Celebrando a efeméride dos 35 anos de existência do grupo, e na sequência da candidatura a um programa de apoio à edição de material audiovisual e multimédia da Delegação Regional do Alentejo do Ministério da Cultura, a Associação de Cante Alentejano "Os Ganhões", apresenta-nos "Terra: Antologia 1972-2006", numa luxuosa edição de livro (com as letras, fotografias e textos diversos) e CD duplo, contendo 29 modas retiradas dos discos citados e mais duas gravações inéditas realizadas em 2006. Ordenadas cronologicamente, as 31 modas ficaram com o seguinte alinhamento: Disco 1: "Morreu Catarina", "Beja é Mãe do Distrito", "Castro Verde é Nossa Terra", "As Nossas Forças Armadas" (letra de José Lourenço), "Grândola, Vila Morena" (letra e música de José Afonso), "Nos Campos de Castro Verde", "Vai de Centro ao Centro", "As Flores da Nossa Terra", "Cidades, Vilas e Montes", "Nos Campos do Alentejo", "Afonso Henriques, um dia", "Pelo Toque da Viola", "A Vila de Castro Verde", "Emigrante", "O Almocreve", "Muito Bem Parece", "Ceifeira Linda Ceifeira"; Disco 2: "A Ribeira do Sol-Posto", "Ia Chegando às Areias", "Ó Águia que Vais Tão Alta", "Mondadeira Alentejana", "Camponês alentejano", "É Tão Grande o Alentejo", "Meu Alentejo Querido", "O Círculo que Leva a Lua", "Há Lobos Sem Ser na Serra", "Castro Verde Bem Podia", "Lá Vai Uma Embarcação", "Que Bonito que Seria", "Andei a Guardar o Gado" e "A Flor que Abriu em Maio".
Como refere Paulo Lima, num texto inserto no livro, «este trabalho discográfico de "Os Ganhões" é, a partir de hoje, uma edição fundamental para a história do movimento coral, ou orfeónico, do Baixo Alentejo. Esta antologia de mais de 30 anos de trabalho editorial de "Os Ganhões" é a percepção que existe uma história e sobre ela não se deve construir o esquecimento. Por esse motivo, a dívida para com a Associação de Cante Alentejano aumenta: não só luta para que continue viva uma prática como nos permite o acesso à sua história.»
Transcreve-se também um belo texto de Paulo Nascimento e Filipe Pratas, que é também uma declaração de amor da geração mais nova ao Cante: «"Eu sou devedor à terra/ A terra me está devendo/ A terra paga-me em vida/ Eu pago à terra em morrendo" (Cantiga popular). Sempre a terra. De onde tudo vem, para onde tudo vai. Esta terra que nos deu este modo de cantar. Alinhados lado a lado. Bocado sol. Bocado cal. Vaia de lonjura povoada de calma e pássaros. Espiral do tempo condensada pelas veias da identidade onde corre o sangue desta terra. A nossa terra. Ela que fez nos crescer e nos moldou na cadência do tempo. O tempo atravessado pelo bradar de uma moda que saía de mansinho pela porta da taberna e se colava ao entardecer.
Não somos do tempo em que a moda tornava o trabalho do campo mais leve. Não somos do tempo em que se cantava para dizer o que não se podia falar. Não somos do tempo em que havia modas proibidas. Mas hoje bebemos do mesmo vinho que eles e partilhamos o mesmo cantar. Foi com admiração e respeito que cá chegámos, disponíveis para participar nesta sementeira. Quase todos eles podiam ser nossos pais. Alguns avôs. São companheiros. A maior parte deles deixaram o trabalho do campo e têm hoje as mais variadas profissões. Mas não esqueceram. Continuam a cantar esses tempos que já lá vão. É aí que bebem esse vinho que aquece a alma a exalta os sentidos. Como se poderá esquecer este cante que hoje é convívio, mas que já foi lavoura, ceifa de sol a sol, que já foi distracção para enganar a barriga vazia?!
O mundo rural, a nossa terra, e tudo o que nela nasce e morre, é a essência deste cante. Um traço de afirmação que deve ser respeitado. Mas que na nossa opinião pode ser utilizado nos mais variados espaços da criação artística. Os Ganhões já nos ensinaram isso. Não é por terem cantado com Dulce Pontes ou actuado no Hot Clube de Portugal que o seu cante se alterou. O cante alterou-se ligeiramente porque a vida se alterou. Os homens alteraram-se. O cante não é uma pedra. Não tenhamos medo de tornar a tradição mais atractiva. A Terra estará sempre cá. E o convívio popular nunca deixará de ser a catedral do cante. Cantemos pois por amor à Terra. Sempre a Terra.» (Paulo Nascimento e Filipe Pratas, 2006).
URL: http://www.ganhoescastroverde.com/
Posta Restante, de Chuchurumel
(CD, Chuchurumel/Luzlinar, 2007)
Após o lançamento de "No Castelo de Chuchurumel" (2005), o grupo de César Prata (bandolins, gaita-de-foles, groove box, programações, samples, sanfona, sintetizador, viola, voz) e Julieta Sllva (acordeão, concertina, ocarina, percussões, sanfona, voz principal), apresenta-nos o seu segundo disco, "Posta Restante". É um álbum constituído por treze cartas musicais, endereçadas e expedidas "à maneira antiga para uma Posta Restante de uma qualquer estação de correios porque os destinatários não possuem morada fixa: são seres que erram no universo desta paixão que é a música popular portuguesa." As cartas, retiradas do cancioneiro tradicional ou escritas de raiz pelos Chuchurumel, são as seguintes: "Deus Te Salve, ó Rosa" (para José Luís Aguiar da Cruz Santos), "Coquelhada Marralheira" (para Mário Correia), "Canção das Maias" (para José Franco), "Galanducha" (para José P. da Cruz), "Moinho Picarnel" (para os músicos), "Para Lá da Porta" (para Michel Giacometti), "Casório Divertido" (para Júlia Fonseca), "Tenho Um Lilás no Meu Jardim" (para Gastão Augusto Rodrigues), "O Vos Omnes" (para Fernando Lopes-Graça), "Rico Franco" (para Domingos Morais), "Alta Vai a Lua" (para GEFAC), "Era Uma Vez Um Burrinho" (para Francisco Domingues [Ti Lérias]) e "Canção da Trovoada" (para Silvina de Jesus Marques). Como extra, há ainda um videoclip do tema "Coquelhada Marralheira" realizado por Tiago Pereira.
Uma das cartas, a dirigida ao Prof. Domingos Morais, teve resposta: «Espero-vos de boa saúde, com ânimo e teimosia q.b. para levarem as vossas cartas aos nomeados destinatários e a quem mais tenha ouvidos e mentes abertas ao vosso desafio. Mesmo os que se encontram em parte incerta receberão a vossa missiva e saberão o destino a dar-lhe. Eu fico bem, melhor do que estava antes de ouvir as vossas "cartas", pela lufada de modernidade que transportam e pelas inteligentes pontes estabelecidas entre o Popular, na sua inteireza, com a música que hoje se inventa a partir dos velhos e novos recursos irrecusáveis, como aliás sempre aconteceu. Vocês sabem, não há fronteiras nem dogmas que consigam impedir a livre circulação e contaminação das práticas culturais. Já assim era quando de toda a Europa vinham milhares de peregrinos pelos caminhos de Santiago até Compostela com as suas canções, histórias, danças e instrumentos a tiracolo. E nesses tempos havia lugar para salutares permutas que nos deixaram marcas dos saberes e afirmações culturais de muitas e desvairadas gentes. Vejam-se, até onde a evidência histórica nos permite, os relatos sobre a Lusitânia de Estrabão e de Deodoro de Sevilha, o rasto deixado pelos povos do Norte e Centro da Europa que aqui chegam no primeiro milénio da nossa era (Alanos, Vândalos, Suevos e Visigodos), as comunidades judaicas presentes desde o séc. I, os Mouros que chegam no séc. VIII, por fim o cadinho de miscigenação em que a Ibéria do Renascimento se tornou, quando o mundo se começou a revelar e os Europeus começaram a construir a sua identidade, na distinção face a outros povos. É por isso que cada testemunho a que acedemos, cada músico, tocador, contador de histórias, é sempre o resultado de um longo processo que dificilmente podemos entender. O que não nos impede de juntar e dar sentido aos preciosos documentos e reflexões de alguns dos vossos destinatários, com destaque para Michel Giacometti e Fernando Lopes-Graça. Estas vossas cartas são um salutar exercício de liberdade artística e uma preciosa tentativa de encontrar novos sentidos para os sons e testemunhos de uma ruralidade que nos é revelada como referência para muitas das opções que temos de fazer nas nossas vidas.» (Domingos Morais, 2007).
Sobre este belo disco de folk portuguesa, assim escreveu António Pires: «O primeiro álbum dos Chuchurumel, "No Castelo de Chuchurumel", apontava já as pistas seguidas pelo duo de Julieta Silva e César Prata neste segundo trabalho, "Posta Restante". Mas com a diferença, fundamental, de que enquanto no primeiro disco essas pistas levavam a caminhos diferentes, raramente se cruzando ou intersectando – num dos caminhos havia recolhas de música no terreno, no outro o próprio trabalho do grupo, mas sem ligação óbvia entre os dois "universos" –, em "Posta Restante", pelo contrário, as recolhas encaixam-se na perfeição na música do grupo. Mais a mais, uma música que evoluiu imenso em invenção, experimentação, tentativa – quase sempre muito, muito bem conseguida – de levar uma música antiga, rural, rude na sua origem, para a modernidade, uma certa urbanidade global, um grau de sofisticação raro em projectos portugueses. Em "Posta Restante" – assim chamado porque cada canção é uma "carta" a pessoas conhecidas ou anónimas que lhes deram a conhecer a maioria destes temas (embora também haja alguns originais dos Chuchurumel) – podem ouvir-se guitarras sintetizadas em distorção, programações trip-hop, vozes arrancadas à terra (como a senhora de "Coquelhada Marralheira"), sanfonas, acordeão e gaitas-de-foles, gravações de vários ambientes – os disparos a dar a base de "Rico Franco" ou o ritmo do moinho de água são um achado –, aproximações a danças europeias e até ao fado. E sempre com um bom gosto irrepreensível.» (António Pires, in blogue Raízes e Antenas, 02.05.2007).
No mesmo sentido vai o texto de João Lisboa, rematado com uma pertinente interrogação que nos remete imediatamente para o ostracismo a que a música folk/tradicional é votada nos principais meios de difusão hertziana: «"Posta Restante", dos Chuchurumel: mesmo tendo em conta que "Sexto Sentido", da Sétima Legião, ou toda a discografia dos Gaiteiros de Lisboa e de Amélia Muge estabeleceram um elevado termo de comparação relativamente aos modos contemporâneos de lidar com a tradição musical popular, é um magnífico álbum onde os materiais sonoros – encarados quase como "found sounds" montados de modo sabiamente eisensteiniano ou reformulados e transfigurados tecnologicamente e no sentido de uma reavaliação propriamente musical – transportam instantaneamente para o presente as marcas de uma memória que, escutada assim, nunca nos ocorreria qualificar como "arqueológica". Todas estas "cartas" (sob a forma de mazurkas, xotiças, romances ou cantigas de cego pedinte em registo mutante) exigem ser escutadas por ouvidos de hoje mas, como garantir-lhes a sobrevivência para além da micro-cena "folk" nacional?» (João Lisboa, in "Expresso", Suplemento "Actual", 27.10.2007).
URL: http://www.chuchurumel.com/
http://www.myspace.com/chuchurumelband
Parainfernália, de Diabo a Sete
(CD, Açor/Emiliano Toste, 2007)
Oriundos do grupo musical Borda-d'Água e do GEFAC (Grupo de Etnografia e Folclore da Academia de Coimbra), os Diabo a Sete apareceram no início de 2003, em Coimbra, e na sua formação esteve a vontade de tocar e reinventar a música portuguesa de raiz tradicional. Anunciam os Diabo a Sete: «Acreditamos que os ritmos e melodias que tocamos e que ouvimos por todo o país, seja em recolhas seja no labor musical de outros grupos, não são meros ecos de um passado mumificado. Traduzem, isso sim, uma forma de interpretar a riqueza musical do nosso país, feita de permanências, esquecimentos e cruzamentos fecundos com outras culturas. Se o lustro que habitamos é aquilo a que se convencionou chamar de música tradicional, não o fazemos, contudo, com o intuito de recuperar uma pretensa "pureza perdida" ou de tratar em termos de rigor "científico" as sonoridades e os instrumentos. Transportamos ritmos e sons já outrora esboçados, mas com o intuito de fazê-los reviver, através das nossas experiências e do prazer que sentimos em tocar. É com estes ingredientes que pretendemos agitar um caldeirão antigo e de lá extrair algo de novo.»
Em 2006, participam no Festival Eurofolk, realizado em Málaga, na Andaluzia, e ganham a eliminatória portuguesa. Emiliano Toste, produtor e proprietário da editora Açor, está presente e fica tão impressionado com a prestação dos jovens conimbricenses que logo os convida a gravarem um disco. E é assim que, em meados de 2007, vem à luz do dia o disco de estreia que dá pelo curioso nome de "Parainfernália". Nele os Diabo a Sete – Celso Bento (flautas, gaita-de-foles e percussões), Eduardo Murta (baixo eléctrico), Julieta Silva (concertina, sanfona, piano e voz), Luísa Correia (guitarra acústica), Miguel Cardina (bateria e percussões) e Pedro Damasceno (cavaquinho, bandolim, concertina e flautas) presenteiam-nos com doze temas verdadeiramente sedutores: "Baile da Meia Volta" (tradicional – Porto Santo / Pedro Damasceno e Vasco Correia), "En Tu Puerta Estamos Cuatro" (tradicional – Rionor), "Chin Glin Din" (tradicional – Trás-os-Montes), "Dança dos Camafeus" (Pedro Damasceno), "Parati" (Pedro Damasceno), "Vira-Pedras" (Pedro Damasceno), "Diabos no Corpo" (Pedro Damasceno e Celso Bento), "Para Lá do Marão" (tradicional – Trás-os-Montes), "Valsa da Joana e do João" (Pedro Damasceno), "Ponte Nova do Algarve" (tradicional – Algarve / Pedro Damasceno), "Guardunha" (Pedro Damasceno) e "O Padrinho" (tradicional – Elvas).
Refira-se, a título de curiosidade, que o tema "Valsa da Joana e do João" foi recentemente escolhido para integrar uma colectânea editada em Espanha pela revista "Interfolk". "Parainfernália" é, claramente, um dos mais belos e fascinantes trabalhos discográficos da colheita de 2007 e a demonstração perfeita de que a música de raiz tradicional é uma excelente fonte de ingredientes para a confecção de magníficos manjares. Manjares esses que muitos ainda não saboreiam porque simplesmente desconhecem a sua existência, em virtude do autismo que caracteriza os principais órgãos nacionais de difusão hertziana (rádios e televisões) face ao florescente movimento da folk portuguesa e de que os Diabo a Sete são um dos melhores representantes. Vai valendo a internet (My Space, YouTube, etc.) para furar esse bloqueio obscurantista e, a todos os títulos, criminoso.
URL: http://www.diaboasete.com/
http://diaboasete.blogspot.com/
http://www.myspace.com/diaboasete
Romances de Peregrino, de Eduardo Ramos
(CD, Eduardo Ramos, 2007)
O maravilhoso mundo dos romances tradicionais (também denominados rimances ou xácaras) tem sido – inexplicavelmente – muito pouco abordado pelos intérpretes portugueses da área da música popular/tradicional. Exceptuando alguns espécimes avulsos presentes em álbuns de grupos como Brigada Victor Jara, Almanaque, Ronda dos Quatro Caminhos, Maio Moço, Vai de Roda, Terra a Terra, Romanças, Real Companhia e Gaiteiros de Lisboa, ou de intérpretes em nome individual como José Afonso, Adriano Correia de Oliveira, Fausto Bordalo Dias (com a sua admirável versão d' "A Nau Catrineta", em "Histórias de Viageiros", 1979), Amélia Muge, Né Ladeiras e Filipa Pais, os dedos das mãos chegam e sobram para contar os discos constituídos, integral ou maioritariamente, por rimances. Citemo-los: "Guerrilheiro" (1974) ou "Cancioneiro" (1982), de Luís Cília; "Romances" (1981), de Vitorino; "Novas Vos Trago" (1998), de Amélia Muge, João Afonso, Sérgio Godinho, Gaiteiros de Lisboa e Brigada Victor Jara; "Por Mares..." (1999), de Fernando Guerreiro (com a participação de Eduardo Ramos); "Rimances" (2001), de José Barros e Navegante; e "A Morte do Príncipe D. Afonso e outros romances tradicionais da Guarda" (2004), de Teresa Aurora Gonçalves. Em face desta escassez, o surgimento do CD "Romances de Peregrino", de Eduardo Ramos, assume especial importância. E não apenas por ser mais um disco de romances. Eduardo Ramos, alaúdista e cantor, há anos que se vem dedicando a uma área praticamente inexplorada entre nós (ressalvando o caso singular de Janita Salomé) – a música luso-árabe –, cantando na língua de Camões os grandes poetas do Al-Andalus, em especial Al-Mu'tamid. Ouçam-se, por exemplo, os magníficos "Andalusino" (1999) e "Um Cântico para Al-Mu'tamid" (2005).
Em "Romances de Peregrino", pegando em alguns dos mais belos espécimes do ancestral romanceiro português ("Laurinda"; "Com as lágrimas dos meus olhos"; "Claralinda"; "Dom Duardos"; "Dom Claros", este também conhecido por "Romance de D. Mariana"; "Gerinaldo"; "Conde Nilo"), Eduardo Ramos explora as pontes entre as tradições culturais que durante a Idade Média coexistiram na Península Ibérica – cristã, mourisca e sefardita – trazendo uma nova luz a este rico e pouco explorado género da nossa tradição oral. Se é certo que os romances são, em boa parte, de origem francesa, mais concretamente carolíngia, também não deixa de ser verdade que quando os mesmos chegaram à Península, e mau grado a Reconquista Cristã, ainda estavam bem vivas as culturas árabe e sefardita, sobretudo nos estratos populares, que naturalmente influíram na maneira de cantar essas histórias. Não é por acaso que em muitas das recolhas feitas por Michel Giacometti, e outros, ainda seja possível encontrar resquícios de modos musicais estranhos à tradição europeia de além-Pirenéus. O que Eduardo Ramos faz em "Romances de Peregrino" é um exercício assaz interessante de trazer novamente à tona a matriz musical moçárabe existente na cultura portuguesa medieval e que com o decorrer dos séculos se foi submergindo e diluindo nas sucessivas correntes da História.
Além dos romances atrás citados, Eduardo Ramos incluiu também no disco algumas cantigas tradicionais: "Ó que estriga", "Eu sou trevo", "Fonte do Salgueirinho", "Senhora do Almortão" e "Senhora Santana". O alinhamento termina com "A Peregrina", também um romance mas que se ficou pelos dois primeiros versos ("Peregrina, a peregrina/ Andava a peregrinar"). Pode ter sido por falta de espaço no disco (tempo total: 71' 44'') ou, então, trata-se de uma porta que Eduardo Ramos quis deixar aberta, quem sabe, a pensar em futuras aventuras.
A produção foi assegurada pelo próprio Eduardo Ramos que, além da interpretação vocal, toca alaúde árabe, gambri marroquino, bendir, sistro, sinos, guitarra e kissanji. Participaram ainda Joaquim Galvão (flauta de bisel e flauta transversal) e Fernando Guerreiro (guitarra portuguesa e castanholas).
«Ao tocar com o alaúde árabe estas cantigas tradicionais quero realçar o que de celta e mouro habita no coração e na alma portuguesa e homenagear os peregrinos que atingem a espiritualidade.» (Eduardo Ramos).
URL: http://www.inforarte.com/auditorio/eduardo_ramos.html
Canto da Terra, de Roberto Leal
(CD, Som Livre, 2007)
Roberto Leal, nome artístico do transmontano António Joaquim Fernandes, cantor-emigrante em Terras de Vera Cruz, não teria lugar nesta lista com o repertório pelo qual se tornou conhecido. "Canto da Terra", contudo, é um trabalho diferente e, acima de tudo, com qualidade musical. Nessa medida, seria injusto deixá-lo de fora tendo como critério, único e exclusivo, o facto de ser de Roberto Leal. Assim como artistas reputados fazem, por vezes, obras menores também intérpretes de um género de canção artisticamente menos qualificada nos podem surpreender com obras relevantes. É o caso de Roberto Leal com "Canto da Terra". Aliás, foi o próprio cantor o primeiro a ter a noção de que, para abordar a música tradicional de uma forma séria e digna, teria de adoptar uma atitude diferente. Daí o convite dirigido a Ricardo J. Dias, da Brigada Victor Jara, para se encarregar dos arranjos e direcção artística do disco. Também reveladora dessa preocupação do cantor é a participação do grupo de música tradicional mirandesa Galandum Galundaina e de músicos da Brigada Victor Jara. E assim, além de Ricardo J. Dias (piano e acordeão), fazem parte do elenco: António Pinto (guitarra de 6 e de 12 cordas e guitarra eléctrica), André Sousa Machado (bateria), Daniel Pinto "Didi" (baixo de 5 cordas e 'fretless'), Manuel Rocha (violino), Quiné (percussão), Amadeu Magalhães (gaita-de-foles, bandolim, cavaquinho, braguesa), Galandum Galundaina (rabeca, percussão, coros), Glória Bento (coros) e Márcia Lúcia (coros). Referência ainda à participação especial de Rão Kyao (flauta, no tema "Saia da Carolina") e de Vitorino (voz, em "Ó Rama, Ó Que Linda Rama").
O resultado é um trabalho que em nada desmerece outros que se tem feito na área da música tradicional e, nessa medida, tem também o mérito de servir para reabilitar o nome de Roberto Leal para a música portuguesa.
Em "Canto da Terra", Roberto Leal reconcilia-se com as suas raízes e dá-nos um outro olhar sobre o cancioneiro popular, especialmente de Trás-os-Montes, e mesmo nos temas que assina com Márcia Lúcia não deixa de transparecer a estética tradicional. Eis o alinhamento completo: "Canto da Terra (O Tempo Dirá)" (letra e música de Roberto Leal e Márcia Lúcia), "Chin Glin Din", "Sinhá Senhora" (letra e música de Roberto Leal e Márcia Lúcia), "La Molinera", "Dona Tresa", "Olhos de Terra, Cabelos de Trigo" (letra de Roberto Leal e Márcia Lúcia / música popular), "Nós Tenemos Muitos Nabos", "A Saia da Carolina", "La Çarandilhera", "Trás-os-Montes" (letra e música de Roberto Leal e Márcia Lúcia), "Ó Rama, Ó Que Linda Rama" e "A Saia da Carolina" (remix).
O cantor apresenta-nos assim o disco: «O "Canto da Terra" foi um reencontro maior com as minhas raízes, um mergulho final em mim próprio. Esta busca de tantos anos sofreu um golpe fatal no Carnaval de 2007, em Macedo de Cavaleiros. Nesse dia, não fui Artista – fui Povo que se divertiu com as máscaras, que fugiu dos Caretos de Podence, que se emocionou com o rufar dos tambores. A lágrima que veio de fugida não cabia naquele dia de alegria! Mas insistiu até que eu desviei o olhar para dentro de mim e não vi senão o Transmontano que eu sou. Assim nasceu o "Canto da Terra" uma homenagem que, egoisticamente, presto às minhas origens. Uma selecção de canções da minha infância, de memórias que guardei daqueles tempos em que pensava que falava numa linguagem de rude expressão. Dos tempos em que tudo se resumia a chão, a pedras, à natureza da Terra e do Homem, a colheitas, amizade e à simples e pobre vida da aldeia. Hoje sei que aquele modo de falar misturado com o Mirandês, a nossa "rude expressão" era a preciosidade e a identidade cultural das gentes de Trás-os-Montes. Hoje sei que a simples e pobre vida da aldeia era a forja do lado mais grandioso e inquebrantável do espírito moldado pela dureza do dia-a-dia e que, à falta de luzes exteriores, busca o seu próprio brilho interior. No "Canto da Terra" deixei-me falar Mirandês, deixei-me sentir como dantes, deixei-me ser Transmontano. Deixei-me cantar meu pedaço de chão e ouvi o Canto da Terra!» (Roberto Leal, 2007).
URL: http://robertoleal.sites.uol.com.br/
Sulitânia, de Ronda dos Quatro Caminhos
(CD, Ocarina, 2007)
Continuando a percorrer os caminhos trilhados em "Terra de Abrigo" (Ocarina, 2003), assentes no cruzamento do cante alentejano com as sonoridades sinfónicas da Orquestra de Córdoba, a Ronda publicou, em Novembro de 2007, o álbum "Sulitânia", também com chancela da Ocarina. O grupo apresenta-nos assim o seu novo álbum: «Este é o registo de uma viagem iniciada na Primavera de 2006, a convite das câmaras municipais de Évora, Idanha-a-Nova e Mértola. Assim partimos em busca do lugar onde as tradições musicais da Beira Baixa e do Alentejo se pudessem cruzar com a tradição da música erudita. À Beira do Sul foi o nome do roteiro dos concertos que, com as Adufeiras de Monsanto, o Coral Guadiana de Mértola e o Coro Polifónico Eborae Musica, juntos construímos. Achado o lugar, foi tempo de o cartografar para memória futura. Ei-lo aqui: o lugar a que chamámos Sulitânia». Título que, diga-se de passagem, foi inspirado no nome de um restaurante da localidade de Vimieiro, concelho de Arraiolos.
Para a realização do projecto, a Ronda dos Quatro Caminhos (António Prata – guitarra, bandolim; Carlos Barata – acordeão, bandolim; João Oliveira – voz solo, guitarra; Pedro Fragoso – piano; Mário Peniche – baixo; e Pedro Pita Groz – bateria, percussões) solicitou ainda as participações especiais do grupo Cantares de Évora, de elementos do Ateneu Mourense, do quarteto de cordas Opus 4 (Paula Pestana – primeiro violino; Rita Franco – segundo violino; Pedro Teixeira – violeta; Luís Estêvão da Silva – violoncelo), de Vasco Pearce de Azevedo (guitarra), e de Joana Alves Martins e Tiago Manuel Sousa (flautas de bisel).
Produzido com base em gravações ao vivo (no Centro Cultural Raiano, em Idanha-a-Nova; no Cine-Teatro Marques Duque, em Mértola; e no Teatro Garcia de Resende, em Évora) e de estúdio, Sulitânia inclui dez temas: "Debaixo da Laranjeira" (Beira Baixa / com as Adufeiras de Monsanto), "Vai Colher a Silva" (Baixo Alentejo / com o Coral Guadiana de Mértola), "Filho Não Vás à Mina" (Beira Baixa / com o Coro Polifónico Eborae Musica), "Aurora Vive na Serra" (Baixo Alentejo / com o Coral Guadiana de Mértola), "Cantiga das Casadas" (Beira Baixa / com Coro Polifónico Eborae Musica), "Condessa D'Aridão" (Beira Baixa / com as Adufeiras de Monsanto), "D'Onde Vens Ana?" (Baixo Alentejo / com o Coro Polifónico Eborae Musica), "Romance de D. Silvana" (Beira Baixa / com as Adufeiras de Monsanto), "Ao Romper da Madrugada" (Baixo Alentejo / com o Coral Guadiana de Mértola) e "Cravo Roxo" (Beira Baixa / com o Coro Polifónico Eborae Musica, as Adufeiras de Monsanto, o Coral Guadiana de Mértola, Cantares de Évora e alguns amigos do Ateneu Mourense). Os arranjos foram repartidos entre Pedro Pitta Groz, Pedro Fragoso, Vasco Pearce de Azevedo, António Prata e Carlos Barata.
Trabalho de assumido hibridismo musical, merece nele especial destaque o resultado obtido nos temas tradicionais da Beira Baixa, designadamente em "Cantiga das Casadas" (arranjo de Vasco Pearce de Azevedo) e "Cravo Roxo" (arranjo de António Prata), que por momentos fazem evocar passagens de "Lambarena", obra paradigmática no que respeita ao encontro entre música erudita e música étnica, no caso entre a de Bach e a africana.
URL: http://www.ocarina-music.pt/PT/Ronda.htm
http://dosquatrocaminhos.blogspot.com/
Sol, de Stockholm Lisboa Project
(CD, Nomis Musik, 2007)
«Aventura interessantíssima – se bem que resulte muito melhor na prática do que na teoria, e já vamos a essa questão –, o Stockholm Lisboa Project é essencialmente o projecto de um grupo de músicos amigos de dois países separados por milhares de quilómetros de distância: os portugueses Luís Peixoto (também dos Dazkarieh; em bandolim e bouzouki) e Sérgio Crisóstomo (ex-At-Tambur; em violino) e o sueco Simon Stalspets (em bandola e harmónica), aos quais se juntou numa fase posterior a fadista Liana. Do gosto comum em fazer música passou-se para a procura, não sistemática, de possíveis e eventuais pontos em comum entre a música portuguesa e a música sueca, de que são exemplos neste disco o original, mas com cheiro a corridinho algarvio, "Sol de Janeiro" com uma polska tradicional escandinava, ou exemplo ainda mais feliz, o "Fado do Ribatejo" com uma valsa, a "Hökpers Vals". Mas são "filhos" quase únicos desta tentativa de ligação entre músicas tão distantes. E nisso, a "teoria" falha. Mas, agora a parte boa: se ouvirmos o álbum sem pensarmos nesta questão formal, se o ouvirmos pelo simples prazer de ouvir música, e boa música!, o álbum resulta espantosamente bem, com os instrumentos - e as músicas que eles transportam, sejam lá de onde for - a encaixarem-se na perfeição e a voz de Liana (muito boa cantora!), quando aparece e seja em fados ou não, a coroar com distinção esta música viva e solarenga, mesmo que por vezes melancólica. A propósito: "sol" quer dizer o mesmo em português e em sueco.» (António Pires, in blogue Raízes e Antenas, 26.09.2007).
Com produção partilhada entre Stockholm Lisboa Project e Nomis Musik, "Sol" irradia música em dezasseis luminosas faixas: "Sol de Janeiro / Ombyggnan" (música de Luís Peixoto / tradicional – Suécia), "Mentiras" (letra e música tradicional – Portugal), "Polska efter Pål Karl / Gärdespolska" (música tradicional – Suécia / Simon Stålspets), "Naufrágio" (letra de Cecília Grillo / música de Alain Oulman), "Desgarrada / Toc Edits polska" (letra e música tradicional – Portugal / música tradicional – Suécia), "Nome de Rua" (letra de David Mourão-Ferreira / música de Alan Oulman), "Vindima" (letra e música tradicional – Portugal), "Amélia" (letra e música tradicional – Portugal), "Fado do Ribatejo" / Hökpers Vals (letra de José Galhardo e Lars Hökpers / música de Raul Ferrão), "Hortelã Mourisca" (letra de José Vicente Oliveira / música de Arlindo de Carvalho), "Rua do Capelão" (letra de Júlio Dantas / música de Frederico de Freitas), "Vira dos Noivos" (música tradicional – Portugal), "Linda Rosa" (letra e música tradicional – Portugal), "Griffenfeldts schottis" (música tradicional – Noruega), "Kurvhurven" (música de Simon Stålspets), "Antonios vals" (letra de Liana / música de Simon Stålspets).
URL: http://www.stockholmlisboa.com
http://www.myspace.com/stockholmlisboaproject
Não Sou Daqui, de Amélia Muge
(CD, Vachier & Associados, 2006)
Ao cabo de cinco anos sem discos, Amélia Muge apresenta-nos "Não Sou Daqui", novo álbum de originais e o primeiro de uma trilogia cujos capítulos seguintes "estarão ligados, respectivamente, à música de tradição europeia e às relações entre a música e a tecnologia". Gravado no início de 2006, o disco acabaria por ser lançado já em 2007, facto que se prende com os conhecidos problemas de edição, em Portugal, de música que se situa fora do 'mainstream' comercial. A este respeito, a cantora aproveita para dizer: «Uma pausa discográfica pode ter a ver com falta de trabalho. No meu caso não foi isso que aconteceu. Não preciso dizer mais nada. Editaria mais rápido se fizesse outro tipo de música. Posso deixar para trás "uma carreira" mas não estas canções e tudo o que nelas está e que é muito mais do que música. É com estes projectos que eu quero estar, mesmo que esta escolha me obrigue a estar tanto tempo sem editar.» (entrevista a Tiago Gonçalves, in BodySpace, 24.04.2007).
"Não Sou Daqui", segundo as palavras da própria Amélia Muge, «interroga a canção, como ideia, não como estilo ou género musical concreto. Desafia-a, como um possível "lugar de todos"». E pormenoriza: «Parti de uma ideia de canção quase estereotipada, uma coisa que liga texto e som, numa estrutura de estrofes, refrão, etc., para depois interrogar os espaços do texto, das passagens dos territórios do real aos espaços da mente e as próprias estruturas. Isso levou-me a reflectir sobre como surge a canção nos meus discos anteriores... No fundo, o que percebi ao fazer este trabalho é que a identidade das canções é como a identidade das pessoas. É uma permanente mudança entre o ser e o estar, entre aquilo que se exclui e aquilo que se apropria como fazendo parte dessa identidade.» (entrevista a Nuno Pacheco, in "Público": Suplemento "Y", 02.02.2007).
"Não Sou Daqui" é constituído inteiramente por composições de Amélia Muge para poemas seus e ainda de Hélia Correia, António Ramos Rosa, Sophia de Mello Breyner Andresen e Eugénio Lisboa. À pergunta "a escolha dos poemas foi natural?", a compositora responde: «Tão natural como a minha sede. E a deles (poemas), de se encontrarem comigo neste espaço. Os poetas não vêm por arrasto; têm temáticas recorrentes, e eu fiz questão de incluir no disco excertos de outros poemas ou textos destes poetas onde isto se percebe. No fundo, não sou eu quem escolhe os poemas que vão surgindo à volta da ideia central dos discos. Eu vou compondo sem pensar nos discos e vou alimentando uma espécie de arquivo de ideias-canção. Depois, são as ideias de percurso que as convocam. E com as canções os poemas. E com os poemas, os poetas.» (entrevista a Tiago Gonçalves, in BodySpace, 24.04.2007). A respeito de um desses poetas, António Ramos Rosa, representado no disco com dois poemas, Amélia Muge faz questão de afirmar: «Para mim tem sido uma leitura constante, de há muitos anos. Tem-me ajudado a compreender as questões do lugar, da identidade, da ausência de referências. E até a clarificar o que é a poesia. Porque a poesia ou me serve para ajudar a pensar ou ponho-a rapidamente de lado. E no Ramos Rosa, como aconteceu com o Grabato Dias e outros, além da arte do uso da palavra, há também a criação de um espaço simultaneamente artístico, científico e técnico. É uma hibridez que nos ajuda, sem que seja preciso tirar um curso de literatura para entrarmos nesse mundo.» E acrescenta: «A poesia continua a ser, para mim, um grande mistério. Sei dizer o que não é: não é ter rimas no fim das frases, não é ter imagens bonitas. É um lugar de lugares ou, se quisermos, um não-lugar cuja acessibilidade não compreendo bem. Para mim, um grande poeta tem várias coisas reunidas que permitem cantá-lo. Mas conjugar uma sonoridade com um poema ainda é uma coisa tão complicada quanto desafiadora.» (entrevista a Nuno Pacheco, in "Público": Suplemento "Y", 02.02.2007).
Além dos poemas, o libreto do disco inclui ainda um conjunto de desenhos e esboços caligráficos feitos pela própria compositora: «Todos os meus discos têm presente (de uma maneira menos evidente) a questão da importância da imagem no meu trabalho. Não tanto como componente de ilustração, mas também e, mais uma vez, como matéria de pensamento. Ajudam-me a perceber melhor por onde ando quer no campo das ideias quer no campo das interacções. Neste disco achei importante (e tive a oportunidade) de acentuar esse aspecto.» (entrevista a Tiago Gonçalves, in BodySpace, 24.04.2007).
Eis os treze temas que integram "Não Sou Daqui", todos com música de Amélia Muge: "Sete portas tenho em casa" (poema de Hélia Correia), "Arena (à volta da sala)" (poema de Amélia Muge), "Entre o deserto e o deserto" (poema de António Ramos Rosa), "Escutar Caetano" (poema de Amélia Muge), "Fadunchinho" (poema de Hélia Correia), "O que vê o meu olhar" (poema de Amélia Muge), "Na noite mais escura" (poema de António Ramos Rosa), "Não sou daqui, mas..." (poema de Amélia Muge), "O anjo" (poema de Sophia de Mello Breyner Andresen), "Parece Maio" (poema de Amélia Muge), "Quem vier que venha (saudação)" (poema de Amélia Muge), "Transparência" (poema de Eugénio Lisboa) e "Visões do entardecer" (poema de Amélia Muge).
Com direcção musical de António José Martins que também assina os arranjos, em parceria com Filipe Raposo (partes de piano, acordeão e trompa) e José Manuel David (tema "Visões do entardecer"), a gravação do disco contou com a participação de um vasto elenco de músicos: Amélia Muge (voz de sala, coros e viola braguesa), António José Martins (darbuka, triângulo, bombo, bendir, estalo, djembé, bilha, maraca, chiquitsi, voz de sala, amostrador e sintetizador), Carlos Mil-Homens (cajón), Catarina Anacleto (violoncelo), Cristina A. da Silva (lobulophone de orelha), Filipe Raposo (piano acústico, piano Rhodes e acordeão), José Manuel David (flautas transversal e de bisel, tarota, trompa, garrafas e voz de sala), José Peixoto (guitarra acústica) e Yuri Daniel (contrabaixo e baixo eléctrico). A mistura e masterização estiveram a cargo de António Pinheiro da Silva e António José Martins.
Em recensão crítica ao disco, assim dissertou Nuno Pacheco: «Dos cinco discos que Amélia Muge já gravou a solo, este é o único a preto e branco: capa, libreto, desenhos, poemas, tudo. Mas, tal como nos primeiros discos de José Mário Branco, o mistério que o preto e branco encerra desemboca aqui num arco-íris de cores. "Como uma pintura de sons/ e como se da tela saísse a voz", escreve e canta Amélia a propósito de Caetano Veloso [homenageando o cantor brasileiro e ao mesmo tempo "todos os que me deram a escutar a maravilha da palavra cantada em português de uma forma tão conseguida"], mas as palavras podiam aplicar-se à sua própria obra. Em particular a este disco, que surge como o primeiro de uma trilogia e que é, talvez, do ponto de vista conceptual, o mais ambicioso que até à data gravou. "Não Sou Daqui", ao interrogar a canção como "lugar de lugares", inclui canções belíssimas, ao nível das melhores (e não são poucas) que já escreveu: "Arena (à volta da sala)", por exemplo, ou "Entre o deserto e o deserto", "Na noite mais escura", "O anjo" e "Quem vier que venha (saudação), esta a lembrar "Dia em dia", do primordial "Múgica" (1992). Mas também, num degrau só ligeiramente inferior, "O que vê o meu olhar" (com ecos de Fausto), "Visões do entardecer" e "Transparência". Ou os temas, esses mais ritmados, onde ela mais aborda, por vezes com ironia, as transversalidades geográficas dos sons: "Não sou daqui, mas...", "Sete portas tenho em casa", "Escutar Caetano", "Fadunchinho" e "Parece Maio". Mas estas palavras soariam de outro modo se não fossem os músicos aqui reunidos, que assinam um trabalho de excelência. Ouçam-nos e verão. E ouçam, mais uma vez, essa "voz que canta com as secretas fontes do corpo", como a descreve António Ramos Rosa. Neste seu novo disco, Amélia mostra que é cada vez mais daqui. E de todo o lado.» (Nuno Pacheco, in "Público": Suplemento "Y", 02.02.2007).
Pela sua pertinência, transcreve-se também a crítica de André Gomes: «O primeiro disco da trilogia anunciada de Amélia Muge é tudo aquilo que o regresso da cantora, afastada destas andanças durante alguns anos, deveria ser: interrogante, desafiante, intenso. Amélia Muge não precisa de muito para fazê-lo e, no entanto, "Não Sou Daqui" é um disco em forma de volta ao mundo. É impressionante a forma como "Sete portas tenho em casa", logo a abrir, se passeia por entre territórios tão distintos, apresentando na perfeição aquilo que o disco apresenta: a exploração da canção como área de fronteira cultural. As movimentações são muitas nessa busca – criando um espaço abrangente e multicultural que confere especial riqueza ao disco. Abrem-se novas portas a cada instante. Num minuto é fado, a seguir é blues; chega a música tradicional portuguesa; um segundo depois é jazz – e, quando a música aponta o caminho, ama-se Caetano num Brasil disfarçado na portugalidade. Tudo isto se desenrola com uma coerência notável, claro está, com o cuidado de quem se documentou antes de partir para uma tarefa deste género – a canção analisada da perspectiva de quem lhe procura fronteiras ou hipóteses de as derrubar. Quando Amélia Muge timidamente esboça sorrisos fugidios em "Arena (à volta da sala)", sabe que a busca está no bom caminho. Em "Fadunchinho" explora-se a quietude da melancolia para logo depois de ensaiar uma curta mas intensa e apaixonante implosão – o factor surpresa ao serviço da criação musical em momento-chave do disco. "Não sou daqui, mas..." é equilíbrio impossível de impressões, doce declaração geográfica de uma cidadã do mundo.
Ambicioso mas realista, complexo mas acessível, "Não Sou Daqui" funciona bem mesmo sem se saber como soam os dois próximos capítulos da esperada trilogia, e abre o apetite – e de que maneira – para o que vem a seguir. Não é exagero dizê-lo: "Não Sou Daqui" é um dos discos portugueses mais prementes da década.» (André Gomes, in revista "Blitz Extra", Dez. 2007).
URL: http://www.vachier-producao.pt/
Vinho dos Amantes, de Janita Salomé
(CD, Janita Salomé/Som Livre, 2007)
Em Março de 2007, quatro anos após a edição do superlativo "Tão Pouco e Tanto", Janita Salomé publica "Vinho dos Amantes" (ed. Som Livre), um novo álbum de originais que concretiza uma ideia conceptual: celebrar o néctar dos deuses tendo como ponto de partida a grande poesia portuguesa e mundial. Janita explica esta sua opção temática: «A ode ao vinho tem sentido num país vinícola como Portugal, tendo nós o vinho com uma presença tão forte na nossa cultura. Não sou pioneiro, provavelmente outros músicos e outros compositores já o fizeram. Mas de outra maneira, porque as formas podem ser tão variadas como diversa é a poesia e a literatura sobre o vinho.» (entrevista a Marta Neves, in "Jornal de Notícias", 13.03.2007). «Encontrei muita e bela poesia dos mais diversos autores sobre a temática do vinho. Neste trabalho faço um percurso desde os tempos da Antiguidade Clássica até aos tempos actuais, do Anacreonte à Hélia Correia (amiga a quem pedi que escrevesse sobre o vinho), passando pelo Caminho Pessanha e pelo Charles Baudelaire, um mestre na experimentação das mais diversas drogas que fala destas e do vinho com a maior sabedoria que afinal de contas é o mais importante no que diz respeito ao vinho.» (entrevista a João Afonso, in revista "Epicur", Ago.-Set. 2007). E porquê o título "Vinho dos Amantes"? Janita responde: «O vinho e o amor foram sempre, durante os tempos, relacionados entre si, dizendo Jorge Sousa Braga numa colectânea que publicou na Assírio & Alvim, intitulada "O Vinho e as Rosas", que "vinho" é uma palavra que na sua origem mais remota deriva do sânscrito e quer dizer "amado". Portanto, há uma relação do vinho com o amor, sabendo-se também que mesmo na Antiguidade Clássica, Ovídio já dizia que o vinho predispõe a alma para o amor, isto se não tiver sido bebido em grandes quantidades, claro, porque o vento atiça a chama mas se for muito forte apaga-a!» (ibidem). Em "Vinho dos Amantes", "a embriaguez que se exalta é a da amizade, do amor e dos prazeres da vida, mas com conhecimento e inteligência".
Outra particularidade do disco é que o seu universo musical já não se confina aos ambientes alentejanos e arábico-andaluzes, a que o cantor nos havia habituado: «Afastei-me, um pouco, da matriz mediterrânea. Resolvi percorrer outros caminhos, fazer outras experimentações. Considero que é uma sonoridade mais explicitamente portuguesa. Por outro lado, procurei fazer melodias mais acessíveis, com uma estrutura de canção. Há algumas sonoridades que até a mim me surpreenderam, como o tema de abertura, "Maçãs de Zagora", com um ambiente de blues [arranjo de Mário Delgado]. Gosto imenso de blues e até considero que é do melhor que a América tem...». E acrescenta: «Experimentei também uma sonoridade pop, mas não rock, que está bem patente na parte final do último tema ["Caminho III"]. Foram muitos anos a ouvir os discos dos Pink Floyd.» (entrevista a Marta Neves, in "Jornal de Notícias", 13.03.2007).
Em "Vinho dos Amantes", além de um poema de sua autoria ("Escadinhas do Alto"), Janita canta a poesia de Carlos Mota de Oliveira ("Maçãs de Zagora"), do chinês Li Bai ("A Estrela do Vinho"), de Charles Baudelaire ("Embriagai-vos", "O Vinho dos Amantes"), Anacreonte ("Fragmentos"), Hélia Correia ("No Banquete", "Ode ao Vinho"), António Aleixo, Francisco Hélder Pimenta e populares anónimos ("Quadras"), José Jorge Letria ("O Mapa Errante") e Camilo Pessanha ("Caminho III"). Todas as composições são da autoria de Janita Salomé que também toca guitarra clássica e percussões. No elenco de instrumentistas contam-se o já citado Mário Delgado (guitarra de 12 cordas, guitarra eléctrica, kalimba), Ni Ferreirinhas (guitarra clássica), Ruben Alves (piano, acordeão), João Paulo Esteves da Silva (piano), Ricardo Dias (guitarra portuguesa), Fernando Abreu (guitarra clássica), Amadeu Magalhães (viola braguesa), Luís Cunha (violino), Daniel Salomé (clarinete), Yuri Daniel (contrabaixo, baixo eléctrico), Jacinto Santos (tuba), Vicki (bateria, percussões), Vitorino (acordeão) e músicos da Brigada Victor Jara (Ricardo J. Dias, José Tovim, Quiné). Carlos Mota de Oliveira, um dos poetas que Janita mais tem cantado, também colabora activamente no disco recitando o poema de Baudelaire "Embriagai-vos". Referência ainda às participações especiais de Jorge Palma, Rui Veloso e José Carvalho que ao lado de Vitorino e Janita Salomé formam o coro dos amantes do vinho, que canta "No Banquete".
Trata-se de um belo trabalho discográfico, mas infelizmente muito pouco divulgado na rádio, a qual sonega a nossa melhor música, aquela que se pode sorver como um bom vinho, e insiste em promover massivamente as zurrapas musicais, seja as vindas de fora seja as produzidas cá dentro. A este propósito diz-nos o próprio Janita: «Ouve-se muito mais a tendência anglo-americana, o pop-rock, ou então músicas cantadas em português, mas com essas mesmas raízes. Esta situação é profundamente injusta porque a música portuguesa tem qualidade e tem diversidade tal que lhe permite ser mais divulgada e dada a conhecer aos jovens.»
Ainda acerca do disco, vale a pena atentar na recensão de João Bonifácio: «Seria difícil a Janita Salomé igualar "Tão Pouco e Tanto", em que regressava ao universo que o obcecara entre 1983 e 1987 (ou seja, entre "A Cantar ao Sol" e "Olho de Fogo", respectivamente), quando uniu o Alentejo a Marrocos. Janita fica agora a dois palmos abaixo desse extraordinário disco, em parte pelo arrasamento emocional que "Tão Pouco e Tanto" carregava e que aqui não é tão necessário: "Vinho dos Amantes" dedica-se mesmo ao vinho, aos prazeres que lhe são inerentes, ao desbragamento, ao símbolo poético que acarreta, à ideia de liberdade, de paixão. E fá-lo com recurso às mais díspares construções musicais: um quase blues em "Maçãs de Zagora", a herança de Zeca no xilofone de "A Estrela do Vinho" (belíssima), uma sombra de fado na magnífica "Escadinhas do Alto". Não pensem sequer em desilusão: temas como "Embriagai-vos", coro ao alto e recitar por cima de um adorno de guitarra, soam novamente o milagre, tal como o simplicíssimo tema-título, apenas piano e voz. E ainda se viaja, em "Fragmentos", a uma espécie de folclore com inspiração americana, para já no fim Janita arrancar uma extraordinária canção, "Quadras", acordeão, voz de malandro e metais. Porque raio não é este homem um herói, ó país de surdos e cegos?» (João Bonifácio, in "Público": Suplemento "Ípsilon", 09.03.2007).
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Senhor Poeta: Um Tributo a José Afonso, de Frei Fado d'El Rei
(Livro/CD, Bartilotti Produções/Ovação, 2007)
Quatro anos decorridos sobre a edição do soberbo "Em Concerto" (Açor, 2003), e a pretexto dos vinte anos sobre a morte de José Afonso, o grupo Frei Fado d'El Rei publicam "Senhor Poeta: Um Tributo a José Afonso" (Bartilotti Produções/Ovação), um tributo ao autor de "Cantigas do Maio". Com produção dos próprios Frei Fado d'El Rei (Carla Lopes – voz e percussões; Cristina Bacelar – guitarra clássica, voz, coros e percussões; Ricardo V. Costa – guitarra clássica, coros e castanhola de cana; José Flávio Martins – baixo electro-acústico, bandola, coros e bombos tradicionais; Rui Tinoco – teclados, samplers e programações; Zagalo – percussões e coros), o disco inclui catorze temas, todos com música original de José Afonso: "Senhor Poeta" (poema de António Barahona e Manuel Alegre / arranjos e adaptação de Rui Tinoco), "Canção do Mar" (poema de José Afonso / arranjos e adaptação de Rui Tinoco), "Canto Moço" (poema de José Afonso / arranjos e adaptação de Zagalo e Ricardo V. Costa), "Verdes São os Campos" (poema de Luís de Camões / arranjos e adaptação de Rui Tinoco), "Senhor Arcanjo" (poema de José Afonso / arranjos e adaptação de Rui Tinoco), "A Morte Saiu à Rua" (poema de José Afonso / arranjos e adaptação de Frei Fado d'El Rei), "O Comboio Descendente" (poema de Fernando Pessoa / arranjos e adaptação de José Flávio Martins e Cristina Bacelar), "Era Um Redondo Vocábulo" (poema de José Afonso / arranjos e adaptação de Rui Tinoco), "Que Amor Não Me Engana" (poema de José Afonso / arranjos e adaptação de Frei Fado d'El Rei), "Rio Largo de Profundis" (poema de José Afonso / arranjos e adaptação de José Flávio Martins e Ricardo V. Costa), "Na Catedral de Lisboa" (poema de José Afonso / arranjos e adaptação de Rui Tinoco e José Flávio Martins), "As Sete Mulheres do Minho" (poema popular / arranjos e adaptação de Rui Tinoco e Cristina Bacelar), "De Não Saber o Que Me Espera" (poema de José Afonso / arranjos e adaptação de Rui Tinoco e Zagalo) e "Tu Gitana" (poema do Cancioneiro de Vila Viçosa / arranjos e adaptação de Rui Tinoco).
Os Frei Fado d'El Rei apresentam esta sua proposta discográfica nestes termos: «Se um poeta é aquele que escreve aquilo que pensa e sente, que tem um lado onírico envolvido numa enorme sensibilidade, José Afonso é esse poeta com toda a certeza. E é muito mais do que um Homem que se inclinou para as palavras... soube fazer música dessas palavras, soube transformá-las em canções, em espelhos de emoções que se deixam cantar facilmente. A sua simplicidade musical e poética converteu-se numa mensagem que passou e continuará a passar por muitas gerações. Contactámos com José Afonso, pela primeira vez, enquanto grupo em 1994, aquando da gravação da homenagem "Filhos da Madrugada". Desde então, germinou entre nós a vontade de, um dia, nos voltarmos a cruzar com ele. Chegou a hora.
Este disco representou um grande desafio para os Frei Fado d'El Rei. Respeitar a simplicidade da música de José Afonso, sem a descaracterizar, e simultaneamente honrar o seu carácter inovador, foi o objectivo a que nos propusemos. Afinal, essa fusão do tradicional com o contemporâneo que caracteriza a música de José Afonso é também a ambição dos Frei Fado d'El Rei...
A muitos Senhores Poetas José Afonso deu voz. Quanto a nós, é chega a oportunidade de retribuir, deixando com este trabalho o nosso tributo ao poeta e músico José Afonso.» (Frei Fado d'El Rei).
O ano de 2007 foi fértil em edições discográficas de homenagem a José Afonso. "Senhor Poeta" sendo uma delas – o que aliás é plenamente assumido pelo grupo – é mais do que isso. Longe de ser um conjunto de imitações do tipo "Chuva de Estrelas" (que até podem ser muito perfeitas mas soam a plástico) ou, no extremo oposto, de versões pretensamente inovadoras mas que, em boa verdade, nada acrescentam ao que está feito, a grande virtude deste registo reside no facto de ser dos Frei Fado d'El Rei, justamente um dos projectos mais peculiares e fascinantes do panorama musical português. Sem adulterar as melodias e as letras originais, o grupo faz neste disco um notável trabalho de reinvenção harmónica das canções de José Afonso, imprimindo-lhes novos matizes e devolvendo-no-las frescas e revigoradas, como se de música novinha em folha se tratasse. E isso é conseguido graças às interpretações vocais e, sobretudo, aos magníficos arranjos instrumentais com que os temas de José Afonso são "vestidos". "Senhor Poeta" é, sem sombra de dúvida, uma das mais felizes e cativantes abordagens que até hoje se fizeram ao repertório de Zeca Afonso e, nessa medida, o Prémio José Afonso se, acaso, lhe vier a ser atribuído assenta-lhe como uma luva.
URL: http://www.freifado.net/
http://freifado.blog.com
http://www.myspace.com/freifadodelrei
Abril, de Cristina Branco
(CD, EmArcy/Universal Music Classics France, 2007)
«A ideia de fazer um disco só com temas de José Afonso já existia na mente de Cristina Branco. Desde pequena que o ouvia e com ele se encantava, ainda na casa dos pais; e já tinha gravado "Pombas" e "Era Um Redondo Vocábulo". Mas quando Jorge Salavisa, o director do Teatro Municipal São Luiz, a convidou a fazer um espectáculo que ele pensou: "Perfeito". Escolheu vários temas e durante oito noites, em Fevereiro de 2007, encheu o Jardim de Inverno do teatro lisboeta. Em Abril foi para o estúdio (o de Mário Barreiros) e gravou 16 canções, deixando de parte algumas das que em palco cantara (como "Mulher da Erva", "Utopia", "Tu Gitana", "Lá no Xepangara"). Entre mil nomes possíveis, Cristina escolheu "Abril". "Porque as pessoas iam conotá-lo com aquele período mas também porque foi gravado em Abril, um tempo de renascimento, de renovação, e o propósito de fazer este disco passa por aí. Gosto da palavra, soa muito bem e tem ligações a José Afonso, com o momento em que a carreira dele se desenvolveu." Antes disso, porém, documentou-se. Ouviu, leu, estudou. "Fui comprando alguns discos que não existiam na colecção dos meus pais. Mas além disso acho que li tudo o que Zeca escreveu e a maior parte das coisas que foram escritas sobre ele naquela época. Tive esse cuidado, para perceber melhor como é que aquela pessoa funcionava, como é que ele se relacionava com os outros." Ficou com uma ideia mais clara dele. "Para além de ser hipocondríaco e muito distraído, era uma pessoa muito amada por todos. Quando estive no São Luiz, acho que conheci a maior parte dos grandes amigos do Zeca. E foi interessantíssimo, porque todos tinham histórias para me contar. Foi muito bonito...". Produzido por Ricardo J. Dias, da Brigada Victor Jara, (que já trabalhara com Cristina em "Ulisses"), "Abril" conta com os mesmos músicos que a acompanharam no espectáculo: além de Ricardo J. Dias (piano, Fender Rhodes), Mário Delgado (guitarras), Bernardo Moreira (contrabaixo) e Alexandre Frazão (bateria), todos com particular ligação ao jazz. Mas vieram mais dois: João Moreira (trompete) e Quiné (percussões). E, além deles, o Coro dos Antigos Orfeonistas da Universidade de Coimbra, cujas vozes dão uma curiosa solenidade ao "Coro da Primavera", quase a fechar o disco. Que começa com "Menino d'Oiro": "Tinha que ser o tema de abertura porque é o que rompe com o fado de Coimbra. E eu imaginei, logo de início, que só a partir dali é que para mim faria sentido fazer um álbum com José Afonso, para poder deixar uma época para trás." O resto deveria seguir uma lógica temporal, mas teve de obedecer a outros requisitos: "Tentei seguir uma ordem cronológica, pegando em todas as fases mais importantes do Zeca. Mas essa ordem não pôde ser seguida no disco, até porque as canções tinham que bater certo a nível rítmico e de tonalidades." Assim, "a melodia foi o fio condutor" num todo onde a cantora se assume como aprendiza: "Parto sempre do princípio que aprendemos qualquer coisa quando tocamos na genialidade de determinado autor e quando tentamos passá-lo para a nossa própria linguagem. Eu, pelo menos, tento aprender mais do que ensinar. E o José Afonso tem muito para dar, por essa via." Entre as canções gravadas está "Era Um Redondo Vocábulo", que ele considera "o melhor tema do Zeca": "Dá a sensação que ele estava de olhos fechados a escrevê-lo. Imagino sempre uma pessoa enclausurada, a claustrofobia que deve ser e a tentativa de escapar. Uma vez que fisicamente é impossível, ele escapou pela mente. É um poema quase místico, tão intenso e tão circular, onde as palavras evoluem de forma genial."» (Nuno Pacheco, in "Público": Suplemento "Ípsilon", 09.11.2007).
São estes os dezasseis temas que integram "Abril": "Menino d'Oiro", "Senhor Arcanjo", "Maio Maduro Maio", "Canto Moço", "Avenida de Angola", "No Comboio Descendente", "Ronda das Mafarricas", "Canção de Embalar", "Era Um Redondo Vocábulo", "A Morte Saiu à Rua", "Cantigas do Maio", "Venham Mais Cinco", "Carta a Miguel Djéjé", "Os Índios da Meia-Praia", "Coro da Primavera" e "Chamaram-me Cigano".
Em recensão crítica ao álbum, Nuno Pacheco pronuncia-se nestes termos: «Testou o repertório [de José Afonso] em oito noites no São Luiz e gravou-o com o mesmo naipe de músicos e um refinamento das canções, mantendo-lhes íntegra a identidade. Ela própria escrevera: "Não trazemos nada de novo, vimos apenas lembrar." Por isso, da sua arte de intérprete caldeada pelo fado e por incursões noutras áreas da música popular vislumbram-se aqui sobretudo apontamentos, derivas estilísticas que dão aos temas uma sensível frescura e um inegável encantamento. Os músicos, na sua maioria vindos da área do jazz, dão corpo e cor a bem conseguidos arranjos, embora por vezes o demonstrem em excesso ("No Comboio Descendente", "Ronda das Mafarricas", "A Morte Saiu à Rua"). Mas o resultado final é meritório, com momentos sublimes ("Menino d'Oiro", "Cantigas do Maio", "Avenida de Angola", "Canção de Embalar", "Era Um redondo Vocábulo") e um final surpreendente com o ritmado "Chamaram-me Cigano". Um tributo digno da herança.» (Nuno Pacheco, in "Público": Suplemento "Ípsilon", 09.11.2007).
URL: http://www.cristinabranco.com/
Ao Vivo: A Preto e Branco, de Vitorino
(CD, Magic Music/Som Livre, 2007)
"Resultado da gravação de espectáculos ao vivo no Teatro da Trindade em Lisboa, em Maio de 2007, este disco volta ao princípio. Mas como a História se repete, sempre de outra maneira, assim também o registo destas canções (algumas com trinta e tal anos) é interessante e diferente. Isto porque o tempo é outro, anda depressa, e também porque andando tanto ele ensina-nos muitas coisas surpreendentes. É pois uma visitação sentida a um tempo bom, sonhador e eterno das nossas vivências, retratado por um punhado de canções que resistem ao tempo e à saudade. Ainda pudemos escutá-lo com tranquilidade e prazer caseiro: dura mais e cala mais fundo". É com estas palavras que Vitorino apresenta o primeiro disco ao vivo do seu repertório. Primeiro porque, em boa verdade, as outras edições de gravações ao vivo em que participou eram colectivas: "Dia de Concerto" (1997), do Rio Grande, e "Utopia" (2004), em que canta com o seu irmão Janita Salomé as canções de José Afonso.
Vitorino que editou o seu primeiro disco, "Semear Salsa ao Reguinho", em 1975, faz em "Ao Vivo: A Preto e Branco" uma viagem pela sua discografia, entre os temas mais conhecidos e os quase esquecidos, incluindo também duas canções de José Afonso, num total de quinze belas faixas: "Senhora Maria" (Popular / Vitorino), "Cantiga do Marginal do Séc. XIX" (Vitorino), "Fado Alexandrino" (António Lobo Antunes / Vitorino), "Poema" (António José Forte / Vitorino), "Semear Salsa ao Reguinho" (Popular, adaptação de Vitorino), "Ana II" (António Lobo Antunes / Vitorino), "Meu Querido Corto Maltese" (Vitorino), "Adeus ó Serra da Lapa" (José Afonso), "Rouxinol Repenica o Cante" (Popular, adaptação de Vitorino), "Queda do Império" (Vitorino), "Leitaria Garrett" (Vitorino), "Marcha de Alcântara" (Vitorino), "Maria da Fonte" (Paulo Midosie / Marquês de Sintra), "Vou-me Embora, Vou Partir" (Popular, adaptação de Vitorino) e "A Morte Saiu à Rua" (José Afonso).
Com direcção artística do próprio Vitorino e de António Miguel Guimarães, o cantor fez-se acompanhar dos seguintes músicos: Sérgio Costa (teclados, piano e flauta), Daniel Salomé (saxofone soprano e clarinete), Carlos Salomé (guitarras, percussão e voz) e Rui Alves (percussão e voz).
Longe se ser uma vulgar compilação de temas gravados ao vivo de qualidade técnico-musical sofrível e com meros intuitos mercantilistas (como muitas vezes acontece neste tipo de edições), "Ao Vivo: A Preto e Branco" ficará muito provavelmente como um dos melhores registos discográficos da arte interpretativa de Vitorino Salomé. Vitorino que, diga-se a propósito, é indubitavelmente um dos nomes maiores da música portuguesa, mas nem mesmo esse estatuto tem impedido que a sua música tenha praticamente desaparecido das principais rádios nacionais (mesmo com a lei das quotas de música portuguesa).
Na recensão crítica ao disco, João Bonifácio aproveita para pôr o dedo na ferida: «Não é por acaso que neste "Ao Vivo: A Preto e Branco" (gravado no Teatro da Trindade em Maio passado, e em que se resumem mais de trinta anos de carreira) Vitorino canta "Poema" com letra do extraordinário poeta António José Forte. Forte escreveu um dia: "Hoje é um dia reservado ao veneno/ e às pequenas coisas/ teias de aranha filigranas de cólera" – e os versos podem bem aplicar-se à raiva que nos fica de cada vez que pensamos no desdém com que alguém como Vitorino é hoje em dia tratado: o que aqui temos é uma espantosa colecção de canções – que incluem a quase impossível de encontrar "Semear Salsa ao Reguinho" – em que se fundem as mais diversas tradições do que deu origem à música a que chamamos portuguesa. Pouco importa, na realidade, se é portuguesa ou não: de alguma forma, é chão do que somos; e se isso, se esse exercício antropológico, em si, não é argumento estético, a verdade é que Vitorino está aqui em perfeita forma, controladíssima voz. Os arranjos (piano, ocasional guitarra, percussões tradicionais, flauta aqui, saxofone acolá) nunca se tornam empecilhos, apenas desenham os limites entre os quais a voz de move. Marrocos em registo de câmara, a proximidade das Beiras, versões de Zeca, marchas, fados, cante, a terra, a puta da nossa terra naquela voz ao longo de um alinhamento irrepreensível, com uma "Senhora Maria" e uma estupenda "Cantiga Marginal do Séc. XIX" em estado de graça. Como argumento a favor de Vitorino devia bastar o seu vibrato em "Rouxinol Repenica o Cante", mas não vale a pena insistir a favor desta música: os que interessam sabem que não basta citar Douglas Sirk e Roth, sabem quão patético é fingir ser-se americano ou inglês, sabem que a cultura não serve de nada se não conhecermos o nosso chão, o melhor do nosso chão. Caso contrário, é-se apenas um tonto deslumbrado. Mas quem tiver a humildade de pôr em causa a sua identidade ou quem, pura e simplesmente, quiser ouvir boa música que não seja igual a 99 por cento do que diariamente nos impingem, pode sempre começar por aqui.» (João Bonifácio, in "Público": Suplemento "Ípsilon", 09.03.2007).
URL: http://www.pflores.com/vitorino/index.php
http://www.magicmusic.info/artistas.php?id=28
Você e Eu, de Teresa Salgueiro & Septeto de João Cristal
(CD, EMI, 2007)
Aproveitando o ano sabático do grupo Madredeus, Teresa Salgueiro gravou, em 2007, três discos: "Você e Eu", com o Septeto de João Cristal; "La Serena", com o Lusitânia Ensemble; e "Silence, Night & Dreams", com o compositor polaco Zbigniew Preisner. O mais bem conseguido de todos eles é precisamente "Você e Eu", o primeiro a surgir nesta prolífica safra da cantora e o seu segundo trabalho discográfico em nome próprio, seguindo-se a "Obrigado" (Capitol/EMI, 2005), um disco de duetos com José Carreras, Caetano Veloso, Maria João e Zeca Baleiro, entre outros. Acompanhada pelo Septeto de João Cristal (João Cristal – piano; Paulo da Filin – violão; Marcos Paiva – contrabaixo; Nailor Proveta – saxofone e clarinete; Eduardo Bello – violoncelo; Daniel de Paula – bateria; Maria Diniz e Adriane Drê – coros), Teresa Salgueiro canta, em "Você e Eu", 22 clássicos da música popular brasileira, passando pelo samba, o chorinho e a bossa nova: "Chovendo na Roseira" (António Carlos Jobim), "Na Baixa do Sapateiro" (Ary Barroso), "Marambaia" (Rubens Campos / Henricão), "Estrada do Sol" (Dolores Duncan / António Carlos Jobim), "Valsa de Uma Cidade" (Ismael Neto / António Maria), "O Samba da Minha Terra/Saudade da Bahia" (Dorival Caymmi), "Maracangalha" (Dorival Caymmi), "A Felicidade" (Vinicius de Moraes / António Carlos Jobim), "Risque" (Ary Barroso), "Lamento" (Pixinguinha), "Inútil Paisagem" (Aloysio de Oliveira / António Carlos Jobim), "Triste" (António Carlos Jobim), "Modinha" (Vinicius de Moraes / António Carlos Jobim), "P'ra Machucar Meu Coração" (Ary Barroso), "Insensatez" (Vinicius de Moraes / António Carlos Jobim), "Meditação" (Newton Mendonça / António Carlos Jobim), "Valsinha" (Vinicius de Moraes / Chico Buarque), "Samba do Orfeu" (António Maria / Luís Bonfá), "Só Tinha de Ser com Você" (Aloysio de Oliveira / António Carlos Jobim), "Se Todos Fossem Iguais a Você" (Vinicius de Moraes / António Carlos Jobim), "Você e Eu" (Vinicius de Moraes / Carlos Lyra) e "A Banda" (Chico Buarque).
"Você e Eu" foi apresentado ao vivo no espaço Golden Gross Jazz Club, em São Paulo, e a recepção do público foi tão calorosa e entusiástica, que a cantora se viu obrigada a aumentar o número de actuações previstas no Brasil. "Foi maravilhoso. Tinha curiosidade em ver qual seria a reacção do público brasileiro a uma cantora portuguesa cantando a sua música, e foi uma reacção extraordinária. No primeiro concerto a bilheteira já estava esgotava para todos os dias e acabaram por me convidar para tocar no fim-de-semana seguinte.", diz a cantora em entrevista a Mário Lopes (in "Público": Suplemento "Ípsilon", 23.03.2007).
A crítica brasileira também não se fez rogada em elogios a Teresa Salgueiro que, diga-se, já era uma voz muito acarinhada em Terras de Vera Cruz enquanto vocalista dos Madredeus. Essa circunstância pode ter ajudado ao êxito, mas não teria sido suficiente se as interpretações de Teresa Salgueiro, os arranjos de João Cristal e a execução dos músicos não formassem um conjunto acima da média, mesmo para os padrões brasileiros. Num país que detém um alfobre de cantores de primeira e, além disso, bastante cioso da sua música e dos seus artistas, a façanha alcançada por Teresa Salgueiro não é de somenos importância. É quase como conseguir vender azeite a um lagareiro. Na verdade, "Você e Eu" não é apenas uma viagem de uma cantora portuguesa ao fascinante mundo da canção brasileira: é uma obra em estado de graça e já uma referência do património discográfico da lusofonia. Apenas um senão, mas totalmente alheio à cantora e aos demais artistas: o CD não vem acompanhado das letras! Uma falha da editora, no caso a EMI Music. É desta maneira que se convence as pessoas de que é mais vantajoso comprar um disco do que fazer 'download' (ilegal) de música da internet?
Sobre o disco e de como surgiu a ideia de o gravar, diz-nos a própria Teresa Salgueiro: «Desde criança que gosto de ouvir o som da língua portuguesa na música brasileira e desde muito cedo admiro e sigo os seus intérpretes, autores e compositores. Desde muito cedo também, me aventuro a cantar algumas dessas canções, sobretudo em ocasiões informais, quando a alegria de um encontro entre amigos se cumpre cantando, visitando essa torrente de palavras, ritmos, melodias que a Música Popular Brasileira evoca, com uma liberdade, criatividade e poesia que parece não ter fim e sempre me conduz a momentos de vibrante felicidade. "Você e Eu" foi a primeira canção brasileira que cantei num palco. Durante uma das primeiras tournées do Madredeus no Brasil, convidávamos, em cada cidade que visitávamos, um percussionista que se juntava a nós e nos acompanhava na interpretação desse tema. Fiquei com uma memória muito feliz desses momentos e não hesitei em incluir esta canção no alinhamento do trabalho que agora apresentamos e em escolher o seu nome para anunciá-lo. "Você e Eu" simboliza aqui o encontro de uma cantora portuguesa com a música e os cantores brasileiros e a partilha, a comunicação através da música; mas acima de tudo, a consciência da nossa individualidade perante a individualidade do outro, a alegria do diálogo e a vontade de construção do encontro possível. Tudo começou em Janeiro de 2006. Faz agora exactamente um ano, chegava ao Brasil com a certeza de iniciar uma grande aventura. Aceitando o desafio que me fora lançado pelo produtor musical Roberto Bruzadin, o de gravar um disco de Música Brasileira, dirigi-me a São Paulo para conhecer o pianista e arranjador João Cristal, que ele sugeria como director musical do projecto. No nosso primeiro encontro, o João foi-me ouvindo cantar, para saber qual a direcção que poderia vir a ter o nosso trabalho. Fui lembrando as canções de que tanto gosto, visitando diferentes épocas e ritmos, passando pelo chorinho, o samba, o samba-canção, a bossa nova, guiada pela memória das melodias ou das palavras de autores como, entre tantos outros, Pixinguinha, Dorival Caymmi, Ary Barroso, Carlos Lyra, Tom Jobim, Vinicius de Moraes ou Chico Buarque. Melodias que sempre me cativaram pela sua beleza e sofisticação, palavras que me encantam pelo poder das suas imagens e pela forma de evocar com tanta simplicidade, sempre próxima da linguagem popular, a poesia da saudade e do amor. Ao fim de algumas horas, tínhamos seleccionado mais de vinte canções brasileiras, de autores das décadas de 30 a 70 e o João decidiu então começar a reunir uma pequena orquestra no seu estilo, no dia seguinte. Foi um grande prazer trabalhar em estúdio com o João Cristal e com todos os músicos. Eles guiaram-me ao interior do seu universo tão naturalmente musical, permitindo que eu o sentisse também como meu e fosse testemunha da extraordinária vitalidade e riqueza que é a experiência da música no Brasil.» (Teresa Salgueiro, 2007).
Em recensão crítica ao disco, escreve de Mário Lopes: «Dir-se-á que, tecnicamente, não é esta a estreia a solo de Teresa Salgueiro. Afinal já existe "Obrigado", a ela creditado. Esse álbum, compilação de duetos gravados ao longo de 15 anos, é porém mais um retrato da sua versatilidade enquanto cantora que um verdadeiro álbum a solo – um mosaico de vozes e sons, com Teresa Salgueiro como personagem central, com a sua voz como fio condutor de todo o percurso. "Você e Eu", inevitavelmente, é algo de diferente. Verdadeiramente álbum a solo, tem sabor a encontro, tem aparência de início de viagem. Teresa Salgueiro libertando o sotaque brasileiro no português que canta o samba e a bossa, Teresa Salgueiro viajando da Bahia ao Rio de Janeiro nas canções de Jobim, Ary Barroso, Vinicius de Moraes ou Dorival Caymmi – ora com a alegria festiva de uma Carmen Miranda com melhor voz (naturalmente), ora passeando com destreza pela MPB insuflada de jazz que Elis Regina transformou em marca pessoal. Gravado em São Paulo como Septeto de João Cristal, sobressai em "Você e Eu" uma luminosidade e uma graciosidade que faz com que este disco de versões do rico e muito versado cancioneiro brasileiro não seja apenas mais um. Contribui para isso a destreza da banda, que não se limita a acompanhar – prova disso, por exemplo, os momentos em que o excelente clarinete de Proveta não se coíbe de chamar a si o protagonismo num par de solos –, contribui para isso a forma como Teresa Salgueiro se entrega à interpretação de canções como "Na Baixa do Sapateiro" (onde sobressai a aura misteriosa da Bahia negra) e as clássicas "Felicidade" ou "A Banda", ou o modo como vemos entregar-se ao medley "O samba da minha terra / Saudade da Bahia" com uma alegria tão efusiva quanto elegante. Teresa salgueiro não está a interpretar estas canções, está nestas canções – e é isso que faz desta estreia a solo/início de nova viagem mais que simplesmente uma belíssima voz homenageando uma das músicas mais homenageadas do planeta.» (Mário Lopes, in "Público": Suplemento "Ípsilon", 23.03.2007).
URL: http://www.teresasalgueiro.net/
Viviane, de Viviane
(CD, Zona Música, 2007)
Finda a carreira dos Entre Aspas, grupo pelo qual se tornou conhecida, Viviane Parra iniciou a sua carreira a solo com o álbum "Amores Imperfeitos" (2005). E logo aí se revelou uma cantora a ser tomada a sério na cena musical portuguesa, pois em vez de continuar a trilhar a linha pop, leve e despretensiosa, dos Entre Aspas, Viviane apresentou um trabalho diferente e revelando uma postura estética mais exigente e de maior maturidade artística. E se isto era verdade para o surpreendente álbum de estreia, ainda o é mais para este trabalho discográfico que dá pelo título de "Viviane". Em formato acústico, o presente disco firma uma dialéctica enriquecedora entre as linguagens universais do fado, do tango – a guitarra portuguesa e o acordeão como notas dominantes – embalados por uma fragrância de "musette", inspirada nas suas memórias de adolescência passada França. «Este álbum é mais conciso, enquanto o primeiro apontava ainda para vários caminhos. "Amores Imperfeitos" foi importante para estabelecer um rumo, e foi o que aconteceu! Este segundo trabalho acaba por ser mais focalizado no fado, no tango, na música francesa. Não quer dizer que o meu primeiro álbum a solo já não apresentasse algumas destas características, mas a verdade é que o single escolhido ["A Vida Não Chega"] fugia a este universo e acabou por passar uma imagem pop. O fado é para ser sentido e para isso é preciso maturidade, tal como para o tango. São dois estilos que acabam por ser muito parecidos, no sentido em que fazem um apelo ao sentimento, à profundeza da alma e que dão muito gozo cantar. Têm algo de teatral e contêm uma mensagem que passa mesmo sem ser necessário perceber o que as letras dizem. É claro que o tango tem um tom mais irónico e sensual do que o fado, mas são dois universos que combinam muito bem. Depois há aqui também a música francesa, que esteve muito presente na minha infância e adolescência, o que resultou na junção de três grandes universos musicais. O desafio principal foi misturá-los, mas agradou-me o resultado final.» (entrevista a Filipe Antunes, in Barlavento Online, 25.05.2007). E embora sendo um álbum onde estão presentes sonoridades de origem não portuguesa, a língua usada como veículo expressivo é a de Camões, facto que deve ser realçado, ainda mais nos tempos que correm: «Juntei neste disco o tango, o fado e a "musette" francesa, mas tudo em português, sempre em português! Esta é a língua com que me identifico e tem sido uma opção minha. O português não é um bicho-de-sete-cabeças como alguns o pintam. Acho que é uma língua muito bela quando a conseguimos dominar.» (ibidem).
Prova dessa louvável opção é também a atenção especial que Viviane presta no disco à poesia portuguesa. «Há um escritor olhanense que está presente desde o início da minha carreira, que é o Fernando Cabrita. Gosto imenso da escrita dele, porque o universo em que vivemos acaba por ter as mesmas características. É o Algarve, são as imagens que nós temos da luz e do mar... Para este trabalho, fui também buscar escritores como a Fátima Murta ou o Vasco Graça Moura, de quem escolhi um poema do livro "Letras do Fado Vulgar". Também recorri aos poemas do Luís Duarte, um escritor de origem portuense que reside no Algarve. A Rosa Alice Branco, uma escritora com uma linha muito feminina e clara, marca igualmente presença neste álbum. Além de todos estes nomes, o Zeca Medeiros é, pela segunda vez, meu convidado. Além da composição, cabe-lhe a autoria de dois temas.» (ibidem).
O álbum contém onze faixas, com a seguinte sequência: "Só o Sol" (Viviane), "Meu Coração Abandonado" (Fernando Cabrita / Viviane), "Confidências da Minha Rua" (Fátima Murta / Viviane), "Vou por Ruas, Vou por Praças" (Vasco Graça Moura / Viviane), "Serenata à Chuva" (Rosa Alice Branco / Viviane), "Estes Dias Sem Ti" (Viviane), "Fado Sete-Estrelo" (José Medeiros), "Fado Nómada" (Luís Duarte / Viviane e Tó Viegas), "Nesta Viagem Breve" (Luís Duarte / Viviane e Tó Viegas), "Valsinha da Lanterna Mágica" (José Medeiros) e "Em Paris" (instrumental, Viviane).
A produção musical foi assegurada por Tó Viegas e pela própria Viviane, sendo a execução instrumental assinada por Viviane (flauta), Tó Viegas (guitarra portuguesa, guitarra acústica), Rui Freire (bateria), Yuri Daniel (contrabaixo), Luís Simões (baixo acústico), Paulo Borges (acordeão, piano), Celina da Piedade (acordeão), Nelson Conceição (acordeão), Raimundo Seixas (guitarra portuguesa) e Miguel Drago (guitarra portuguesa).
A propósito do disco, Maria Ramos Silva escreveu: «Perfeitos porque simples – os lugares e momentos onde a felicidade nos bateu à porta, leito da esperança, da nostalgia e da sede de viver mais. Viviane repesca-os no novo álbum de originais, homónimo, onde a guitarra portuguesa que alumia o fado encontra o fulgor do tango para contar em canto memórias da adolescência. A voz que já não vem "Entre Aspas", porque todos a conhecem, vai de Portugal à Argentina e mistura na bagagem a inconstância de uma fase aos solavancos. Os amores e desamores, os altos e baixos que ensinam a acarinhar a poesia dos pequenos nadas. De "Só o Sol" a "Serenata à Chuva", a alma não é pequena e encontra par para reproduzir o compasso. É assim a Primavera em flor.» (Maria Ramos Silva, in "Correio da Manhã": revista "Domingo", 15.04.2007).
URL: http://www.viviane.com.pt/disco.htm
http://www.myspace.com/vivianeparra
http://www.youtube.com/vivianeparra
Geografias, de Júlio Pereira
(CD, Edições Valentim de Carvalho/Som Livre, 2007)
Seguindo-se a "Faz-de-Conta" (2003), um disco para crianças, Júlio Pereira publica "Geografias", com chancela conjunta da Som Livre e das Edições Valentim de Carvalho. O álbum é apresentado numa luxuosa edição em 'digipack', sendo cada um dos temas ilustrados com pinturas de Salomé Nascimento propositadamente criadas para o disco. Com produção do próprio Júlio Pereira, "Geografias" é composto por onze temas, com a seguinte sequência: "Faro Luso" (dedicado a Carlos do Carmo), "Santa Moura" (dedicado a João Lucas), "Colares de Luz", "Areias de Sal", "Tábua de Romãs", "Castelo Ansião", "Porta do Oriente", "Alvor Bencanta", "Torre Formosa" "Tua Baía" e "Pisa Fronteira". No disco, Júlio Pereira toca bandolim, bouzouki e sintetizadores e conta ainda com a colaboração de Miguel Veras (viola acústica), Bernardo Couto (guitarra portuguesa), Miguel Peixoto (percussão), Sara Tavares, Marisa Pinto e Isabel Dias (vozes) e ainda de Quico Serrano (programação, mistura e masterização).
«Basicamente, o disco foi centrado no bandolim", diz Júlio Pereira. "Todos os temas são de facto provenientes da minha ligação a esse instrumento." Mas não fez como habitualmente: "Em quase todos os meus discos, como sou multi-instrumentista, acabei por tocar quase tudo. Agora, pela primeira vez na vida, toco acompanhado por outros. Na maioria dos temas, fui acompanhado pelo Miguel Veras, que toca violas. E isto é já um processo de composição diferente, porque eu nunca tinha composto à frente de ninguém." Ensaiaram os dois, horas a fio, e gravaram tudo. "O aparelho que me acompanhou foi o 'deck' de cassetes, que já não era ligado há anos." Mas não ficaram por aí: "Depois apareceu o Bernardo Couto, que toca guitarra portuguesa. Foi a primeira vez que um músico desta área [fado] disse que gostava de tocar comigo. Nunca houve um disco em que se ouvisse bandolim e guitarra juntos, de algum modo similares, de corda dupla, e foi preciso algum tempo para fazer um arranjo de modo a que os instrumentos casassem bem sem se atropelarem." E, como outros discos, também há vozes, em alguns temas. Desta vez, Sara Tavares, Marisa Pinto e Isabel Dias. "Sempre gostei da voz humana como instrumento. E nestes temas senti desde o princípio que tinham de ter uma voz. Elas são óptimas e rápidas a perceber o que se quer." Júlio Pereira toca também, no disco, um bouzouki irlandês. "Aparece em três temas. Uma vez passei por casa de um amigo, na Galiza, e achei tanta graça ao bouzouki que o pedi emprestado. Gosto dele, pego-lhe de vez em quando. O bouzouki, originalmente, é da Grécia. Quando é adoptado pelos irlandeses é como se fosse uma espécie de bandola, um bandolim maior. A afinação é a mesma."
Antes de gravar, não houve pesquisa nem de músicas nem de nomes. Os cruzamentos e as lembranças sonoras foram acontecendo naturalmente. "Faro Luso", por exemplo, tem "três andamentos": "Como se passasse pelo fado de Lisboa e pela chula do Minho e fosse acabar no corridinho do Algarve." "Santa Moura", por sua vez, "é muito palaciana no princípio e depois vai para o Sul e o Norte. Ouve-se uma mulher tipicamente árabe que é respondida por uma mulher do Alto Minho, com sotaque minhoto. Muita gente não sabe, mas houve colónias árabes no Minho." E em "Colares de Luz", o bandolim "passa por um ritmo precursor das mazurcas e das polcas, que é o das quadrilhas. No fundo são levadas pelos irlandeses para os States e encontram-se em variadíssimos sítios do mundo." Música europeia, africana mas também oriental. "Nunca tinha ido ao Oriente em nenhum disco, até agora. Escrevi um tema a que chamei 'Macau', agora chamado definitivamente 'Porta do Oriente', mas fui lá parar não sei porquê. É claro que estive no Oriente, em Macau, mas acabou por surgir naturalmente, como uma lembrança." O penúltimo tema do disco, "Pisa Fronteira", pisa mesmo uma fronteira: "Chamava-se 'Caravana' e é o primeiro tema, de todos os que fiz desde que sou músico, onde passo pelos States."» (Nuno Pacheco, in "Público": Suplemento "Ípsilon", 22.06.2007).
Em recensão crítica ao disco, assim disserta Nuno Pacheco: «O nome é um pretexto mas a música fez-lhe a vontade. Depois de discos dedicados a um só instrumento ("Cavaquinho", "Braguesa", "O Meu Bandolim") e outros à recriação de tradições populares ("Cadói", "Os Sete Instrumentos", "Miradouro" e, num certo sentido, "Rituais", mais dado a transversalidades), Júlio Pereira dá novo protagonismo às cordas reduzindo os holofotes das demais companhias (vozes, percussões, sintetizadores). Juntou bandolim e bouzouki celta, ambos tocados por ele, à viola acústica de Miguel Veras e à guitarra portuguesa de Bernardo Couto, e partiu sem rumo certo por entre fados e polkas, madrigais e mazurkas, viras e chulas, jigs e reel's celtas, sons de Áfricas e Orientes. Os nomes, do disco e das canções, selam essa errância num jogo de palavras nascidas de lugares, mas é difícil fixar-lhes fronteiras, talvez como excepções óbvias como "Porta do Oriente", que soa como parece. O resto são sons inquietos e mágicos, mais reflexivos ou dados à dança. "Na viagem, ser o mesmo e o outro. Estrangeiro em todos os lu(g)ares", escreve João Luís Oliva, como pista. Pode não ser nova, mas tem aqui o prazer da aventura.» (Nuno Pacheco, in "Público": Suplemento "Ípsilon", 22.06.2007).
URL: http://www.juliopereira.pt/
http://www.myspace.com/juliopereira
http://www.myspace.com/geografias
Mudar de Bina, de Norberto Lobo
(CD, Bor Land, 2007)
Uma das grandes revelações de 2007 chama-se Norberto Lobo, que nos apresenta um álbum exclusivamente composto por temas instrumentais tocados na sua guitarra clássica. Intitula-se "Mudar de Bina" (bina é um termo da gíria que significa bicicleta), paráfrase de "Mudar de Vida", tema de Carlos Paredes, um músico que Norberto muito admira, e a quem dedica o disco. No entanto, e ao contrário do que à primeira vista possa parecer, não estamos propriamente em face de uma colecção de versões de temas de Carlos Paredes em guitarra clássica, a exemplo do que fez Pedro Jóia ("Variações Sobre Carlos Paredes", 2001).
Citando Mário Lopes, «o que torna Norberto Lobo especial não é John Fahey [músico folk norte-americano], que tantos apontam como referência, não é apenas ouvirmos alguém que traduz em seis cordas esta ideia de "portugalidade" que se define pela nostalgia e que se explicaria, em imagem, pela luz difusa do crepúsculo que, reflectida pelo Tejo, cai sobre Lisboa. Norberto Lobo e as suas canções tradicionais recontextualizadas e enxertadas de novas linguagens, o seu fado que não é fado – é a ideia de fado -, o seu blues que é calçada portuguesa e fogo-fátuo de um Mississipi imaginado. Isto é o que torna Norberto Lobo especial: a sua música é um rio em que se descobrem continuamente novos afluentes.» (in "Público": Suplemento "Ípsilon", 02.11.2007). E a música tradicional portuguesa também marca presença no disco – "Cantiga da Ceifa" e "Ó Ribeira" –, mas tal aconteceu de uma forma perfeitamente natural, não forçada. "Talvez a guitarra solo me tenha permitido essa procura. Ir às raízes, às ideias que mais imediatamente me tocam e que não são intelectualizáveis. Talvez estivesse inconscientemente à procura de algo que me soubesse bem tocar e, nessa altura, acabei por ir buscar o cancioneiro tradicional português", explica o músico.
«"Mudar de Bina" é um disco especial. Pela forma como se impõe perante nós quando ouvimos nada mais que a a guitarra clássica, instrumento tão explorado. Pela forma como em cada tema leva diferentes linguagens a coexistirem em harmonia – "Lottumstr" é Paredes a bailar na pradaria americana; "Festa da Fim da Folque" são fantasmas da bossa nova dançando no nevoeiro. A segurança, a mestria, a naturalidade com que consegue estas sínteses, a forma como a música é lúdica e festiva, mas dona de uma solene majestade, impressiona. Ouvindo "Mudar de Bina" imaginamo-lo como resultado de uma longa depuração de uma linguagem. Filho de um são-tomense e de uma portuguesa, Norberto Lobo cresceu num caleidoscópio que incluía a música brasileira e africana que o pai adora e a discoteca caseira do irmão mais velho, Manuel Lobo – colecção recheada de heróis sagrados e cultos subterrâneos do rock e do jazz. A "escola" teve os seus efeitos. No recreio da primária ouvia Leonard Cohen em "repeat". Anos depois, animava serões com um conhecimento enciclopédico de música brasileira. Música tradicional portuguesa? Nada de procura obsessiva: "Quando era puto passava o Verão em acampamentos e as primeiras músicas que aprendi foram músicas tradicionais portuguesas. Essas e o "Losing My Religion", dos R.E.M." O resto? O resto é Lisboa, cidade em viagem, e a viagem ela mesma. Guitarra às costas que o mundo está à espera. Na Grécia cruzou-se com um tocador de bouzouki e acabou a partilhar o palco da rua e palcos, mesmo palcos. Mais recentemente começou uma digressão pelos EUA tocando com a "folkie" Larkie Grimm e, quando deu por ele, estava no Canadá a abrir para Lassa. Há dois anos, um amigo apresentou-o a Devendra Banhart e a empatia traduziu-se na sua participação nos concertos do bardo psicadélico no Sudoeste e, mais tarde, na Aula Magna. Tem alma de saltimbanco. Quer tocar não interessa onde, quer viajar e o destino será sempre aliciante. Nos concertos ouvimos alguém que aborda Carlos Paredes com todo o carinho e seriedade do mundo: "Tomou um caminho tão particular que não deixou escola. Ou melhor deixou-a mas não no sentido habitual. A sua escola persiste em toda a gente que, como eu, adora a sua música. Toda a música popular urbana, como gostava de lhe chamar, está infectada por ele de maneira muito forte. É nesse sentido que deixou escola." Para capa de "Mudar de Bina", que é autodidacta na guitarra e tem formação de ilustrador, escolheu um quadro de João Abel Manta. Amigo da neta do artista, conhecia desde sempre de uma parede da casa dela. Poderá não ter sido intencional, mas o quadro é exemplar na forma como nele se reflecte a música de Norberto Lobo. Vêem-se indianos, europeus e africanos, vê-se selva e mar, vê-se progresso nos aviões e nos arranha-céus e pedaços de um mundo mágico anterior a tudo isso. Norberto Lobo pegou em todo o mundo que viu e ouviu e, filtrado pela luz que desce sobre as seis colinas que a Graça revela, fez dessa imagem um álbum. Chama-se "Mudar de Bina" e é magnífico.» (Mário Lopes, in "Público": Suplemento "Ípsilon", 02.11.2007).
Produzido por Rodrigo Cardoso, "Mudar de Bina" contém dez temas: "Morte da Bezerra", "Mudar de Bina", "Lottumstr", "Cantiga da Ceifa", "Ó Ribeira", "Fonte Santa", "Jogo do Bicho", "Mudar de Vida", "Festa do Fim da Folque" e "Laura".
Em recensão crítica ao disco, assim dissertou Pedro Rios: «O primeiro disco de Norberto Lobo, guitarrista com apenas 25 anos, é um dos episódios mais interessantes a acontecer nos últimos tempos em Portugal no que à guitarra solo diz respeito. "Mudar de Bina" é particularmente importante pela capacidade de cruzamento de abordagens (e públicos), vertidas numa voz única, mas com influências bem identificadas: Carlos Paredes (a quem dedica o disco) e o "fingerpicking" de John Fahey e restante escola Takoma, recentemente alvo de revisão por parte de gente como Jack Rose, Glenn Jones e James Blackshaw – se o mundo da música independente não fosse tão anglo-saxónico, seria muito provável que Lobo se juntasse a este valioso lote de músicos. "Mudar de Bina", "gravado em casa, na rua e no estúdio", é um disco maior, tocado quase inteiramente à guitarra acústica. Lobo cruza a tradição portuguesa (o tema popular "Cantiga da Ceifa", por exemplo, é revisto à luz de Fahey) e a profundidade de Paredes (a versão de "Mudar de Vida" é o ponto alto do disco) com os ziguezagues da folk instrumental. No eixo Takoma, destaque para "Jogo do Bicho", a transpirar América, e as múltiplas frases de guitarra que Lobo justapõe em "Laura", com direito a gravações de sinos e de pavões que habitam o Palácio de Cristal, no Porto. Norberto Lobo rejeita o título de "virtuoso", mas é admirável a forma como une diferentes formas de música popular (músicas folk, no fim de contas). O curioso aportuguesamento no título do tema "Festa do fim da folque" representa bem a pessoalíssima visão da folk de Norberto Lobo.» (Pedro Rios, in "Público": Suplemento "Ípsilon", 26.10.2007).
URL: http://www.norbertolobo.com/
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À Espera de Armandinho, de Pedro Jóia
(CD, HM Música, 2007)
Animado pela grata experiência que foi o álbum "Variações sobre Carlos Paredes" (BMG, 2001), Pedro Jóia decidiu abordar, com a sua guitarra clássica, a obra de outro grande vulto da guitarra portuguesa, de seu nome Armando Augusto Freire (1891-1946), mais conhecido como Armandinho. O disco chama-se "À Espera de Armandinho" e tem a chancela da HM Música (etiqueta do fadista Hélder Moutinho), sendo que o trabalho de investigação e gravação teve o alto patrocínio da Sociedade Portuguesa de Autores (SPA), sob a direcção de Manuel Freire.
São doze as músicas que compõem o álbum: "Ciganita", "Variações em Lá menor", "Meditando", "Variações em Lá menor II", "Fado Armandinho", "Fado Magioli", "Fado Conde de Anadia", "Variações em Mi menor", "Variações em Ré maior", "Fado em Mi menor", "Maldito Fado" (música original de Pedro Jóia) e "Pinóia de Alfama".
Para Pedro Jóia, tocador de guitarra clássica e com um início de carreira próximo do flamenco [de que são bons testemunhos os álbuns "Guadiano" (1996) e "Sueste" (1999)], Armandinho "era uma referência um pouco longínqua". "Conhecia era alguns guitarristas de Lisboa que me tinham falado dele", confessa o músico, em entrevista concedida a Nuno Pacheco (in "Público": Suplemento "Ípsilon", 28.09.2007). Até que o seu amigo e letrista Tiago Torres da Silva lhe fez chegar às mãos uns discos da His Mater's Voice, com gravações do próprio Armandinho, realizadas no Teatro de São Luiz em 1928/29. "Mergulhei de cabeça. Tirei um tema, por experiência, fiquei contente com o resultado e a partir daí fiz uma selecção dos temas mais guitarrísticos. O principal desafio, para mim, era conseguir dentro do possível captar a ornamentação que o Armandinho dava, os trinadinhos, aquelas notinhas enroladas que ele conseguia dar através de diversos tipos de trémulo. Porque um trémulo convencional de guitarra clássica não resolve essa questão. Tive que experimentar muita coisa." (ibidem). E depois havia ainda que dar conta da viola do acompanhador de Armandinho, Georgino de Sousa. "Trata-se, no fundo, de condensar dois instrumentos num só, apesar de nunca ser a mesma coisa: a viola de Georgino de Sousa, ritmada, staccato, harmónica, com a melodia muito fluente e levezinho do Armandinho, nunca coincidindo verticalmente." (ibidem). Na gravação do disco, Pedro Jóia usou uma nova guitarra especialmente concebida para ele por Óscar Cardozo. É o próprio guitarreiro quem conta: "Misturei no mesmo instrumento traços da guitarra portuguesa, da guitarra clássica e do alaúde. O som que ele iria produzir só poderia ter o timbre dos vários instrumentos. Acabada a obra e quando lhe tirei o som, percebi imediatamente que a guitarra tinha a personalidade do Pedro Jóia. [...] Ficou apaixonado e decidiu gravar o disco com a nova guitarra. O resultado está à vista." (entrevista a Alexandra Carita, in "Expresso": Suplemento "Actual", 27.10.2007)
O trabalho era, à partida, hercúleo mas Pedro Jóia não só soube dar conta do recado, como o fez de forma brilhante e sublime. Obra fabulosa e cativante, "À Espera de Armandinho" é a demonstração perfeita do virtuosismo de um exímio instrumentista ao serviço da expressividade encantatória que é timbre da grande música. Como diz Tiago Torres da Silva, no folheto que acompanha o disco, «Pedro Jóia apresenta-nos aqui um trabalho de ourivesaria raro e muito belo. Um trabalho em que humildemente se afirma como um artesão do seu ofício. Destacando-se aqui o harpejo da guitarra, mais à frente a batida da viola, da extraordinária viola de Georgino de Sousa e, sintetizando no seu instrumento o trabalho do guitarra e do viola. É admirável. Absolutamente admirável. Tão admirável que parece mentira que tudo o que está tocado neste disco seja tocado em simultâneo. Há apenas um guitarrista e a sua guitarra. E isso é já tanto!»
Cita-se também, com a devida vénia ao autor, um belo texto do musicólogo Rui Vieira Nery que, antes de fazer o justo enaltecimento do soberbo trabalho de Pedro Jóia, nos caracteriza a arte (já temporalmente distante) de Armandinho: «Como se pode tocar Astor Piazzolla noutro instrumento que não seja o bandoneón? Poderá o piano alguma vez substituir a viola de Flamenco na música de Paco de Lucia? Será que os solos imponentes de Benny Goodman soariam tão convincentes se fossem transpostos do clarinete para o violino, ou para o saxofone tenor? É tentador considerar que certos músicos são, efectivamente, inseparáveis do instrumento específico que transformaram no veículo constante e ideal da sua arte. E se isso é verdade, então Armando Augusto Freire (1891-1946) pareceria corresponder inteiramente a esta definição: poderão as composições de Armandinho sobreviver num ambiente sonoro que não seja o da guitarra portuguesa, para a qual foram sempre magistralmente concebidas?
Armandinho não sabia ler ou escrever notação musical, e por isso compunha sempre à guitarra, inteiramente de ouvido, frase a frase, período a período, como se estivesse a arrancar ideias musicais do próprio coração do instrumento, umas atrás das outras, e a organizá-las em longos encadeamentos expressivos, sem grande preocupação com qualquer regra formal académica. Meu pai, Raul Nery, que como um jovem guitarrista de dezoito anos tocava a seu lado na popular casa de fado "O Retiro da Severa", no final dos anos 1930, servia por vezes de auxiliar de memória ao mestre mais velho: quando ainda era cedo para a chegada dos primeiros clientes, Armando pedia-lhe que lhe tocasse os fragmentos melódicos que ele próprio criara numa sessão anterior e que Nery memorizara, e a partir daí continuava a improvisar novas ideias musicais que seriam depois encadeadas no material pré-existente até se completar pouco a pouco, deste modo, um novo fado ou uma variação.
Amava com paixão a guitarra portuguesa e tinha uma clara premonição do que considerava ser o potencial absoluto, ainda por realizar, do instrumento. Trabalhou, pois, longamente e de muito perto com o guitarreiro João Pedro Grácio Jr., a quem pedia sempre novos avanços na construção técnica, no desenho e na escolha dos materiais. No final dos anos 30, o resultado desta pesquisa era já um novo arquétipo da guitarra de Lisboa, maior e mais sonora do que as suas antecessoras oitocentistas mas também bastante distinta do modelo que resultara, mais ou menos ao mesmo tempo, de uma colaboração semelhante entre Grácio e o equivalente coimbrão de Armandinho, Artur Paredes. Longe de qualquer rivalidade, existia entre os dois grandes artistas um sentimento sincero de admiração mutual, e sabe-se que Paredes terá prestado a Armando Freire uma belíssima homenagem póstuma: "Era uma renda tudo o que este homem tocava".
Tinha um especial talento para a inspiração melódica generosa, tanto quando compunha para o seu instrumento como quando escrevia para a voz, e ornamentava livremente as suas melodias com trémulos e mordentes graciosos e improvisados, por vezes ligeiramente evocativos da técnica do bandolim, instrumento que tocara em criança antes de dedicar à guitarra portuguesa. Além disso definiu um número limitado de fórmulas melódicas de transição que inseria na forma sistemática entre as frases da melodia principal, preenchendo assim todos os momentos de silêncio com um constante impulso rítmico. Embora tenha tocado com vários acompanhadores, tinha um especial entendimento com Georgino de Sousa, que sabia exactamente como lhe podia dar o suporte mais eficaz na viola.
Por tudo isto, Pedro Jóia enfrentava no presente projecto um desafio de extrema dificuldade, ao decidir transpor para o seu instrumento, a viola de Flamenco, a música eminentemente guitarrística de Armandinho. Era indispensável deixar bem claro para o ouvinte, logo desde o início, que se tratava, com efeito, de um instrumento distinto, a utilizar todos os seus recursos próprios, mas a clareza de articulação, a delicadeza do desenho melódico, a poderosa energia rítmica, o uso característico do rubato – todos eles tão típicos do estilo de execução de Armandinho – teriam de ser preservados a todo o custo, se se pretendia respeitar e pôr em evidência o encanto essencial desta música. Pedro Jóia, contudo, já se tinha debatido com um desafio semelhante ao abordar a música de outro grande virtuoso e compositor da guitarra portuguesa, Carlos Paredes, e tinha conseguido ultrapassar todos esses obstáculos com enorme sucesso. Agora volta a consegui-lo: as melodias de Armando Freire chegam-nos com um lirismo, uma beleza de timbre e uma fluência no fraseado musical que são profundamente comoventes – e isto muito em particular pelo respeito apaixonado pela letra e pelo espírito dos originais que se pressente na abordagem do jovem músico, bem como pela simplicidade e transparência extremas destas novas versões estritamente solísticas, em que um único executante assegura tanto a melodia como o acompanhamento, e tanto a cantilena principal como as ligações ornamentais características entre as frases melódicas.
Passado e presente, tradição e inovação, com um olhar como o de Janus capaz de olhar para trás e para diante, a par com um espantoso investimento emocional, combinam-se assim neste projecto para produzir um álbum muito belo, cheio de encanto, intimismo e generosidade.» (Rui Vieira Nery, 2007).
URL: http://www.pedrojoia.com/
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Nas Veias de Uma Guitarra: Tributo a Fernando Alvim, de Ricardo Parreira
(CD, HM Música, 2007)
«Ricardo Parreira, vinte anos, o mais novo de uma linhagem de guitarristas (é filho de António Parreira e irmão de Paulo Parreira), cresceu fascinado por Carlos Paredes. E atento à sonoridade do homem que tocou com ele durante 25 anos e participou em todos os seus discos, acompanhando-o à viola: Fernando Alvim. Em 2003, estava Ricardo no Conservatório, Alvim apareceu por lá, para tocar com os alunos. Conheceram-se. Mais tarde, em Agosto de 2005, surgiu a oportunidade de tocarem juntos numa sessão de guitarradas que antecedeu um concerto de Camané na Casa da Música, no Porto. Hélder Moutinho, também fadista e produtor do espectáculo, fez a sugestão a Pedro Burmester que achou que achou a ideia "genial". Ricardo, por sua vez, achou "bestial". E Fernando, hoje com 72 anos, sentiu-se "muito honrado com a proposta" e aceitou. "Deu-me muito incentivo tirar os acompanhamentos que fiz há tantos anos, coisas que já não tocava há muito tempo. Além disso, fazê-lo com alguém da nova geração dá-me uma sensação de regresso ao passado. E o Ricardo tem muito talento, consegue ter garra a tocar as coisas". Depois do concerto, a 12 de Agosto, Fernando convidou Ricardo a ir lá a casa quando quisesse. "Escolhíamos os temas e ele ia-me dando opiniões sobre como devia tocar as peças", diz o jovem guitarrista. O disco, "Nas Veias de Uma Guitarra", foi o passo seguinte. Levou dois anos a preparar e quatro tardes a gravar. Escolheram um repertório misto, parte de Coimbra (Artur Paredes, Carlos Paredes), parte de Lisboa (Armandinho, José Nunes, Francisco Carvalhinho). Fernando Alvim incluiu também um tema de sua autoria, "Encantamento". "Dediquei-o, há muitos anos a uma amiga minha, a Maria do Rosário, que hoje é a minha companheira. Como ela também toca guitarra clássica, achei interessante que ela também entrasse no disco. O arranjo foi feito pelos dois, ela toca a primeira guitarra [viola] e eu toco o acompanhamento."
Para Ricardo, "foi um sonho realizado: tocar com o músico que tocou com o meu compositor preferido e que também compôs com ele." Para Fernando Alvim, foi uma espécie de renascimento. Ele, que nunca deixou de tocar, sentiu um grande prazer em voltar a um reportório que muito o marcou e onde ele deixou também a sua marca. "Procurei imprimir aos acompanhamentos que fazia algumas harmonias que, para a época, achei que eram um bocadinho avançadas. Com o Carlos Paredes, por exemplo." Isto porque Alvim era também, e ainda é, um ouvinte atento e interessado de jazz e de música clássica. "Desde sempre fui um grande admirador de jazz e aquelas harmonias entraram-me muito na cabeça." O facto de ser acompanhador e não solista deve-se a gostar "muito da parte harmónica, dos acordes. Sempre tive uma grande admiração por aquele guitarrista do Count Basie, o Freddie Green. Fascinava-me." Fernando Alvim que trabalhou na Petrogal, de 1961 a 1985, participou em mais de meia centena de discos, uns em nome próprio (do Conjunto de Guitarras de Fernando Alvim), em todos os de Carlos Paredes [nos últimos, a meias com Luísa Amaro] e em gravações de nomes tão diversos como o Duo Ouro Negro, Teresa Paula de Brito, João Maria Tudella, Manuel Freire, Carlos do Carmo, Pedro Caldeira Cabral, Francisco Fanhais, Mísia ou os Sitiados. Com Amália, gravou "Formiga Bossa Nova", de O'Neill e Oulman, "porque na altura os violas de fado não sabiam acompanhar bossa nova" e ele não só sabia, porque aprendera, como gostava muito. Nos dois primeiros EP de Carlos Paredes (1962 e 1963), o nome de Fernando Alvim aparecia com destaque na capa. "Naquela altura eu era quase tão conhecido como o Carlos Paredes porque tocava na Emissora Nacional, no programa 'Nova Onda' e em programas de fados e guitarradas." Mas não é hábito dar-se destaque aos violistas, como reconhece Ricardo Parreira: "Fiz uma homenagem a um violista e ainda não tinha sido feita nenhuma. São eles que nos aturam, fazem tudo por nós mas não são devidamente valorizados." Alvim aprecia o gesto, lamentando que nestes anos se tenham esquecido "milhentos óptimos acompanhadores, como o Martinho da Assunção ou o Paquito."» (Nuno Pacheco, in "Público": Suplemento "Ípsilon", 28.09.2007).
Dos doze temas do álbum, seis foram extraídos do repertório de Carlos Paredes: "Canto do Rio / Acção", "Dança da Aldeia", "Valsa Palaciana", "Serenata", "Divertimento" e "Canção de Alcipe", este sobre música original de Afonso Correia Leite. Os restantes quatro são de Artur Paredes ("Variações em Lá Menor"), Armandinho ("Meditando"), José Nunes ("Variações em Lá Menor", "Variações em Mi Maior"), Francisco Carvalhinho ("Variações no Mouraria") e Fernando Alvim ("Encantamento").
"Nas Veias de Uma Guitarra": um belíssimo disco de música portuguesa e a extraordinária revelação de um virtuoso (apesar de muito jovem) executante da guitarra portuguesa.
Em recensão crítica ao CD, Nuno Pacheco escreve: «Ouvindo os originais a par das recriações, fica a prova de que Ricardo quis respeitar os autores mas não copiá-los; pelo seu fraseado procura distinguir-se por uma austera delicadeza e até recolhimento, o que não lhe tira mérito ou brilho (isso é claro, por exemplo, ao comparar-se a "Serenata" de Paredes, efusiva e arrepiante, com a que Ricardo recriou. Já Alvim, na segura malha de graves que ao lado da guitarra se escuta, mantém na viola a linguagem brilhante que sempre o caracterizou. Tributo a Alvim, este disco é também a estreia de um promissor guitarrista e a prova de que a arte pode aproximar gerações.» (ibidem).
URL: http://www.hmmusica.com/artistas.htm#ricparrf
http://www.myspace.com/ricardoparreira
A Música e a Guitarra: Clube de Fado, de Mário Pacheco
(CD/DVD, World Connection, 2006)
«Na primeira noite, houve nervos e vento. Na segunda, deu-se uma espécie de milagre. Não só tudo correu bem, entre músicos e cantores, como ficou integralmente gravado, em vídeo e áudio. Mário Pacheco, guitarrista e compositor, imerso desde a infância no fado lisboeta (o seu pai António era aquele guitarrista a quem Hermínia Silva dizia "Anda Pacheco!", recorda as noites de 19 e 21 de Junho de 2005, nos Jardins do Palácio de Queluz, como um momento mágico. Convidado pelo Festival A Rota dos Monumentos a fazer um espectáculo dedicado à guitarra, baseou-se nas suas próprias composições. "Nunca tinha feito um espectáculo com aquela duração, duas horas, e tantos instrumentos pelo meio", diz. Mas aceitou o desafio e convidou músicos e fadistas seus amigos. A fita registada pela Duvídeo a pedido dele, ficou a aguardar a oportunidade certa. Chegou uma noite, em casa de Marisa, uma das fadistas para quem Mário Pacheco compõe (a sua carreira regista outros: Amália, Mísia, Nuno da Câmara Pereira, Paulo Bragança, Ana Sofia Varela ou Joana Amendoeira). "O Albert Nijmolen, da etiqueta World Connection, para onde grava a Mariza, estava em casa dela e ela mostrou-lhe a gravação. 'Olha queres ver aqui um espectáculo do Mário?' No final, ele pediu uma cópia e levou-a. Passadas duas semanas, telefonou e disse-me: eu quero isto". Mas, em lugar de ser editado apenas em DVD, o projecto passou a integrar um CD e um DVD, em 'digipack' duplo, o primeiro com 17 temas e o segundo com 23, ou seja, o espectáculo integral. Neste caso, o bónus (DVD) é maior do que o disco: quase duas horas contra 70 minutos. Foi este disco, "A Música e a Guitarra", que a revista britânica "Songlines" elegeu como um dos dez melhores álbuns de "world music" recém-editados.
Nascido em Lisboa, a 9 de Abril de 1953, Mário Pacheco começou a tocar viola aos 15 anos, quando andava no liceu: "Toquei viola até há dezoito anos [1989]. Tive a oportunidade de tocar com muitos bons fadistas. Do Marceneiro à Hermínia, acho que não houve nenhum que eu não tivesse conhecido. O primeiro instrumental que compus, que neste disco tem o nome de "Voando no meu tapete", chamava-se "Uma guitarra e uma viola" e foi gravado pela primeira vez, não comigo a tocar guitarra mas sim viola, num disco do Paulo de Carvalho, "Desculpem Qualquer Coisinha [1985]". Mas houve uma altura em que a guitarra falou mais alto. "Disse: acabou-se a viola. Mandei fazer uma guitarra ao Gilberto Grácio, para mim, e decidi aproximar-me da técnica do Carlos Paredes. Não consigo ter o talento dele, aliás só toquei os instrumentais dele como exercício, para mim, mas nos contactos que tivemos ele incentivou-me a continuar. Depois abordei o fado na forma do Fontes Rocha." Editou o primeiro disco como guitarrista, em 1992, "Um Outro Olhar", que teve sequência em "Guitarras do Fado", "Cantar Amália" e "Guitarra Portuguesa". [...] Voltando ao novo disco: o subtítulo, "Clube de Fado", não tencionava colar-se à casa de fados de que é proprietário em Alfama (onde decorreu a conversa) mas sim dar voz a uma ideia: "Clube, para mim, é um local onde pessoas que partilham os mesmos gostos se reúnem. E o disco tem o mesmo espírito desta casa. Os músicos que convidei, o Carlos Manuel Proença e o Rodrigo Serrão, colaboram comigo há muitos anos e são extraordinários instrumentistas; a Marta Pereira da Costa, que é a única mulher em Lisboa a tocar guitarra portuguesa; e o Arlindo Silva, do Porto, que trouxe um quarteto de cordas." E para cantar? "O Rodrigo Costa Félix e o Camané são amigos de longa data; a Mariza é amiga de mais curta data mas teve uma importância fundamental, não só pela qualidade musical que deu ao espectáculo como por todo o apoio e empenhamento. Cada vez estou mais feliz por ser amigo dela; e a Ana Sofia Varela conheço-a desde que ela veio para Lisboa, fico felicíssimo a ouvi-la."» (Nuno Pacheco, in "Público": Suplemento "Ípsilon", 07.09.2007).
O CD "A Música e a Guitarra" é composto por dezassete temas, todos com música de Mário Pacheco: "Um Outro Olhar", "Canto da Sereia Encantada", "Soneto da Fidelidade" (letra de Vinicius de Moraes; voz de Rodrigo Costa Félix), "Asa no Espaço" (letra de Fernanda de Castro; voz de Rodrigo Costa Félix), "Variações em Ré", "Variações em Mi", "Rosa Nocturna" (letra de Vasco Graça Moura; voz de Ana Sofia Varela), "Vivendo Sem Mim" (letra de Amália Rodrigues; voz de Ana Sofia Varela), "Para Carlos Paredes", "Para Fontes Rocha", "Maré Viva" (letra de Rosa Lobato Faria; voz de Camané), "Das Cinco às Sete" (letra de Rosa Lobato Faria; voz de Camané), "Voando no Meu Tapete", "Há Uma Música do Povo" (poema de Fernando Pessoa; voz de Mariza), "Cavaleiro Monge" (poema de Fernando Pessoa; voz de Mariza), "Despertar na Cidade" e "Além-Terra".
Em recensão crítica ao disco, escreve Nuno Pacheco: «Se o guitarrista e compositor Mário Pacheco precisava de um disco que o traduzisse por inteiro, acertou. "A Música e a Guitarra", sendo um registo ao vivo de um espectáculo de 2005, abarca todas as suas facetas: autor, solista, acompanhante. Mais: revela-as não só aplicadas às suas próprias composições (toda a música do disco foi por ele escrita, desde os instrumentais aos fados, aqui cantados por Rodrigo Costa Félix, Ana Sofia Varela, Camané e Mariza) como também na forma como aborda a guitarra quando as interpreta. E se as contribuições dos fadistas são, em geral, inspiradas e sedutoras, é nos instrumentais que Mário Pacheco melhor expõe a sua "linguagem" musical: oiçam-se as "Variações", dos tempos lentos até aos arpejos mais eloquentes, ou os temas delicados a Carlos Paredes e Fontes Rocha, onde as abordagens, em síntese, das sonoridades coimbrãs e lisboetas revelam o estilo e a alma do guitarrista Mário Pacheco.» (Nuno Pacheco, in "Público": Suplemento "Ípsilon", 07.09.2007).
URL: http://www.clube-de-fado.com
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Outro Sentido, de António Zambujo
(CD, Ocarina, 2007)
Em "Outro Sentido", António Zambujo (que nasceu em Beja em 1975 e já foi distinguido com o Prémio Amália Rodrigues de Melhor Fadista 2006) dá continuidade ao trabalho anterior, "Por Meu Cante" (2004), mas vai ainda mais longe na exploração de outras linguagens musicais para além do fado: a música tradicional portuguesa, a música popular brasileira e o jazz. Neste disco, o cantor lançou a si próprio o desafio de recriar clássicos da música de Portugal e do Brasil. "Queria actualizá-los musicalmente. Alguns dos temas escolhi-os porque sempre gostei muito das interpretações que já tinham sido gravadas e queria poder cantá-los à minha maneira. Este não é assumidamente um disco de fados e antes um disco com fados, onde exploro outras sonoridades como o jazz e a bossa nova que influenciaram a minha formação musical", disse António Zambujo. "Identifiquei-me desde sempre com os temas tradicionais portugueses, com as canções de João Gilberto e Caetano Veloso assim como com a voz e a trompete de Chet Baker", acrescentou.
A produção foi assegurada por Ricardo Cruz, tal como já acontecera nos dois discos anteriores de Zambujo, e os arranjos são da responsabilidade de Ricardo Cruz, de Carlos Manuel Proença e do próprio cantor. A base musical do disco é o viola acústica, sendo o artista acompanhado por Carlos Manuel Proença (guitarra clássica), José Manuel Neto e Paulo Parreira (guitarra portuguesa), Ricardo Cruz (contrabaixo, baixo acústico), Daniela de Brito (violoncelo), Mário Delgado (guitarra eléctrica), Fernando Nunes (programação de loop), Paulo Guerreiro (trompas), sendo que o cantor também se acompanha à viola no tema "A Nossa Contradição".
Do álbum merece destaque o tema açoriano "Chamateia" (António Melo Sousa / Luís Alberto Bettencourt) que conta com a participação especial das Vozes Búlgaras Angelite, sob a direcção de Georgi Petkov. Este é indubitavelmente um dos momentos culminantes do álbum, em que a voz de Zambujo se passeia, graciosa, por entre a polifonia vocal do coro búlgaro. "Foi uma feliz coincidência, o grupo estava em digressão em Portugal, ouviram o tema e gostaram, e gravámos no Teatro Viriato, em Viseu", explicou o cantor que considera este um dos temas "mais tocantes". Outro tema de raiz tradicional é "Para que Quero Eu Olhos", numa delicada recriação do tema imortalizado por Adriano Correia de Oliveira. Do cancioneiro brasileiro, Zambujo escolheu "Quando Tu Passas por Mim" (Vinicius de Moraes / Antônio Maria) e "Lábios que Beijei" (J. Cascata / Leonel Azevedo). Do repertório de Amália, canta quatro fados: "Amor de Mel, Amor de Fel" (Amália Rodrigues / Carlos Gonçalves), "Nem às Paredes Confesso" (Artur Ribeiro / Max - Francisco Ferrer Trindade), "Fadista Louco" e "Foi Deus", ambos da autoria do também alentejano (de Reguengos de Monsaraz) Alberto Janes. Ao algo esquecido Carlos Ramos (1907-1969), foi buscar "Eu Já Não Sei" (Domingos Gonçalves Costa / Carlos Gonçalves). "Foi para mim um desafio recriar todos estes clássicos da música portuguesa, aos quais proponho a minha perspectiva musical", disse António Zambujo. Falta ainda referir o experimental "Outro Sentido" que dá título ao disco, "Ao Sul" que João Monge escreveu e João Gil musicou para a Ala dos Namorados e "A Nossa Contradição", com letra de Aldina Duarte sobre música de Alfredo Marceneiro.
Eis a sequência completa dos treze temas de "Outro Sentido": "Amor de Mel, Amor de Fel" (Amália Rodrigues / Carlos Gonçalves), "Eu Já Não Sei" (Domingos Gonçalves Costa / Carlos Gonçalves), "Fado Menor" (letra de Maria Manuel Cid), "Quando Tu Passas por Mim" (Vinicius de Moraes / Antônio Maria), "Para que Quero Eu Olhos" (tradicional), "Lábios que Beijei" (J. Cascata / Leonel Azevedo), "Nem às Paredes Confesso" (Artur Ribeiro / Max - Francisco Ferrer Trindade), "A Nossa Contradição" (Aldina Duarte / Alfredo Duarte "Marceneiro"), "Chamateia" (António Melo de Sousa / Luís Alberto Bettencourt), "Fadista Louco" (Alberto Janes), "Outro Sentido" (Carlos Manuel Proença / Ricardo Cruz), "Ao Sul" (João Monge / João Gil) e "Foi Deus" (Alberto Janes).
Em recensão crítica ao disco, assim se pronunciou Nuno Pacheco: «Ao terceiro disco, António Zambujo, agora com 32 anos, fixa em definitivo o território do seu canto algures entre o fado (onde começou) e a trova, entre a pose fadista e as influências múltiplas do seu cante alentejano, da música portuguesa de raiz, da música brasileira ou até do jazz. Mais longe de "O Mesmo Fado" (2002) e mais próximo de "Por Meu Cante" (2004), este "Outro Sentido" é vocalmente o seu trabalho mais maduro e equilibrado, mas também o mais coerentemente ecléctico. Voltando com sucesso ao fado ("Eu Já Não Sei", "Fado Menor", "Nem às Paredes Confesso", "Fadista Louco", "A Nossa Contradição" ou "Foi Deus", este parcialmente "a capella"), arrisca com bons resultados uma interpretação pessoalíssima de clássicos brasileiros ("Lábios que Beijei", "Quando Tu Passas por Mim"), apossa-se de um tema tradicional que fez parte do repertório de Adriano Correia de Oliveira ("Para que Quero Eu Olhos"), dá novo lirismo a "Ao Sul", da Ala dos Namorados, mescla bossa-nova e Chet Baker nas malhas onomatopaicas do tema-título e aproxima a lira açoriana das polifonias búlgaras no tocante "Chamateia". Apesar do excesso de versões, tudo o resto vai num bom sentido.» (Nuno Pacheco, in "Público": Suplemento "Ípsilon", 05.10.2007).
URL: http://www.antoniozambujo.com/
http://www.myspace.com/antoniozambujo
À Noite, de Carlos do Carmo
(LP/CD, Universal/TugaLand, 2007)
«Para Carlos do Carmo, este ano [2007] foi muito proveitoso: além do filme de Carlos Saura ("Fados"), onde canta e participou como consultor, reuniu em disco vários da geração anterior à sua, sob a designação de "Fados de Uma Vida" (ed. Farol) e lançou ainda um disco de originais a partir de uma ideia também ela original – músicas de fados clássicos (Alexandrino, Cravo, Mayer, Puxavante, Vitória, etc.) com letras de não fadistas. Quanto ao conceito, o cantor, nascido em 1939 e com 44 anos de carreira, diz: "É uma arrumação de prateleiras da minha vida. Conheci muita gente do fado, desde criança, habituei-me a ouvi-los cantar, tocar. Mas houve figuras, para mim, que se destacaram particularmente [fala de compositores]. Cito quatro: o Frederico de Brito, que fez para mim tão lindos fados, o Armandinho, o Alfredo Marceneiro e o Joaquim Campos. Porquê falar nestes quatro? Estive cuidadosamente a estudá-los, quase todos, os compositores tradicionais dos anos 20, 30 e 40 e reparei que os bons têm uma média de três, quatro fados bons, enquanto os muito bons têm nove em cada dez. Foi essa a razão da minha escolha." Escolha que teve uma ajuda forjada na sabedoria, a do guitarrista José Fontes Rocha. "Há um certo hábito de chamar mestres aí aos guitarristas, o que me faz uma certa confusão. Mas na realidade o mestre que nós temos vivo é o José Fontes Rocha. Sabe das coisas, conhece-as, vem de muito longe, sabe-as executar, não está decadente e tem uma memória prodigiosa. Estivemos em minha casa e ele ajudou-me bastante." Quanto aos letristas "foi a parte mais louca." "Lembrava-me que, quando se falava na dificuldade em encontrar autores musicais para o fado, fui ter com o Paulo de Carvalho, o Fernando Tordo, o [José Luís] Tinoco, o António Victorino de Almeida, o José Mário Branco, o Sérgio Godinho, e aí estão os fados." Quem tenta uma vez tenta duas. Vasco Graça Moura, que um dia lhe escrevera "quinze fados seguidos", já entrara para "o clube". Porque não outros? "Um dia estava a ler a 'Egoísta', a revista do Casino do Estoril, e reparei num texto interessante de fado escrito pelo Fernando Pinto do Amaral. Achei curiosíssimo e comecei por ali. Ele foi amabilíssimo e disse-me que teria o maior prazer." E deu-lhe outra pista: Nuno Júdice. "Fui muito bem acolhido, também." Depois ligou a Maria do Rosário Pedreira que conhece desde pequena, pois os pais dela são seus padrinhos de casamento. "O pai era boémio, frequentava as casas de fado e dizia Régio, Pessoa, Sá-Carneiro, de forma extraordinária." Também aceitou. "Depois falei com o meu velho amigo José Manuel Mendes que já há muito me manda poemas mas que não são para fado. E finalmente, o Júlio Pomar que entre as coisas que andava a escrever para um livro que irá editar, tinha alguns fados, com quadras muito engraçadas" (de Júlio Pomar é também o retrato original de Carlos do Carmo, a óleo, que está na capa do disco). Os outros dois nomes surgiram de relações antigas: "O José Luís Tinoco já entrava há bastante tempo nos meus discos. Pedi-lhe um texto para uma música do Armandinho, que exigia um cuidado especial, e ele fez." Por último, Luís Represas: "Gosto muito dele desde miúdo, nunca tinha escrito para mim." Dois jantares em casa de Carlos do Carmo selaram a aventura: "Parecíamos uns miúdos, discutimos tudo, cada um levou para casa um CD com a música de escolheu." Depois foram escrever e começaram a enviar mails, a telefonar. "O que me agradou profundamente foi o entusiasmo com que trabalharam. E outra coisa que me encanta no ser humano: estamos a falar de professores universitários, de gente de cultura, que esteve nisto com uma modéstia, uma humildade e uma vontade de fazer que me comoveu. E penso que o fado ganhou novos poetas, que é uma vitória."» (Nuno Pacheco, in "Público": Suplemento "Ípsilon", 16.11.2007).
Citam-se também as oportunas palavras que Rui Vieira Nery escreveu para o livro que acompanha o CD: «Não admira que Carlos do Carmo que tão bem conheceu Alfredo Marceneiro e Joaquim Campos e que ao longo da sua vida contactou desde sempre com o melhor da herança de Armandinho na guitarra portuguesa, sinta de quando em quando necessidade de regressar como intérprete a estas raízes nucleares do Fado. Fê-lo já em diferentes momentos da sua carreira, fá-lo agora num estádio de grande maturidade que lhe vem de poder olhar para trás e fazer um balanço sereno de quase cinquenta anos a cantar o Fado. Regressa aos clássicos com um carinho evidente, sabendo que é nele que repousa uma tradição de muitas décadas, ainda anteriores ao seu próprio arranque pessoal como fadista, e da qual é possivelmente o continuador mais legítimo na sua geração. Mas neste olhar não há saudosismos, e muito menos a tentativa de fixar artificialmente em qualquer fórmula estereotipada uma tradição que a história nos mostra ter sido sempre viva e mutante. No seu canto há elementos de uma sabedoria feita de tradição acumulada, mas há também a construção da sua própria personalidade de intérprete e o caldear de tudo o que ouviu e interiorizou, dentro e fora do Fado.
Armandino, Marceneiro e Campos trabalharam com os maiores poetas populares da Lisboa do seu tempo: Henrique Rego, Francisco Radamanto, Carlos Conde, Frederico de Brito, todos eles arquétipos perfeitos de uma certa escolha de temas, de uma panóplia característica de imagens poéticas, de uma maneira de rimar o verso e de o rimar que parecia pedia o canto. Carlos do Carmo desafia agora um conjunto de grandes poetas contemporâneos a construírem a mesma ponte que ele próprio representa entre tradição e contemporaneidade. Fernando Pinto do Amaral, José Luís Tinoco, José Manuel Mendes, Luís Represas, Maria do Rosário Pedreira, Nuno Júdice e o sempre surpreendente bastião de juventude criativa que é Júlio Pomar procuram isso mesmo – não abdicar de uma linguagem que lhes é própria, nem de um olhar poético carregado de modernidade, mas ao mesmo tempo recuperar nos seus versos uma musicalidade intrínseca e um imaginário expressivo que foram sempre o apanágio da melhor poesia de Fado e que parecem fazer já parte inseparável da própria carga genética fadista. Nesta lição de Fado dada serenamente por um grande mestre cruzam-se sete poetas que souberam partilhar deste olhar de Janus que contempla ao mesmo tempo o passado e futuro. À NOITE, naturalmente, porque por alguma razão mais profunda do que os habituais clichés que continuam a assombrar a reflexão sobre o género, o Fado preferiu desde sempre este registo intimista de uma penumbra a envolver o canto de todas as dores.» (Rui Vieira Nery, 2007).
Produzido pelo próprio Carlos do Carmo, que se faz acompanhar de José Manuel Neto (guitarra portuguesa), Carlos Manuel Proença (viola de fado) e José Marino Freitas (baixo acústico), "À Noite" é composto por doze temas: "Insónia" (José Luís Tinoco / Armandinho), "Pontas Soltas" (Maria do Rosário Pedreira / Joaquim Campos), "Fado do 112" (Júlio Pomar / Armandinho), "Lisboa Oxalá" (Nuno Júdice / Joaquim Campos), "Margens da Solidão" (José Manuel Mendes / Alfredo Duarte "Marceneiro"), "À Noite" (Nuno Júdice / Alfredo Duarte "Marceneiro"), "A Guitarra e o Clarim" (Júlio Pomar / Joaquim Campos), "Vem, Não Te Atrases" (Maria do Rosário Pedreira / Armandinho), "Madrugada" (Fernando Pinto do Amaral / Alfredo Duarte "Marceneiro"), "Vou Contigo, Coração" (Fernando Pinto do Amaral / Alfredo Duarte "Marceneiro"), "Fado dos Meus Fados" (José Manuel Mendes / Joaquim Campos) e "Enredo" (Luís Represas / Armandinho).
Na recensão crítica ao disco, escreve Nuno Pacheco: «Trinta anos depois de um disco que marcou a história do fado ("Um Homem na Cidade", 1977), Carlos do Carmo mantém neste "À Noite", a par da ousadia do projecto, uma capacidade interpretativa de grande nível, mesmo quando as letras parecem destinadas a trocar-lhe as voltas e dificultar-lhe o trabalho. E os músicos, que ele tem feito questão de elogiar em público, fazem aqui por merecer todos os elogios. Escutá-los atentamente, alheando-nos por momentos da voz, é um exercício esclarecedor.» (Nuno Pacheco, in "Público": Suplemento "Ípsilon", 14.12.2007).
URL: http://www.oficinadailusao.com/artistas/carlos_carmo/carlos_carmo.htm
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Sementes do Fado, de Os Músicos do Tejo
(CD, Os Músicos do Tejo, 2007)
Marcos Magalhães (cravo), Ana Quintans (voz) e Ricardo Rocha (guitarra portuguesa): é esta a formação do grupo Os Músicos do Tejo que nos apresenta o disco "As Sementes do Fado", numa abordagem livre às modinhas de finais do séc. XVIII e princípios do XIX (reinados de D. Maria I e D. João VI). Segundo alguns reputados estudiosos, a modinha luso-brasileira é uma das influências remotas do fado e daí o título escolhido para o álbum. Tal como no fado, os temas dominantes das modinhas são o amor, a dor e a melancolia. Foram não só cantadas em meios populares como nos teatros e salões da aristocracia e burguesia. E foi pelo facto de terem sido anotadas em partituras que alguns dos seus melhores espécimes chegaram intactos até aos nossos dias. A ideia do disco surgiu quando Marcos Magalhães leu a obra "Para Uma História do Fado", de Rui Vieira Nery: "Ele fala das modinhas como o ascendente mais antigo do fado e desmonta algumas ideias mais antigas como a de que o fado viria do tempo dos Descobrimentos", diz o cravista, em entrevista concedida a Pedro Boléo (in "Público": Suplemento "Ípsilon", 28.12.2007). Marcos Magalhães mete então mãos a uma aturada investigação e depressa se apercebe que as modinhas eram algo mais que as peças ligeiras e sem grande interesse, como antes julgava: "Foi um encontro que nos fez ver as modinhas de outra maneira. Este disco é uma tentativa de tirar as modinhas do museu." Havia, contudo, um problema: as partituras apresentam os acompanhamentos de forma muito esquemática, com apenas algumas notas fundamentais. Nem sequer se trata do baixo contínuo, o acompanhamento típico do barroco, que era improvisado a partir das notas graves e cifras que estruturam a harmonia. "O que fizemos foi não ligar a esse acompanhamento mas usar a base harmónica e fazer um acompanhamento improvisado a meio caminho entre o baixo contínuo e o fado", explica Marcos Magalhães. Já Ricardo Rocha refere: "Puxei um bocadinho para a balada de Coimbra, no ritmo e na linha melódica." Por seu lado, a cantora Ana Quintans, que nunca cantou fado, afirma que o propósito dos Músicos do Tejo foi "revisitar e transformar as modinhas, cruzando um interpretação barroca com o universo do fado. Tinha cantado modinhas com cravo, mas a sonoridade da guitarra portuguesa obriga a uma atitude diferente. A ideia era cantar da forma mais natural possível." (ibidem).
Com produção e direcção artística de Marcos Magalhães, o CD "As Sementes do Fado" é composto por dezoito temas, entre modinhas e peças instrumentais: "Foi por mim, foi pela sorte" (Anónimo), "Fenece doce esperança" (Raphael Coelho Machado), "Minuete" (António da Silva Leite), "He somente a minha vida sempre penar e sofrer" (Francisco Xavier Baptista), "Ternas aves" (Jozé Mesquita), "Andantino" (António da Silva Leite), "Tocata do S.ro Francisco Gerardo" (António da Silva Leite), "Cosi dolce amante sposo" (Marcos Portugal), "Desprezar do mundo a glória" (António da Silva Leite), "Amor concedeum'um prémio" (António da Silva Leite), "60 Minuete" (Manuel José Vidigal), "3.ro Minuete" (Manuel José Vidigal), "Avezinha" (Beneficiado V. J. Coelho), "Frescas praias do Barreiro" (A. J. do Rego), "Deuzes do Olimpo" (D. José Acuña), "Que fiz eu à natureza" (Jozé Maurício), "1.º andamento da Sonata em dó menor n.º 16" (Carlos Seixas) e "Os laços d'amor" (D. José Acuña).
Em recensão crítica ao disco, Pedro Boléo escreveu: «A modinha é uma das formas musicais que se pensa estar na origem do fado. Mas este não é um disco de fado – trata-se antes de um projecto de música barroca, com algumas características pouco comuns. Antes de mais, a combinação de instrumentos – cravo e guitarra portuguesa -, para além da voz de Ana Quintans, uma das melhores cantoras das novas gerações. Os intérpretes têm todos eles pouco mais de trinta anos. Esta edição de autor é sinal de uma dinâmica extremamente importante na música portuguesa de qualidade. Marcos Magalhães, cravista e grande impulsionador do projecto, é o responsável pela direcção artística e por grande parte do trabalho técnico de montagem e edição. Recriam-se nesta gravação certos ambientes musicais cultivados pela aristocracia e burguesia ascendente da segunda metade do século XVIII e inícios do século XIX. A modinha luso-brasileira era também uma canção popular, transmitida oralmente. A maior parte das partituras que chegarem até nós correspondem no entanto a um repertório mais erudito, praticado nos teatros e salões da época. Mas este disco é mais do que uma curiosidade ou uma recuperação de um repertório que teve uma larguíssima difusão nos finais de Oitocentos e que hoje está bastante esquecido. Para além da divulgação e gravação de algumas modinhas pela primeira vez, propõe-nos uma reinvenção e uma recriação da modinha, aliando rigor e reflexão histórica a uma liberdade interpretativa contagiante (onde também há espaço para a improvisação e a ornamentação, como havia na música desta época). Graças à qualidade dos intérpretes e ao seu gesto criativo, a gravação ultrapassa em muito a mera reconstituição histórica, para nos apresentar um fresco ponto de vista sobre este antepassado do fado. Não há aqui apenas modinhas: podemos ouvir ainda outras peças para cravo e guitarra do período barroco (uma sonata para cravo de Carlos Seixas tocada de um ponto de vista muito pouco habitual, ou um andamento de uma tocata de António Silva Leite, por exemplo). Nas modinhas há uma interessante fusão dos timbres do cravo e da guitarra que suportam as qualidades vocais de Quintans. Nalgumas peças estamos na fronteira da ópera, como em "Cosi dolce amante sposo", de Marcos Portugal, ou no dueto "Amor concedeum'um prémio" (com a voz "dupla" da soprano). A voz ágil de Quintans, longe de pretender fazer uma abordagem "fadista" das peças, é especialmente adequada e expressiva numa modinha como "Frescas praias do Barreiro" ou na dramática faixa de abertura "Foi por mim, foi pela sorte". A forma como canta em português, com uma dicção cuidada e algum virtuosismo nas partes mais agudas e ornamentais é a prova de que o preconceito na música erudita em relação à língua portuguesa não faz sentido – desde que se compreenda a especificidade da língua em que se canta. Marcos Magalhães e Ricardo Rocha conseguem um grande equilíbrio tímbrico e mostram, nas passagens mais simples como em alguns momentos de maior virtuosismo, uma frescura interpretativa incomum. Este disco tem a importância de revelar um projecto original e ousado no panorama da nossa edição discográfica e no campo da música barroca. É, para além disso, um objecto muito cuidado (incluindo também um texto de Rui Vieira Nery que contextualiza as obras social e historicamente) e extremamente inventivo.» (Pedro Boléo, in "Público": Suplemento "Ípsilon", 28.12.2007).
URL: http://marcosmagalhaes.planetaclix.pt
http://www.musicosdotejo.com/
Convexo: A Música de Zeca Afonso, de Jacinta
(CD, HM Música, 2007)
Depois dos aclamados "Tribute to Bessie Smith" (2003) e "Day Dream" (2006), ambos com chancela da prestigiada etiqueta Blue Note, Jacinta publica "Convexo" (ed. HM Música), um álbum integralmente composto por versões de temas de José Afonso. A música de José Afonso sempre ocupou um lugar muito especial na vida de Jacinta e a ideia de fazer o disco terá surgido da calorosa receptividade do público às suas interpretações ao vivo de temas do autor de "Venham Mais Cinco". Jacinta conta: «A sua música marcou-me desde os tempos de escuteira. Lembro as 24 horas seguidas de guitarra ao ombro, caminhando e animando um grupo de chefes e caminheiros. Na chegada, às 6 da manhã já os dedos latejavam de calos novos e a voz doía, brindando o amanhecer com cânticos portugueses – Zeca Afonso interpretado sempre com muito fervor. Um dos primeiros palcos que me marcou foi o Teatro Aveirense, 1200 pessoas ruidosas e emocionadas com a minha abertura solene "a capella": "O Cavaleiro e o Anjo". Segui com mais cinco temas do Zeca, alternando e misturando com outros artistas. O público crescia ao rubro e eu interpretava como que em transe canções que nunca antes cantara e que memorizei como que por magia no próprio dia do espectáculo: "Endechas a Bárbara Escrava", "Cantigas do Maio", "Vejam Bem"... Depois veio o jazz e muita música diferente da portuguesa e vim a esgotar o CCB mais tarde com "Tribute to Bessie Smith", que fiz questão de abrir com Zeca Afonso. O Zeca voltou a surgir na minha "Canção de Embalar", com Greg Osby em "Day Dream". A reacção dos públicos a esta canção ao vivo tem sido tão surpreendente e participativa que me inspirou para a criação de "Convexo". O título é inspirado numa das minhas canções favoritas do Zeca: "Tenho um Primo Convexo". Convexo porque é "para fora" da norma, é fora da tradição popular portuguesa que marca a obra do Zeca, é para fora daquilo que normalmente se ouve quando se faz a música do Zeca Afonso, daí ser um disco "Convexo".» (Jacinta).
E até que ponto é aceitável e legítimo abordar a obra de José Afonso segundo o idioma jazzístico, ou seja, numa linguagem, à primeira vista, tão distante do seu estilo? Jacinta responde: "Estava à espera de estados de choque e de ser apelidada de 'herege' ao mexer desta forma na música deste nosso grande ícone da canção portuguesa. Mas a própria filha do Zeca me disse que o pai adorava jazz, que ia a todos os festivais de jazz da sua época, e que ficaria muito orgulhoso se ouvisse as minhas versões jazzísticas da sua música." (entrevista a José Duarte, in site Jazz Portugal, 14.12.2007). Viriato Teles, conhecido estudioso da obra de José Afonso, argumenta no mesmo sentido: «Zeca Afonso é um compositor de características genuinamente populares, mas que nem por isso deixa de ser profundamente ecléctico: a sua música reúne os elementos essenciais da tradição lusitana aliados ao jazz, às músicas populares de África e da Europa, aos grandes clássicos e ao que de melhor produziram os contemporâneos – tal como a sua poesia conjuga os cancioneiros medievais com a escola brechtiana, a lírica tradicional com a lógica dos surrealistas, a intervenção política e o experimentalismo mais ousado. [...] É uma obra tão rica e tão plural que [reinterpretá-la] se torna convenhamos, uma tentação. E, aberto como era às novas tendências e a encorajar os mais novos, José Afonso teria decerto aplaudido todos os que, partindo do seu trabalho, procuram ir mais longe – nos arranjos, nas interpretações, nas atitudes – e tentam não apenas recriar as suas músicas, mas, de certo modo, voltar a inventá-las.»
Com produção de Jacinta e Maria Joana Pereira, e arranjos de Rui Caetano e da própria cantora, "Convexo", inclui onze temas, assim alinhados: "Adeus ó Serra da Lapa", "O Homem Voltou", "A Formiga no Carreiro", "Era Um Redondo Vocábulo", "Cantigas do Maio", "Tenho Um Primo Convexo", "Se Voaras Mais ao Perto", "A Morte Saiu à Rua", "Que Amor Não Me Engana", "De Não Saber o Que Me Espera" e "Coimbra do Mondego".
Em recensão ao disco, António Rúbio escreveu: «Há muito que Jacinta tinha este projecto – um disco apenas com música de Zeca Afonso. Todos os seus concertos incluíam uma ou duas canções de Zeca e no seu último CD para a Blue Note, "Day Dream", introduziu a "Canção de Embalar" no meio de temas de Duke Ellington e de Thelonious Monk. São onze as canções escolhidas. Não encontramos as mais populares, como "Grândola, Vila Morena" ou "Os Vampiros", opção correcta para não cair em facilitismos nem popularismos. Através dos seus arranjos e dos de Rui Caetano, Jacinta consegue conjugar várias linguagens musicais, indo do jazz até aos ritmos latino-americanos, o que impregna estas versões de um ecléctico modernismo. Até o "scat" entra neste jogo de bom gosto. Muito flexível e com impecável dicção, a cantora portuguesa dá uma forma completamente nova ao repertório de José Afonso. O piano de Rui Caetano está sempre presente no apoio à consistência da voz, e os seus solos são criteriosos e bem adaptados aos arranjos, revelando uma profunda sensibilidade. [A bateria de] Bruno Pedroso, por seu lado, baliza o ritmo com inteira competência, dando frescura e vida a todo o disco. Um trabalho de grande qualidade em todos os capítulos.» (António Rúbio, in revista "Jazz.pt", Nov.-Dez. 2007).
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Memórias de Quem, de João Paulo Esteves da Silva
(CD, Clean Feed/Trem Azul, 2007)
«Se as marcas do talento do pianista João Paulo já tinham sido evidentes nas anteriores edições Clean Feed onde participou ("As Sete Ilhas de Lisboa", com Paulo Curado e Bruno Pedroso, e "Quase Então" com a cantora Paula Oliveira), faltava ainda um registo mais pessoal que confirmasse todas as expectativas. O seu novo disco "Memórias de Quem", piano solo, é esse documento e afirma definitivamente João Paulo Esteves da Silva como um dos mais brilhantes improvisadores surgidos em solo nacional. No entanto, esta vertente de improviso de inspiração jazzística, com que se tem notabilizado, contraria a sua formação musical inicial. Filho de uma mãe pianista, uma intensa educação clássica ajudou-o a alcançar a classificação máxima no Curso Superior de Piano do Conservatório Nacional – quando já tinha descoberto o jazz e mantinha projectos paralelos aos estudos clássicos. Depois de um longo "exílio" em Paris (1982-1994), regressou para colaborar como arranjador e director musical no álbum que Vitorino trabalhou a partir de textos de António Lobo Antunes, o belo "Eu Que Me Comovo Por Tudo e Por Nada". Para além desta cooperação com o cantor alentejano, colaborou ainda com outras grandes figuras da música popular portuguesa, contribuindo de forma marcante para muitas obras de referência – participou no clássico "Por Este Rio Acima" de Fausto, ajudou no álbum "Ser Solidário" de José Mário Branco e manteve com Sérgio Godinho uma relação privilegiada que se traduziu em três álbuns: "Canto da Boca" (1981), "Coincidências" (1983) e "Tinta Permanente" (1993). Apesar de todas estas incursões em terrenos da música popular, João Paulo nunca se desviou do caminho que decidiu para si mesmo: criar música original inspirada na tradição portuguesa e aberta à improvisação permitida pelo jazz. E são precisamente estas coordenadas que guiam o novo álbum "Memórias de Quem". Testemunho que comprova maturidade criativa, este disco é um pico obrigatório de uma carreira discográfica iniciada em nome individual em 1995, com "Serra Sem Fim" (Farol). Entre as várias colaborações que se seguiram ficou uma lista imensa de discos a evidenciar a sua grande capacidade criativa: "Almas e Danças" (Farol Música, 1996), "O Exílio" (Marecordings, 1999), "Almas" (Marecordings, 2000), "Esquina" (Marecordings, 2000), "Nascer" (Marecordings, 2001) e os já citados "Quase Então" (Clean Feed, 2003) e "As Sete Ilhas de Lisboa" (Clean Feed, 2003). Até agora o seu único disco a solo [absoluto] tinha sido "Roda, Les Suites Portugaises", editado em França em 2002 com selo L'Empreinte Digitale. Já esta nova edição Clean Feed é a grande oportunidade que o pianista tem para mostrar, numa escala mais alargada, o seu talento numa arrojada (e corajosa) aventura solitária, sem rede. Quer João Paulo utilize como base melodias tradicionais (portuguesas e sefarditas) ou recorra simplesmente à improvisação, em "Memórias de Quem" a construção dos temas segue uma linearidade clássica, há uma estruturação consistente e há uma grande noção de harmonia que envolve todo o disco. Ao ouvirmos temas como "Mi Alma" ou "Durme" é impossível ficarmos indiferentes a toda a sua beleza e a faixa "Memórias de Quem" (também com a voz do pianista) quase se aproxima de uma certa religiosidade. Pleno de fluência discursiva (não será despropositado evocar o trabalho de Keith Jarrett a solo), este será sem qualquer dúvida um dos mais belos álbuns portugueses do ano e um marco nacional na abordagem da linguagem improvisacional do jazz ao piano.» (Nuno Catarino, in "Público": Suplemento "Ípsilon", 25.05.2007).
Produzido por João Paulo Esteves da Silva e Pedro Santos, "Memórias de Quem" inclui nove temas, assim alinhados: "Mi Alma", "Ramagem", "O Incêndio", "Durme", "Fantasmas", "Através", "Memórias de Quem", "Soneto de Renato" e "Ritspah".
URL: http://www.oncproducoes.com/bios/joao_paulo.html
http://www.tremazul.com/
Espaço, de Mário Laginha Trio
(CD, Clean Feed/Trem Azul, 2007)
Decorrido um ano sobre "Canções e Fugas" (Universal Music, 2006), álbum distinguido com importantes galardões (Prémio SPA Millennium BCP e Prémio Carlos Paredes), Mário Laginha apresenta-nos "Espaço". "São dois projectos que eu estava, desde há muito, decidido a realizar, mas que, por várias razões, fui adiando no tempo. Têm um enorme significado para mim e julgo que dão uma imagem razoavelmente alargada do meu universo musical. Uma das coisas que mais me agradam neles é que são muito diferentes. Um – "Canções e Fugas" – põe em confronto composições com estrutura de canção, com espaço para a improvisação, com as fugas, uma técnica de escrita a vozes sem qualquer tipo de improvisação. "Espaço" é um disco mais livre, com um tipo de diálogo e comunicação entre os músicos que sempre adorei." (entrevista a Paulo Barbosa, in "Público": Suplemento "Ípsilon", 08.06.2007). O álbum resulta de uma encomenda da Trienal de Arquitectura de Lisboa, e obedece um conceito definido: estabelecer um paralelismo entre a música e a arquitectura. "Quando me propuseram este projecto de fazer música relacionando-a com a arquitectura, demorei algum tempo a escolher o caminho a seguir. É óbvio que poderiam ter sido muitos outros caminhos, mas foram dois os que mais me atraíram. Um, o de fazer uma música muito depurada e simples que remetesse para um certo tipo de espaço muito limpo e aberto. Aqui a ideia seria a de criar uma música que tentasse ampliar as sensações que essa arquitectura provoca. O outro – que achei mais estimulante – seria partir de conceitos muito utilizados ou relacionados com o universo da arquitectura e, utilizando o meu vocabulário musical, fazer uma interpretação desses mesmos conceitos. Foi o que fiz e julgo que o resultado, não se afastando do meu universo musical, permite a quem o ouve perceber o tipo de paralelismos que utilizei. Como digo no texto que escrevi no CD, sem esta proposta, a música não seria a mesma." (ibidem).
Com produção do próprio Mário Laginha, são oito os temas que preenchem este "Espaço": "Tráfico", "Tanto espaço", "Paredes que nos rodeiam", "Escada", "Plano", "Baixo contínuo", "Esculpir" e "Vazio urbano".
Em recensão crítica ao disco, assim discorre Paulo Barbosa: «Bastará uma única audição desta gravação para que se fique com a certeza de que, depois do solo absoluto de "Canções e Fugas", Mário Laginha acertou em cheio no alvo, outra vez. Difícil será, no entanto, que nos contentemos com uma só audição deste magnífico álbum, recheado de música contagiante, simultaneamente reconfortante e estimulante. A determinação com que o pianista dirige o trio e a resposta que recebe de Bernardo Moreira (contrabaixo) e de Alexandre Frazão (bateria), parceiros ideais, verdadeiros cúmplices espirituais e físicos nesta sua nova aventura, elevam as capacidades interpretativas do grupo a um nível reservado apenas aos melhores. A empatia a que acima de alude está patente tanto no modo como os músicos se relacionam entre si na execução destas composições de Laginha, como no tipo de relação que estabelecem com a própria música. Tanto quanto o seu compositor, Moreira e Frazão vivem esta música como se lhes fosse própria, respirando-o com toda a urgência, como se de ar se tratasse, como se dela dependesse a sua sobrevivência. Posto isto, vamos à música que Laginha parece compor com a mesma exigência e a mesma convicção com que toca. Neste trabalho, encomendado pela Trienal de Arquitectura de Lisboa 2007, cada composição constitui, enquanto tal, uma ideia perfeitamente acabada. No entanto, e porque Laginha concebe sempre algo mais do que meros veículos de improvisação, cada uma destas peças soa como um plano minuciosamente estruturado que apela, no entanto, à força criativa destes seus intérpretes para que se veja plenamente cumprido. Esse equilíbrio entre composição e interpretação é bem ilustrado logo na faixa que faz arrancar o álbum, um agitadíssimo "Tráfico", onde a escrupulosa forma que define o tema é, logo após a sua exposição, submetida à tensão quase sufocante (e tecnicamente estonteante) de uma breve passagem a solo, na qual o pianista se concentra no registo mais grave do instrumento, a ele se juntando depois o contrabaixista e o baterista para, num rápido impulso, descolar até à atmosfera, onde gravitarão, num 'swing' inebriante, até ao regresso do tema. Este tipo de orientação é adoptado em várias outras faixas, como "Paredes que nos rodeiam" ou "Baixo contínuo", mas é mais evidente ainda em "Escada". Nesta composição, de ambiência inicialmente sombria e marcada por uma escrita densa, na leitura da qual os pratos de Frazão fazem a música com o pianista, o trio liberta-se, depois, sobre uma batida quase hip-hop, numa agitada escalada que, mais uma vez, só pára com a reposição do tema. "Baixo contínuo" vive da fuga e é uma excelente ilustração, bem distinta da que já conhecemos por Brad Mehldau, do recurso à composição contrapontística no contexto do trio de piano. As três baladas, para além de trazerem o desejado contraste com aqueles momentos mais enérgicos, são de uma beleza insuperável. Por muito bem que Bernardo Moreira esteja (e está!) em todo o disco, é em temas como "Tanto espaço" e "Esculpir" ou na primeira metade de "Plano" (um magnífico "rubato") que, por via uma singular riqueza melódica e rítmica, o seu contrabaixo atinge um maior nível de expressividade. É também em "Plano" que, mais para o final, Mário Laginha, já então sobre um tempo explícito, revela uma outra faceta, evocando por momentos o som africano de Abdullah Ibrahim. Aqui está o disco que demolirá qualquer dúvida quanto ao lugar de Mário Laginha no seio dos maiores pianistas da actualidade e que é, desde já, um dos grandes discos de 2007.» (Paulo Barbosa, in "Público": Suplemento "Ípsilon", 08.06.2007).
URL: http://www.mariolaginha.org
http://www.myspace.com/mariolaginha
Fontes:
- Literatura inclusa nos discos citados
- Jornais/revistas referenciados no texto
- Páginas da internet
E agora a pergunta sacramental: quantos dos discos acima destacados estão representados nas 'playlists' das Antenas 1 e 3? Os dedos de uma só mão chegam (e sobram) para os contar. Em face desta clamorosa e aberrante situação, cumpre-me lançar um apelo a quem tem por responsabilidade fiscalizar e avaliar o serviço público de rádio: faça-se uma monitorização à programação musical das referidas antenas e averigúe-se, à luz da legislação que enquadra e regulamenta o serviço público de rádio, se objectivamente não existe uma clara e evidente discrepância entre o que é expectável da rádio do Estado e os conteúdos musicais actualmente dominantes nas respectivas 'playlists'. 'Playlists' essas que, convém lembrar (sobretudo aos mais distraídos), estão pejadas de autêntico lixo sonoro, tanto exógeno como endógeno, o qual, além de degradar a qualidade do serviço, tem ainda o efeito perverso de estar ocupar o lugar que legitimamente devia caber à melhor música portuguesa (lusófona e instrumental), que assim acaba por ser relegada para uma quase clandestinidade no éter nacional.
Outros discos de música portuguesa editados em 2007:
(por ordem alfabética dos nomes dos intérpretes)
- Ala dos Namorados: "Mentiroso Normal" (CD, Universal Music, 2007)
- Ana Moura: "Para Além da Saudade" (CD, Universal Music, 2007)
- André Fernandes: "Cubo" (CD, Tone of a Pitch, 2007)
- António Pinto Basto: "Bodas de Coral" (CD, Zona Música, 2007)
- Banda Futrica e Amigos: "Com Zeca no Coração" (CD, Açor/Emiliano Toste, 2007)
- Bernardo Sassetti: "Dúvida" (CD, Clean Feed/Trem Azul, 2007)
- Cantaremos Adriano: "Homenagem a Adriano Correia de Oliveira: 25 anos após a sua morte" (CD, Musicart, 2007)
- Clã: "Cintura" (CD, Capitol/EMI, 2007)
- Couple Coffee: "Co'as Tamanquinhas do Zeca" (CD, Transformadores, 2007)
- Cramol: "Vozes de Nós" (2CD, Ocarina, 2007)
- Custódio Castelo e Margarida Guerreiro: "Encores do Fado: Live" (CD, Ovação, 2007)
- Dead Combo: "Guitars From Nothing" (CD, Rastilho Records, 2007)
- Donna Maria: "Música para Ser Humano" (CD, EMI, 2007)
- Erva de Cheiro: "Que Viva o Zeca: Tributo" (CD, Musicart, 2007)
- Eugénia Melo e Castro: "PoPortugal" (CD, Universal Music, 2007)
- Fausto Bordalo Dias: "18 Canções de Amor e Mais Uma de Ressentido Protesto" (CD, Farol Música, 2007)
- Fernando Guerreiro: "Guitarra Só" (CD, InforArte, 2007)
- Fernando Rolim: "Regresso de quem nunca partiu" (CD, Ovação, 2007)
- Galandum Galundaina: "Ao Vivo no Teatro Municipal de Bragança" (DVD, Açor/Emiliano Toste, 2007)
- Henrique: "Vício do Fado" (CD, Açor/Emiliano Toste, 2007)
- J.P. Simões: "1970" (CD, NorteSul/Valentim de Carvalho, 2007)
- Jorge Palma: "Voo Nocturno" (CD, Capitol/EMI, 2007)
- Júlio Resende Quinteto: "dA Alma" (CD, Clean Feed/Trem Azul, 2007)
- Lena d'Água: "Sempre: Ao Vivo no Hot Clube de Portugal" (CD/DVD, Blue Note, 2007)
- Mafalda Veiga e João Pedro Pais: "Lado a Lado" (CD/DVD, Som Livre, 2007)
- Malteses (Os): "Vagueando: Ao Sabor da Música" (CD, 2007)
- Maria João: "João" (CD, Universal Music, 2007)
- Mário Moita: "Fado ao Piano: O Luar É Meu Amigo" (CD, Mário Moita, 2007)
- Moças Nagragadas: "Cantares de Natal, Ano Bom e Reis" (CD, 2007)
- Musicalbi: "Mastiço" (CD, Musicalbi/I Som, 2007)
- Neurónios Abariados: "Abariações" (CD, Açor/Emiliano Toste, 2007)
- Paco Bandeira: "Canto do Espelho" (CD, Farol Música, 2007)
- Paula Oliveira & Bernardo Moreira: "Fado Roubado" (CD/DVD, Universal Music, 2007)
- Pedro Abrunhosa: "Luz" (CD, Universal Music, 2007)
- Rodrigo Leão: "Portugal, Um Retrato Social" (CD, Sony BMG, 2007)
- Sal: "Sal" (CD, Elec3city, 2007)
- Sexteto Mário Barreiros: "Dedadas" (CD, Clave do Som, 2007)
- Sofia Ribeiro & Marc Demuth Quartet: "Orik" (CD, Sofia Ribeiro & Marc Demuth Quartet, 2007)
- Sons da Fala: "Sons da Fala" (CD, Som Livre, 2007)
- Sons do Vagar: "Sons do Vagar" (CD, Associ'Arte, 2007)
- Teresa Salgueiro & Lusitânia Ensemble: "La Serena" (CD, Farol Música, 2007)
- Terra d'Água / Davide Zaccaria (com Maria Anadon, Lúcia Moniz, Filipa Pais, Dulce Pontes e Uxia): "Terra do Zeca: Tributo a José Afonso" (CD, Som Livre, 2007)
- Tiago Bettencourt & Mantha: "Jardim" (CD, Universal Music, 2007)
- Toques do Caramulo: "Toques do Caramulo É ao Vivo! " (CD, Associação d'Orfeu, 2007)
- UHF: "Canções Prometidas" (CD, Farol Música, 2007)
- Vários: "Adriano, Aqui e Agora: o Tributo" (CD, Movieplay, 2007)
- Vários: "Adriano Sempre" (CD, Grandmúsica, 2007)
- Vários: "As Marchas do São Luiz" (CD, Som Livre, 2007)
- Vários: "Fados by Carlos Saura" (CD, EMI, 2007)
- Vários: "Fados de Uma Vida: As Escolhas de Carlos do Carmo" (CD, Farol Música, 2007)
- Vários: "Lisboa" (CD, Lisboa Records, 2007)
- Xaile: "Xaile" (CD, Universal Music, 2007)
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Outros artigos sobre música portuguesa:
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30 dezembro 2008
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