28 novembro 2024

Jacques Brel: "J'Arrive"


Pierre-Auguste Renoir, "Bouquet de Chrysanthèmes" ("Ramalhete de Crisântemos"), 1884, óleo sobre tela, 81,5 x 65,5 cm, Musée des Beaux-Arts de Rouen, França


«Sempre que passo por Abrantes estaciono o carro o mais perto possível do magnífico Museu Ibérico de Arqueologia e Arte, que trouxe nova vida a parte significativa do antigo convento de São Domingos e dou uma volta pelas ruas da velha urbe, já não me atrevendo a subir até ao jardim do Castelo ou a galgar a ladeira dos Quinchosos, cujo nome sempre me delicia. Claro que me abasteço de palha de Abrantes e, entretanto, sento-me num daqueles bancos à volta da árvore, no Jardim da República. Não percam de ouvido esta imagem de um círculo de bancos de jardim em redor de uma árvore, enquanto puxo o fio que aqui me traz.
Ontem, ao fim da noite, encontrei no jornal digital "Médio Tejo" a notícia de que a Câmara da "cidade florida" retoma, por estes dias, uma velha tradição novembrina, espalhando pelas ruas mais de 500 vasos de crisântemos. A jornalista Paula Morato explica que a tradição dos crisântemos foi iniciada pelo mestre jardineiro Simão Vieira que, em meados dos anos 30, expôs dezenas de variedades da "flor de ouro" no jardim do Castelo. Já não eram horas de ligar ao meu querido amigo Francisco Lopes a saber mais sobre este mestre jardineiro que se reformou nos anos 70, mas fica o nome de Simão atrás da orelha enquanto não me chega, do historiador amigo, aconchego bibliográfico sobre o homem que imagino a falar com as criaturas vegetais, envasadas ou não.
Mestre Simão criou cruzamentos felizes de crisântemos. Muitos cruzamentos. Para ele, a flor estimada dos abrantinos não exalava perfume de partida, de adeus fúnebre, como "J'arrive", a canção triste do Brel. Não sei se há em Abrantes uma rua com o nome de Simão Vieira, se houver aplaudo, se não houver tomai nota, senhores da toponímia local e, já agora, não hesiteis em replicar os bons ofícios da ribatejana Moita que tem uma Praceta dos Crisântemos.
Simão Vieira teria gostado de conversar com o escritor alemão [Peter Wohlleben] autor do best-seller "A Vida Secreta das Árvores". Ele afirmou, há uns anos, numa entrevista, a convicção de que as árvores têm sentimentos, comunicam entre si usando aquilo que classificou como "uma internet subterrânea". Esse escritor, cujo nome não me ocorre pronunciar por escapar excessivamente à raiz latina, invocou uma experiência científica realizada em África provando que as acácias libertam um produto químico quando as girafas começam a comê-las. Ele acredita que as árvores são muito parecidas com os humanos e que até se apaixonam.
O mestre jardineiro Simão Vieira já não pode sentar-se num destes bancos do jardim da República, de Abrantes, rodeando a árvore que talvez seja um cedro dos Himalaias, talvez uma tília, aquela espécie perfumada cuja madeira, dizem, é ideal para a construção das guitarras Fender.
Peço ao meu amigo Francisco Lopes, historiador de Abrantes, que me perdoe a talvez infrutífera tentativa de identificação de uma árvore cercada de bancos num jardim tranquilo. Certeza firme não tenho senão aquela de que em frente à biblioteca há uma pimenteira-bastarda. Mas, sim, quando me sento num dos bancos em círculo, virado para a árvore que não sei identificar com absoluta segurança, acredito que ela me estará dirigindo um gesto amável. E acredito que os crisântemos agora espalhados pela cidade são uma flor de acolhimento e não de despedida, como os da canção de Brel.» [Fernando Alves, "Em louvor de Simão Vieira", in "Os Dias que Correm", 28 Nov. 2024]


Alguém menos familiarizado com o repertório de Jacques Brel poderia não identificar facilmente a canção que fala de crisântemos (chrysanthèmes), mas Fernando Alves deu-se ao cuidado de referir expressamente o título: "J'Arrive". Mesmo assim, o locutor de serviço do programa da manhã da Antena 1, Ricardo Soares, por sua vontade ou em obediência a ordens de Nuno Galopim de Carvalho para seguir à risca o que é ditado pela 'playlist', não mexeu uma palha e, consequentemente, aquela canção que seria o óbvio e natural remate poético-musical à crónica não apareceu no éter. E assim desbaratou-se também, leviana e irresponsavelmente, uma excelente oportunidade para honrar a memória daquele que foi (é), segundo muitos, o expoente máximo da canção francófona e, indubitavelmente, um dos intérpretes de topo da canção mundial, o qual, apesar de tão elevados pergaminhos, é muito difícil de se ouvir na Antena 1 (pelo que nos temos apercebido, só David Ferreira o 'convoca', uma vez por outra, para os espaços que vai mantendo com grande profissionalismo, mau grado o seu trabalho não ser devidamente valorizado). Aos ouvintes que ficaram com vontade de ouvir a canção de Brel trazida à colação por Fernando Alves não restou outra opção do que ir à procura dela no YouTube ou noutra plataforma de 'streaming'. Foi o que fez o escrevente destas linhas, após ter sido novamente defraudado com o displicente serviço oferecido pela rádio para a qual é chamado a desembolsar o seu dinheiro.
Os ouvintes da Antena 1 que não trataram de ir escutar a canção pelos seus próprios meios, sendo visitantes desta página, podem agora colmatar a lacuna que a rádio que pagam lhes deixou (desrespeitosamente) aberta. Boa escuta!



J'Arrive



Letra: Jacques Brel
Música: Jacques Brel e Gérard Jouannest
Orquestração: François Rauber
Intérprete: Jacques Brel* (in LP "J'Arrive", Barclay, 1968, reed. Barclay, 2003; 2CD "Infiniment": CD 1, Barclay, 2003)




De chrysanthèmes en chrysanthèmes
Nos amitiés sont en partance
De chrysanthèmes en chrysanthèmes
La mort potence nos dulcinées
De chrysanthèmes en chrysanthèmes
Les autres fleurs font ce qu'elles peuvent
De chrysanthèmes en chrysanthèmes
Les hommes pleurent, les femmes pleuvent

J'arrive, j'arrive
Mais qu'est-ce que j'aurais bien aimé
Encore une fois traîner mes os
Jusqu'au soleil, jusqu'à l'été
Jusqu'au printemps, jusqu'à demain

J'arrive, j'arrive
Mais qu'est-ce que j'aurais bien aimé
Encore une fois voir si le fleuve est encore fleuve
Voir si le port est encore port
M'y voir encore

J'arrive, j'arrive
Mais pourquoi moi, pourquoi maintenant?
Pourquoi déjà et où aller?
J'arrive, bien sûr, j'arrive
Mais ai-je jamais rien fait d'autre qu'arriver?

De chrysanthèmes en chrysanthèmes
À chaque fois plus solitaire
De chrysanthèmes en chrysanthèmes
À chaque fois surnuméraire

J'arrive, j'arrive
Mais qu'est-ce que j'aurais bien aimé
Encore une fois prendre un amour
Comme on prend le train pour plus être seul
Pour être ailleurs, pour être bien

J'arrive, j'arrive
Mais qu'est-ce que j'aurais bien aimé
Encore une fois remplir d'étoiles
Un corps qui tremble et tomber mort
Brûlé d'amour, le cœur en cendres

J'arrive, j'arrive
C'est même pas toi qui est en avance
C'est déjà moi qui suis en retard
J'arrive, bien sûr, j'arrive
Mais ai-je jamais rien fait d'autre qu'arriver?

[instrumental]


* Jacque Brel – voz
Orquestra dirigida por François Rauber
URL: https://pt.wikipedia.org/wiki/Jacques_Brel
https://fondationbrel.be/
https://www.facebook.com/JacquesBrelOfficiel/
https://music.youtube.com/channel/UCfTQeXFqPeKviVfpzDevqaw



Capa do LP "J'Arrive", de Jacques Brel (Barclay, 1968)



Capa da compilação em duplo CD "Infiniment", de Jacques Brel (Barclay, 2003).

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Outros artigos com repertório da chanson française:
Em memória de Georges Moustaki (1934-2013)
Ser Poeta

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Outros artigos relacionados com a crónica de Fernando Alves na Antena 1:
Galandum Galundaina: "Chin Glin Din"
"Sons d'Outrora" em viola da terra, por Miguel Pimentel
Vitorino: "Moças de Bencatel" (Conde de Monsaraz)
Teresa Silva Carvalho: "Barca Bela" (Almeida Garrett)
António Borges Coelho: "Sou Barco"
Celeste Rodrigues: "Chapéu Preto"
Sérgio Godinho: "Tem Ratos"
Ruy Belo: "E Tudo Era Possível", por Nicolau Santos

27 novembro 2024

Camões musicado por Fernando Lopes-Graça (obras corais 'a cappella')




Obras corais a cappella de Fernando Lopes-Graça

Por: Sérgio Azevedo (compositor e docente)



Tivesse Fernando Lopes-Graça escolhido as belas letras, ao invés da música, e teria decerto feito igual e brilhante carreira: foi jornalista (fundou o jornal A Acção, em Tomar), crítico (de música, cinema, teatro e bailado) tradutor (de Rousseau, Thomas Mann, Romain Rolland, Andor Foldes e outros), musicólogo, ensaísta, e pedagogo, e em todas estas diferentes facetas fez original e esmerado uso da língua-mãe. Homem cultíssimo, colabora com Tomás Borba no Dicionário de Música, que revê e amplia, e corresponde-se com Vianna da Motta e outras doutas personalidades do mundo português de então, e a sua obra epistolar demonstra, de igual modo, o cuidado e amor por aquela que, como diria Fernando Pessoa, era também — para além da música, sua religião — a sua pátria: a língua portuguesa.
E é a língua portuguesa, e os tratos de polé que esta sofre às mãos de músicos de escassa formação musical e literária, como Ruy Coelho) que mais preocupa Lopes-Graça quando este se debruça sobre o problema de como compor música sobre textos portugueses. A prosódia difícil da nossa língua impele-o a reflectir sobre a melhor maneira de solucionar os diversos obstáculos que o português apresenta. Parte da solução encontra-se nas melodias populares portuguesas, com a sua imaginação prosódica e as suas aliterações e assonâncias irregulares mas belas. Pois Lopes-Graça procura, não a perfeição pedante de uma prosódia académica, correcta e fria, mas a naturalidade, humor e calor humano da prosódia que o povo, na sua ingenuidade, inventa, infalivelmente correcta de um ponto de vista artístico, senão mesmo perfeita nos contextos em que é usada. E se Lopes-Graça não vai buscar exemplos demasiado concretos à prosódia de um Stravinski, de um Janacek ou de um Bartók, tal deve-se apenas ao facto de cada língua ser única, e o que vale para uma, torna-se inútil noutra.
Mas ouçamos o compositor (in A Música Portuguesa e os Seus Problemas II, ed. Cosmos, 1976, artigo "A língua portuguesa e a música", pp. 54-56):

«...A acentuação multiforme do português, as subtilezas de quantidade silábica que apresenta, a sua enervante desarticulação (que grande escritor espanhol disse ser o português uma espécie de "castelhano sem osso"?), o característico smorzando das suas terminações — tudo isto são aspectos notáveis do idioma a que se me afigura não ter a generalidade dos nossos músicos prestado a devida atenção, nem haverem cabalmente enformado por enquanto a prosódia das suas produções vocais...»

«...É certo que a canção popular não pode servir de modelo, de paradigma prosódico, para a canção culta; mas não seria mau que esta por vezes aceitasse os "ilogismos" da prosódia que aquela amiúde apresenta, verdadeiros achados que só aparentemente são deslizes ou incorrecções devidos à incultura e ao simplismo do povo, o qual nisso, como em tantas outras coisas, revela com frequência verdadeira sensibilidade e gosto artístico.
Uma prosódia disciplinada e esteticamente eficiente é condição indispensável para que os próprios cantores se sintam à vontade na interpretação de um texto poético-musical; ela é um adjuvante técnico que lhes facilita não só o trabalho de respiração e articulação, como a tarefa de dar ao desenho melódico a necessária clareza...»

Também, pelo que atrás foi dito, se pode esperar da produção vocal e coral de Fernando Lopes-Graça, não só a prosódia (exceptuando-se, naturalmente, as harmonizações de melodias populares, já prosodiadas pelos músicos populares, que as criaram), mas também, e dadas as dimensões enormes desta produção (163 opus, só ultrapassados pelas quase 300 peças individuais para piano solo), a magnífica mundividência no que toca à escolha dos poetas e escritores: simplesmente, quase não existe nome grande da nossa história literária, antiga e recente, que Lopes-Graça não tenha posto em música.
Ouvir as canções para canto e piano, e as obras corais, com ou sem instrumentos, é conhecer a quase totalidade da melhor poesia portuguesa de seis séculos, incluindo a destinada às crianças: Gil Vicente, Luís Vaz de Camões, Miguel Torga, Sophia de Mello Breyner Andresen, Matilde Rosa Araújo, José Gomes Ferreira, Gomes Leal, António Nobre, João José Cochofel, Eugénio de Andrade, Afonso Duarte, António Botto, Fernando Pessoa, Antero de Quental, Adolfo Casais Monteiro, José Régio, Carlos Queiroz, Carlos de Oliveira, Teixeira de Pascoaes, Raul Brandão, Bernardim Ribeiro, Aquilino Ribeiro, Bocage, Florbela Espanca, Ivo Machado, José Saramago, Camilo Pessanha, Fiama Hasse Pais Brandão, Sá de Miranda, Vitorino Nemésio, Almeida Garrett, Mário Cesariny de Vasconcelos, António Nobre, Guerra Junqueiro, Eugénio de Castro... enfim, a lista ainda continua. Destes, Fernando Pessoa, Eugénio de Andrade e Luís Vaz de Camões ganharam emérito destaque, pela quantidade e qualidade dos ciclos que lhes foram dedicados.
Mas, se as obras para canto e piano (o lied) padecem, pela sua carga histórica, de uma costela mais aristocrática e intimista (mesmo quando se trata de simples harmonizações do folclore de vários países), já as obras para coro a cappella (como as 228 canções dos 24 cadernos das Regionais), ou coro e instrumentos (como os 8 volumes das Heróicas), maioritariamente baseadas em melodias populares portuguesas e respectivos textos, e destinadas em grande parte, a corais amadores que pululavam (e pululam, felizmente!) nas colectividades e terreolas por este país fora, representam a proximidade com o povo. Não o povo idílico e imaginado à distância por realezas arcádicas e burguesias entediadas, mas o povo real, de carne e osso, a cheirar ao suor honesto de quem trabalhou arduamente a jorna de sol a sol.
É para este povo que canta, e gosta de ouvir cantar, que Lopes-Graça escreve o enorme corpus de obras para coro a cappella, e é à frente de inúmeros grupos corais amadores (com estaque, e claro, para o Coro da Academia dos Amadores de Música, coro que, renovado, ainda labuta, sob a direcção competentíssima do maestro José Robert) que leva a sua música para o Alentejo, o Minho, o Algarve, para Trás-os-Montes, as Beiras e a Estremadura. São ainda as Heróicas que os detidos, políticos e não só, entoam em segredo nas prisões infectas do Aljube, de Alpiarça, Peniche, Caxias, e até no Tarrafal cabo-verdiano. Os coros serão, para Lopes-Graça, o meio de contacto com a realidade musical, a sua sobrevivência como artista numa altura em que a maior parte da sua música de concerto está proibida; uma verdadeira filosofia artística, de vida, e de cidadania, que Lopes-Graça coloca ao serviço da cultura do seu povo.
Também a poesia espanhola (país a cuja música tanto ficou a dever) tentou Lopes-Graça: António Machado e Lorca, e a poesia e música dos judeus sefarditas (judeus de origem espanhola, expulsos pelos Reis Católicos em diáspora para o Oriente), embora no campo da poesia estrangeira (exceptuando-se, para além destes dois nomes, os vários ciclos de melodias populares de vários países, como a França, Inglaterra, Brasil, Grécia, Rússia, Checoslováquia, Hungria) o compositor se tenha limitado a Ronsard e a Tagore, o que seria de esperar, se atentarmos na riqueza inesgotável da poesia portuguesa, horizonte por demasiado vasto, nem sequer ao alcance das forças criativas ciclópicas de um Fernando Lopes-Graça.
A experiência continuada de Lopes-Graça como compositor e regente coral fez com que o seu conhecimento das possibilidades da voz humana, sozinha e em conjunto, se tornasse absoluto. Nunca propriamente "fáceis" de cantar, as obras corais de Lopes-Graça para coros amadores estão porém ao alcance de quem as queira trabalhar com seriedade. Nem simplismos, nem complicações impossíveis, mas simplicidade com constante desafio. Já as obras mais exigentes têm de ser interpretadas por coros com maior nível de preparação, sem que possam ser consideradas impossíveis. Talvez seja esse cuidado e erudição do compositor, no que toca à voz, que faz com que a maior parte, senão todas as obras corais de Lopes-Graça (incluindo o monumental e difícil Requiem), tenha vindo a ser cantada, e bem, por bons agrupamentos amadores, sendo o Coro Gulbenkian uma excepção, por se tratar de um grupo profissional, no qual todos os membros detêm amplos conhecimentos musicais (do solfejo à teoria), e cantam regularmente as maiores obras do repertório coral e coral sinfónico internacional.
Todas as questões, relativas à prosódia, à vocalidade, à beleza dos textos e ao uso das lições do folclore, e a maneira como Lopes-Graça as resolveu, são notórias nas obras escolhidas para este CD, com uma excepção: não foram cantadas peças baseadas em melodias populares, mas unicamente obras originais, quer sobre textos tradicionais — em português e castelhano — quer sobre textos de poetas portugueses. Também a dificuldade e complexidade de quase todas as colocam longe do alcance de um coro amador.
[...]
As Quatro Redondilhas de Camões, escritas entre 1951 e 1953, para a combinação de vozes femininas a 4 partes (SSAA), mostram, uma vez mais, a excelsa mestria de Lopes-Graça no tratamento do coro, e a influência comovida dos compositores portugueses e espanhóis de Quinhentos e Seiscentos.
A redondilha é o nome dado, desde o século XVI às estrofes com versos de cinco ou sete sílabas, respectivamente "redondilha menor" e "redondilha maior". Esta forma — de origem castelhana — foi muito usada pelos poetas que integram o Cancioneiro Geral, de Garcia de Resende, e, claro, por Camões. Começa, normalmente, por um mote, que é depois desenvolvido ou glosado.
Com o seu uso exclusivo das vozes femininas, as Quatro Redondilhas fazem um contraste (propositado) com as Canções de Marinheiros, estas escritas unicamente para vozes masculinas. A última das redondilhas, Verdes são os campos, é um dos poemas mais conhecidos da lírica de Camões. Claramente influenciada por Dante e Petrarca, é esta caracterizada por um bucolismo generoso e um neoplatonismo por vezes pessimista. A lírica camoniana, aliás, foca quase sempre o amor, os desenganos e desconcertos do mundo, e a mudança inexorável que a passagem do tempo provoca em tudo o que ao Homem e à Natureza diz respeito.
[...]
As Três Líricas Castelhanas de Camões, compostas entre 1954 e 1955, para coro misto SATB [soprano, alto/contralto, tenor, baixo], integram-se, mais uma vez, nas peças corais de Lopes-Graça que mostram a influência da antiga música portuguesa, com as suas cadências ornamentadas e os seus acordes puros, sem a terceira. As secções solistas de De vuestros ojos centellas (a peça mais curta e rápida, que lembra os ligeiros vilancicos) emulam mesmo os pregões do Retablo de Maese Pedro, de Falla, proximidade natural, dada a afinidade destes textos com o universo espanhol.
[...]

[Texto respigado do caderno do álbum "Fernando Lopes-Graça: Música Coral", do Coro Gulbenkian, dir. Jorge Matta, PortugalSom/Numérica, 2008]


Estando em curso as comemorações do quinquicentenário do nascimento de Luís de Camões, que foi um dos três poetas eruditos que Fernando Lopes-Graça mais musicou (os outros dois foram Fernando Pessoa e Eugénio de Andrade), o trintenário da morte do ilustre compositor, que hoje se assinala, afigurou-se-nos um óptimo pretexto para uma celebração conjunta. Ora, como já apresentámos os sonetos (Op. 27 / Op. 112 / Op. 215 / Op. 231), cantados pelo tenor Fernando Serafim, acompanhado ao piano por Filipe de Sousa, na série "Camões recitado e cantado", achámos por bem focarmo-nos, na presente ocasião, em obras corais a cappella, mais concretamente nas "Quatro Redondilhas", Op. 76, pelo Coro Gulbenkian, sob a regência de Jorge Matta, e nas "Três Líricas Castelhanas", Op. 96, pelo Coro de Câmara de Lisboa, dirigido por Teresita Gutierrez Marques. Sete trechos da lapidar poesia de Camões admiravelmente servida pela primorosa música de Lopes-Graça que não podem deixar de encantar quem cultiva a música coral e susceptíveis de cativar os ouvidos menos habituados a este género de repertório. Boa audição!

Na actual grelha da Antena 2 há uma chusma de rubricas e rubriquinhas, boa parte das quais de reduzida ou ínfima relevância cultural (algumas delas mais não são que enxúndias para entorpecer os neurónios), mas não existe uma – uma sequer – consagrada à canção erudita portuguesa, seja por intérpretes solistas seja por coros, que é um património vasto e substancialmente rico (e não fosse Portugal um país de grandes poetas e de inspirados compositores que muito os dignificaram!). Só a produção de Fernando Lopes-Graça nesse domínio, abarcando o avultado acervo das suas hamonizações de canções regionais, daria para manter uma rubrica, com periodicidade de segunda a sexta-feira, durante mais de um ano. E este ano do trintenário da morte, bem poderia ser o do início dessa tão necessária rubrica. Assim a direcção de programas da Antena 2 tenha a clarividência de agir em conformidade.

E na presente data, o que fez o canal mais cultural da estação pública de rádio em memória de Fernando Lopes-Graça? Demo-nos conta de que no programa do início da manhã, Paulo Alves Guerra evocou o insigne compositor transmitindo algumas das suas peças, designadamente as "Variações sobre um Tema Popular Português", Op. 1, tocadas pelo pianista Artur Pizarro [>> YouTube Music]. No espaço do início da noite, "Baile de Máscaras", o seu animador, João Rodrigues Pedro, também teve o louvável cuidado de assinalar a efeméride, dando a ouvir duas secções ('Intermezzo' e 'Fandango') do "Divertimento", Op. 107, pela Orquestra Sinfónica Portuguesa, sob a direcção de Bruno Borralhinho [>> YouTube Music]. Não acompanhámos os espaços musicais do final da manhã ("Boulevard") e da tarde ("Vibrato"), mas mesmo admitindo que neles foi possível ouvir algo da vastíssima obra de Fernando Lopes-Graça, mais podia e devia a Antena 2 fazer, no turno da noite, resgatando do arquivo histórico um documentário biográfico, e/ou um programa de autor sobre o compositor e/ou uma entrevista. Nada disso aconteceu, deploravelmente, e aí a responsabilidade é inteirinha da direcção de programas que, uma vez mais, pecou por omissão.



Se Helena apartar



Poema (vilancete em redondilha menor): Luís de Camões (in "Rimas", org. Estêvão Lopes, Lisboa, 1598; "Obras de Luís de Camões", Porto: Lello & Irmão Editores, 1970 – 806-807)
Música: Fernando Lopes-Graça (1.ª peça do ciclo "Quatro Redondilhas de Camões", Op. 76, LG 22, 1951-53)
Intérprete: Coro Gulbenkian*, dir. Jorge Matta (in CD "Fernando Lopes-Graça: Música Coral", PortugalSom/Numérica, 2008)


          MOTE

Se Helena apartar
do campo seus olhos,
nascerão abrolhos.

          VOLTAS

A verdura amena,
gados, que pasceis,
sabei que a deveis
aos olhos de Helena.
Os ventos serena,
faz flores de abrolhos
o ar de seus olhos.

Faz serras floridas,
faz claras as fontes:
se isto faz nos montes,
que fará nas vidas?
Trá-las suspendidas,
como ervas em molhos,
na luz dos seus olhos.

Os corações prende
com graça inumana;
de cada pestana
uma alma lhe pende.
Amor se lhe rende
e, posto em geolhos,
pasma nos seus olhos.


Notas:
abrolhos – plantas herbáceas, de fruto espinhoso, que crescem nos terrenos incultos da região mediterrânica;
pasceis – pastais;
inumana – sobre-humana, divina;
Amor – Eros/Cupido (deus do amor);
geolhos – joelhos.



Falso cavaleiro ingrato



Poema (cantiga em redondilha maior): Luís de Camões (in "Rimas", org. Fernão Rodrigues Lobo Soropita, Lisboa, 1595; "Obras de Luís de Camões", Porto: Lello & Irmão Editores, 1970 – p. 777-778)
Música: Fernando Lopes-Graça (2.ª peça do ciclo "Quatro Redondilhas de Camões", Op. 76, LG 22, 1951-53)
Intérprete: Coro Gulbenkian*, dir. Jorge Matta (in CD "Fernando Lopes-Graça: Música Coral", PortugalSom/Numérica, 2008)


          CANTIGA VELHA

Falso cavaleiro ingrato,
            enganais-me;
vós dizeis que vos eu mato,
        e vós matais-me.

          VOLTAS

Costumadas artes são
para enganar inocências,
piadosas aparências
sobre isento coração.
Eu vos amo, e vós, ingrato,
              magoais-me,
dizendo que vos eu mato,
        e vós matais-me.

Vede agora qual de nós
anda mais perto do fim,
que a justiça faz-se em mim
e o pregão diz que sois vós.
Quando mais verdade trato,
              levantais-me
que vos desamo e vos mato,
        e vós matais-me.



Tende-me mão nele



Poema (vilancete em redondilha menor): Luís de Camões (in "Rimas", org. Estêvão Lopes, Lisboa, 1598; "Obras de Luís de Camões", Porto: Lello & Irmão Editores, 1970 – p. 810-811)
Música: Fernando Lopes-Graça (3.ª peça do ciclo "Quatro Redondilhas de Camões", Op. 76, LG 22, 1951-53)
Intérprete: Coro Gulbenkian*, dir. Jorge Matta (in CD "Fernando Lopes-Graça: Música Coral", PortugalSom/Numérica, 2008)


          MOTE ALHEIO

Tende-me mão nele,
que um real me deve.

          VOLTAS

C'um real de amor
dous de confiança
e três de esperança
me foge o tredor.
Falso desamor
se encerra naquele
que um real me deve.

Pediu-mo emprestado,
não lhe quis penhor;
é mau pagador,
tendo-me aferrado.
C'um cordel atado
ao Tronco se leve,
que um real me deve.

Por esta travessa
se vai acolhendo;
ei-lo vai correndo,
fugindo a grã pressa.
Nesta mão e nessa
o falso se atreve,
que um real me deve.

Comprou-me amor
sem lhe fazer preço:
eu não lhe mereço
dar-me desfavor.
Dá-me tanta dor
que ando após ele
pelo que me deve.

Eu de cá bradando,
ele vai fugindo;
ele sempre rindo,
eu sempre chorando.
De quando em quando
no amor se atreve,
como que não deve.

A falar verdade,
ele já pagou;
mas inda ficou
devendo ametade.
Minha liberdade
é a que me deve;
só nela se atreve.



Verdes são os campos



Poema (cantiga em redondilha menor): Luís de Camões (in "Rimas", org. Estêvão Lopes, Lisboa, 1598; "Obras de Luís de Camões", Porto: Lello & Irmão Editores, 1970 – p. 807-808)
Música: Fernando Lopes-Graça (4.ª peça do ciclo "Quatro Redondilhas de Camões", Op. 76, LG 22, 1951-53)
Intérprete: Coro Gulbenkian*, dir. Jorge Matta (in CD "Fernando Lopes-Graça: Música Coral", PortugalSom/Numérica, 2008)


          MOTE ALHEIO

Verdes são os campos,
de cor de limão:
assim são os olhos
do meu coração.

          VOLTAS

Campo, que te estendes
com verdura bela;
ovelhas, que nela
vosso pasto tendes,
de ervas vos mantendes
que traz o Verão,
e eu das lembranças
do meu coração.

Gados, que pasceis,
co contentamento,
vosso mantimento
não no entendeis:
isso que comeis
não são ervas, não:
são graças dos olhos
do meu coração.


* Coro Gulbenkian (naipes femininos):
Sopranos – Clara Coelho (solista em "Tende-me mão nele"), Graziela Lé (solista em "Tende-me mão nele"), Marisa Figueira (solista em "Tende-me mão nele"), Mónica Santos (solista em "Se Helena apartar"), Rosa Caldeira (solista em "Se Helena apartar" e "Verdes são os campos")
Susana Duarte (solista em "Verdes são os campos"), Teresa Azevedo, Verónica Silva
Contraltos – Catarina Saraiva, Inês Martins, Mafalda Borges Coelho, Manon Marques (solista em "Tende-me mão nele"), Michelle Rollin (solista em "Falso cavaleiro ingrato" e "Tende-me mão nele"), Patrícia Mendes (solista em "Se Helena apartar"), Tânia Valente (solista em "Tende-me mão nele")
Direcção – Jorge Matta

Produção musical – Sérgio Fontão
Produção – PortugalSom - Ministário da Cultura / Direcção-Geral das Artes
Gravado no Grande Auditório da sede da Fundação Gulbenkian, Lisboa, por Numérica, Lda.
Gravação, editing e misturas – João Nuno Silva
URL: https://gulbenkian.pt/musica/coro-e-orquestra/coro-gulbenkian/
https://www.meloteca.com/portfolio-item/coro-gulbenkian/
https://www.facebook.com/gulbenkianmusica/
https://music.youtube.com/channel/UCE3UnGOGRWjEj93WPvMzadw



Ojos, herido me habéis



Poema (vilancete em redondilha maior): Luís de Camões (in "Rimas", org. Dom António Álvares da Cunha, Lisboa, 1668; "Obras de Luís de Camões", Porto: Lello & Irmão Editores, 1970 – p. 839)
Música: Fernando Lopes-Graça (1.ª peça do ciclo "Três Líricas Castelhanas de Camões", Op. 96, LG 25, 1954-55)
Intérprete: Coro de Câmara de Lisboa*, dir. Teresita Gutierrez Marques (in CD "Música Coral Portuguesa do Século XX", Numérica, 1999)


          MOTE

Ojos, herido me habéis,
acabad ya de matarme;
mas muerto, volvé á mirarme
porque me resucitéis.

          VOLTAS

Pues me distéis tal herida
con gana de darme muerte,
el morir me es dulce suerte,
pues con morir me dais vida.
¿Ojos, qué os detenéis?
Acabad ya de matarme;
mas muerto, volvé á mirarme,
porque me resucitéis.

La llaga cierto ya es mía,
aunque, ojos, vos no queráis;
mas si la muerte me dais,
el morir me es alegría.
Así, digo que acabéis,
ojos, de matarme;
mas muerto, volvé á mirarme,
porque me resucitéis.



De vuestros ojos centellas



Poema (vilancete em redondilha maior): Luís de Camões (in "Rimas", org. Fernão Rodrigues Lobo Soropita, Lisboa, 1595; "Obras de Luís de Camões", Porto: Lello & Irmão Editores, 1970 – p. 779-780)
Música: Fernando Lopes-Graça (2.ª peça do ciclo "Três Líricas Castelhanas de Camões", Op. 96, LG 25, 1954-55)
Intérprete: Coro de Câmara de Lisboa*, dir. Teresita Gutierrez Marques (in CD "Música Coral Portuguesa do Século XX", Numérica, 1999)


          MOTE ALHEIO

De vuestros ojos centellas
que encienden pechos de hielo,
suben por el aire al cielo
y en llegando son estrellas.

          VOLTAS

Falsos loores os dan,
que esas centellas tan raras
no son nel cielo más claras
que en los ojos donde están.
Porque cuando miro en ellas
lo cómo alumbran al suelo
no sé qué serán nel cielo,
mas sé qué acá son estrellas.

Ni se puede presumir
que al cielo suban, Señora;
que la lumbre que en vos mora,
no tiene más que subir.
Mas pienso que dan querellas
a Dios nel octavo cielo,
porque son acá en el suelo
dos tan hermosas estrellas.



¿Do la mi ventura



Poema (vilancete em redondilha maior): Luís de Camões (in "Rimas", org. Domingos Fernandes, Lisboa, 1616; "Obras de Luís de Camões", Porto: Lello & Irmão Editores, 1970 – p. 816-817)
Música: Fernando Lopes-Graça (1.ª peça do ciclo "Três Líricas Castelhanas de Camões", Op. 96, LG 25, 1954-55)
Intérprete: Coro de Câmara de Lisboa*, dir. Teresita Gutierrez Marques (in CD "Música Coral Portuguesa do Século XX", Numérica, 1999)


          MOTE

¿Do la mi ventura,
que no veo alguna?

          VOLTAS

Sepa quien padece,
que en la sepultura
se esconde ventura
de quien la merece.
Allá me parece
que quiere fortuna
que yo halle alguna.

Naciendo mezquino,
dolor fué mi cama;
tristeza fué el ama,
cuidado el padrino.
Vistióse el destino
negra vestidura,
huyó la ventura.

No se halló tormento
que allí no se hallase;
ni bien que pasase
sino como viento.
¡Oh qué nacimiento,
que luego en la cuna
me siguió Fortuna!

Esta dicha mía
que siempre busqué,
buscándola hallé
que no la hallaría;
que quien nace en día
de estrella tan dura,
nunca halla ventura.

No puso mi estrella
más ventura en min:
así vive en fin
quien nace sin ella;
quéjome que atura
vida tan escura.


* Coro de Câmara de Lisboa:
Sopranos – Jael Martins, Lucina Silva, Mafalda Nascimento, Matilde de Castro, Susana de Oliveira, Teresa Cordeiro
Contraltos – Ana Ferro, Isabel Torres, Luzia Rocha, Marta Gregório, Sílvia Fontão
Tenores – Aníbal Coutinho, Carlos Quintelas, José Pereira, Pedro Marques, Sérgio Fontão, Vítor Gonçalves
Baixos – António Marques, João Camacho, Jorge Leal, Marcelo Tusto, Pedro Figueira, Pedro Pires
Direcção – Teresita Gutierrez Marques

Produção – Teresita Gutierrez Marques, António Marques, Jorge Leal, Sérgio Fontão
Gravado na Igreja Anglicana de S. Jorge, Lisboa, em 1998
URL: https://corodecamaradelisboa.com/
https://www.meloteca.com/portfolio-item/coro-de-camara-de-lisboa/
https://www.facebook.com/corodecamaradelisboa/
https://www.youtube.com/@corodecamaradelisboa
https://www.youtube.com/@DoTempoDosSonhos/videos?query=coro+camara+lisboa



Capa do CD "Fernando Lopes-Graça: Música Coral", do Coro Gulbenkian, dir. Jorge Matta (PortugalSom/Numérica, 2008)
Concepção gráfica – Jorge Colombo



Capa do CD "Música Coral Portuguesa do Século XX", do Coro de Câmara de Lisboa, dir. Teresita Gutierrez Marques (Numérica, 1999)

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Outros artigos com canções musicadas ou harmonizadas por Fernando Lopes-Graça:
Música portuguesa de Natal
A infância e a música portuguesa
A vitória do azeite
Celebrando Sophia de Mello Breyner Andresen
Celebrando Eugénio de Andrade
Camões recitado e cantado (VII)
Canções portuguesas de Natal harmonizadas/musicadas por Fernando Lopes-Graça
Camões recitado e cantado (VIII)
Eugénio de Andrade e Fernando Lopes-Graça: "Aquela Nuvem e Outras"
Camões recitado e cantado (IX)
Camões recitado e cantado (X)

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Outros artigos com poesia e/ou teatro de Luís de Camões:
Camões recitado e cantado
Camões recitado e cantado (II)
Em memória de Manoel de Oliveira (1908-2015)
Camões recitado e cantado (III)
Camões recitado e cantado (IV)
Camões recitado e cantado (V)
Camões recitado e cantado (VI)
Camões recitado e cantado (VII)
Camões recitado e cantado (VIII)
Camões recitado e cantado (IX)
Luís de Camões: "Os Lusíadas" (dois excertos), por Carlos Wallenstein
Luís Cília: "Se me Levam Águas" (Luís de Camões)
Teatro camoniano em versão radiofónica
Camões por Carmen Dolores
José Mário Branco: "Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades"
Camões recitado e cantado (X)
Camões evocado por Sophia
Luís de Camões: "Endechas a Bárbara Escrava"
Luís de Camões: "Perdigão perdeu a pena"

19 novembro 2024

José Mário Branco com Fausto: "Canto dos Torna-Viagem"



A descolonização, que a Revolução dos Cravos tornou possível e que tinha de ser feita (embora se possa questionar o modo como se processou), teve como efeito o êxodo de mais de meio milhão de pessoas vindas de África para este rectângulo europeu e para os arquipélagos atlânticos adstritos. Eram os chamados retornados, se bem que, em rigor, alguns não o fossem, porque já nascidos em territórios de além-mar. A esses despojos humanos do colapso do império, cuja integração na sociedade portuguesa, analisada à distância, foi surpreendente atendendo à sua dimensão, se refere o "Canto dos Torna-Viagem" que José Mário Branco gravou com Fausto Bordalo Dias para o álbum "Resistir É Vencer", publicado há vinte anos. E percebe-se perfeitamente que José Mário Branco tenha convidado para aquele tema concreto o autor de "Por Este Rio Acima" e de "Crónicas da Terra Ardente", que são dois sublimes frescos poético-musicais da Expansão Portuguesa, não tanto em glorificação de heróis incomparáveis ou em enaltecimento de façanhas inauditas, como era timbre do colonialista Estado Novo, mas mais como documento ilustrativo da vida aventurosa e temerária de homens comuns por mares ignotos e terras estranhas, e do destino desditoso que muitos deles tiveram. Entre os malogrados pioneiros de Quinhentos e os derradeiros colonos do império, a quem não restou outra saída do que largar tudo em terras africanas para virem recomeçar a vida a partir do zero neste muito menos promissor rincão lusitano de onde haviam fugido, é lícito estabelecer um certo paralelismo – são as duas extremidades de um ciclo que se fechou –, o que torna ainda mais pertinente o convite que José Mário Branco dirigiu especificamente a Fausto, a não a outro artista que admirasse. E o arranjo também não foi gizado aleatoriamente, pois é notória a inspiração na estética de Fausto patente nos álbuns supracitados.
É pois com este fascinante e inspirado "Canto dos Torna-Viagem" que assinalamos o primeiro lustro sem a presença entre nós de José Mário Branco, aproveitando o pretexto para também homenagearmos, ainda que muito modestamente, Fausto Bordalo Dias que partiu há escassos meses. Dando destaque a este notável registo, pretendemos igualmente exemplificar o superlativo valor do legado musical/fonográfico de José Mário Branco e mostrar o quanto é culturalmente importante e imperioso estimá-lo, salvaguardá-lo e divulgá-lo. De referir que foi também esse o propósito que motivou o músico Vítor Sarmento a lançar uma petição pública visando a classificação da obra do categorizado cantautor como de interesse nacional, tendo na presente data sido entregue na Assembleia da República o dossier com as quase 4 mil assinaturas recolhidas. Esperamos que os grupos parlamentares e os deputados ajam em conformidade com tal desiderato. No capítulo da divulgação – convém nunca esquecer –, é imprescindível o papel da rádio. Ora, atentamos na pública Antena 1, que é a que tem mais responsabilidades nesse domínio, e não se consegue apanhar o quer que seja na voz de José Mário Branco durante os larguíssimos períodos em que reina a 'playlist'. Como é possível?



Canto dos Torna-Viagem



Letra e música: José Mário Branco
Intérpretes: José Mário Branco* & Fausto Bordalo Dias (in CD "Resistir É Vencer", José Mário Branco/EMI-VC, 2004, reed. Parlophone/Warner Music Portugal, 2017)




[instrumental]

Foi no sulco da viagem
Já sem armas nem bagagem
Nem os brasões da equipagem
Foi ao voltar

Pátria moratória
No coração da História
Que consumiste a glória
Num jantar

Foi como se Portugal
P'ra seu bem e p'ra seu mal
Andasse em busca dum final
P'ra começar

Ávida violência
Reverso de inocência
Sal da inconsciência
Que há no mar

Império tão pequenino
De portulano caprino
Bolsos de sina e de sino
Em cada mão

Pátria imaginária
De consistência vária
Afirmação diária
Do teu não

As malas dos portugueses
São como os olhos das rezes
Que se mastigam três vezes
Em cada chão

Cândida ignorância
Grande desimportância
Os frutos da errância
Já lá vão

Ai Senhora dos Navegantes me valei
De África, do sal e do mar só eu sobrei
Foi p'ra me encontrar que amanhã já me perdi
Longe vai o tempo em que eu já não estou aqui

Ai Senhora dos Talvez-Muitos-Mais-Sinais
Socorrei estes desperdícios coloniais
Foi na noite fria que o dia me cegou
Inda agora fui, inda agora cá não estou

Ai Senhora dos Esquecidos me lembrai
O caminho que p'ra lá vem e p'ra cá vai
Etecetra e tal, Portugal é nós no mar
Inda agora vim e estou longe de chegar

Ai Senhora dos Meus Iguais que eu subtraí
Foi pataca a mim e não foi pataca a ti
Se é tão grande a alma na palma do meu ser
Algum dia eu vou finalmente acontecer

Porque não tentar outro ponto de vista
A história dos outros, quem a contará
Se qualquer colónia sem colonialista
São os que já estavam lá

Tentemos então ver a coisa ao contrário
Do ponto de vista de quem não chegou
Pois se eu fosse um preto chamado Zé Mário
Eu não era quem eu sou

Os navegadores chegaram cá a casa
E foi tudo novo p'ra eles e p'ra mim
A cruz e a espada e os olhos em brasa
Porque me trataste assim?

Não é culpa nossa se quem p'ra cá veio
Não se incomodou ao saber do horror
A História não olha a quem fica no meio
E o que foi é de quem fôr

[instrumental / som do mar e do vento a bordo de um barco à vela]


* José Mário Branco – voz
Fausto Bordalo Dias – voz
José Peixoto, Francisco Abreu – guitarras acústicas
Carlos Bica – contrabaixo
Tomás Pimentel, Nuno Marques – trompetes
Claus Nymark, Luís Cunha – trombones
Rui Marques – flautim
António José Martins, João Luís Lobo, Fernando Molina – percussão

Quarteto Anthropos (Viena):
Luís Morais – 1.º violino
Ko Wang-Yo – 2.º violino
Michael Trabesinger – viola d'arco
Lee il-Se – violoncelo

Orquestra de Gratz (Viena):
Dong Hynk Kim – maestro
Luís Morais, Sergei Bolotny, Andreas Kalfmann, Annette Veiltendorber, Narachi Nima e Kathrin Lenzenweger – 1.os violinos
Ko Wang-Yo, Smaranda Lelutiv, Orsolya Pálfi, Nora Põtter, Stalislava Svirac e Ardian Lahi – 2.os violinos
Michael Trabesinger, Marie Therese Hartet, Laura Jungairth e Margarethe Hlava – violas d'arco
Lee il-Se, Pflegard Wilhelm e Ele Schõfmann – violoncelos
James Rapport e König Franz – contrabaixos

Grupo Coral "Os Escolhidos" (Amélia Muge, Fernando Pinheiro, Filipa Pais, Genoveva Faísca, Guilhermino Monteiro, Jorge Palma, José Manuel David, Luísa Rodrigues, Manuela de Brito, Paulo Santos Silva e Rui Vaz) – coro
Coro dos Gambozinos, Porto (Afonso Souto Moura, Amendoim, Ana Lusa Abreu, Ana Lusa Moura, Bárbara, Batatinha frita, Carolina Duarte, Chenda, Coelho, Cuca, Gui, Maria Rui, Mariana Branco, Microfone, Miguel Simões, Pilas, Presunto, Rita Sousa e Teia – ensaiados, dirigidos e muito amados por Suzana Ralha) – coro
Luís Martins Saraiva – sonoplastia da coda

Direcção, produção, arranjos e orquestrações – José Mário Branco
Assistência de produção artística – Manuela de Freitas
Assistência de produção musical – António José Martins
Produção executiva – Paulo Salgado / Vachier & Associados, Lda.
Direcção técnica – António Pinheiro da Silva
Assistência de direcção técnica e anotações – Maria João Castanheira
Gravado e masterizado no Estúdio 'O Circo a Vapor' (Lisboa), por António Pinheiro da Silva, Frederico Pereira e Maria João Castanheira, de Janeiro a Março de 2004
Gravação de cordas na Wiener Konzerthaus (Viena) por António Pinheiro da Silva, Maria João Castanheira, Georg Burdicek e Andreas Melcher, em Fevereiro de 2004
Edição e misturas nos Estúdios Pé-de-Meia (Oeiras), por António Pinheiro da Silva, Frederico Pereira, Maria João Castanheira e José Mário Branco, em Fevereiro e Março de 2004
URL: https://pt.wikipedia.org/wiki/Jos%C3%A9_M%C3%A1rio_Branco
https://arquivojosemariobranco.fcsh.unl.pt/
https://www.facebook.com/FascismoNuncaMais/posts/725849500857765/
https://expresso.pt/cultura/2019-11-19-O-momento-antes-de-disparar-a-seta-a-entrevista-de-Jose-Mario-Branco
https://www.buala.org/pt/cara-a-cara/jose-mario-branco-a-eterna-inquietacao
https://www.nit.pt/cultura/musica/morte-lenda-momentos-marcantes-vida-jose-mario-branco
https://www.esquerda.net/topics/dossier-303-jose-mario-branco-voz-da-inquietacao
https://www.publico.pt/jose-mario-branco
https://www.youtube.com/channel/UChQPBSV5W6kL-jw1Tp08g_w
https://www.youtube.com/user/DoTempoDosSonhos/videos?query=jose+mario+branco



Capa do CD "Resistir É Vencer", de José Mário Branco (EMI-VC, 2004)
Reprodução parcial do quadro "Resistência", 1946, de Júlio Pomar [imagem da obra integral e texto explicativo de Ana Anacleto >> aqui]

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Outros artigos com repertório interpretado por José Mário Branco ou da sua autoria:
Celebrando Natália Correia
Celebrando Sophia de Mello Breyner Andresen
José Mário Branco: "Zeca (Carta a José Afonso)"
Gina Branco: "Cantiga do Leite" (José Mário Branco)
Camões recitado e cantado (VI)
José Mário Branco: "Do Que um Homem É Capaz"
José Mário Branco: "Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades"
Camões evocado por Sophia

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Outros artigos com repertório de Fausto ou com ele relacionados:
A seca que a Antena 1 deu a Fausto... e aos ouvintes
Grandes discos da música portuguesa: efemérides em 2007
A infância e a música portuguesa
Celebrando Eugénio de Andrade
Fausto Bordalo Dias: "Uma Cantiga de Desemprego"
Fausto Bordalo Dias: "Quando Eu Morrer" (Alexandre Dáskalos)

15 novembro 2024

Ruy Belo: "E Tudo Era Possível", por Nicolau Santos


© Duarte Gromicho, Out. 2021 (in https://view.genially.com/)


«Dois investigadores da Universidade de Pittsburgh colocaram mais de 1600 pessoas diante de dez poemas. Cinco desses poemas haviam sido gerados por Inteligência Artificial, tomando como modelo o estilo de poetas como T.S. Elliot ou Lord Byron. Os leitores não conseguiram distinguir, entre os dez poemas, quais eram genuinamente de Shakespeare ou do Nobel de Literatura influenciado por [Ezra] Pound e quais tinham sido gerados por sistema informático. Mas tendiam a preferir, por serem "mais directos e acessíveis", aqueles que tinham sido produzidos pela artificiosa máquina lírica. Máquina lírica não vos soa a Herberto? Soa-vos bem. Que diz mais a notícia? Diz que a alegada maior compreensão dos poemas gerados por Inteligência Artificial conduziu a maioria dos participantes à convicção de que esses, os "mais fáceis de compreender", eram os poemas de "autoria humana". Dito de outro modo: a malta prefere poemas da IA. IA, meu.
Se o mercado se render ao filão da poesia produzida artificialmente podemos imaginar amantes do antigo e humano modelo criativo procurando velhas livrarias como se procurassem abrigos nucleares. Uso a palavra "nuclear" querendo significar "central", "essencial". Querendo significar a sua importância vital, desmesurada.
Manoel de Barros, o meu poeta tão amado, deixou firmados estes versos sobre importâncias quando nem se falava de Inteligência Artificial: "O cu de uma formiga é mais importante para o poeta do que uma usina nuclear".
Assim pudesse surgir, entretanto, um Álvaro de Campos que nos gritasse com novas palavras, com novas humanas palavras: "Estou cansado da inteligência. Pensar faz mal às emoções". Um futuro criador de geniais heterónimos ousará lançar ao Chat GPT o verso mote desabrido "Estou cansado da inteligência artificial"?
Lá está Herberto no "Poemacto": "As vacas dormem, as estrelas são truculentas/ a inteligência é cruel/ Eu abro para o lado dos campos./ Vejo como estou minado por esse/ puro movimento de inteligência. Porque olho/ rodo nos gonzos como para a felicidade/ Mais levantadas são as arbitrárias ervas/ do que as estrelas/ Tudo dorme nas vacas/ Oh violenta inteligência onde as coisas/ levitam preciosamente".
É possível? Será possível que a IA detenha esse poder que o poeta alcança e de que fala Ruy Belo num poema. "Na minha juventude antes de ter saído/ da casa de meus pais disposto a viajar/ eu conhecia já o rebentar do mar/ das páginas dos livros que já tinha lido". Está no "Homem de Palavra(s)" esse poema que termina com o poeta perguntando-se quando foi isso, não tendo para essa pergunta resposta bastante. Isso explica os versos finais do poema: "Só sei que tinha o poder duma criança/ Entre as coisas e mim havia vizinhança/ E tudo era possível, era só querer".
A notícia que motivou esta deambulação diz-nos, da Inteligência Artificial, a possibilidade de que ela confunda leitores, mais ou menos calejados, de poetas maiores. Admitamos que, com a sua vasta asa tecnológica, essa possibilidade abranja tudo. E que tudo seja possível, mesmo se apenas ilusoriamente possível. Também, nesta nova frente poética, genialmente enganadora, bastará querer? Se sim, até onde irá o querer desta fonte geradora de formidáveis enganos?» [Fernando Alves, "A máquina lírica", in "Os Dias que Correm", 15 Nov. 2024]


A TSF-Rádio Jornal, apesar de ser uma rádio privada, logo com as contingências inerentes a essa condição, presenteava sempre os ouvintes da crónica "Sinais", de Fernando Alves, logo que ela acabava, com um registo musical (geralmente cantado, mas podia ser instrumental) ou, uma vez por outra, de poesia dita/recitada. Registos esses que não eram escolhidos à toa, pois obedeciam a um rigoroso e exigente critério de qualidade e de enquadramento temático com as palavras enunciadas pelo cronista. Em matéria de poesia, o escrevente destas linhas lembra-se perfeitamente de ter lá ouvido, em meados de 2022, o célebre "Cântico Negro", de José Régio, recitado (admiravelmente) por Jorge Delfim.
Acaso a crónica que Fernando Alves leu hoje aos microfones da Antena 1 fosse ainda emitida pela TSF, seria, quase de certeza, rematada com um registo recitado de um dos poemas integrais de que o distinto cronista citou passagens, possivelmente "E Tudo Era Possível", de Ruy Belo, por Nicolau Santos, acompanhado ao piano por João Balula Cid, que faz parte do CD "...E Quase Tudo Foi Possível (21 Poemas e um Piano), publicado em 2008. Mas se Ricardo Soares, ou Nuno Galopim de Carvalho, acaso receasse que a transmissão dessa gravação pudesse ser encarada como um acto de dar graxa ao patrão (visto ele ocupar, presentemente, o lugar de presidente do conselho de administração da Rádio e Televisão de Portugal) podia muito bem recorrer ao arquivo histórico que é fabulosamente rico em poesia (dita por, entre outros, Manuel Lereno, Carmen Dolores, Maria Clara, Carlos Achemann, António Cardoso Pinto, Paulo Rato e Eugénia Bettencourt). Estamos em crer que aquele poema de Ruy Belo e os demais evocados por Fernando Alves estão lá representados por alguma daquelas vozes ou por outra. Mas, se por remota hipótese académica, tal não se verificasse, ainda assim podia ser transmitido outro poema de um dos autores nomeados, resgatado do arquivo ou extraído de uma edição discográfica. Suspeitamos que ninguém se importaria com isso e se, porventura, alguém reclamasse, sendo-lhe dada a devida explicação, a compreenderia de bom grado. O que não se compreende, nem se pode tolerar, é que a estatal Antena 1 teime em pecar por omissão e a fazer pior (quando podia fazer igual ou até melhor) do que fazia a privada TSF-Rádio Jornal.
De agora em diante, ante a ameaça da "máquina lírica", como dá nota Fernando Alves, a fruição de poesia verdadeiramente humana (à outra é questionável que se possa chamar-lhe poesia, porque a arte digna desse nome assenta na vida e nas vivências de gente de carne e osso) é um acto de resistência cultural e a rádio do Estado não pode (não deve) ficar alheada desse vital desígnio.



E TUDO ERA POSSÍVEL



Poema de Ruy Belo [do ciclo "Primavera", in "Homem de Palavra(s)", Col. Cadernos de Poesia, vol. 9, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1969 – p. 105, 2.ª edição, Col. Forma, vol. 9, Lisboa: Editorial Presença, 1978 – p. 97; "Todos os Poemas", Lisboa: Assírio & Alvim, 2000 – p. 329]
Recitado por Nicolau Santos* [in CD "...E Quase Tudo Foi Possível (21 Poemas e um Piano)", João Balula Cid, 2008]
Música de João Balula Cid




Na minha juventude antes de ter saído
da casa de meus pais disposto a viajar
eu conhecia já o rebentar do mar
das páginas dos livros que já tinha lido

Chegava o mês de maio era tudo florido
o rolo das manhãs punha-se a circular
e era só ouvir o sonhador falar
da vida como se ela houvesse acontecido

E tudo se passava numa outra vida
e havia para as coisas sempre uma saída
Quando foi isso? Eu próprio não o sei dizer

Só sei que tinha o poder duma criança
entre as coisas e mim havia vizinhança
e tudo era possível era só querer


* Nicolau Santos – voz
João Balula Cid – piano
URL: https://pt.wikipedia.org/wiki/Nicolau_Santos
https://www.meloteca.com/portfolio-item/joao-balula-cid/
https://music.youtube.com/channel/UCqPKRBMxHUlwYovPF7y_0dw



Capa da 1.ª edição do livro "Homem de Palavra(s)", de Ruy Belo (Col. Cadernos de Poesia, Vol. 9, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1969)
Fotografia – António Xavier
Orientação gráfica – Fernando Felgueiras



Sobrecapa da 1.ª edição do volume "Todos os Poemas", de Ruy Belo (Lisboa: Assírio & Alvim, Dez. 2000)



Capa do CD "...E Quase Tudo Foi Possível (21 Poemas e um Piano)", de João Balula Cid & Nicolau Santos (João Balula Cid, 2008)

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Outros artigos com poesia de Ruy Belo:
Mário Viegas: 10 anos de saudade
A infância e a música portuguesa

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Outros artigos relacionados com a crónica de Fernando Alves na Antena 1:
Galandum Galundaina: "Chin Glin Din"
"Sons d'Outrora" em viola da terra, por Miguel Pimentel
Vitorino: "Moças de Bencatel" (Conde de Monsaraz)
Teresa Silva Carvalho: "Barca Bela" (Almeida Garrett)
António Borges Coelho: "Sou Barco"
Celeste Rodrigues: "Chapéu Preto"
Sérgio Godinho: "Tem Ratos"

12 novembro 2024

Sérgio Godinho: "Tem Ratos"



«O grande compositor e poeta repentista Patativa do Assaré, cinco vezes doutor honoris causa, capaz de aliar a mais rústica voz do Ceará às regras do soneto clássico, sabia de pragas e do modo de as rogar. Certa vez, percebendo que vizinhos não identificados lhe roubavam do quintal sucessivas varas de feijão, compôs um poema que lançava sobre eles mais pragas do que as do livro do Êxodo sobre o Egipto. Roubo, para dar algum sabor à crónica, uma breve passagem do poema "Rogando Pragas", de Patativa: "O santo Deus de Moisés/ lhe mande bexiga roxa/ saia carbúnculo na coxa/ cravo na sola dos pés/ sofra os incómodos cruéis/ da doença hidropsia/ icterícia e anemia/ tuberculose e diarreia/ e a lepra da morféia/ seja a sua companhia./ Deus lhe dê reumatismo/ com a sinusite crónica/ a sezão, o impaludismo/ e os ataques da bubónica/ além de quatro picadas/ de quatro cobras danadas/ cada qual a mais cruel/ de veneno fatal/ a urutu, a coral/ jararaca e cascavel".
A rogação é um vasto lençol de pragas, nuvem de gafanhotos verbais, rãs cobrindo a terra como vírgulas. Contudo, mais assustador do que um lançador de pragas contra a saúde alheia é o aparecimento de uma praga numa qualquer instituição dedicada ao cuidado da saúde pública. A praga de ratos que levou, por duas vezes, ao encerramento do Centro de Saúde de São Martinho do Bispo [Coimbra], encosta-nos, na verdade, mais à parede do que as rimas de Patativa, consegue roer muito mais do que a rolha da garrafa do rei da Rússia.
Uma praga de ratos num Centro de Saúde? Aqui há gato. Por mais que nos prometa a notícia uma desinfestação, instala-se o estribilho de uma velha canção do Sérgio: "Tem ratos/ tem ratos/ vivem escondidos/ nos nossos sapatos".
Certas estratégias de alegado combate a pragas são, em si mesmas, calamitosas, pestíferas. Como combatê-las? Há dias, um superintendente da PSP foi chamado a uma comissão do parlamento regional dos Açores. Pediram-lhe que se pronunciasse sobre uma proposta apresentada por cinco deputados do Chega no arquipélago visando a permissão da caça aos ratos e às rolas com armas de fogo, de modo a combater as pragas que afectam as culturas agrícolas. O comandante da Polícia dos Açores considerou a proposta "muito perigosa" e lembrou que ela viola o estabelecido na lei.
Há, na verdade, um abismo entre a caça e o combate às pragas. Algumas escapam, aliás, a todas as técnicas de desinfestação. Este fim-de-semana, em vésperas do jogo entre o Fabril e o Barreirense, para a série D do Campeonato de Portugal, alguém colocou uma tarja na parede do Estádio Alfredo da Silva com os dizeres "Esperamos vocês, ratos brancos". As pragas tomam formas diversas, ora de bicho, ora de palavra, ora de piolho, ora de pensamento maléfico.
Mas um centro de saúde ameaçado por praga de ratos, sendo assustador em si mesmo, ao ponto de obrigar ao encerramento do centro, é também metáfora de outros perigos.
O caso de São Martinho do Bispo sugere, talvez, uma pergunta estranha: haverá um flautista disponível no mercado, um flautista como aquele saído do conto dos irmãos Grimm, capaz de conduzir a praga para a margem de lá da ponte de Negrelos?» [Fernando Alves, "Tem ratos, tem ratos", in "Os Dias que Correm", 12 Nov. 2024]


«... instala-se o estribilho de uma velha canção do Sérgio: "Tem ratos/ tem ratos/ vivem escondidos/ nos nossos sapatos.»
Identificando a canção e o intérprete, Fernando Alves fez a papinha toda, pelo que Ricardo Soares ou o seu chefe, Nuno Galopim de Carvalho, nada mais precisava fazer do que ir (ou encarregar alguém da produção que fosse) buscar o CD "À Queima-Roupa", caso não houvesse o áudio digital à mão de semear, e transmitir o tema "Tem Ratos" imediatamente a seguir à crónica. Escusado será referir que os ouvintes da Antena 1 tiveram, uma vez mais, de engolir em seco, e se ficaram com vontade de ouvir a canção evocada por Fernando Alves, a qual é das menos conhecidas de toda a produção de Sérgio Godinho, não lhes restou outra saída do que fazerem uso da sua fonoteca particular ou de se socorrerem do YouTube ou doutra plataforma digital.
Esta canção-miniatura, uma espécie de haiku cantado, é virtualmente impossível de se ouvir no éter nacional (o escrevente destas linhas não tem memória de alguma vez a ter escutado via rádio) e a essa circunstância se deve, em grande medida, que seja tão pouco conhecida. Ora, uma das mais nobres missões do serviço público de radiodifusão é justamente a de divulgar repertório de qualidade, com primazia para o português, que não é objecto de (cabal) divulgação pelas estações privadas. Não cumprindo essa missão, a Antena 1, além de falhar na promoção a uma tão importante vertente da cultura portuguesa, está a gozar com os pagantes da contribuição do audiovisual e a dar argumentos àqueles que advogam a privatização da rádio do Estado. Nuno Galopim de Carvalho parece não ter noção disso. E quem está acima dele, também não?



Tem Ratos



Letra e música: Sérgio Godinho
Intérprete: Sérgio Godinho* (in LP "À Queima-Roupa", Guilda da Música/Sassetti, 1974, reed. Philips/Polygram, 1990, Universal Music Portugal, 2001, 2018)




Tem ratos
Tem ratos
Tem ratos
Vivem escondidos
Nos nossos sapatos

Tem ratos
Vivem escondidos
Nos nossos sapatos
Roem-nos os dedos

Tem medos
Tem medos
Vivem escondidos
Nos nossos segredos

[instrumental]


* Sérgio Godinho – voz e viola
Sheila Charlesworth – 2.ª voz

Supervisão – Pedro Osório
Produção – Sassetti
Gravado em Vancouver (Canadá) e nos Estúdios da Rádio Triunfo, Lisboa
Engenheiro de som – José Fortes
URL: https://www.facebook.com/Sergio.Godinho.Oficial/
https://vachier.pt/sergio-godinho/
https://pt.wikipedia.org/wiki/S%C3%A9rgio_Godinho
https://altamont.pt/sergio-godinho-a-queima-roupa/
https://www.youtube.com/@SergioGodinhoTV
https://www.youtube.com/channel/UCCUWcMFHuwlLu7y8cX1LyJg
https://www.youtube.com/@DoTempoDosSonhos/videos?query=sergio+godinho
https://music.youtube.com/channel/UC6NItFDCOUpxXVmOfvAD3Rg



Capa do LP "À Queima-Roupa", de Sérgio Godinho (Guilda da Música/Sassetti, 1974)
Concepção – Argos Publicidade.

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Celeste Rodrigues: "Chapéu Preto"

11 novembro 2024

Celeste Rodrigues: "Chapéu Preto"



«Já tinha lido no "Jornal do Fundão" que, neste arranque de Novembro, "a azeitona faz triplicar a população em Malpica do Tejo". A aldeia de Castelo Branco acolhe os que regressam para varejar as oliveiras da família. O mesmo se passa nos tantos povoados em redor. Na manhã de sábado, retive a imagem de uma longa fila de carrinhas de caixa aberta carregadas de azeitona, à porta do lagar, em São Miguel de Acha. Ou foi em Aldeia do Bispo? Tantos os nomes que retive na lenta revisitação de lugares há muito guardados apenas no mapa mais íntimo, ao longo da manhã e em parte da tarde, fazendo horas para a apresentação do romance "O Tribunal das Almas: Os Espiões de Deus e as Fogueiras" que Fernando Paulouro das Neves acaba de editar na Guerra & Paz. Quando a noite pousar, depois do bacalhau na Hermínia, estará cheia a sala do Casino Fundanense, Lavacolhos fará soar os bombos diante dos inquisidores, se for necessário. Não foi. Mas é ainda manhã de sábado e deixo-me levar pelos caminhos sob um sol manso: Penamacor anuncia já o seu madeiro, Monsanto à vista, tomo o sentido de Medelim e de Proença-a-Velha, desta vez não compro queijo na Lardosa, nem no mercado de Alcains, a voz de meu pai canta dentro da minha cabeça uma moda antiga, "a azeitona já está preta, já se pode armar aos tordos".
Entro em Castelo Branco com um programa muito bem definido: almoço breve e a tarde no Jardim do Paço onde sempre acredito que o poeta António Salvado continua a conversar com as estátuas dos reis sob o olhar comovido de José Manuel Castanheira que há-de estar na roda da mesa dos amigos de Paulouro a escutar as andanças do ficcionista até à descoberta dos atalhos da vida de Martinho Pessoa, um antepassado do poeta cuja relação com o Fundão fora aflorada num texto de Arnaldo Saraiva nos anos 80.
Fernando Paulouro das Neves acalentou longamente a saga deste encontro com uma personagem tão exaltante como a de Martinho Pessoa, beirão do Fundão, judeu perseguido por honrar convicções, fugido aos "espiões de Deus" para um Brasil onde a vida não foram favas contadas, "oh que lindo chapéu preto!". Regressa agora aos lugares onde, por estes dias, os filhos da terra varejam as oliveiras da família, cuidando que não lhe hão-de colocar, desta vez, a carocha na cabeça.
Incansável labor, o de Fernando Paulouro das Neves, entretecendo numa escrita admirável as memórias de Martinho, o pai de Martinho legendando a água caída na seca planura idanhense com palavras que sabiam a pão: "Deus choveu". E o romance nos leva, entretanto, nas páginas iniciais, pelos estes campos de Idanha que encheram de luz, no sábado, os meus olhos. Por estes campos cresceu, também, como esteva maligna, a baba denunciante dos caçadores de cristãos-novos, esse lastro de tempos de infâmia com as suas fogueiras purificadoras. Os repuxos do parque da cidade sacodem a tarde como chicotes, enquanto retenho a memória daquele que há-de perecer na fogueira do Rossio, diante de um rei, um Rei Nosso Senhor que não suspende o riso. As fogueiras de homens eram "teatro divino", lembra o ficcionista.
Fernando Paulouro das Neves retém o pensamento de Martinho Pessoa: "O Santo Ofício queima homens e livros". Vamos por este romance como se varejássemos a nossa própria História ferida. É uma ferida tão funda que nunca cicatriza.» [Fernando Alves, "Um romance", in "Os Dias que Correm", 11 Nov. 2024]


Ao evocar a conhecida cantiga "Chapéu Preto", citando os versos «a azeitona já está preta, / já se pode armar aos tordos» e «Ai, que lindo chapéu preto», Fernando Alves teria certamente apreciado que a sua crónica fosse rematada/ilustrada, na emissão hoje de manhã, com uma gravação do mencionado trecho musical. E os ouvintes, na sua esmagadora maioria, não deixariam também de receber com imenso agrado e satisfação esse mimo musical, em complemento às palavras ditas pelo eminente cronista. A Antena 1, ao contrário do que acontecia na TSF-Rádio Jornal com a crónica congénere "Sinais", optou, uma vez mais, pela inacção. E seria bem fácil deitar mãos a uma boa gravação, dada a abundância delas, quer cantadas quer instrumentais. Das últimas apontamos três, cujos arranjos são de superior qualidade: a de Júlio Pereira, com a participação de Janita Salomé a fazer vocalizos (in "Cádoi", 1984) [>> YouTube Music], a de Rão Kyao (in "Danças de Rua", 1987) [>> YouTube Music] e a de Carlos Araújo (in "Duo", 2015) [>> YouTube Music]. Resolvemos dar destaque à mui cativante e fresquíssima versão cantada por Celeste Rodrigues, publicada em 1959, aproveitando para assim rendermos homenagem, singela mas sincera, àquela distinta filha do Fundão e extraordinária intérprete, quer de fado, quer da chamada canção parafolclórica de que o presente espécime, concebido por Arlindo de Carvalho (também ele natural do concelho do Fundão), é um magnífico exemplo (no disco original vem classificado como chula).
O verso «Já se pode armar aos tordos» é hoje – e ainda bem – ecologicamente incorrecto, mas não devemos censurar/cancelar a canção por causa disso pois seria adoptar uma atitude inquisitorial. As canções – e isto vale igualmente para quaisquer obras artísticas e literárias – são um testemunho da mundividência de um autor e reflectem a mentalidade e os costumes da época em que foram criadas. São instantâneos culturais do processo histórico e, nessa medida, sagrados e invioláveis, não se podendo jamais aceitar que, por não estarem em perfeita e estreita conformidade com o pensamento prevalecente num determinado momento histórico posterior (que é, por definição, transitório), sejam modificadas, amputadas ou, pura e simplesmente, banidas. A obra é o que é, e se tem valor artístico, estético e/ou filosófico, em lugar da atitude paternalista de pretensa protecção dos seus fruidores a ideias e a conceitos considerados errados à luz do pensamento mais validado pelas elites (ou pseudo-elites), importa dotar as pessoas dos instrumentos de interpretação e análise crítica dessas obras do passado. Proceder desse modo é também promover a liberdade de pensamento dos cidadãos e desenvolver as suas faculdades de discernimento, no escrupuloso respeito pelos inalienáveis valores democráticos e pluralistas.
Eis, pois, a cantiga "Chapéu Preto", com versos e música de Arlindo de Carvalho, na primorosa interpretação de Celeste Rodrigues, à qual apensamos a prévia nota (especialmente dirigida aos menos conscienciosos em questões ambientais) de que já não se deve "armar aos tordos" (seja com azeitonas maduras ou com qualquer outro engodo), porque aqueles pássaros, assim como todas as demais aves, são importantes para o equilíbrio dos ecossistemas e, por extensão, para a própria sobrevivência da espécie humana no planeta Terra. Sortudos os visitantes do blogue "A Nossa Rádio" pela oportunidade de aqui se deleitarem com este encantador "Chapéu Preto", os quais – se ouvintes da Antena 1 nas matinas de segunda a sexta-feira – bem podem lamentar-se por terem sido outra vez desconsiderados pela rádio que vive do seu dinheiro!



Chapéu Preto



Letra e música: Arlindo de Carvalho
Intérprete: Celeste Rodrigues* [in EP "Celeste (Chapéu Preto)", Parlophone/VC, 1959; reed. digital: Edições Valentim de Carvalho, 2019]




A azeitona já está preta, [bis]
Já se pode armar aos tordos, [bis]
Diz-me lá, ó cara linda: [bis]
Como vais d'amores novos?
Já se pode armar aos tordos.

É mentira, é mentira,
É mentira, sim, senhor!
Eu nunca roubei um beijo,
Quem mo deu foi meu amor.
[bis]

Quem me dera ser colete! [bis]
Quem me dera ser botão, [bis]
Para andar agarradinha [bis]
Juntinho ao teu coração!
Quem me dera ser botão!

É mentira, é mentira,
É mentira, sim, senhor!
Eu nunca roubei um beijo,
Quem mo deu foi meu amor.
[bis]

Ai, que lindo chapéu preto [bis]
Naquela cabeça vai! [bis]
Ai, que lindo rapazinho [bis]
Para genro do meu pai!
Naquela cabeça vai!

É mentira, é mentira,
É mentira, sim, senhor!
Eu nunca roubei um beijo,
Quem mo deu foi meu amor.
[bis]

É mentira, é mentira,
É mentira, é mentira,
É mentira, é mentira...


* Celeste Rodrigues – voz
Adelino dos Santos – guitarra portuguesa
Carlos Neves – viola
URL: https://www.museudofado.pt/fado/personalidade/celeste-rodrigues
https://www.youtube.com/@ValentimdeCarvalhoPT/videos?query=celeste+rodrigues
https://music.youtube.com/channel/UCcVQ5pMWj0gEjkzEg9RqVJQ



Capa do EP "Celeste (Chapéu Preto)", de Celeste Rodrigues (Parlophone/VC, 1959)
Fotografia – João Paulo Gil (na Casa de Fados "A Viela", à Rua das Taipas, em Lisboa)
Arranjo gráfico – Morato



Capa do romance "O Tribunal das Almas: os Espiões de Deus e as Fogueiras", de Fernando Paulouro das Neves (Lisboa: Guerra & Paz, Ago. 2024)

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Outro artigo com repertório de Celeste Rodrigues:
Celeste Rodrigues: "Velhas Sombras"

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Outros artigos relacionados com a crónica de Fernando Alves na Antena 1:
Galandum Galundaina: "Chin Glin Din"
"Sons d'Outrora" em viola da terra, por Miguel Pimentel
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Teresa Silva Carvalho: "Barca Bela" (Almeida Garrett)
António Borges Coelho: "Sou Barco"