30 setembro 2013
Em memória de António Ramos Rosa (1924-2013)
Hoje [17 Out. 2004], dia em que António Ramos Rosa completa oitenta anos de idade, cumpre saudar a sua intervenção poética global, ou seja, quer no plano da criação poética, quer no da reflexão sobre a poesia, como porventura a mais marcante e plena de consequências de toda a segunda metade do século XX português.
Desde, pelo menos, aquele longínquo Outono de 1951, em que, no primeiro número da revista Árvore, da qual foi o mais proeminente director e colaborador, publicou um poema tão carismático e influente como Viagem através duma nebulosa e, entre outras, recensões críticas a obras tão importantes como Coral de Sophia de Mello Breyner ou Corpo Visível de Mário Cesariny, a presença de Ramos Rosa no quadro diverso e complexo da nossa poesia contemporânea não parou de impor-se como uma voz poderosa e inconfundível, capaz de levantar um mundo poético e ensaístico que se tem vindo a fixar no extraordinário monumento que é a sua obra, composta já por mais de setenta volumes.
Podemos dizer que, com maior insistência e mais cedo que qualquer outro crítico de poesia (e a sua acção neste campo está sólida e coerentemente ligada à sua actividade como poeta), foi António Ramos Rosa quem, sobretudo, lutou pela aceitação (por parte de leitores que, na década de 50 e no começo da de 60, eram ainda bastante reticentes, até mesmo, por vezes, em relação a Pessoa) de uma linguagem poética nova, em ruptura com os vários tradicionalismos líricos (mas não com a tradição lírica, como já o demonstrava, por exemplo, a própria poesia ortónima de Pessoa) e frequentemente apodada de incompreensível, arbitrária, incongruente.
O autor de Poesia, Liberdade Livre, que chegou a envolver-se em polémicas a este respeito, já no ensaio A Poesia é um diálogo com o Universo, saído, em 1953, no quarto e último número de Árvore, defendia que o "hermetismo, que se combate superficialmente, é muitas vezes o nome que se dá à densidade, à riqueza, à liberdade, à imaginação, ao especificamente poético". Este seu ponto de vista manteve-se, naturalmente, até ao presente e ainda recentemente, no livro A Parede Azul, e particularmente em ensaios, nele incluídos, como "A alteridade da poesia moderna", "O princípio criador", "A palavra subversiva" ou "Perspectivas da poesia portuguesa contemporânea", Ramos Rosa reformula uma idêntica concepção do poema como corpo autónomo ("A poesia moderna erige a sua total autonomia em relação ao real. Esta autonomia implica a ruptura da causalidade realista."), com o seu sentido próprio, incoincidente, muitas vezes, com o que se supõe ser o sentido de um certo real: "A palavra (poética) subverte, instaura. Um mundo em que se formula uma palavra nova é um mundo que perde as suas articulações habituais." Este entendimento do fenómeno poético determina também, obviamente, a função e a atitude do crítico: "Interpretar já não é reduzir o poema a um sentido anterior mas procurar o que o poema inaugura, sabendo de antemão que qualquer reinscrição teórica é deveras impossível. Deste modo o 'comentário' deve evitar traduzir as figuras ou as imagens obscuras porque assim as reduziria a simples alegorias a fim de as tornar claras e compreensíveis. É que a palavra poética não é da ordem do discurso. Ela atinge esse ponto em que o discurso tende a abolir-se e a transmudar-se."
Em Herberto Helder encontra Ramos Rosa o caso ideal que lhe permite ilustrar o seu conceito de poesia como liberdade absoluta, como invenção verbal surpreendente mas nunca gratuita: "Mesmo nos poemas mais obscuros e mais densos, a poesia de Herberto Helder nunca é opaca. A sua efectiva obscuridade é luminosa e, não raro, incandescente. A sua luz, aliás enigmática, é a luz de um poeta que não cessa de acorrer ao enigma da criação poética e da matéria a que ela se liga, realizando assim uma fulgurante osmose verbal com o que é vertiginosamente incompreensível."
Em António Ramos Rosa, todavia, a situação é algo diferente, sobretudo na sua fase inicial. A "aventura poética" tem raízes num contexto histórico e social de que muitos dos seus primeiros poemas são a denúncia feroz e o implacável diagnóstico. O boi da paciência ou Telegrama sem classificação especial (como diz Eduardo Lourenço, "com a fulgurante síntese de uma universal e portuguesa situação – 'Estamos nus e gramamos'"), por exemplo, são pontos de intersecção privilegiados das mais fortes e densas linhas provenientes quer do neo-realismo, quer do surrealismo, o que, de resto, não deixa de ser igualmente verdadeiro para certos textos dos outros dois poetas maiores, ao lado de Ramos Rosa, da década de 50, O'Neill e Cesariny.
O certo é que o conceito de poesia como uma potenciação da intensidade do uso da palavra, como uma "voz inicial", com peso e energia próprios, estava já lá, nesses poemas do começo, em 1958 recolhidos no pequeno caderno intitulado O Grito Claro, significativamente o número I da colecção A Palavra, em que sairia, entre outras, a obra de estreia de Luiza Neto Jorge, A Noite Vertebrada.
Para a minha geração, António Ramos Rosa representou, se não propriamente a abertura, a consolidação de uma via, paralela, sem dúvida, a algumas outras igualmente decisivas, mas especialmente consciente das exigências da inovação e da modernidade.
GASTÃO CRUZ, poeta e crítico
(in "Público", 17 Out. 2004)
A melhor forma de homenagear um poeta é – e sempre será – o cultivo e a divulgação da obra que nos legou. A pretexto do falecimento de António Ramos Rosa [biografia e bibliografia no sítio da >> DGLB e artigo do jornal >> "Público"], o blogue "A Nossa Rádio" apresenta uma série de poemas seus – uns recitados, outros cantados.
Não podia a Antena 1 ter transmitido, se não a totalidade, a maioria destes espécimes (bem como outros existentes no arquivo histórico da RDP) ao longo do dia em que a triste notícia foi veiculada e nos dias seguintes? Podia, com certeza, se Rui Pêgo fosse uma pessoa minimamente ciente das obrigações culturais da rádio que lhe puseram nas mãos. Lamentavelmente, e para prejuízo dos ouvintes e da cultura portuguesa, a negligência, a inércia e o marasmo voltaram a cantar vitória.
UM CAMINHO DE PALAVRAS
Poema de António Ramos Rosa (in "Sobre o Rosto da Terra", Covilhã: Livraria Nacional, col. Pedras Brancas, 1961; "Antologia Poética", prefácio, bibliografia e selecção de Ana Paula Coutinho Mendes, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2001 – p. 67)
Recitado por Luís Gaspar* (2008) (in "Estúdio Raposa")
Sem dizer o fogo — vou para ele. Sem enunciar as pedras, sei que as piso — duramente, são pedras e não são ervas. O vento é fresco: sei que é vento, mas sabe-me a fresco ao mesmo tempo que a vento. Tudo o que eu sei já lá está, mas não estão os meus passos nem os meus braços. Por isso caminho, caminho, porque há um intervalo entre tudo e eu, e nesse intervalo entre tudo e eu, e nesse intervalo caminho e descubro o meu caminho.
Mas entre mim e os meus passos há um intervalo também: então invento os meus passos e o meu próprio caminho. E com as palavras de vento e de pedra, invento o vento e as pedras, caminho um caminho de palavras.
Caminho um caminho de palavras
(porque me deram o sol)
e por esse caminho me ligo ao sol
e pelo sol me ligo a mim
E porque a noite não tem limites
alargo o dia e faço-me dia
e faço-me sol porque o sol existe
Mas a noite existe
e a palavra sabe-o.
* Luís Gaspar – voz
Produção – Luís Gaspar
POEMA DUM FUNCIONÁRIO CANSADO
Poema de António Ramos Rosa (in "O Grito Claro", Faro: Ed. do Autor, col. A Palavra, 1958; "Antologia Poética", prefácio, bibliografia e selecção de Ana Paula Coutinho Mendes, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2001 – p. 30-31)
Recitado por Luís Gaspar* (2008) (in "Estúdio Raposa")
A noite trocou-me os sonhos e as mãos
dispersou-me os amigos
tenho o coração confundido e a rua é estreita
estreita em cada passo
as casas engolem-nos
sumimo-nos
estou num quarto só num quarto só
com os sonhos trocados
com toda a vida às avessas a arder num quarto só
Sou um funcionário apagado
um funcionário triste
a minha alma não acompanha a minha mão
Débito e Crédito Débito e Crédito
a minha alma não dança com os números
tento escondê-la envergonhado
o chefe apanhou-me com o olho lírico na gaiola do quintal em frente
e debitou-me na minha conta de empregado
Sou um funcionário cansado dum dia exemplar
Por que não me sinto orgulhoso de ter cumprido o meu dever?
Por que me sinto irremediavelmente perdido no meu cansaço?
Soletro velhas palavras generosas
Flor rapariga amigo menino
irmão beijo namorada
mãe estrela música
São as palavras cruzadas do meu sonho
palavras soterradas na prisão da minha vida
isto todas as noites do mundo numa só noite comprida
num quarto só
* Luís Gaspar – voz
Produção – Luís Gaspar
UM MUNDO
Poema de António Ramos Rosa (in "Acordes", Lisboa: Quetzal Editores, 1989 – p. 67)
Recitado por Luís Lima Barreto* (in livro/2CD "Ao Longe os Barcos de Flores: Poesia Portuguesa do Século XX", col. Sons, Assírio & Alvim, 2004)
É um sonho ou talvez só uma pausa
na penumbra. Esta massa obscura
que ela revolve nas águas são estrelas.
Entre aromas e cores, um barco de calcário
prossegue uma viagem imóvel num jardim.
Vejo a brancura entre os astros e os ramos.
Dir-se-ia que o ser respira e se deslumbra
e que tudo ascende sob um sopro silencioso.
Nenhum sentido mas os signos amam-se
e o brilho e o rumor formam um mundo.
* Luís Lima Barreto – voz
Selecção de poemas e direcção de actores – Gastão Cruz
Coordenação editorial – Teresa Belo
Gravado e masterizado por Artur David e João Gomes, no Estúdio Praça das Flores, Lisboa, em Outubro de 2004
Supervisão de gravação – Vasco Pimentel
O que escrevo por vezes
Poema: António Ramos Rosa (in "A Intacta Ferida", Lisboa: Relógio d'Água, 1991)
Música: António Pinho Vargas (ciclo "Nove Canções de António Ramos Rosa")
Intérpretes: Rui Taveira (voz) & Jaime Mota (piano) (in CD "António Pinho Vargas: Versos", Strauss, 2001)
O que escrevo por vezes
é como se um sopro de sombra
no meu corpo abrisse
o espaço de um silêncio
um espaço intacto e puro
Entre o Deserto e o Deserto
Poema: António Ramos Rosa, tendo como referente "Daqui deste deserto em que persisto" [texto >> abaixo]
Música: Amélia Muge
Intérprete: Amélia Muge* (in CD "Não Sou Daqui", Vachier & Associados, 2006)
Entre o deserto e o deserto
numa viagem sem destino
procuras a água e o vinho
nenhuma pista nenhum signo
vivo de pouco ou de nada
sem nunca ter um lugar
sempre a insónia mais branca
e a sede de um novo ar
escurece já o olvido
e é noite quando amanhece
nenhum barco traz aquela
por quem a escrita se tece
talvez esteja perdido
como um náufrago na areia
talvez me reste a canção
e o vento que desenleia
Entre o deserto e o deserto
Entre o deserto e o deserto
* [Créditos gerais do disco:]
Amélia Muge – voz, voz de sala, coros e viola braguesa
António José Martins – darbuka, triângulo, bombo, bendir, estalo, djembé, bilha, maraca, chiquitsi, voz de sala, amostrador e sintetizador
Carlos Mil-Homens – cajón
Catarina Anacleto – violoncelo
Filipe Raposo – piano acústico, piano Rhodes e acordeão
José Manuel David – flautas transversal e de bisel, tarota, trompa, garrafas e voz de sala
José Peixoto – guitarra acústica sem trastos
Yuri Daniel – contrabaixo e baixo eléctrico
Arranjos – António José Martins, José Manuel David e Filipe Raposo (partes de piano, acordeão e trompa)
Direcção musical – António José Martins
Produção – Amélia Muge e António José Martins
Gravado por Samuel Henriques no Estúdio MDL, Paço d'Arcos (voz, piano, baixo, contrabaixo e cajón)
e por António José Martins no estúdio da ETIC (Escola de Tecnologias Inovação e Criação), Lisboa, e no AJM Estúdio, Sobreda
Misturado e masterizado por António Pinheiro da Silva e António José Martins, no Estúdio Pé-de-Meia
DAQUI DESTE DESERTO EM QUE PERSISTO
(António Ramos Rosa, in "A Nuvem sobre a Página", Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1978; "Antologia Poética", prefácio, bibliografia e selecção de Ana Paula Coutinho Mendes, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2001 – p. 160-162)
Nenhum ruído no branco.
Nesta mesa cavo e escavo
rodeado de sombras
sobre o branco
abismo
desta página
em busca de uma palavra
escrevo cavo e escavo na cave desta página
atiro o branco sobre o branco
em busca de um rosto
ou folha
ou de um corpo intacto
a figura de um grito
ou às vezes simplesmente
uma pedra
busco no branco o nome do grito
o grito do nome
busco
com uma fúria sedenta
a palavra que seja
a água do corpo o corpo
intacto no silêncio do seu grito
ressurgindo do abismo da sede
com a boca de pedra
com os dentes das letras
com o furor dos punhos
nas pedras
Sou um trabalhador pobre
que escreve palavras pobres quase nulas
às vezes só em busca de uma pedra
uma palavra
violenta e fresca
um encontro talvez com o ínfimo
a orquestra ao rés da erva
um insecto estridente
o nome branco à beira da água
o instante da luz num espaço aberto
Pus de parte as palavras gloriosas
na esperança de encontrar um dia
o diadema no abismo
a transformação do grito
num corpo
descoberto na página do vento
que sopra deste buraco
desta cinzenta ferida
no deserto
As minhas palavras são frias
têm o frio da página
e da noite
de todas as sombras que me envolvem
são palavras frágeis como insectos
como pulsos
e acumulo pedras sobre pedras
cavo e escavo a página deserta
para encontrar um corpo
entre a vida e a morte
entre o silêncio e o grito
Que tenho eu para dizer mais do que isto
sempre isto desta maneira ou doutra
que procuro eu senão falar
desta busca vã
de um espaço em que respira
a boca de mil bocas
do corpo único do abismo branco
Sou um trabalhador pobre
nesta mina branca
onde todas as palavras estão ressequidas
pelo ardor do deserto
pelo frio do abismo total
Que tenho eu a dizer
neste país
se um homem levanta os braços
e grita com os braços
o que de mais oculto havia
na secreta ternura de uma boca
que era a única boca do seu povo
Que posso eu fazer senão
daqui
deste deserto
em que persisto
chamar-lhe camarada
Não sou daqui, mas...
Letra: Amélia Muge, inspirada no poema de António Ramos Rosa "Não podemos dizer" [texto >> abaixo]
Música: Amélia Muge
Intérprete: Amélia Muge* (in CD "Não Sou Daqui", Vachier & Associados, 2006)
Não sou daqui
Mas gosto daqui estar
De aprender no lugar do outro
A me encontrar
De poder um lugar achar
No estar aqui
Desejar o lugar de todos neste lugar
E saber no lugar daqui
O meu lugar
Não sou daqui
Não sou daqui
Mas se aqui estou
É porque para mim
Também há aqui lugar
E porque há um eu
Que aqui se foi achar
E porque um teu
Gostou de mim
De me encontrar
Não sou daqui
Mas gosto daqui estar
De aprender no lugar do outro
A me encontrar
De poder um lugar achar
No estar aqui
Desejar o lugar de todos neste lugar
E saber no lugar daqui
O meu lugar
Não sou daqui
Não sou daqui
Mas se aqui estou
É porque para mim
Também há aqui lugar
E porque há um eu
Que aqui se foi achar
E porque um teu
Gostou de mim
De me encontrar
* [Créditos gerais do disco:]
Amélia Muge – voz, voz de sala, coros e viola braguesa
António José Martins – darbuka, triângulo, bombo, bendir, estalo, djembé, bilha, maraca, chiquitsi, voz de sala, amostrador e sintetizador
Carlos Mil-Homens – cajón
Catarina Anacleto – violoncelo
Filipe Raposo – piano acústico, piano Rhodes e acordeão
José Manuel David – flautas transversal e de bisel, tarota, trompa, garrafas e voz de sala
José Peixoto – guitarra acústica sem trastos
Yuri Daniel – contrabaixo e baixo eléctrico
Arranjos – António José Martins, José Manuel David e Filipe Raposo (partes de piano, acordeão e trompa)
Direcção musical – António José Martins
Produção – Amélia Muge e António José Martins
Gravado por Samuel Henriques no Estúdio MDL, Paço d'Arcos (voz, piano, baixo, contrabaixo e cajón)
e por António José Martins no estúdio da ETIC (Escola de Tecnologias Inovação e Criação), Lisboa, e no AJM Estúdio, Sobreda
Misturado e masterizado por António Pinheiro da Silva e António José Martins, no Estúdio Pé-de-Meia
Não podemos dizer
(António Ramos Rosa, in "À Mesa do Vento seguido de As Espirais de Dioniso", Guimarães: Pedra Formosa, 1997; "Antologia Poética", prefácio, bibliografia e selecção de Ana Paula Coutinho Mendes, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2001 – p. 377-378)
Não podemos dizer
Cheguei aqui e inverter a perspectiva
olhando para trás
O solo nos solicita
e a sede de ser nos move para a frente
E é então que talvez reconheçamos o que fomos
entre os fragmentos dispersos da nossa identidade
Nós queremos sobretudo a relação mais viva
ainda quando sabemos que ela é incerta ou ilusória
As palavras desviam-se do que as excede ou as quer reter
mas elas querem corresponder com o seu lume frágil
ao que não conhecem mas pressentem para além das fronteiras silenciosas
Talvez toda a relação seja ilusória
mas poderá ser mais verdadeira do que a separação
Só a palavra adolescente não hesita embora trema
e caminhe nua sobre a linha da sua sombra
Tal é a maturidade do juvenil ardor
que abre o caminho que conduz às grandes águas
Quem escreve nunca está só na sua solidão de asceta
O espaço é de ninguém o espaço é ninguém
e de um só mas de um só em todos nós
O cantor modula a voz de mil vozes
O que no poema se move é um território de solidão comum
atraído pelo íman da unidade latente e latejante
Temos de ir ao extremo de uma solitária linha
mas é para voltarmos aqui ao ponto de partida
que já será outro começo e terá o timbre unânime das vozes
embora coadas pela espessura roxa da solidão
Estaremos então entre duas margens entre o princípio e o fim
e seremos mais do que fomos o que poderemos ser
ainda que não venhamos a ser senão o movimento de uma sombra
Passagem
Poema: António Ramos Rosa (ligeiramente adaptado) [texto original >> abaixo]
Música: Diogo Clemente
Intérprete: Ana Laíns* (in CD "Sentidos", Difference, 2006)
[instrumental]
É onde escuto agora a própria casa.
Sou eu que escrevo este poema
Já onde estou agora e nada espero.
Ouço o som que vem de estar aqui lembrando
isto que sou agora mesmo esperando.
É onde escuto agora a própria casa.
É onde eu pouso a mão na terra calma
ouvindo quantos anos já vivi,
mas não aqui nem além, agora só
num tempo em que não sou mais que este estar
passando sem passar neste deserto.
É onde pouso a mão na terra calma.
É onde agora ninguém me vem chamar
e uma outra luta prossegue imponderável.
O tempo vai chegar mas eu aqui passei
ou algo em mim passou quando o final chegar
deste sem fim que escuto e oiço o seu passar.
É onde escuto agora a própria casa.
[instrumental]
É onde escuto agora a própria casa.
* [Créditos gerais do disco:]
Ana Laíns – voz
Guitarras acústicas – Diogo Clemente
Viola baixo – Fernando Araújo
Guitarra portuguesa – Bernardo Couto
Acordeão, piano e melódica – Ruben Alves
Violoncelo – Ricardo Mota
Percussão – Vicky (Hugo Marques)
Direcção musical, arranjos e produção – Diogo Clemente
Técnico de som – Fernando Nunes
Gravado, misturado e masterizado nos Estúdios Pé-de-Vento, Salvaterra de Magos, em Janeiro e Fevereiro de 2006
PASSAGEM
(António Ramos Rosa, in "Voz Inicial", Lisboa: Livraria Moraes, col. Círculo de Poesia, 1960; "Não Posso Adiar o Coração", vol. I da Obra Poética, Lisboa: Plátano Editora, col. Sagitário, 1974)
É onde escuto agora a própria casa.
Sou eu que escrevo este poema.
Já onde estou agora nada espero.
Ouço o som que vem de estar aqui lembrando
isto que sou agora mesmo esperando.
É onde eu pouso a mão na terra calma
ouvindo quantos anos já vivi,
mas não aqui nem além, agora só
num tempo em que não sou mais que este estar
passando sem passar neste deserto.
É onde agora ninguém me vem chamar
e uma outra luta prossegue imponderável.
O tempo vai chegar mas eu aqui passei
ou algo em mim passou quando o final chegar
deste sem fim que escuto e sou no seu passar.
Há um ofegar de terra na garganta
Poema de António Ramos Rosa (in "Ciclo do Cavalo", col. Os Olhos e a Memória, Porto: Limiar, 1975 – p. 36)
Recitado por Luís Lima Barreto* (in livro/2CD "Ao Longe os Barcos de Flores: Poesia Portuguesa do Século XX", col. Sons, Assírio & Alvim, 2004)
Há um ofegar de terra na garganta,
há um feixe de ervas que perfuma a casa.
O ar é solidez, o caminho é de pedra.
Procuro a água funda e negra de bandeiras.
Encho a cabeça de terra, quero respirar mais alto,
quero ser o pó de pedra, o poço esverdeado,
o tempo é o de um jardim
em que a criança encontra as formigas vermelhas.
Vou até ao fim do muro buscar um nome escuro:
é o da noite próxima, é o meu próprio nome?
* Luís Lima Barreto – voz
Selecção de poemas e direcção de actores – Gastão Cruz
Coordenação editorial – Teresa Belo
Gravado e masterizado por Artur David e João Gomes, no Estúdio Praça das Flores, Lisboa, em Outubro de 2004
Supervisão de gravação – Vasco Pimentel
Não tenho lágrimas
Poema: António Ramos Rosa (in "A Intacta Ferida", Lisboa: Relógio d'Água, 1991)
Música: António Pinho Vargas (ciclo "Nove Canções de António Ramos Rosa")
Intérpretes: Rui Taveira (voz) & Jaime Mota (piano) (in CD "António Pinho Vargas: Versos", Strauss, 2001)
Não tenho lágrimas
estou mais baixo
junto à cal
Vejo o solo extinto
não oiço ninguém
e não regresso
Adormecer talvez
junto a uma estaca
com uma pequena pedra
sobre as pálpebras
Não era um barco
Poema: António Ramos Rosa (in "A Intacta Ferida", Lisboa: Relógio d'Água, 1991)
Música: António Pinho Vargas (ciclo "Nove Canções de António Ramos Rosa")
Intérpretes: Rui Taveira (voz) & Jaime Mota (piano) (in CD "António Pinho Vargas: Versos", Strauss, 2001)
Não era um barco
nem uma guitarra
era uma pedra
que girava na sua fronte
Anoitecera
alguém cantava sobre um muro
a pedra
girava.
A PEDRA
Poema de António Ramos Rosa (in "Ocupação do Espaço", Lisboa: Portugália Editora, 1963; "Antologia Poética", prefácio, bibliografia e selecção de Ana Paula Coutinho Mendes, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2001 – p. 79)
Recitado por Luísa Cruz* (in livro/2CD "Ao Longe os Barcos de Flores: Poesia Portuguesa do Século XX", col. Sons, Assírio & Alvim, 2004)
A pedra é bela, opaca,
peso-a gostosamente como um pão.
É escura, baça, terrosa, avermelhada,
polvilhada de cinza.
Contemplo-a: é evidente, impenetrável,
preciosa.
* Luísa Cruz – voz
Selecção de poemas e direcção de actores – Gastão Cruz
Coordenação editorial – Teresa Belo
Gravado e masterizado por Artur David e João Gomes, no Estúdio Praça das Flores, Lisboa, em Outubro de 2004
Supervisão de gravação – Vasco Pimentel
Não posso adiar o coração
Poema: António Ramos Rosa (adaptado de "Não posso adiar o amor para outro século") [texto integral >> abaixo]
Música: Luís Varatojo e Dora Fidalgo
Intérprete: Linha da Frente* (in CD "Linha da Frente", Mercury/Universal, 2002)
Não posso adiar o coração
Não posso adiar o coração
Não posso adiar o coração
Não posso adiar o coração
Não posso adiar o coração
Não posso adiar o coração
Não posso adiar o amor
Não, não posso adiar o amor
Não posso adiar este abraço
Não posso adiar o amor
Não, não posso adiar o amor
Não posso adiar este abraço
Não posso adiar o coração
Não posso adiar o coração
Não posso adiar o coração
Não posso adiar o coração
[instrumental / vocalizos]
Não posso adiar o amor para outro século
ainda que o grito sufoque na garganta
ainda que o ódio estale e crepite e arda
Não posso adiar este abraço
que é uma arma de dois gumes
amor e ódio
Não posso adiar
ainda que a noite pese séculos sobre as costas
e a aurora indecisa demore
não posso adiar
não posso adiar
não posso adiar
não posso adiar
ainda que a noite pese séculos sobre as costas
e a aurora indecisa demore
não posso adiar
para outro século a minha vida
nem o meu amor
Não posso adiar o coração
Não posso adiar o coração
Não posso adiar o coração
Não posso adiar o coração
Não posso adiar o coração
Não posso adiar o coração
Não posso adiar o coração
Não posso adiar o coração
Não posso adiar o amor
Não, não posso adiar o amor
Não posso adiar o coração
Não posso adiar o amor
Não, não posso adiar o amor
Não posso adiar o coração
Não posso adiar o amor
Não, não posso adiar o coração
Não posso adiar o amor
Não, não posso adiar o coração
Não posso adiar o amor
Não, não posso adiar o amor
Não posso adiar o coração
Não posso adiar o amor
Não, não posso adiar o amor
Não posso adiar o coração
* Dora Fidalgo – voz principal
Luís Varatojo e João Aguardela – todos os instrumentos e programações
Músicos adicionais:
Samuel Palitos – bateria
João Cabrita – saxofone
Isabel Rato – teclados
João Marques – trompete
Janelo da Costa – voz
Produção – Luís Varatojo e João Aguardela
Gravado e misturado por Luís Varatojo e António Bragança, no Pérola Estúdio 1
Masterizado por Luís Delgado, nos Estúdios Tcha Tcha Tcha, Miraflores
Não posso adiar o amor para outro século
Poema de António Ramos Rosa (in "Viagem através duma Nebulosa", Lisboa: Edições Ática, 1960; "Antologia Poética", prefácio, bibliografia e selecção de Ana Paula Coutinho Mendes, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2001 – p. 42)
Recitado por Vítor de Sousa* (in CD "No Palco da Poesia", Ovação, 1995, reed. Ovação, 2000)
Não posso adiar o amor para outro século
não posso
ainda que o grito sufoque na garganta
ainda que o ódio estale e crepite e arda
sob montanhas cinzentas
e montanhas cinzentas
Não posso adiar este abraço
que é uma arma de dois gumes
amor e ódio
Não posso adiar
ainda que a noite pese séculos sobre as costas
e a aurora indecisa demore
não posso adiar para outro século a minha vida
nem o meu amor
nem o meu grito de libertação
Não posso adiar o coração
* [Créditos gerais do disco:]
Vítor de Sousa – voz
Produção musical – Zé Nabo
Músicas – Alexandre Manaia, José Moz Carrapa e José Nabo
Arranjos – Manuel Paulo
Guitarra – Raimundo Seixas
Viola – Carlos Manuel
Quem bate a uma porta de folhas na noite
Poema de António Ramos Rosa (in "Nos Seus Olhos de Silêncio", Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1970; "Respirar a Sombra Viva", vol. III da Obra Poética, Lisboa: Plátano Editora, col. Sagitário, 1975)
Recitado por Mário Viegas* (in LP/CD "Poemas de Bibe: Grande Poesia Portuguesa Escolhida para os Mais Pequenos", UPAV, 1990; "Mário Viegas: Discografia Completa": Vol. 10 – "Poemas de Bibe", Público, 2006)
Quem bate a uma porta de folhas na noite
uma porta de folhas na noite
Quem toca a dura casca do teu nome na noite
a uma porta de folhas
Uma porta de folhas uma porta
Quem bate a essa porta de folhas
Quem bate a essa porta de folhas na noite
Quem bate a essa porta sou eu
* Mário Viegas – voz
Produção – José Mário Branco e António José Martins
Gravado no Angel Studio, Lisboa
Técnico de som – José Manuel Fortes
SEM SEGREDO ALGUM
Poema de António Ramos Rosa (in "Volante Verde", Lisboa: Moraes Editores, col. Círculo de Poesia, 1986)
Recitado por Luísa Cruz* (in livro/2CD "Ao Longe os Barcos de Flores: Poesia Portuguesa do Século XX", col. Sons, Assírio & Alvim, 2004)
Rodeio-te de nomes, água, fogo, sombra,
vagueio dentro das tuas formas nebulosas.
Como um ladrão aproximo-me entre palavras e nuvens.
Não te encontrei ainda. Falo dentro do teu ouvido?
Entre pedras lentas, oiço o silêncio da água.
A obscuridade nasce. Tens tu um corpo de água
ou és o fogo azul das casas silenciosas?
Não te habito, não sou o teu lugar, talvez não sejas nada
ou és a evidência rápida, inacessível,
que sem rastro se perde no silêncio do silêncio.
O que és não és, não há segredo algum.
Selvagem e suave, entre miséria e música,
o coração por vezes nasce. As luzes acendem-se na margem.
Estou no interior da árvore, entre negros insectos.
Sinto o pulsar da terra no seu obscuro esplendor.
* Luísa Cruz – voz
Selecção de poemas e direcção de actores – Gastão Cruz
Coordenação editorial – Teresa Belo
Gravado e masterizado por Artur David e João Gomes, no Estúdio Praça das Flores, Lisboa, em Outubro de 2004
Supervisão de gravação – Vasco Pimentel
AMOR DA PALAVRA, AMOR DO CORPO
Poema de António Ramos Rosa (in "Nos Seus Olhos de Silêncio", Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1970; "Antologia Poética", prefácio, bibliografia e selecção de Ana Paula Coutinho Mendes, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2001 – p. 116)
Recitado por Afonso Dias* (in CD "Cantando Espalharey", vol. I, Edere, 2001)
Música de fundo: Frédéric Chopin, Prelúdio em mi menor, Op. 28, N.º 4, por François-René Duchâble (piano) (Erato, 1988)
A nudez da palavra que te despe.
Que treme, esquiva.
Com os olhos dela te quero ver,
que não te vejo.
Boca na boca através de que boca
posso eu abrir-te e ver-te?
É meu receio que escreve e não o gosto
do sol de ver-te?
Todo o espaço dou ao espelho vivo
e do vazio te escuto.
Silêncio de vertigem, pausa, côncavo
de onde nasces, morres, brilhas, branca?
És palavra ou és corpo unido em nada?
É de mim que nasces ou do mundo solta?
Amorosa confusão, te perco e te acho,
à beira de nasceres tua boca toco
e o beijo é já perder-te.
* Afonso Dias – voz
Pesquisa e produção – Afonso Dias e André Dias
Gravado no Estúdio InforArte, Chinicato - Lagos
Técnicos de som – Fernando Guerreiro e Joaquim Guerreiro
AQUI MEREÇO-TE
Poema de António Ramos Rosa (in "A Construção do Corpo", Lisboa: Portugália Editora, 1969)
Recitado por Luís Gaspar* (2008) (in "Estúdio Raposa")
O sabor do pão e da terra
e uma luva de orvalho na mão ligeira.
A flor fresca que respiro é branca.
E corto o ar com um pão enquanto caminho entre searas.
Pertenço em cada movimento a esta terra.
O meu suor tem o gosto das ervas e das pedras.
Sorvo o silêncio visível entre as árvores.
É aqui e agora o dilatado abraço das raízes claras do sono.
Sob as pálpebras transparentes deste dia
o ar é o suspiro dos próprios lábios.
Amar aqui é amar no mar,
mas com a resistência das paredes da terra.
A mão flui liberta tão livre como o olhar.
Aqui posso estar seguro e leve no silêncio
entre calmas formas, matérias densas, raízes lentas,
ao fogo esparso que alastra ao horizonte.
No meu corpo acende-se uma pequena lâmpada.
Tudo o que eu disser são os lábios da terra,
o leve martelar das línguas de água,
as feridas da seiva, o estalar das crostas,
murmúrio do ar e do fogo sobre a terra,
incessante alimento que percorre o meu corpo.
Aqui no grande olhar eu vejo e anuncio
as claras ervas, as pedras vivas, os pequenos animais,
os alimentos puros,
as espessas e nutritivas paredes do sono,
o teu corpo com todo o vagar da sua massa,
todo o peso das coisas e a ligeireza do ar.
Ao flexível volante trabalhado pelas seivas
a minha mão alia-se: bom dia, horizonte.
Uma saúde nova vai nascer destes ombros.
A lâmpada respira ao ritmo da terra.
Sei os caminhos da água pelas veredas,
as mãos das ervas finas embriagadas de ar,
o silêncio donde se ergue a torre do canto.
Abrem-se os novos lábios e eu mereço-te.
É este o reino de insectos e de jogos,
das carícias que sabem a uma sede feliz.
Aqui entre o poço e o muro,
neste pequeno espaço de pedra cai um silêncio antigo:
uma infância inextinguível se alimenta
de uma fábula que renasce em todas as idades.
É aqui, minha filha, que dança a fada do ar
com seu brilho sedoso de erva fina
e a sua abelha silenciosa sobre a fronte.
É aqui o eterno recanto onde a água diz
a pura praia da infância.
Aqui bebe e bebe longamente
o hálito da tristeza no silêncio da vida,
aqui, ó pátria de água calada e de pão doce,
da fundura do tempo, da lonjura permanente,
aqui, bom dia, minha filha.
* Luís Gaspar – voz
Produção – Luís Gaspar
TEU CORPO PRINCIPIA
Poema de António Ramos Rosa (in "Estou Vivo e Escrevo Sol", Lisboa: Editora Ulisseia, 1966)
Recitado por Luís Gaspar* (2008) (in "Estúdio Raposa")
Dou-te um nome de água
para que cresças no silêncio.
Invento a alegria
da terra que habito
porque nela moro.
Invento do meu nada
esta pergunta.
(Nesta hora, aqui.)
Descubro esse contrário
que em si mesmo se abre:
ou alegria ou morte.
Silêncio e sol – verdade,
respiração apenas.
Amor, eu sei que vives
num breve país.
Os olhos imagino
e o beijo na cintura,
ó tão delgada.
Se é milagre existires,
teus pés nas minhas palmas.
Ó maravilha, existo
no mundo dos teus olhos.
Ó vida perfumada
cantando devagar.
Enleio-me na clara
dança do teu andar.
Por uma água tão pura
vale a pena viver.
Um teu joelho diz-me
a indizível paz.
* Luís Gaspar – voz
Produção – Luís Gaspar
DA GRANDE PÁGINA ABERTA DO TEU CORPO
Poema de António Ramos Rosa (in "Nos Seus Olhos de Silêncio", Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1970; "Antologia Poética", prefácio, bibliografia e selecção de Ana Paula Coutinho Mendes, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2001 – p. 117)
Recitado por José-António Moreira (2006) (in "Sons da Escrita")
Da grande página aberta do teu corpo
sai um sol verde
um olhar nu no silêncio de metal
uma nódoa no teu peito de água clara
Pela janela vejo a pequenina mão
de um insecto escuro
percorrer a madeira do momento intacto
meus braços agitam-te como uma bandeira em brasa
ó favos de sol
Da grande página aberta
sai a água de um chão vermelho e doce
saem os lábios de laranja beijo a beijo
o grande sismo do silêncio
em que soberba cais vencida flor
Viste o cavalo varado a uma varanda?
Poema de António Ramos Rosa (in "Ciclo do Cavalo", col. Os Olhos e a Memória, Porto: Limiar, 1975 – p. 21; "Antologia Poética", prefácio, bibliografia e selecção de Ana Paula Coutinho Mendes, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2001 – p. 133)
Recitado por Manuel Alegre* (in CD "Vozes Poéticas da Lusofonia por Timor: Festa da Língua Portuguesa", Gravisom, 1999)
Viste o cavalo varado a uma varanda?
Era verde, azul e negro e sobretudo negro.
Sem assombro, vivo da cor, arco-íris quase.
E o aroma do estábulo penetrando a noite.
Do outro lado da margem ascendia outro astro
como uma lua nua ou como um sol suave
e o cavalo varado abria a noite inteira
ao aroma de Junho, aos cravos e aos dentes.
Uma língua de sabor para ficar na sombra
de todo um verão feliz e de uma sombra de água.
Viste o cavalo varado e toda a noite ouviste
o tambor do silêncio marcar a tua força
e tudo em ti jazia na noite do cavalo.
* Manuel Alegre – voz
Gravado nos estúdios da RDP, Lisboa, a 22 de Junho de 1999
Produção digital – José M. Gouveia (RDP)
Masterização – João Oliveira, nos Estúdios Gravisom, Lisboa
O Que Vê o Meu Olhar
Letra: Popular (quadra) e Amélia Muge, inspirada no poema de António Ramos Rosa "Nada mais delicado do que o tecido do olhar" [texto >> abaixo]
Música: Amélia Muge
Intérprete: Amélia Muge* (in CD "Não Sou Daqui", Vachier & Associados, 2006)
No alto daquele mar
Está uma pombinha branca;
Não é pomba, não é nada:
É o mar que se alevanta.
[instrumental]
O que olha o meu olhar
Por fora disto que é ver
Como se deixa esconder
No que vê o coração
Pode não ser confusão
Pode ser só sensação
Vá lá a gente saber
Mas há sempre uma ilusão
Lá ao longe a flutuar
Entre espuma e hesitação
No alto daquele mar
No alto daquele mar
Está uma pombinha branca;
Não é pomba, não é nada:
É o mar que se alevanta.
[bis]
E o mar ao dar à anca
Torna branco o movimento
E faz disto sentimento
Que se levanta do chão
Em rota de colisão
Com o olhar espião
Dele e do próprio momento
Em que voa a sedução
Que ao poisar diz que manca
E ao colo da criação
Está uma pombinha branca
Não é pomba, não é nada:
É o mar que se alevanta.
No alto daquele mar
Está uma pombinha branca;
Não é pomba, não é nada:
É o mar que se alevanta.
No torpor da madrugada
Todas as ondas são uma
Vemos todas e nenhuma
E toda a espuma é fusão
Irmã da própria ficção
Que transforma a emoção
Em breve gesto de espuma
E nesta desatenção
Esta morte alevantada
É um véu no som do não
Não é pomba, não é nada
No alto daquele mar
Está uma pombinha branca;
Não é pomba, não é nada:
É o mar que se alevanta.
[bis]
E a cegueira se espanta
De ninguém lhe querer falar
E nem sequer p'ra ela olhar
Já que é dela a condição
De encontrar outra razão
P'ra iludir a solidão
E a vista não se calar
Em nenhuma situação
E só de ouvir ela canta
Que não há engano não
É o mar que se alevanta
No alto daquele mar
Está uma pombinha branca;
Não é pomba, não é nada:
É o mar que se alevanta.
* [Créditos gerais do disco:]
Amélia Muge – voz, voz de sala, coros e viola braguesa
António José Martins – darbuka, triângulo, bombo, bendir, estalo, djembé, bilha, maraca, chiquitsi, voz de sala, amostrador e sintetizador
Carlos Mil-Homens – cajón
Catarina Anacleto – violoncelo
Filipe Raposo – piano acústico, piano Rhodes e acordeão
José Manuel David – flautas transversal e de bisel, tarota, trompa, garrafas e voz de sala
José Peixoto – guitarra acústica sem trastos
Yuri Daniel – contrabaixo e baixo eléctrico
Arranjos – António José Martins, José Manuel David e Filipe Raposo (partes de piano, acordeão e trompa)
Direcção musical – António José Martins
Produção – Amélia Muge e António José Martins
Gravado por Samuel Henriques no Estúdio MDL, Paço d'Arcos (voz, piano, baixo, contrabaixo e cajón)
e por António José Martins no estúdio da ETIC (Escola de Tecnologias Inovação e Criação), Lisboa, e no AJM Estúdio, Sobreda
Misturado e masterizado por António Pinheiro da Silva e António José Martins, no Estúdio Pé-de-Meia
Nada mais delicado do que o tecido do olhar
(António Ramos Rosa, in "Delta seguido de Pela Primeira Vez", Lisboa: Quetzal Editores, 1996; "Antologia Poética", prefácio, bibliografia e selecção de Ana Paula Coutinho Mendes, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2001 – p. 356)
Nada mais delicado do que o tecido do olhar
absoluta nascente do silêncio abóbada cristalina
Em inocência branca os olhos vêem a concreta limpidez
e a sua essência é como um levíssimo aroma rapidíssimo
Entre ser e não ser ondula esta alfombra transparente
cuja exactidão é terna e subtil potência breve
Uma cortesia do imponderável armistício do indizível
secreta graça da atenção e distracção do centro
Como uma lua entre sombras esquiva e confidente
ou como um cristal em movimento ou um nadador redondo
o olhar é um nascimento no permanente olvido
e como um navio equilibra a substância das coisas
NÓS SOMOS
Poema: António Ramos Rosa (in "Sobre o Rosto da Terra", Covilhã: Livraria Nacional, col. Pedras Brancas, 1961; "Antologia Poética", prefácio, bibliografia e selecção de Ana Paula Coutinho Mendes, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2001 – p. 72)
Música: Tiago Bettencourt
Intérprete: Tiago Bettencourt* com Dalila Carmo (in CD "Tiago na Toca e os Poetas", Metropolitana/EMI, 2011)
Como uma pequena lâmpada subsiste
e marcha no vento, nestes dias,
na vereda das noites, sob as pálpebras do tempo.
Caminhamos, um país sussurra,
dificilmente nas calçadas, nos quartos,
um país puro existe, homens escuros,
uma sede que arfa, uma cor que desponta no muro,
uma terra existe nesta terra,
nós somos, existimos
Como uma pequena gota às vezes no vazio,
como alguém só no mar, caminhando esquecidos,
na miséria dos dias, nos degraus desconjuntados,
subsiste uma palavra, uma sílaba de vento,
uma pálida lâmpada ao fundo do corredor,
uma frescura de nada, nos cabelos nos olhos,
uma voz num portal e a manhã é de sol,
nós somos, existimos.
Uma pequena ponte, uma lâmpada, um punho,
uma carta que segue, um bom dia que chega,
hoje, amanhã, ainda, a vida continua,
no silêncio, nas ruas, nos quartos, dia a dia,
nas mãos que se dão, nos punhos torturados,
nas frontes que persistem,
nós somos,
existimos.
* Dalila Carmo – voz, coros
Tiago Bettencourt – guitarras, Fender Rhodes, coros
Produção executiva – Tiago Bettencourt e Paulo Ventura
Gravado na TOCA, por Tiago Bettencourt
Misturado por Artur David, no Lisboa Studio
Masterizado por Ars Lindberg, no Lisboa Studio
Desenhos de António Ramos Rosa
Os olhos, os traços soltos em carícias leves,
murmuram o mundo, a sua dança, o seu clamor,
os seus aromas festivos,
e a lua, em seu rosto levíssimo flutua,
porque o sol é o astro, que em seu silêncio levita.
Na extremidade das flores, onde um veludo
precioso dormita,
a vida é o anoitecer deslumbrado.
Nos olhos de um Poeta, a dança do mundo,
os seus desenhos festivos acariciam a luz,
os seus bailados.
Nos jardins do seu nome, as palavras
resplandecem.
Nos ramos do silêncio, um pássaro pousou,
ainda há pouco,
nas praias obscuras, em suas fúlgidas areias,
o Poeta, em seus olhos de silêncio se banhou,
inebriado de canto e púrpura
e os seus traços, acompanhando os acordes
misteriosos, reinventaram os ritmos,
a criação,
sobre membranas fluidas,
recamadas de vida.
Maria do Sameiro Barroso ("Poema com desenhos de António Ramos Rosa", in "António Ramos Rosa: Imagens do Caminho das Palavras e dos Afectos: Fotobiografia", de Ana Paula Coutinho Mendes, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2005)
18 setembro 2013
Celebrando António dos Santos
António dos Santos, de seu nome completo ANTÓNIO DOS SANTOS Caio Castanheira, nasceu em Lisboa (no Hospital de São José, freguesia do Socorro), a 14 de Março de 1919.
Aos 15 anos de idade, começa a cantar fado em recintos amadores, vindo a profissionalizar-se cerca de quatro anos mais tarde, em Março de 1938, no Café Mondego. Em 1943, casa-se com Julieta Rebelo Martins com quem terá cinco filhos. Para fazer face aos crescentes encargos familiares, ingressa na marinha mercante (Mala Real Inglesa e Blue Star Line), viajando muito e por longas temporadas (chegou, por exemplo, a permanecer dois anos nos Estados Unidos da América). Mas nunca deixou de cantar, mantendo ao longo de duas décadas uma nítida preferência pelo fado jocoso. E é precisamente nesse registo que grava o seu primeiro disco, o EP "Um Congresso de Gatos" (Alvorada, 1959) que inclui, além do tema-título, "A Moda Traz Cada Coisa", "Boa Resolução" e "Um Macho Inteligente". Alguns anos antes, abrira no Beco do Azinhal, em Alfama, o restaurante/casa de fados "Solar" do António dos Santos, que ficará popularmente conhecido como o "Cantinho do António". Nesse espaço de convívio e de confraternização fadista, actuava para clientes e amigos, acompanhando-se a si próprio à viola. Assim se sedimenta e afirma um novo estilo de interpretação, nostálgico e dolente, que ficará conhecido como a balada de Lisboa.
Incentivado pelo técnico de som Hugo Ribeiro, grava em 1964, para a Valentim de Carvalho, o seu primeiro EP de baladas, sob o título genérico de "Alfama-Lisboa", contendo "Minha Alma de Amor Sedenta" (que se tornará um dos seus temas mais emblemáticos), "Recordando", "Uma Chuva de Tristeza" e "As Tuas Mãos". Segue-se, no ano subsequente, o EP "Nostalgia de Alfama" que, além do tema homónimo, inclui "Disseste-me Adeus", "Fado Triste" e "Ilusão Perdida". Em 1968, sai o EP "Fado É Canto Peregrino", composto por, além do tema-título, "Gaivotas em Terra", "Partir É Morrer um Pouco" (que fica como o seu grande cartão-de-visita) e "Ficas a Saber". Os doze temas desta trilogia de EPs (que serão reunidos na compilação "Minha Alma de Amor Sedenta", 1972) constituem o supra-sumo da produção de António dos Santos e garantem-lhe um lugar de relevo, e singularíssimo, na História da Música Portuguesa. Todas as composições são do próprio António dos Santos, que também assina três letras, sendo as outras nove da autoria de António Veloso Reis Camelo (duas), Mendes de Carvalho, Figueiredo Barros, Carlos Miguel de Araújo, Augusto Mascarenhas Barreto (três) e Maria Alexandrina. António Pessoa assegura sempre o acompanhamento à viola, contando com a ajuda, no terceiro EP, da viola baixo de Liberto Conde.
António dos Santos recebeu então o epíteto de "Baladeiro de Alfama", que se tornou ainda mais popular após a actuação, em 1969, no programa televisivo "Zip-Zip". O artista ainda gravaria mais dois discos de longa duração – "António dos Santos" (Philips, 1971) e "Fados & Baladas" (Roda/J.C. Donas, 1977) – mas já sem o mesmo brilho que havia atingido na década de 60.
Faleceu a 18 de Setembro de 1993, aos 74 anos de idade, na cidade natal, não deixando seguidores do seu estilo inconfundível, apesar de alguns fadistas, como Carlos do Carmo, Beatriz da Conceição, Maria Leopoldina Guia, Mísia e Hélder Moutinho, terem gravado temas seus.
Discografia:
- Um Congresso de Gatos (EP, Alvorada, 1959)
- Alfama-Lisboa (EP, Columbia/VC, 1964)
- Nostalgia de Alfama (EP, Columbia/VC, 1965)
- Fado É Canto Peregrino (EP, Columbia/VC, 1968)
- Penso Que Já Não Existes (EP, Philips/Phonogram, 1971)
- António dos Santos (LP, Philips/Phonogram, 1971)
- Minha Alma de Amor Sedenta (LP, Columbia/VC, 1972; CD, Edições Valentim de Carvalho/Som Livre, 2007) [reúne os 12 temas dos 3 EPs editados pela Valentim de Carvalho, selo Columbia]
- Fados & Baladas (LP, Roda/J.C. Donas, 1977)
- António dos Santos: Saudade (LP, EMI-VC, 1986) [mesmo conteúdo do LP "Minha Alma de Amor Sedenta", 1972]
- O Melhor de António dos Santos (CD, EMI-VC, 1992) [mesmo conteúdo do LP "Minha Alma de Amor Sedenta", 1972]
António dos Santos, apesar do seu superlativo legado, é nome votado ao ostracismo pelo editor da 'playlist' da Antena 1. E se isso acontece com o beneplácito de Rui Pêgo, seria de admirar que este tomasse a iniciativa de lhe render a devida homenagem no dia em que se assinalam os 20 anos do seu desaparecimento. Mesmo tendo a rádio pública a obrigação de divulgar e acarinhar o nosso património musical mais valioso e perene e de, ironicamente, até difundir um 'slogan' que diz «Antena 1: uma rádio com memória».
O blogue "A Nossa Rádio" não podia deixar de celebrar o emérito artista e apresenta uma série das suas mais sublimes criações. A pensar nos seus admiradores e, sobretudo, naqueles a quem a rádio tem negado a oportunidade de o descobrir.
Não Tarda a Neve
Poema: António Nobre (excerto ligeiramente adaptado de "Adeus!") [texto integral >> abaixo]
Música: António dos Santos
Intérprete: António dos Santos* (in EP "Penso Que Já Não Existes", Philips/Phonogram, 1971; LP "António dos Santos", Philips/Phonogram, 1971)
Adeus! Ó Mar, quero que me respondas,
Águas tão altas! dizei, dizei:
Quais mais salgadas? as vossas ondas
Quais mais salgadas? as vossas ondas
Ou as que eu choro, e chorarei?
Adeus! Ó Lua, Lua dos Meses,
Lua dos Meses, ora por nós!...
Ó Mar antigo dos Portugueses,
Ó Mar antigo dos Portugueses,
Ó Mar antigo dos meus Avós!
Adeus! Eu parto, mas volto, breve,
À tua casa que eu deixei lá!
Leva-me o Outono (não tarda a neve)
Leva-me o Outono (não tarda a neve)
No meu regresso, que sol fará!
Leva-me o Outono (não tarda a neve)
Leva-me o Outono (não tarda a neve)
No meu regresso, que sol fará!
* António dos Santos – voz
Francisco Carvalhinho – guitarra portuguesa
Pais da Silva e Martinho d'Assunção – violas
José Maria Nóbrega – viola baixo
Produção – Phonogram
Gravado no Estúdio Nacional Filmes, Lisboa
ADEUS!
(POR UMA TEMPESTADE NA COSTA DE INGLATERRA)
(António Nobre, in "Só", ciclo "Lua-Quarto Minguante", 2.ª ed. revista e aumentada, Lisboa: Guillard, Aillaud e C.ª, 1898; "Poesia Completa", org. Mário Cláudio, Lisboa: Círculo de Leitores, 1988 – p. 185-188)
Adeus! Eu parto, mas volto, breve,
À tua casa que deixei lá!
Leva-me o Outono (não tarda a neve)
Leva-me o Outono (não tarda a neve)
No meu regresso, que sol fará!
Adeus! Na ausência meses são anos,
Dias são meses, que aí são ais:
Ah tu tens sonhos, eu tenho enganos.
Eu sou sozinho, tu tens teus Pais.
Adeus! Nas velas o Vento toca
«Aves» e «Paters» de imensa dor.
Enquanto rezas, fia na roca
Enquanto rezas, fia na roca
O linho branco do nosso amor.
Adeus! Paquete, que vai fugido
Com um Poeta lá dentro a orar!
Ai que destino tão parecido.
Andar aos ventos, ó Mar! ó Mar!
Adeus! Mar, quero que me respondas,
Águas tão altas! dizei, dizei:
Quais mais salgadas? as vossas ondas
Quais mais salgadas? as vossas ondas
Ou as que eu choro, que eu chorarei?
Adeus! (Que é isto? treme o Paquete!)
Fiel me seja teu Coração:
Não que eu fechei-o num aloquete
E a chave é de oiro, trago-a na mão!
Adeus! O Vento soluça e geme,
O Mar é negro, mas «lá» é azul...
Francês tão moço, que vais ao leme,
Francês tão moço, que vais ao leme,
Ah se pudesses voltar ao Sul!
Adeus! (Piloto, que nuvens essas,
Façamos juntos o «plo sinal!»)
Menina e Moça, nunca me esqueça
Que eu tenho os olhos em Portugal!
Adeus. Um brigue de pano roto
Vede que passa, faz-nos sinais:
Tenha piedade, Sr. Piloto,
Tenha piedade, Sr. Piloto,
Seja pela alma dos nossos Pais...
Adeus! «St. Jacques», vai depressinha...
Meu Anjo, a esta hora, tu que farás?
O Mar faz medo (Salve, Rainha...)
E tu, meu Anjo, tão longe estás!
Adeus! Tão longe, tão longe a terra!
Longe de tudo, longe de ti!
A trinta milhas, fica a Inglaterra,
A trinta milhas, fica a Inglaterra,
A uma (ou menos) a Morte, ali...
Adeus! Na hora de me deixares,
Já pressentias o meu porvir:
«Meu Deus!» disseste, mostrando os ares...
Mas era urgente partir! partir!
Adeus! Já faltam os mantimentos,
Falta-nos água, falta-nos luz!
Morrer, à lua, sem sacramentos,
Morrer, à lua, sem sacramentos,
Morrer tão novo, Jesus! Jesus!
Adeus! E os dias nascem e morrem;
Tanta água e falta para beber!
E já puseram (rumores correm)
Sola de molho para comer.
Adeus! — Bons dias, meu Comandante,
A nossa sorte... morrer, talvez...
E o rude velho segue pra diante:
E o rude velho segue pra diante:
— Morrer, meu Amo, só uma vez!
Adeus! — Gajeiro! — boa criança!
Que vais em cima no mastaréu,
Vê lá se avistas terras de França...
- Ah nada avisto, só água e céu!
Adeus! Ó Lua, Lua dos Meses,
Lua dos Mares, ora por nós!...
Ó Mar antigo dos Portugueses,
Ó Mar antigo dos Portugueses,
Ó Mar antigo dos meus Avós!
Adeus! Ai triste de quem embarca
Sem ver a sorte que o espera ao fim!
Façamos vela prà Dinamarca,
Que Hamlet espera no Cais por mim.
Adeus! À Vida sinto-me preso,
(Morrer não custa) pelas paixões...
Vamos ao fundo, meu Anjo, ao peso
Vamos ao fundo, meu Anjo, ao peso
Das minhas trinta desilusões!
Adeus! Que estranha Visão é aquela
Que vem andando por sobre o mar?
Todos exclamam de mãos para ela:
«Nossa Senhora! que vens a andar!»
Adeus! A Virgem com um afago,
Pôs manso o Oceano, que assim o quis:
O Mar agora parece um lago,
O Mar agora parece um lago,
O rio Lima do meu País!
Adeus! Menina, que estás rezando,
Desceu a Virgem e já te ouviu:
Agora, quero ver-te cantando,
A Santa Virgem já me acudiu.
Adeus! Os Ventos são meigas brisas
E brilha a Lua como um farol!
Ponde nas vergas vossas camisas,
Ponde nas vergas vossas camisas,
Ó Marinheiros, que a Lua é o Sol!
Adeus! «St. Jacques» lá entra a barra,
Nossa Senhora vai indo a pé:
Com seu cabelo fez uma amarra,
Lá vai puxando, que boa ela é!
Adeus! Eu parto, mas volto, breve,
À tua casa que deixei lá!
Leva-me o Outono (não tarda a neve)
Leva-me o Outono (não tarda a neve)
No meu regresso, que sol fará!
Paris, 1893.
É Assim a Minha Alfama
Letra: Alexandre Fontes
Música: Jorge Fontes
Intérprete: António dos Santos* (in LP "Fados & Baladas", Roda/J.C. Donas, 1977)
"Quantos becos tem Alfama?",
Insististe em perguntar;
Mas Alfama não engana
E quer que a vás visitar.
Anda ver estas vielas
Que nos falam do passado,
Tão antigas e tão belas
Onde mora o velho fado.
Andam mil pregões no ar
Logo que o dia começa,
As varinas par a par
De canastrinha à cabeça.
Pelos santos populares
Tudo baila nas vielas;
E os namoricos aos pares
Dançam à luz das estrelas.
É assim a minha Alfama:
Gente de valor profundo,
Bairro tão cheio de fama
Espalhada pelo mundo.
* António dos Santos – voz
Conjunto de Jorge Fontes
Produção – Carlos Cunha
Técnico de som – Fernando Santos
Nostalgia de Alfama
Letra: António Veloso Reis Camelo
Música: António dos Santos
Intérprete: António dos Santos* (in EP "Nostalgia de Alfama", Columbia/VC, 1965; LP "Minha Alma de Amor Sedenta", Columbia/VC, 1972, reed. Edições Valentim de Carvalho/Som Livre, 2007)
Eu não sei que tem Alfama
P'ra que dela me prendesse;
Não na sente quem a infama
Com famas que não merece.
Nos seus becos e vielas,
Onde o sol põe tanta graça,
Há flores e há donzelas;
Não há apenas desgraça.
Tanto as casas se entrelaçam
P'ra caberem dentro dela
Que os namorados se abraçam
De janela p'ra janela.
Quando acesas permanecem
E já tudo adormeceu,
Há janelas que parecem
Dependuradas do céu.
* António dos Santos – voz
António Pessoa – viola
Técnico de som – Hugo Ribeiro
Remasterizado por Luís Delgado, nos Estúdios Tcha Tcha Tcha, Miraflores
Recordando
Letra: António Veloso Reis Camelo
Música: António dos Santos
Intérprete: António dos Santos* (in EP "Alfama-Lisboa", Columbia/VC, 1964; LP "Minha Alma de Amor Sedenta", Columbia/VC, 1972, reed. Edições Valentim de Carvalho/Som Livre, 2007)
Existe ainda em Alfama
Uma casa pequenina
Onde habitava uma dama
Que tratavam de menina.
Nesse tempo tal casinha
Era toda cor-de-rosa
E, a condizer, a velhinha
De sua graça era Rosa.
Hoje a casa é amarela
Como tantas em Alfama;
Outra dama vive nela
Mas não sei como se chama.
Para mim, seja quem for,
Essa casa tão airosa,
Mesmo mudada de cor,
É a da menina Rosa.
* António dos Santos – voz
António Pessoa – viola
Técnico de som – Hugo Ribeiro
Remasterizado por Luís Delgado, nos Estúdios Tcha Tcha Tcha, Miraflores
Fado Triste
Letra e música: António dos Santos
Intérprete: António dos Santos* (in EP "Nostalgia de Alfama", Columbia/VC, 1965; LP "Minha Alma de Amor Sedenta", Columbia/VC, 1972, reed. Edições Valentim de Carvalho/Som Livre, 2007)
Do sonho fiz o meu fado,
Fado triste, amargurado;
E desde então vou vivendo
Ao meu fado acorrentado.
Fado triste, minha oração
Que todos os dias rezo
Com a maior devoção;
Tu és o meu padre-nosso,
As minhas ave-marias
Que rezando vou ganhando
O pão de todos os dias.
Das minhas lágrimas sem fim
Fiz um rosário p'ra mim;
E uma a uma desfiando
Às minhas penas dou fim.
Tu és o meu padre-nosso,
As minhas ave-marias
Que rezando vou ganhando
O pão de todos os dias.
* António dos Santos – voz
António Pessoa – viola
Técnico de som – Hugo Ribeiro
Remasterizado por Luís Delgado, nos Estúdios Tcha Tcha Tcha, Miraflores
Fado É Canto Peregrino
Letra: Augusto Mascarenhas Barreto
Música: António dos Santos
Intérprete: António dos Santos* (in EP "Fado É Canto Peregrino", Columbia/VC, 1968; LP "Minha Alma de Amor Sedenta", Columbia/VC, 1972, reed. Edições Valentim de Carvalho/Som Livre, 2007)
Fado é canto peregrino,
Fado de ontem é saudade,
Fado de hoje é ansiedade,
O de amanhã é destino.
Nasce quando nasce a lua,
Morre ao alvor matutino,
Vagueia de rua em rua:
Fado é canto peregrino.
Se recorda uma aventura
Da risonha mocidade
É lembrança que perdura:
Fado de ontem é saudade.
Canto da alma perdida
Pelos cantos da cidade
É mágoa da própria vida:
Fado de hoje é ansiedade.
Tem sempre um quê de pecado,
Algo também de divino;
Amor que passou é fado,
O de amanhã é destino.
* António dos Santos – voz
António Pessoa – viola
Liberto Conde – viola baixo
Técnico de som – Hugo Ribeiro
Remasterizado por Luís Delgado, nos Estúdios Tcha Tcha Tcha, Miraflores
Gaivotas em Terra
Letra: Augusto Mascarenhas Barreto
Música: António dos Santos
Intérprete: António dos Santos* (in EP "Fado É Canto Peregrino", Columbia/VC, 1968; LP "Minha Alma de Amor Sedenta", Columbia/VC, 1972, reed. Edições Valentim de Carvalho/Som Livre, 2007)
Gaivotas em terra, de asas fechadas,
Marujos sem rumo, num banco dum bar;
Barcaças dormentes, no cais ancoradas,
Meninas morenas que pensam casar...
Preciso é que voem, que batam as asas;
Preciso é que deixem as altas janelas;
Preciso é que saiam as portas das casas;
Preciso é que soltem amarras e velas...
Marujos sozinhos, pensando outro mundo...
Meninas em casa, fiando desejo...
Preciso é que cruzem seu olhar profundo;
Preciso é que colem as bocas num beijo!
Mãos de marinheiro não temem procelas,
Se houver outras mãos, p'ra além vendaval;
Rezando por ele e tecendo outras velas
Mais brancas, mais belas, do seu enxoval!
* António dos Santos – voz
António Pessoa – viola
Liberto Conde – viola baixo
Técnico de som – Hugo Ribeiro
Remasterizado por Luís Delgado, nos Estúdios Tcha Tcha Tcha, Miraflores
Minha Alma de Amor Sedenta
Letra e música: António dos Santos
Intérprete: António dos Santos* (in EP "Alfama-Lisboa", Columbia/VC, 1964; LP "Minha Alma de Amor Sedenta", Columbia/VC, 1972, reed. Edições Valentim de Carvalho/Som Livre, 2007)
Minha alma de amor sedenta,
Barco sem rumo e sem Deus,
Anda à mercê da tormenta
Desse mar dos olhos teus.
Essa dádiva total,
Que me pedes hora a hora,
É o que minha alma te dá
Quando de amor por ti chora.
Se um dia te perder
Jurarei virado aos céus;
E os perdões que Deus me der,
Meu amor, são todos teus.
É uma causa perdida
O ser proibido amar:
Quem perde um amor na vida
Jamais devia cantar.
* António dos Santos – voz
António Pessoa – viola
Técnico de som – Hugo Ribeiro
Remasterizado por Luís Delgado, nos Estúdios Tcha Tcha Tcha, Miraflores
As Tuas Mãos
Letra: Figueiredo Barros
Música: António dos Santos
Intérprete: António dos Santos* (in EP "Alfama-Lisboa", Columbia/VC, 1964; LP "Minha Alma de Amor Sedenta", Columbia/VC, 1972, reed. Edições Valentim de Carvalho/Som Livre, 2007)
Ai, senhora, as tuas mãos
São torres de catedral
Em que se acolhe meu corpo
Cansado de tanto mal.
As tuas mãos são o oásis
Onde encontro o lenitivo
Para o cansaço da vida
Que vou tendo sem motivo.
As tuas mãos são a manta
Que me cobre a nudez
Desta miséria que sinto
E que eu vejo e tu não vês.
* António dos Santos – voz
António Pessoa – viola
Técnico de som – Hugo Ribeiro
Remasterizado por Luís Delgado, nos Estúdios Tcha Tcha Tcha, Miraflores
Ficas a Saber
Letra: Maria Alexandrina
Música: António dos Santos
Intérprete: António dos Santos* (in EP "Fado É Canto Peregrino", Columbia/VC, 1968; LP "Minha Alma de Amor Sedenta", Columbia/VC, 1972, reed. Edições Valentim de Carvalho/Som Livre, 2007)
Tinha um coração e dei-to,
E agora que não é meu
Sinto até no meu peito
Outro maior do que o teu.
Foi só depois de eu dizer
Que te amava loucamente
Que tu quiseste saber
Quanto é que um louco sente.
Todo o amor repartido
Ensina à gente a maneira
De ter num beijo sentido
O sabor da vida inteira.
Porque num beijo trocado
Com amor louco e profundo
Fica um tratado assinado
Mais forte que as leis do mundo.
* António dos Santos – voz
António Pessoa – viola
Liberto Conde – viola baixo
Técnico de som – Hugo Ribeiro
Remasterizado por Luís Delgado, nos Estúdios Tcha Tcha Tcha, Miraflores
Disseste-me Adeus
Letra: Carlos Miguel de Araújo
Música: António dos Santos
Intérprete: António dos Santos* (in EP "Nostalgia de Alfama", Columbia/VC, 1965; LP "Minha Alma de Amor Sedenta", Columbia/VC, 1972, reed. Edições Valentim de Carvalho/Som Livre, 2007)
Disseste-me adeus um dia,
Fiz tudo para o esquecer;
Na tua a minha mão fria
Sentiu-se triste morrer.
Na vida não vale a pena
Sentir saudades de alguém;
Tudo morre e tudo esquece,
Morre a saudade também.
Morre a saudade também
No coração onde mora;
Saudades quem as não tem
Quando uma guitarra chora.
Quando uma guitarra chora
Fala pela boca da gente;
Saudades quem as não tem,
Saudades quem as não sente.
* António dos Santos – voz
António Pessoa – viola
Técnico de som – Hugo Ribeiro
Remasterizado por Luís Delgado, nos Estúdios Tcha Tcha Tcha, Miraflores
Uma Chuva de Tristeza
Letra: Mendes de Carvalho
Música: António dos Santos
Intérprete: António dos Santos* (in EP "Alfama-Lisboa", Columbia/VC, 1964; LP "Minha Alma de Amor Sedenta", Columbia/VC, 1972, reed. Edições Valentim de Carvalho/Som Livre, 2007)
Uma chuva de tristeza
Caiu no meu coração;
E o mar ficou-me deserto
Morrendo numa canção.
Bebo p'ra não me lembrar,
Para de ti me esquecer;
Mas tu és a minha fonte
E eu só nela sei beber!
Porque me deixaste, amor,
Se outra mulher não existe?
Tu ficaste em mim gravada
E a saudade persiste!
Vem depressa! Volta, amor!
Eu vou morrendo em saudade;
Não posso ficar sem ti,
Tu és a minha verdade!
* António dos Santos – voz
António Pessoa – viola
Técnico de som – Hugo Ribeiro
Remasterizado por Luís Delgado, nos Estúdios Tcha Tcha Tcha, Miraflores
Novamente Primavera
Letra: Alexandre Fontes
Música: António dos Santos
Intérprete: António dos Santos* (in LP "Fados & Baladas", Roda/J.C. Donas, 1977)
Meu amor, a primavera
Acabou e tenho pena;
Nosso sonho foi quimera
Na paisagem amena.
Tanta folha pelo chão
Pisada a todo o momento;
E a nossa velha afeição
Transformou-se num tormento.
Primavera, primavera
Com andorinhas voando...
Quem me dera, quem me dera
Ver o meu amor voltando!
Na minha vida vazia
Meu coração vive à espera
Que o nosso amor seja um dia
Novamente primavera!
* António dos Santos – voz
Conjunto de Jorge Fontes
Produção – Carlos Cunha
Técnico de som – Fernando Santos
De Mãos Amarradas
Letra: Alexandre Fontes
Música: António dos Santos
Intérprete: António dos Santos* (in LP "Fados & Baladas", Roda/J.C. Donas, 1977)
Eu passo o tempo a pensar
Por que é que à noite o luar
Traz minha voz magoada;
Folha levada pelo vento,
Caída no esquecimento,
Pela rua abandonada.
Trago mágoas no meu peito
E no meu sonho desfeito
Vejo-te sempre distante;
Sonho de amor indeciso,
Criança sem ter sorriso,
Beijo falso duma amante.
Madrugada sem ter sono
Lembrando o teu abandono
Não consigo adormecer;
Andam no céu trovoadas
E eu de mãos amarradas
Inda espero por te ver.
Andam no céu trovoadas
E eu de mãos amarradas
Inda espero por te ver.
* António dos Santos – voz
Conjunto de Jorge Fontes
Produção – Carlos Cunha
Técnico de som – Fernando Santos
Ilusão Perdida
Letra e música: António dos Santos
Intérprete: António dos Santos* (in EP "Nostalgia de Alfama", Columbia/VC, 1965; LP "Minha Alma de Amor Sedenta", Columbia/VC, 1972, reed. Edições Valentim de Carvalho/Som Livre, 2007)
Amei uma vez na vida,
Mas não pude ser amado
Por uma formosa cigana;
Era de raça diferente,
Diferente a sua cor
E tinha uma lei tirana.
Disse-me um dia, a chorar,
Essa linda ciganita:
"Perdoa-me, meu amor!
Jamais poderei ser tua
Porque só posso casar
Com alguém da minha cor!"
A soluçar, concordei,
Enchi-lhe a boca de beijos,
Foi a nossa despedida;
E com a raiva nos olhos
Vi partir a caravana
Que levava a minha vida.
Não mais a tornei a ver,
Não sei se vive, se é morta,
Se anda pelo mundo fora;
Se lá longe, muito longe,
Me tenta agora esquecer
Como eu a recordo agora.
Nunca mais amei no mundo
A ninguém um só momento;
Já pouco me importa a vida:
Sou monge, um vagabundo
Encerrado no convento
Da minha ilusão perdida.
* António dos Santos – voz
António Pessoa – viola
Técnico de som – Hugo Ribeiro
Remasterizado por Luís Delgado, nos Estúdios Tcha Tcha Tcha, Miraflores
Partir é Morrer Um Pouco
Letra: Augusto Mascarenhas Barreto
Música: António dos Santos
Intérprete: António dos Santos* (in EP "Fado É Canto Peregrino", Columbia/VC, 1968; LP "Minha Alma de Amor Sedenta", Columbia/VC, 1972, reed. Edições Valentim de Carvalho/Som Livre, 2007)
Adeus, parceiros das farras,
Dos copos e das noitadas;
Adeus, sombras da cidade;
Adeus, langor das guitarras,
Canto de esperanças frustradas,
Alvorada de saudade.
Meu coração, como louco,
Quer desgarrar-me do peito,
Transforma em soluço a voz;
Partir é morrer um pouco:
A alma de certo jeito
A expirar dentro de nós.
Voam mágoas em pedaços
Como aves que se não cansam,
Ilusões esparsas no ar;
Partir é estender os braços
Aos sonhos que não se alcançam
Cujo destino é ficar.
Deixo a minh'alma no cais;
De longe, canso sinais
Feitos de pranto a correr;
Quem morre não sofre mais,
Mas quem parte é dor demais:
É bem pior que morrer.
Quem morre não sofre mais,
Mas quem parte – é dor demais:
É bem pior que morrer.
* António dos Santos – voz
António Pessoa – viola
Liberto Conde – viola baixo
Técnico de som – Hugo Ribeiro
Remasterizado por Luís Delgado, nos Estúdios Tcha Tcha Tcha, Miraflores
Capa do EP "Alfama-Lisboa" (Columbia/VC, 1964)
Capa da compilação "Minha Alma de Amor Sedenta" (Columbia/VC, 1972)
Contracapa do LP "É Assim a Minha Alfama", reedição do LP "Fados & Baladas" (Roda/J.C. Donas, 1977)
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