19 novembro 2024

José Mário Branco com Fausto: "Canto dos Torna-Viagem"



A descolonização, que a Revolução dos Cravos tornou possível e que tinha de ser feita (embora se possa questionar o modo como se processou), teve como efeito o êxodo de mais de meio milhão de pessoas vindas de África para este rectângulo europeu e para os arquipélagos atlânticos adstritos. Eram os chamados retornados, se bem que, em rigor, alguns não o fossem, porque já nascidos em territórios de além-mar. A esses despojos humanos do colapso do império, cuja integração na sociedade portuguesa, analisada à distância, foi surpreendente atendendo à sua dimensão, se refere o "Canto dos Torna-Viagem" que José Mário Branco gravou com Fausto Bordalo Dias para o álbum "Resistir É Vencer", publicado há vinte anos. E percebe-se perfeitamente que José Mário Branco tenha convidado para aquele tema concreto o autor de "Por Este Rio Acima" e de "Crónicas da Terra Ardente", que são dois sublimes frescos poético-musicais da Expansão Portuguesa, não tanto em glorificação de heróis incomparáveis ou em enaltecimento de façanhas inauditas, como era timbre do colonialista Estado Novo, mas mais como documento ilustrativo da vida aventurosa e temerária de homens comuns por mares e terras ignotos e do destino desditoso que muitos deles tiveram. Entre os malogrados pioneiros de Quinhentos e os derradeiros colonos do império, a quem não restou outra saída do que largar tudo em terras africanas para virem recomeçar a vida a partir do zero neste muito menos promissor rincão lusitano de onde haviam fugido, é lícito estabelecer um certo paralelismo – são as duas extremidades de um ciclo que se fechou –, o que torna aindaa mais pertinente o convite que José Mário Branco dirigiu especificamente a Fausto, a não a outro artista que admirasse. E o arranjo também não foi gizado aleatoriamente pois é notória a inspiração na estética de Fausto patente nos álbuns supracitados.
É pois com este fascinante e inspirado "Canto dos Torna-Viagem" que assinalamos o primeiro lustro sem a presença entre nós de José Mário Branco, aproveitando o pretexto para também homenagearmos, ainda que muito modestamente, Fausto Bordalo Dias que partiu há escassos meses. Dando destaque a este notável registo, pretendemos igualmente exemplificar o superlativo valor do legado musical/fonográfico de José Mário Branco e o quanto é culturalmente importante e imperioso estimá-lo, salvaguardá-lo e divulgá-lo. De referir que foi também esse o propósito que motivou o músico Vítor Sarmento a lançar uma petição pública visando a classificação da obra do categorizado cantautor como de interesse nacional, tendo na presente data sido entregue na Assembleia da República o dossier com as quase 4 mil assinaturas recolhidas. Esperamos que os grupos parlamentares e os deputados ajam em conformidade com tal desiderato. No capítulo da divulgação – convém nunca esquecer –, é imprescindível o papel da rádio. Ora, atentamos na pública Antena 1, que é a que tem mais responsabilidades nesse domínio, e não se consegue apanhar o quer que seja na voz de José Mário Branco durante os larguíssimos períodos em que reina a 'playlist'. Como é possível?



Canto dos Torna-Viagem



Letra e música: José Mário Branco
Intérpretes: José Mário Branco* & Fausto Bordalo Dias (in CD "Resistir É Vencer", José Mário Branco/EMI-VC, 2004, reed. Parlophone/Warner Music Portugal, 2017)




[instrumental]

Foi no sulco da viagem
Já sem armas nem bagagem
Nem os brasões da equipagem
Foi ao voltar

Pátria moratória
No coração da História
Que consumiste a glória
Num jantar

Foi como se Portugal
P'ra seu bem e p'ra seu mal
Andasse em busca dum final
P'ra começar

Ávida violência
Reverso de inocência
Sal da inconsciência
Que há no mar

Império tão pequenino
De portulano caprino
Bolsos de sina e de sino
Em cada mão

Pátria imaginária
De consistência vária
Afirmação diária
Do teu não

As malas dos portugueses
São como os olhos das rezes
Que se mastigam três vezes
Em cada chão

Cândida ignorância
Grande desimportância
Os frutos da errância
Já lá vão

Ai Senhora dos Navegantes me valei
De África, do sal e do mar só eu sobrei
Foi p'ra me encontrar que amanhã já me perdi
Longe vai o tempo em que eu já não estou aqui

Ai Senhora dos Talvez-Muitos-Mais-Sinais
Socorrei estes desperdícios coloniais
Foi na noite fria que o dia me cegou
Inda agora fui, inda agora cá não estou

Ai Senhora dos Esquecidos me lembrai
O caminho que p'ra lá vem e p'ra cá vai
Etecetra e tal, Portugal é nós no mar
Inda agora vim e estou longe de chegar

Ai Senhora dos Meus Iguais que eu subtraí
Foi pataca a mim e não foi pataca a ti
Se é tão grande a alma na palma do meu ser
Algum dia eu vou finalmente acontecer

Porque não tentar outro ponto de vista
A história dos outros, quem a contará
Se qualquer colónia sem colonialista
São os que já estavam lá

Tentemos então ver a coisa ao contrário
Do ponto de vista de quem não chegou
Pois se eu fosse um preto chamado Zé Mário
Eu não era quem eu sou

Os navegadores chegaram cá a casa
E foi tudo novo p'ra eles e p'ra mim
A cruz e a espada e os olhos em brasa
Porque me trataste assim?

Não é culpa nossa se quem p'ra cá veio
Não se incomodou ao saber do horror
A História não olha a quem fica no meio
E o que foi é de quem fôr

[instrumental / som do mar e do vento a bordo de um barco à vela]


* José Mário Branco – voz
Fausto Bordalo Dias – voz
José Peixoto, Francisco Abreu – guitarras acústicas
Carlos Bica – contrabaixo
Tomás Pimentel, Nuno Marques – trompetes
Claus Nymark, Luís Cunha – trombones
Rui Marques – flautim
António José Martins, João Luís Lobo, Fernando Molina – percussão

Quarteto Anthropos (Viena):
Luís Morais – 1.º violino
Ko Wang-Yo – 2.º violino
Michael Trabesinger – viola d'arco
Lee il-Se – violoncelo

Orquestra de Gratz (Viena):
Dong Hynk Kim – maestro
Luís Morais, Sergei Bolotny, Andreas Kalfmann, Annette Veiltendorber, Narachi Nima e Kathrin Lenzenweger – 1.os violinos
Ko Wang-Yo, Smaranda Lelutiv, Orsolya Pálfi, Nora Põtter, Stalislava Svirac e Ardian Lahi – 2.os violinos
Michael Trabesinger, Marie Therese Hartet, Laura Jungairth e Margarethe Hlava – violas d'arco
Lee il-Se, Pflegard Wilhelm e Ele Schõfmann – violoncelos
James Rapport e König Franz – contrabaixos

Grupo Coral "Os Escolhidos" (Amélia Muge, Fernando Pinheiro, Filipa Pais, Genoveva Faísca, Guilhermino Monteiro, Jorge Palma, José Manuel David, Luísa Rodrigues, Manuela de Brito, Paulo Santos Silva e Rui Vaz) – coro
Coro dos Gambozinos, Porto (Afonso Souto Moura, Amendoim, Ana Lusa Abreu, Ana Lusa Moura, Bárbara, Batatinha frita, Carolina Duarte, Chenda, Coelho, Cuca, Gui, Maria Rui, Mariana Branco, Microfone, Miguel Simões, Pilas, Presunto, Rita Sousa e Teia – ensaiados, dirigidos e muito amados por Suzana Ralha) – coro
Luís Martins Saraiva – sonoplastia da coda

Direcção, produção, arranjos e orquestrações – José Mário Branco
Assistência de produção artística – Manuela de Freitas
Assistência de produção musical – António José Martins
Produção executiva – Paulo Salgado / Vachier & Associados, Lda.
Direcção técnica – António Pinheiro da Silva
Assistência de direcção técnica e anotações – Maria João Castanheira
Gravado e masterizado no Estúdio 'O Circo a Vapor' (Lisboa), por António Pinheiro da Silva, Frederico Pereira e Maria João Castanheira, de Janeiro a Março de 2004
Gravação de cordas na Wiener Konzerthaus (Viena) por António Pinheiro da Silva, Maria João Castanheira, Georg Burdicek e Andreas Melcher, em Fevereiro de 2004
Edição e misturas nos Estúdios Pé-de-Meia (Oeiras), por António Pinheiro da Silva, Frederico Pereira, Maria João Castanheira e José Mário Branco, em Fevereiro e Março de 2004
URL: https://pt.wikipedia.org/wiki/Jos%C3%A9_M%C3%A1rio_Branco
https://arquivojosemariobranco.fcsh.unl.pt/
https://www.facebook.com/FascismoNuncaMais/posts/725849500857765/
https://expresso.pt/cultura/2019-11-19-O-momento-antes-de-disparar-a-seta-a-entrevista-de-Jose-Mario-Branco
https://www.buala.org/pt/cara-a-cara/jose-mario-branco-a-eterna-inquietacao
https://www.nit.pt/cultura/musica/morte-lenda-momentos-marcantes-vida-jose-mario-branco
https://www.esquerda.net/topics/dossier-303-jose-mario-branco-voz-da-inquietacao
https://www.publico.pt/jose-mario-branco
https://www.youtube.com/channel/UChQPBSV5W6kL-jw1Tp08g_w
https://www.youtube.com/user/DoTempoDosSonhos/videos?query=jose+mario+branco



Capa do CD "Resistir É Vencer", de José Mário Branco (EMI-VC, 2004)
Reprodução parcial do quadro "Resistência", 1946, de Júlio Pomar [imagem da obra integral e texto explicativo de Ana Anacleto >> aqui]

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