15 novembro 2024
Ruy Belo: "E Tudo Era Possível", por Nicolau Santos
© Duarte Gromicho, Out. 2021 (in https://view.genially.com/)
«Dois investigadores da Universidade de Pittsburgh colocaram mais de 1600 pessoas diante de dez poemas. Cinco desses poemas haviam sido gerados por Inteligência Artificial, tomando como modelo o estilo de poetas como T.S. Elliot ou Lord Byron. Os leitores não conseguiram distinguir, entre os dez poemas, quais eram genuinamente de Shakespeare ou do Nobel de Literatura influenciado por [Ezra] Pound e quais tinham sido gerados por sistema informático. Mas tendiam a preferir, por serem "mais directos e acessíveis", aqueles que tinham sido produzidos pela artificiosa máquina lírica. Máquina lírica não vos soa a Herberto? Soa-vos bem. Que diz mais a notícia? Diz que a alegada maior compreensão dos poemas gerados por Inteligência Artificial conduziu a maioria dos participantes à convicção de que esses, os "mais fáceis de compreender", eram os poemas de "autoria humana". Dito de outro modo: a malta prefere poemas da IA. IA, meu.
Se o mercado se render ao filão da poesia produzida artificialmente podemos imaginar amantes do antigo e humano modelo criativo procurando velhas livrarias como se procurassem abrigos nucleares. Uso a palavra "nuclear" querendo significar "central", "essencial". Querendo significar a sua importância vital, desmesurada.
Manoel de Barros, o meu poeta tão amado, deixou firmados estes versos sobre importâncias quando nem se falava de Inteligência Artificial: "O cu de uma formiga é mais importante para o poeta do que uma usina nuclear".
Assim pudesse surgir, entretanto, um Álvaro de Campos que nos gritasse com novas palavras, com novas humanas palavras: "Estou cansado da inteligência. Pensar faz mal às emoções". Um futuro criador de geniais heterónimos ousará lançar ao Chat GPT o verso mote desabrido "Estou cansado da inteligência artificial"?
Lá está Herberto no "Poemacto": "As vacas dormem, as estrelas são truculentas/ a inteligência é cruel/ Eu abro para o lado dos campos./ Vejo como estou minado por esse/ puro movimento de inteligência. Porque olho/ rodo nos gonzos como para a felicidade/ Mais levantadas são as arbitrárias ervas/ do que as estrelas/ Tudo dorme nas vacas/ Oh violenta inteligência onde as coisas/ levitam preciosamente".
É possível? Será possível que a IA detenha esse poder que o poeta alcança e de que fala Ruy Belo num poema. "Na minha juventude antes de ter saído/ da casa de meus pais disposto a viajar/ eu conhecia já o rebentar do mar/ das páginas dos livros que já tinha lido". Está no "Homem de Palavra(s)" esse poema que termina com o poeta perguntando-se quando foi isso, não tendo para essa pergunta resposta bastante. Isso explica os versos finais do poema: "Só sei que tinha o poder duma criança/ Entre as coisas e mim havia vizinhança/ E tudo era possível, era só querer".
A notícia que motivou esta deambulação diz-nos, da Inteligência Artificial, a possibilidade de que ela confunda leitores, mais ou menos calejados, de poetas maiores. Admitamos que, com a sua vasta asa tecnológica, essa possibilidade abranja tudo. E que tudo seja possível, mesmo se apenas ilusoriamente possível. Também, nesta nova frente poética, genialmente enganadora, bastará querer? Se sim, até onde irá o querer desta fonte geradora de formidáveis enganos?» [Fernando Alves, "A máquina lírica", in "Os Dias que Correm", 15 Nov. 2024]
A TSF-Rádio Jornal, apesar de ser uma rádio privada, logo com as contingências inerentes a essa condição, presenteava sempre os ouvintes da crónica "Sinais", de Fernando Alves, logo que ela acabava, com um registo musical (geralmente cantado, mas podia ser instrumental) ou, uma vez por outra, de poesia dita/recitada. A escolha era notavelmente criteriosa em qualidade e no enquadramento temático com as palavras enunciadas pelo cronista. Em matéria de poesia, o escrevente destas linhas lembra-se perfeitamente de ter lá ouvido, em meados de 2022, o célebre "Cântico Negro", de José Régio, recitado (admiravelmente) por Jorge Delfim.
Acaso a crónica que Fernando Alves leu hoje aos microfones da Antena 1 fosse ainda emitida pela TSF, seria, quase de certeza, rematada com um registo recitado de um dos poemas integrais de que o distinto cronista citou passagens, possivelmente "E Tudo Era Possível", de Ruy Belo, por Nicolau Santos, acompanhado ao piano por João Balula Cid, que faz parte do CD "...E Quase Tudo Foi Possível (21 Poemas e um Piano), publicado em 2008. Mas se Ricardo Soares, ou Nuno Galopim de Carvalho, acaso receasse que a transmissão dessa gravação pudesse ser encarada como um acto de dar graxa ao patrão (dado ele ocupar, presentemente, o lugar de presidente do conselho de administração da Rádio e Televisão de Portugal) podia muito bem recorrer ao arquivo histórico que é fabulosamente rico em poesia (dita por, entre outros, Manuel Lereno, Carmen Dolores, Maria Clara, Carlos Achemann, António Cardoso Pinto, Paulo Rato e Eugénia Bettencourt). Estamos em crer que aquele poema de Ruy Belo está lá representado por alguma daquelas vozes ou por outra. Mas, se por remota hipótese académica, tal não se verificasse, ainda assim podia ser transmitido outro poema de um dos autores nomeados, resgatado do arquivo ou extraído de uma edição discográfica. Suspeitamos que ninguém se importaria com isso e se, porventura, alguém reclamasse, sendo-lhe dada a devida explicação, a compreenderia de bom grado. O que não se compreende, nem se pode tolerar, é que a estatal Antena 1 teime em pecar por omissão e a fazer pior (quando podia fazer igual ou até melhor) do que fazia a privada TSF-Rádio Jornal.
De agora em diante, ante a ameaça da "máquina lírica", como dá nota Fernando Alves, a fruição de poesia verdadeiramente humana (à outra é questionável que se possa chamar poesia, porque a arte digna desse nome assenta na vida e nas vivências de gente de carne e osso) é um acto de resistência cultural e a rádio do Estado não pode (não deve) ficar alheada desse vital desígnio.
E TUDO ERA POSSÍVEL
Poema de Ruy Belo (in "Homem de Palavra(s)", Col. Cadernos de Poesia, Vol. 9, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1969; "Todos os Poemas", Lisboa: Assírio & Alvim, 2000)
Recitado por Nicolau Santos* [in CD "...E Quase Tudo Foi Possível (21 Poemas e um Piano)", João Balula Cid, 2008]
Música de João Balula Cid
Na minha juventude antes de ter saído
da casa de meus pais disposto a viajar
eu conhecia já o rebentar do mar
das páginas dos livros que já tinha lido
Chegava o mês de maio era tudo florido
o rolo das manhãs punha-se a circular
e era só ouvir o sonhador falar
da vida como se ela houvesse acontecido
E tudo se passava numa outra vida
e havia para as coisas sempre uma saída
Quando foi isso? Eu próprio não o sei dizer
Só sei que tinha o poder de uma criança
entre as coisas e mim havia vizinhança
e tudo era possível era só querer
* Nicolau Santos – voz
João Balula Cid – piano
URL: https://pt.wikipedia.org/wiki/Nicolau_Santos
https://www.meloteca.com/portfolio-item/joao-balula-cid/
https://music.youtube.com/channel/UCqPKRBMxHUlwYovPF7y_0dw
Capa da 1.ª edição do livro "Homem de Palavra(s)", de Ruy Belo (Col. Cadernos de Poesia, Vol. 9, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1969)
Fotografia – António Xavier
Orientação gráfica – Fernando Felgueiras
Sobrecapa da 1.ª edição do volume "Todos os Poemas", de Ruy Belo (Lisboa: Assírio & Alvim, 2000)
Capa do CD "...E Quase Tudo Foi Possível (21 Poemas e um Piano)", de João Balula Cid & Nicolau Santos (João Balula Cid, 2008)
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Outros artigos com poesia de Ruy Belo:
Mário Viegas: 10 anos de saudade
A infância e a música portuguesa
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Outros artigos relacionados com a crónica de Fernando Alves na Antena 1:
Galandum Galundaina: "Chin Glin Din"
"Sons d'Outrora" em viola da terra, por Miguel Pimentel
Vitorino: "Moças de Bencatel" (Conde de Monsaraz)
Teresa Silva Carvalho: "Barca Bela" (Almeida Garrett)
António Borges Coelho: "Sou Barco"
Celeste Rodrigues: "Chapéu Preto"
Sérgio Godinho: "Tem Ratos"
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