25 abril 2022

Manuel Freire: "Livre" (Carlos de Oliveira)


Manuel Freire em finais da década de 1960 (fotografia publicada na capa da revista "Mundo da Canção" N.º 8 - Julho de 1970)


Antes de Manuel Freire se dar a conhecer ao grande público actuando em duas edições do programa televisivo (de grande audiência) "Zip-Zip", a segunda delas coincidindo com a última do próprio programa, a 29 de Dezembro de 1969, na qual apresentou a belíssima "Pedra Filosofal", que não tardou a tornar-se o seu 'cartão-de-visita', já havia publicado, no ano anterior, dois discos em formato EP – "Manuel Freire canta Manuel Freire" e "Trovas Trovas Trovas" – ambos sob o selo Tagus, propriedade do maestro Jorge Costa Pinto. A segunda daquelas edições seria apreendida pela PIDE por conter uma canção, "O Sangue Não Dá Flor", que tinha (tem) uma mensagem explicitamente antimilitarista cujos destinatários eram, como facilmente se depreendia naquele contexto histórico, os soldados portugueses que nas matas africanas derramavam o seu sangue combatendo numa guerra sem sentido: «Poisa a espingarda, irmão/ que o sangue não dá flor!/ Para amanhã ser melhor/ não podemos perder amor.» [terceira estrofe / áudio integral >> blogue "Regresso ao Passado"]. Sobre o primeiro EP não caiu o anátema da proibição, embora a canção "Livre" não fosse inócua para um regime que estava longe de prezar a liberdade e o pensamento sem peias. O facto de os dois primeiros versos («Não há machado que corte/ a raiz ao pensamento») serem de origem popular talvez tenha demovido os censores de interditarem a canção. Não sabemos... Certo, certo é que o mesmíssimo poema com música de Fernando Lopes-Graça, juntamente com as demais "Canções Heróicas", teve sorte diferente: expressamente proibida a edição fonográfica, assim como a apresentação em espectáculos. Ora, e a menos que Manuel Freire tivesse ouvido a canção de Lopes-Graça em algum sarau privado – o que não aconteceu, conforme afirmou ao jornalista Nuno Pacheco, por ocasião do 50.º aniversário da publicação do seu disco de estreia («Atrevi-me a musicar um poema do Carlos de Oliveira já musicado pelo Fernando Lopes-Graça. Mas não sabia, se soubesse não me tinha atrevido. Foi a primeira oportunidade de gravar as minhas coisinhas.», in "Público", 17.11.2018) – o conhecimento que tomou do texto só podia ser pela leitura, provavelmente da antologia "Poesias", de Carlos de Oliveira, publicada pela Portugália Editora, em 1962, no âmbito da colecção "Poetas de Hoje" (a primeira aparição em volume dera-se em 1950, no livro "Terra de Harmonia", com chancela da editora Centro Bibliográfico). E ainda bem que Manuel Freire se atreveu a transpor o poema "Livre" para canção porque, além de dar uma pérola à música popular portuguesa, ela teve o bendito condão de tornar-se uma das mais emblemáticas do seu repertório, quiçá só superada pela famosíssima "Pedra Filosofal" [>> YouTube]. Palpitamos que antes da Revolução dos Cravos a canção "Livre" não passasse na Emissora Nacional, ademais não se inserindo Manuel Freire nos dois géneros mais acarinhados pela rádio oficial do regime – nacional-cançonetismo e fado –, mas estamos em crer que alguma divulgação teve nas rádios privadas. No pós-25 de Abril de 1974, sabemos, de leituras que fizemos e de testemunhos credíveis que ouvimos, que foi uma das canções mais radiodifundidas. Hoje, porém, é virtualmente impossível de se ouvir no éter nacional. Uma boa razão, se outras não houvesse (que há), para a destacarmos neste Dia da Liberdade, em que se celebra o 48.º aniversário da eclosão da Revolução dos Cravos, que é também – feliz coincidência! – o do 80.º aniversário do nascimento do notabilíssimo compositor e intérprete que, na esteira de José Afonso, Adriano Correia de Oliveira e Luís Cília, desempenhou um significativo papel na resistência à ditadura, ajudando a desbravar o caminho que trouxe a Liberdade de regresso a Portugal. Viva a Liberdade! E parabéns a Manuel Freire, com votos de longa vida!

Na sexta-feira passada, dia 22, véspera do concerto de homenagem a Manuel Freire no Auditório do Museu da Fundação Oriente, em Lisboa, o realizador Jorge Afonso, na primeira hora do seu programa do serão da Antena 1, "Uma Noite em Forma de Assim", esteve à conversa com o artista e o músico Manuel Rocha (membro da Brigada Victor Jara e professor de violino no Conservatório de Música de Coimbra), ali na qualidade de dinamizador do merecido tributo público (com entrada gratuita, que é de frisar), tendo sido transmitidas de permeio algumas canções de Manuel Freire. Cumpre-nos, pois, felicitar o profissional Jorge Afonso pelo convite que dirigiu aos dois músicos para falarem a respeito do referido espectáculo de homenagem (feito em vida do homenageado, como devem, de preferência, acontecer as homenagens) e por ter aproveitado o ensejo para presentear os ouvintes com alguns espécimes do repertório do distinto artista, o qual – acrescente-se, a tal de foice – não está representado, há largos anos, na 'playlist' da mesma Antena 1, a rádio que se autoproclama de ter memória e de estimar o nosso património cultural. Uma lacuna soezmente aberrante do serviço público de rádio que não se deve a esquecimento fortuito de quem mexe e remexe na tal 'playlist' ou de quem lhe é hierarquicamente superior, mas que resulta de premeditada acção de boicote, que tem sido extensiva a outros categorizados intérpretes portugueses (vocais e/ou instrumentais). No caso concreto de Manuel Freire o facto de lhe ser negado lugar na 'playlist' configura, em primeiro lugar, uma tremenda injustiça a um artista de altíssimo gabarito a quem o país muito deve e, em segundo lugar, uma vil desconsideração pelos ouvintes que apreciam (ou que aprenderiam a apreciar) boa música portuguesa, aliada a poesia de qualidade mas não hermética. Uma vez que Manuel Freire foi, até hoje, o compositor-intérprete que mais poesia de José Saramago musicou e gravou, ao menos que o centenário do autor d' "Os Poemas Possíveis" sirva de pretexto para divulgar esse repertório aos rádio-ouvintes!



Livre



Poema: Carlos de Oliveira (ligeiramente adaptado) [texto original >> abaixo]
Música: Manuel Freire
Intérprete: Manuel Freire* (in EP "Manuel Freire canta Manuel Freire", Tagus, 1968; LP "Dedicatória", Tecla, 1972, reed. Tecla, 1974; livro/CD "Manuel Freire", col. Canto & Autores, vol. 09, Levoir/Público, 2014)




Não há machado que corte    | bis
a raiz ao pensamento:          |
não há morte para o vento,  | bis
não há morte.                     |

Se ao morrer o coração                | bis
morresse a luz que lhe é querida,  |
sem razão seria a vida,  | bis
sem razão.                   |

Nada apaga a luz que vive       | bis
num amor, num pensamento,   |
porque é livre como o vento,  | bis
porque é livre.                      |

Não há machado que corte    | bis
a raiz ao pensamento:          |
não há morte para o vento,  | bis
não há morte.                     |

Se ao morrer o coração                | bis
morresse a luz que lhe é querida,  |
sem razão seria a vida,  | bis
sem razão.                   |

Nada apaga a luz que vive       | bis
num amor, num pensamento,   |
porque é livre como o vento,  | bis
porque é livre.                      |


* Manuel Freire – voz
Fernando Alvim – viola
URL: https://www.facebook.com/ManuelFreireOficial/
https://www.youtube.com/channel/UC-z8xqfA49yS1tAXIBTvQig
https://www.youtube.com/user/DoTempoDosSonhos/videos?query=manuel+freire



LIVRE

(Carlos de Oliveira, in "Terra de Harmonia", col. Cancioneiro Geral, vol. 3, Lisboa: Centro Bibliográfico, 1950 – p. 18; "Poesias", col. Poetas de Hoje, vol. 3, Lisboa: Portugália Editora, 1962)


                                               Ao Sousa Oliveira

                                  Não há machado que corte
                                  a raiz ao pensamento.

                                             Cancioneiro Popular


Não há machado que corte
a raiz ao pensamento:
não há morte para o vento,
não há morte.

Se ao morrer o coração
morresse a luz que lhe é querida,
sem razão seria a vida,
sem razão.

Nada apaga a luz que vive
num amor, num pensamento,
porque é livre como o vento,
porque é livre.



Capa do livro "Terra de Harmonia", de Carlos de Oliveira (Col. Cancioneiro Geral, vol. 3, Lisboa: Centro Bibliográfico, 1950)



Capa do livro "Poesias", de Carlos de Oliveira (Col. Poetas de Hoje, vol. 3, Lisboa: Portugália Editora, 1962)
Concepção – João da Câmara Leme



Capa do EP "Manuel Freire canta Manuel Freire" (Tagus, 1968)



Capa da 1.ª edição da compilação em LP "Dedicatória", de Manuel Freire, Fernando Alvim e Pedro Caldeira Cabral (Tecla, 1972)



Capa do livro/CD "Manuel Freire", col. Canto & Autores, vol. 09 (Levoir/Público, 2014)
Ilustração – André Carrilho

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Contrabando: "Verdade ou Mentira?"
Grupo Coral "Os Ganhões de Castro Verde": "Grândola, Vila Morena"
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Natália Correia: "Rascunho de uma Epístola", por Ilda Feteira
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Amália Rodrigues: "Abril" (Manuel Alegre)
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Em memória de Fernando Alvim (1934-2015)
José Saramago: "Dia Não"
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