01 junho 2021
Taleguinho: "Pele de Piolho"
Entre os setenta e cinco "Contos Populares Portugueses" que Francisco Adolfo Coelho coligiu e publicou, em 1879, consta um que dá pelo título de "A Pele do Piolho". Luís Pedro Madeira, do projecto conimbricense Taleguinho, achou por bem adaptá-lo tomando a liberdade de acrescentar-lhe vários pontos (fazendo jus ao ditado «quem conta um conto acrescenta-lhe um ponto») na gravação feita para o álbum "Costurar Cantigas e Histórias", editado em 2020. Trata-se de uma belíssima versão que desenvolve e aprimora o texto sucinto publicado por F. Adolfo Coelho, sendo que tem o atractivo adicional de incluir um trecho cantado (acompanhado por instrumentos musicais), no caso a cantiga tradicional de cunho satírico "Olha o Velho, Olha o Velho", cuja melodia é das mais belas da tradição oral portuguesa. É pois com a "Pele de Piolho", primorosamente tratada pelo Taleguinho, que celebramos este Dia Mundial da Criança, esperando que seja do apreço dos miúdos e graúdos que fiquem com curiosidade de ouvi-la.
Não somos ouvintes da Rádio ZigZag (já tentámos mas desistimos porque a selecção musical deixou-nos muito a desejar), todavia queremos acreditar que as histórias tradicionais tenham cabimento na respectiva programação, seja extraídas de edições discográficas, seja contadas para o efeito por quem sabe fazê-lo bem. Será que os infantis ouvintes da Rádio ZigZag já tiveram a oportunidade de se encantar com esta "Pele de Piolho", do Taleguinho? Se sim, louvamos quem se ocupa da pesquisa de histórias publicadas em disco com o propósito de divulgação naquela rádio 'online'. Se não, fica a sugestão.
Na hertziana Antena 3 (e, porque não?, também na Antena 1) era bom que existisse um espaço diário reservado a uma história para crianças, em horário certo (que poderia muito bem ser por volta das 21h:00). Não havendo uma rádio hertziana dedicada ao público infantil, importa que as que existem façam alguma coisa para criar hábitos de escuta radiofónica nos mais pequenos, sem necessidade de terem de estar obrigatoriamente 'online'. O futuro começa a construir-se hoje mesmo. Que futuro terá a rádio se quem actualmente a dirige não tiver a clarividência de fazer o que lhe compete para atrair aqueles que amanhã poderão garantir a sua sobrevivência?
Pele de Piolho
História adaptada por Luís Pedro Madeira a partir da versão de Coimbra coligida por Francisco Adolfo Coelho e publicada no livro "Contos Populares Portugueses" (Lisboa: Paulo Plantier, 1879)
Contada por Luís Pedro Madeira / Taleguinho* (in CD "Costurar Cantigas e Histórias", Taleguinho, 2020)
Cantiga "Olha o Velho, Olha o Velho" interpretada por Catarina Moura / Taleguinho*
Era uma vez um rei que tinha muita comichão na cabeça. Muita mesmo! Estava tão aflito que resolveu chamar pela filha:
— Ó minha rica filha, ó minha princesa, vem aqui ver o que é que o teu pai tem na cabeça, que não há meio de me parar de coçar!
A menina veio logo e começou a catar o pai no regaço. De repente parou e disse:
— Ó senhor meu pai, olhe que tem aqui um piolho! E olhe que é dos grandes! Quer que lho mate?
— Não, não, não! Deixa estar o bicho. Piolho em cabeça de rei é piolho real. E sempre me faz companhia naquelas longas sessões na sala do trono.
Assim foi. A menina deixou ficar o piolho, mas o bicho foi crescendo, crescendo, crescendo, até que era já mais ou menos impossível que ninguém reparasse. E um dia a menina foi ter o pai e disse:
— Senhor meu pai, vós sois rei e vós lá sabeis, mas esse piolho já está um bocadinho grande demais. As pessoas já começam a reparar. De vez em quando, quando Sua Majestade está a dar audiência, por cima coroa já se vê uma patita dele. E sabe como é: as pessoas reparam e começa a falar-se...
— Bem sei, minha filha, bem sei, o bicho cresceu mais do que eu esperava e já está muito grande. Infelizmente, vou ter que o mandar matar. Mas em recordação deste bicho que me fez aqui tanta companhia, com a pele dele hei-de mandar fazer um pandeiro.
Assim foi. O rei mandou fazer um pandeiro com a pele do piolho e mandou guardá-lo lá na torre mais alta, lá num armário onde havia de ficar por muitos anos. A menina foi crescendo e tornou-se mulher. Um dia foi ter com o pai e disse:
— Ó senhor meu pai, eu gostava de ter um noivo, gostava de me casar.
— Bem sei, minha filha, chegou a hora de te casar. E temos que te arranjar um noivo, mas não pode ser um palerma qualquer que venha para aí, que isto agora anda aí uma gandulagem que sabe Deus! Não pode ser um qualquer: tem que ser um rapaz avisado, um rapaz com juízo, um rapaz como deve ser. Vou mandar chamar todos os rapazes do Reino para que escolhamos o melhor.
Assim foi. O rei mandou então os seus arautos ao cimo das muralhas do castelo a anunciar aos quatro ventos:
— O rei manda dizer que quer casar a sua filha. Os rapazes todos do Reino devem vir ao palácio responder a uma pergunta do rei. Aquele que acertar casará com a menina.
Ora, como a princesa era muito bonita e ainda por cima tinha alguma coisa de seu, acorreram rapazes de todo o lado para vir responder à pergunta do rei e ter a mão da princesa em casamento. No dia combinado estava uma fila enorme de rapazes à porta do palácio, e o rei pediu então ao seu velho criado que fosse lá à torre mais alta; lá dentro dum armário havia de encontrar um pandeiro que lá estava guardado há muitos anos. O criado foi buscar o pandeiro e o rei, mostrando-o a todos aqueles rapazes, disse:
— Ó rapazes, aquele que de vocês adivinhar de que é feito este pandeiro casará com a princesa!
Os rapazes puseram-nos todos a olhar com muita atenção... e veio o primeiro e botou-se a adivinhar:
— Eu acho que este pandeiro é feito de pele de cabra.
— Não, não! — disse o rei. E passou ao próximo.
— Oh, não, não, eu acho que este pandeiro é feito de pele de porco.
— Também não.
— Não, não, este pandeiro é feito de... de pele de cabrito.
— Também está errado.
E vinham e vinham... e iam tentando, tentando... e vinha um e dizia:
— Eu acho que é de pele de vitela.
— Eu acho que é de pele de cão.
— Eu acho que é de pele de gato.
— Eu acho que isto é pele de burro.
— Eu acho que isto é pele de... de... de... eu acho que isto é pele de galinha, se calhar, sei lá!...
— Eu acho que isto... parece-me a mim que é assim um bocado tipo pele de... de... de...
E iam todos, todos errando. Ora dá-se o caso que naquela fila enorme de rapazes estava um rapaz com quem a princesa engraçava. Mas as princesas nem sempre acertam muito: às vezes engraçam com rapazes que são assim... palermas. Este, além de palerma, era muito mouco, ouvia muito mal. Mas a princesa foi-se pôr atrás do velho criado, falando-lhe lá para o meio da fila o mais baixinho que conseguia:
— Ei! Estás a ouvir? Olha!
E ele lá do meio da fila dizia:
— Hum?
— Olha, o pandeiro é feito de pele de piolho.
— Hum? É... é uma espécie de repolho?
— Não, não! O pandeiro é feito de pele de piolho.
— Hum... Uma galinha com molho?
— Não! — dizia a menina, apontando para a cabeça — Não! É feito de pele de piolho.
— Ah! Acho que já ouvi.
Mas quando chegou a vez dele, o rapaz, apontando o pandeiro, disse:
— Eu acho que este pandeiro é... é feito de pele do sobrolho.
Errado. E foram errando os outros rapazes todos, até que aconteceu uma coisa que causou grande consternação geral e uma surpresa de que ninguém estava à espera. O velho criado vira-se para o rei e diz assim:
— Saiba Vossa Majestade que eu também sou um rapaz solteiro e, como rapaz solteiro, também gostava de me botar a adivinhar de que que é feito este pandeirinho.
O rei achou aquilo muito estranho, mas disse:
— Bom, de facto não vejo nada que te impeça de tentar também.
— Ora, eu acho... eu acho que este pandeirinho é feito de pele de piolho.
E todos exclamaram:
— Oh!
E o espanto era enorme; e se nós ficávamos espantados, mais espantada ficou a princesa. Espantada e danada. E dizia:
— Ah! Ah! Ah! Sacana do velho! Isto não pode ser! Isto não pode ser, porque ele ouviu-me! Ele ouviu-me a falar com o meu amigo, ele ouviu a resposta... Então, mas isto não pode ser! Eu vou agora casar com aquele velho?! Ah! Mas isso é que não vou, ai não vou, não senhora! Era agora o que me faltava! Ele ainda por cima fez batota. Não senhor!
E então chamou o velho à parte, dizendo-lhe que lhe queria cantar uma canção. E cantou-lhe assim:
— Olha o velho! Olha o velho! | bis
Olha o velho atrevido: |
Dizer-me na minha cara | bis
Que queria casar comigo! |
Se quiser casar comigo, | bis
Há-de ser na condição |
De eu dormir em cama fofa | bis
E tu, velho, nesse chão. |
E tu, velho, se falares, | bis
Hás-de levar com um bordão; |
Eu hei-de comer pão alvo | bis
E tu, velho, de rolão. |
«A rapariga… diz que se eu casar com ela que tenho que dormir no chão, logo eu que sofro tanto das minhas cruzes! E que tenho que comer sempre pão duro, eu que quase já não tenho dentes! E que se falar que me dá com um pau! Que serviço que eu havia de aqui arranjar, hã! O melhor, se calhar, é eu ir com delicadeza falar ao rei e tentar resolver isto da melhor forma.»
— Sua Majestade não me leve a mal, a sua filha é assim uma rapariga muito jeitosa, muito educadinha e muito meiguinha, mas eu estive a pensar que já tenho uma certa idade... Não caminho para novo e agora com esta idade lembrar-me de casar... se calhar, até foi um bocado de asneira e por isso vinha falar com Sua Majestade que se me pudesse desobrigar desta coisa do casório... quer dizer: se calhar, a rapariga encontrava assim um moço mais assim lá para a idade dela, não é verdade?
Ora isto era o que o rei queria, porque, de facto, não queria casar a filha com aquele velho; e então o rei lá o desobrigou e a filha, um tempo depois, lá encontrou um príncipe com quem foi feliz para quase sempre.
Vitória, vitória, acabou-se a história.
* Taleguinho:
Catarina Moura – voz
Luís Pedro Madeira – voz falada, viola braguesa, bandola, bandolim, banjo, cavaquinho, percussão
Participação de:
Manuel Rocha – violino
Arranjos – Luís Pedro Madeira
Produção – Taleguinho
Gravado, misturado e masterizado no Estúdio Láudano (Coimbra), em 2019 e 2020
Gravação, mistura e masterização – Luís Pedro Madeira
Assistência de gravação e mistura – Paulo Yoshida de Carvalho
URL: https://www.facebook.com/taleguinho
https://taleguinho.bandcamp.com/
Capa do CD "Costurar Cantigas e Histórias", de Taleguinho (Taleguinho, 2020)
Ilustração e design gráfico – Cátia Vidinhas
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