27 março 2020

Dia Mundial do Teatro: mensagem de Edward Albee (1993)


© Jack Mitchell / Getty Images, 1995


INSTITUTO INTERNACIONAL DO TEATRO
DIA MUNDIAL DO TEATRO – 27 DE MARÇO DE 1993
MENSAGEM INTERNACIONAL DE EDWARD ALBEE

Será que o mundo se torna um lugar cada vez mais estranho à medida que o tempo passa? Penso que sim, e sei que é assim que ele se me afigura. Tenho é de descobrir se isso é obra de um absoluto, ou mero fruto da minha visão deformadora: vislumbres de sageza a par de sinais de declínio. E direi mesmo que quando começar a fazer-se luz sobre as respostas, eu já não saberei por que me preocupo.
Todavia, é uma pergunta que continua a remoer.
Que havemos de fazer, por exemplo, para contrariar a inércia, para sair do imobilismo que recomenda dois passos em frente como resposta a dois passos atrás? Sempre que um totalitarismo cai, sob o seu próprio peso morto, há uma democracia nascente que prova ser ilusória. A todos os actos generosos parecem contrapor-se outros tantos de crueldade e ganância. Sabemos – ou saberemos algum dia – qual é a verdadeira natureza do homem: se de senhor feliz da sua liberdade, se de escravo conformado e até mesmo solícito?
Inventámos a arte – desenvolvemo-la, se quiserem – para nos explicarmos a nós próprios, para dar à nossa consciência ordem, clareza e talvez também um sentido. Descobrimos, afinal, que a arte, para merecer esse nome, tem de ter útil e não só decorativa; tem de, na sua inoperância (a arte não muda nada?), mudar tudo.
Podemos abolir por decreto todos os governos do planeta – bem, podemos tentar; podemos libertar-nos de todo o controlo de pensamento imposto de fora – bem, podemos tentar; e, contudo, ainda ficaríamos com a censura mais implacável de todas: a auto-censura das pessoas que não querem (ou receiam) dar os passos decisivos e aterradores para uma completa auto-consciência.
A arte pode ajudar-nos nessa caminhada, e, se não permitirmos que ela nos anime e impulsione, jamais nos libertaremos das cadeias que nos amarram e cegam.
Já estive em sociedades totalitárias em que pessoas foram presas e morreram por quererem aceder à arte, e vivo numa sociedade em que a auto-censura é tão implacável como outra qualquer imposta de fora. O paradoxo é mais horrendo do que poderíamos admitir.
O teatro, pela sua imediatez e porque acontece no presente (em oposição ao filme que sempre aconteceu já – o que faz com que os seus excessos pareçam inofensivos), o teatro está numa posição privilegiada para fazer com que tudo aconteça, para nos tornar insatisfeitos com a segurança e com a previsibilidade, com tudo aquilo que não modifica a nossa visão das coisas.
Lembremo-nos disto no Dia Mundial de Teatro. Lembremo-nos que os limites do teatro são apenas os que nós lhe impomos... os limites que impomos a nós próprios.

                  EDWARD ALBEE (trad. Maria Helena Serôdio, da
                          Associação Portuguesa de Críticos de Teatro)


Passaram 27 anos e esta mensagem do insigne dramaturgo norte-americano não perdeu uma pitadinha de actualidade. O mundo vem-se tornando, de facto, um lugar cada vez mais estranho e desconcertado, devido a múltiplos factores, sendo que os antropogénicos se revelam preponderantes. Bastará apontar as alterações climáticas, em resultado da utilização massiva e continuada de combustíveis fósseis, e as repercussões maléficas que já se fazem sentir na vida de muita gente, principalmente em países do chamado Terceiro Mundo.
De entre todas as artes, o teatro é aquela que, de modo mais imediato e incisivo, nos pode acordar do marasmo e, como escreve o autor de "Quem Tem Medo de Virginia Woolf?", modificar a nossa visão (estabelecida e comodista) das coisas. E se o teatro é imprescindível – ao homem livre e mentalmente não entorpecido por ideias feitas – em tempos considerados normais (se é que tempos normais alguma vez houve na História da Humanidade), mais aguda e pertinente se revela a sua importância quando surgem momentos de crise e de disrupção, como o presente em que as salas de teatro (e de outros espectáculos) tiveram de fechar, como medida profiláctica contra a disseminação da pandemia do COVID-19, e milhões de pessoas estão confinados aos seus domicílios. Numa situação destas, o que fazer para que os (potenciais) espectadores não cessem de fruir a arte de Talma, até como preventivo à insanidade mental? Algumas companhias perceberam logo que a internet era a via a seguir e já estão a usar esse meio para possibilitarem ao público teatrófilo o acesso ao seu trabalho, seja peças gravadas seja produções em directo.
E o que estão a fazer os meios de comunicação social tradicionais: a rádio e a televisão? Quase nada. Na rádio do Estado, e uma vez que aquela coisa manhosa e entediante a que deram o nome de "Teatro sem Fios" não pode considerar-se, em rigor, teatro radiofónico, e tendo sido eliminado o espaço "Memória" (medida deveras descabida e absurda), o programa "Ecos da Ribalta" [>> RTP-Play], de João Pereira Bastos, tem sido o único e honroso reduto a dar guarida ao teatro do imaginário, mediante o resgate de registos do arquivo histórico. Mas dado que o âmbito do programa, como o seu nome deixa entender, não é somente o teatro mas a generalidade das artes de palco, a transmissão de peças declamadas não pode ter a frequência desejada e necessária. Portanto, urge que, num horário fixo que poderá ser diário (porque não?) ou semanal, a Antena 2 passe a fazer a reposição das centenas e centenas de peças de teatro radiofónico existentes no arquivo histórico (mormente as mais antigas, já que os ouvintes menos veteranos nunca as ouviram).
Escusado será dizer que os outros canais da estação pública, mormente a Antena 1, não devem ficar alheados da oferta de teatro aos seus ouvintes, atendendo às obrigações culturais que também têm. É tudo uma questão de se saber escolher o repertório mais recomendado ao perfil dos respectivos auditórios.

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1 comentário:

SOL da Esteva disse...

Bom trabalho nesta Celebração. Parabéns.

Abraço
Santos Oliveira
&
SOL da Esteva