06 janeiro 2024

Grupo de Baile da Canção Regional Terceirense: "Cantar à Porta"



                          Uiva a fome do lobo
                          ao rés
                          da alcateia

                          há cheiro
                          e rumores
                          de nozes
                          e avelãs

                          Janeiro
                          acorda o canto
                          das bicas do azeite

                          percorrem os Reis Magos
                          a coroa das romãs

                                  SOLEDADE MARTINHO COSTA


Epifania — Dia de Reis

Integrado na quadra natalícia — com a alegoria «até aos Reis é sempre Natal» —, o dia de Reis, ou Epifania, traduz um dos mais relevantes episódios tradicionais associados ao nascimento de Jesus Cristo. A sua comemoração celebra-se no dia 6 de Janeiro, excepto nos lugares onde não é dia santo de guarda, em que se festeja no domingo que ocorre entre os dias 2 e 8 de Janeiro. Constituindo uma das muitas festas pagãs perfilhadas e cristianizadas pela Igreja, a Epifania (cujo antigo nome entre os Cristãos era Teofania) englobava na sua origem a maior parte das celebrações a Cristo: o seu nascimento; a adoração dos Reis Magos; o seu baptismo; a sua vida e sofrimento na Terra e os seus milagres. A partir do ano de 54, separou-se a Natividade — comemoração do seu nascimento — da Epifania, passando esta a ser consagrada, exclusivamente, aos Reis Magos. A data para essa celebração, fixada no ano de 1164 a 6 de Janeiro, pretendia assinalar a viagem dos três Reis Magos, vindos, segundo o Evangelho, dos seus longínquos países do Oriente até Belém, guiados por uma estrela, para render homenagem e oferecer os seus presentes a Cristo recém-nascido. De seus nomes Gaspar (de olhos amendoados e barba fina), Baltasar (negro e imponente) e Melchior (o mais velho dos três, de longa barba branca), os Reis Magos pagãos simbolizam a riqueza, o poder, a ciência e a homenagem de todos os povos da Terra a Cristo Redentor. Paramentados com as suas preciosas vestes, tiaras sobre as cabeças e tesouros nas mãos, assim se apresentaram perante o Menino — até aí adorado apenas por pastores —, a quem ofereceram os seus presentes: um deles três libras de oiro (para o Rei), o outro três libras de incenso (para o Deus) e o outro ainda três libras de mirra (para os restos mortais do Homem). Segundo S. Mateus (o único que narra o episódio dos Magos no Evangelho), estes terão tido uma conversa com Herodes, que não se repetiu, visto, em sonhos, terem sido avisados para o não tornarem a fazer.
São igualmente os Reis que baptizam o manjar cerimonial da doçaria alimentar desta data: o bolo-rei (espécie de pão doce recheado e enfeitado com frutos secos e cristalizados: pinhões, amêndoas, nozes, passas; laranja, figo, cereja, abóbora), cuja tradição se espalhou por quase toda a Europa e alguns países da América (particularmente da América Latina), a resultar, supostamente, do bolo janual, que os Romanos ofereciam e trocavam entre si nas festas do primeiro dia do Ano Novo. Ao bolo juntavam um ramo de verdura colhido num bosque dedicado à deusa Strena, ou Strénia. Do nome da deusa derivarão o vocábulo francês étrenne (que significa «presentes de Ano Novo») e a palavra «estreias», termo que, em certas localidades do nosso país, continua ainda a utilizar-se para definir o acto de oferecer presentes de «boas festas» («dar as estreias»). Todavia, se recuarmos no tempo, deparamos com as «estreias» (atrenua) relacionadas com mascaradas, banquetes, jogos e outras celebrações realizadas pelos povos pagãos. Daí, no Concílio de Tours, em 567, ter sido sugerido que as «estreias» pagãs dessem lugar «às esmolas de carácter cristão e litúrgico», de modo a atenuar os vestígios do politeísmo. Ao bolo janual e ao ramo de verdura acrescentavam os Romanos pequenas lembranças (tâmaras, figos, mel), com votos de bom ano, paz e felicidade. Este costume tornou-se depois mais exigente, acabando o oiro e a prata por substituir os singelos presentes. Em diversos países foi hábito durante muito tempo introduzir no bolo uma pequena cruz de porcelana (que se juntava à fava), substituída depois por minúsculas figurinhas humanas. Tradição que se conserva, ainda hoje, aliada à expectativa de quem será o achador da fava ou do «brinde», que consiste, actualmente, num qualquer objecto minúsculo apropriado para esse efeito.
Associados à quadra natalícia, vamos encontrar também as janeiras e os Reis, que representam peditórios cantados na noite de Natal, de Ano Novo e de Reis. Herança provável das próprias strenas romanas, a entoação dos cânticos tem por finalidade receber dádivas que se revestem de um carácter alusivo e propiciatório, a remeter-nos, como noutras celebrações, para tempos remotos, em que se celebravam deuses e divindades pagãos ou eram pedidas ou oferecidas dádivas no início do ano comum, símbolo de bom augúrio, quer para quem as pedia, quer para quem as doava. O costume, espalhado ainda hoje por toda a Europa, em países como Portugal, Espanha, França, Itália, Alemanha, entre outros, continua a celebrar-se, com os seus seculares cânticos de religiosidade popular e festiva. Formados por grupos de homens e mulheres, os janeireiros e reiseiros, acompanhados ou não por músicos, percorrem os lugares, de porta em porta, a pedir oferendas em troca da entoação das «loas» ao Menino, das janeiras e dos Reis. De assinalar, porém, a semelhança destes grupos com os grupos que entoam pela Quaresma o «Cantar das Almas» (ou «Amentação» ou «Encomendação das Almas»). Tanto num caso como no outro, os donativos em dinheiro assim angariados revertem para «mandar rezar missas pelas almas do Purgatório». A diferença está, tão-só, nas ofertas de carácter alimentar (chouriços, queijo, castanhas, maçãs), que revertem para os próprios janeireiros ou reiseiros (géneros consumidos, geralmente, em repasto conjunto), e nos seus cânticos festivos, com intenção de benefícios, ou seja, na forma cristianizada da celebração propiciatória do Ano Novo, enquanto no «Cantar das Almas» apenas se ritualiza o sentido penitente e piedoso dos cânticos de consagração, integrados nas comemorações da quadra pascal. Esta semelhança fazia-se notar, principalmente, em Cunqueira (Proença-a-Nova, Beira Baixa), onde em tempos idos os janeireiros pediam «uma quartilha de milho para as almas» ou o «folário», sem prejuízo, todavia, das dádivas alimentares. Também antigamente, na região de Trás-os-Montes, era costume, nos quatro dias que antecediam os Reis, juntarem-se rapazes e raparigas que percorriam os lugares a pedir de casa em casa as «janeirinhas». À frente do grupo seguia um rapaz com uma candeia de azeite, que voltava a ser cheia quando aquele acabava pelos donos da casa seguinte. Em troca, recebiam chouriços, maçãs, passas, castanhas, vinho e outros géneros, com os quais organizavam uma pequena festa, geralmente à roda de uma fogueira, onde assavam e comiam os chouriços e as castanhas oferecidos. Na mesma região (Felgar, Moncorvo), realizava-se no dia 1 de Janeiro a Festa dos Rapazes, conhecida por Festa da Senhora dos Moços, em que os rapazes, em grupo, palmilhavam a freguesia fazendo um peditório. As ofertas (chouriços, orelheira, bolos, frutos secos, vinho, etc.) eram presas depois nos galhos de um ramo (o «galheiro»), que cada um segurava na mão, sendo as ofertas leiloadas no final da «ronda». Respeitando a tradição destes dias, observada de norte a sul de Portugal, os janeireiros, ou cantadores das janeiras, e os reiseiros, ao saudar os donos das casas, vão também anunciar nas velhas canções de cariz popular o nascimento de Jesus e a visita dos Reis Magos. No Algarve perguntava-se primeiro: «reza ou cantiga?», e, conforme a resposta, os janeireiros rezavam ou cantavam em troca de oferendas. Em Niza (Alto Alentejo) rapazes e raparigas organizavam-se em grupos de quatro elementos para cantar o «Menino Jesus» («loas de Natal») e os Reis («loas dos Reis»), antes e depois do Natal. Escolhiam de preferência as casas onde calculavam ser mais rendosa a recepção e ao abrir da porta diziam: «Menino Jesus da Nazaré, quer que cá cante?». Perante a resposta afirmativa, entravam na casa, onde estava reunida a família (quase sempre na cozinha), e logo começava a «loa». Ainda no Alentejo (Beja), constituía tradição oferecer aos grupos que cantavam as «loas» nas vésperas de Ano Bom ou dos Reis as populares «costas», bolos feitos de massa semelhante à do pão, a que se junta açúcar ou mel, sumo de laranja, ovos, leite e canela, moldados à mão e apresentando formas diversas.
[...]
Cantar os Reis, esperar os Reis, correr os Reis ou tirar os Reis são as denominações decorrentes das práticas da quadra que liga o Ano Novo ao dia de Reis. Todas elas integradas nas celebrações tradicionais onde os ritos, os cânticos e os peditórios se cruzam numa praxe (que visa a obtenção de benefícios), a um tempo festiva e expectante, face à renovação e revitalização da Natureza, com a entrada de um novo ano.
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Igualmente provável é a celebração dos Reis resultar de antigos rituais ligados ao culto dos politeístas solares e da sua festa da consagração da luz do Sol no solstício de Dezembro, efectuada no Egipto sob o título Festum Osirid nati, ou Inventio Osirid, em data correspondente ao nosso 6 de Janeiro, designada pelos Judeus como Festa das Luzes, ou Khanu Ka. Há também quem sustente ter a sua comemoração origem nas festas romanas em honra de Jano (de onde provém o nome de Janeiro), o deus das duas faces: um voltada para o futuro, a outra para o passado.
[...]
Em diversas regiões (Trás-os-Montes e Ribatejo, por exemplo), o cantar dos Reis pode prolongar-se até à data limite, ou seja, até ao dia de S. Sebastião (20 de Janeiro), dizendo o povo: «No dia de S. Sebastião, cantam-se os Reis, se os dão.» Por isso, nos Açores, os cânticos de 5 para 6 de Janeiro têm o nome de Reis, enquanto os que se cantam na noite de 19 para 20 são chamados Sebastianas. Estes cânticos apresentam uma articulação idêntica à dos Reis, residindo a diferença apenas nos versos.

SOLEDADE MARTINHO COSTA (in "Festas e Tradições Portuguesas: Janeiro", Lisboa: Círculo de Leitores, 2002 – p. 35, 63-69 e 73)


Fundado pela poetisa terceirense Maria Francisca Bettencourt, e tendo efectuado a sua primeira apresentação pública a 16 de Julho de 1966, o Grupo de Baile da Canção Regional Terceirense tornou-se uma referência entre os colectivos açorianos de índole folclórica, pelo relevante contributo que tem dado para o esforço (nunca suficiente) de manter viva a tradição musical e de dança da Ilha Terceira. Os cantares do ciclo do Natal contam-se, como não podia deixar de ser, no seu repertório, parte do qual corresponde ao conteúdo do CD "Festa Redonda", publicado em 2003, com chancela Açor, do Prof. Emiliano Toste. O alinhamento do álbum abre com um belíssimo "Cantar à Porta", alusivo aos Reis Magos, que nos serve na perfeição para a ilustração musical da presente Epifania. Esta cantiga deve ser familiar aos terceirenses, pelo menos àqueles que já tiveram ocasião de presenciar alguma actuação do grupo a festejar os Reis, mas são poucos os continentais que alguma vez a ouviram. E isso explica-se grandemente pela muito deficiente divulgação que a Antena 1 vem dando à música tradicional portuguesa, ainda mais a dos arquipélagos atlânticos, ao negar-lhe lugar na 'playlist' (por discricionaríssima vontade de quem ocupa a direcção de programas), relegando-a para dois espaços semanais em horários esconsos: "A Árvore da Música" (domingos, depois do noticiário das 07h:00 da manhã), neste caso para novas edições; e "Alma Lusa" (depois do noticiário da meia-noite de domingo e até às 02h:00 da madrugada de segunda-feira), programa essencialmente devotado ao fado. Uma situação deveras vergonhosa e de todo intolerável a que urge pôr cobro!



Cantar à Porta



Letra e música: Popular (Ilha Terceira, Açores)
Intérprete: Grupo de Baile da Canção Regional Terceirense* (in CD "Festa Redonda", Açor/Emiliano Toste, 2003)


[instrumental]

Uma estrela, uma estrela nos guia
No caminho, no caminho da virtude...

[instrumental]

Uma estrela nos guia
No caminho, no caminho da virtude...

[instrumental]

Ó dono, ó dono da moradia,
Lá vai à... lá vai à vossa saúde!

[instrumental]

Ó dono da moradia,
Lá vai à... lá vai à vossa saúde!

[instrumental]

Reis Magos, Reis Magos viram Jesus
Numa gruta, numa gruta em Belém;

[instrumental]

Reis Magos viram Jesus
Numa gruta, numa gruta em Belém;

[instrumental]

Guiados, guiados pela mesma luz,
Queremos, queremos vê-lo também!

[instrumental]

Guiados pela mesma luz,
Queremos, queremos vê-lo também!

[instrumental]


* [Créditos gerais do disco:]
Grupo de Baile da Canção Regional Terceirense:
Direcção do grupo – Vera Cunha Azevedo, Margarida Pessoa Pires, Alberto Borba Gonçalves
Direcção técnica – Manuel Brito de Azevedo
Violas (de 12 e de 15 cordas) – Bruno Bettencourt, Jorge David Sousa, José Gabriel Flor, Margarida Oliveira
Violões – Francisco Lourenço (Xavier), José Sales, Manuel Brito de Azevedo
Ferrinhos e mandador – Francisco Gomes (Chico Batata)
Vozes solistas e coros – Andreia Borges, Francisco Lourenço (Xavier), José Pereira Borges, Karla Almeida, Manuel Brito de Azevedo, Reginaldo Fernandes, Rui Fortuna, Vera Duarte
Coros – Alberto Gonçalves, António José Borba, Bruno Bettencourt, Conceição Flor, Francisco Gomes (Chico Batata), João Vicente, Margarida Oliveira, Paula Sales, Virgínia Borges
Participações especiais:
José João Silva – violino
Fernando Ávila – clarinete
José António Santiago – trompete
Manuel Lima – contrabaixo
Rui Furtado – trombone
Tibério Vargas – bombardino

Gravação, mistura e masterização – Emiliano Toste
URL: https://www.facebook.com/GBCRT/
https://www.youtube.com/@Jbvila/videos?query=Cancao+Regional+Terceirense



Capa do CD "Festa Redonda", do Grupo de Baile da Canção Regional Terceirense (Açor/Emiliano Toste, 2003)
Azulejos do Cantinho

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