01 dezembro 2023

Sérgio Godinho: "Não te Deixes Assim Vestir..."



Os feriados nacionais civis, tendo sido criados para comemorar um dado acontecimento histórico que se pretende não seja esquecido, podem (devem) servir também para suscitar a necessária reflexão sobre o país e o maior ou menor ajustamento da realidade existente, num determinando momento, aos valores subjacentes à efeméride. Na presente data em que Portugal celebra a sua independência restaurada em 1640 (depois de seis décadas sob o jugo espanhol), é legítimo conjecturar se os portugueses viveriam hoje melhor ou pior se este rectângulo ocidental da Península Ibérica e os arquipélagos atlânticos fizessem parte integrante de Espanha. Olhando para o nível de vida médio do país vizinho não é difícil de inferir que a generalidade da população lusitana estaria em melhor situação económica. Esse atraso em relação a 'nuestros hermanos' resulta de diversos factores, mas há um que se tem revelado determinante: o secular défice qualitativo das classes dirigentes que (quase) sempre puseram a manutenção/incremento dos seus (imerecidos) privilégios e a satisfação de interesses corporativos de vária ordem acima do bem-estar do Povo. E a democracia portuguesa, que está prestes a completar meio século de existência, não tem conseguido (ou querido) libertar-se desse e doutros 'coletes-de-forças', se nos é permitido tomar de empréstimo uma metáfora que Sérgio Godinho sapientemente utilizou na sua canção "Não te Deixes Assim Vestir...", a qual, apesar de já ter quarenta anos (saiu em 1983, no álbum "Coincidências"), não perdeu um niquinho de actualidade. Estando já em marcha a campanha eleitoral (ainda que não oficialmente declarada) para o sufrágio do próximo 10 de Março, no decurso da qual a mentira, a falácia e a intrujice são/serão expedientes profusamente usados, com o intento de ludibriar os mais crédulos e descontentes com o status quo, afigurou-se-nos extremamente oportuno e pertinente dar destaque à mencionada canção, que apela ao exercício da vigilância crítica e da prudência para se não cair no 'conto do vigário'. Boa escuta!

Aos ouvintes da Antena 1 é, ocasionalmente, dada a oportunidade de escutarem algo do repertório de Sérgio Godinho, e seria muito anormal se o artista estivesse boicotado, como acontece com outros nomes grados da Música Portuguesa. No seu caso particular, além de não passar com a frequência desejável, é de lamentar que não haja o cuidado de divulgar canções menos conhecidas, em vez de se andar sempre a repisar (preguiçosamente) o lote das mais batidas. Não compete, porventura, à rádio pública desempenhar a nobre função de desocultação de bom repertório português que as estações privadas, por condicionalismos de natureza comercial e por tibieza de quem as dirige, deixam de lado?



Não te Deixes Assim Vestir...



Letra e música: Sérgio Godinho
Intérprete: Sérgio Godinho* (in LP "Coincidências", Philips/Polygram, 1983, reed. Philips/Polygram, 1994, Universal Music Portugal, 2001, 2018)




Ai, Portugal...
dar-te conselhos é bem pouco original,
(mas) se realmente não quiseres querer-te mal,
olha p'ra ti, ó Portugal!
Não te deixes assim vestir!
[bis]

O meu país
foi outro dia ao alfaiate encomendar
'toilettes' novas p'rò mundo se embasbacar,
e se dizer, e se elogiar:
«Que bem, que chique,
que beleza!
Para falar com franqueza,
parece outro com esse ar».

Mas há coletes que são de forças,
por mais que o digam não ser...
Não te deixes assim vestir!
[3x]

Não te deixes assim vestir!

Ai, Portugal...
dar-te conselhos é bem pouco original,
(mas) se realmente não quiseres querer-te mal,
olha p'ra ti, ó Portugal!
Não te deixes assim vestir!
[bis]

Ao meu país
o alfaiate respondeu: «Venha cá!
Quero saber com que linhas se coserá
o fato feito que fará
a sensação das redondezas,
bem que eu não tenha a certeza
que seja de elogiar...»

É que há coletes que são de forças,
por mais que o digam não ser...
Não te deixes assim vestir!
[3x]

Não te deixes assim vestir!

Ai, Portugal...
dar-te conselhos é bem pouco original,
(mas) se realmente não quiseres querer-te mal,
olha p'ra ti, ó Portugal!
Não te deixes assim vestir!
[bis]

O meu país,
outrora usando fraque, luva e paletó,
se rebentar pelas costuras é só
que o fato, que é da trisavó,
não é necessariamente
aquele que no presente
nos fará soltar um "oh!".

Porque há coletes que são de forças,
por mais que o digam não ser...
Não te deixes assim vestir!

Assim como há meias que nunca hão-de ser inteiras,
por muito que o queiram ser...
Não te deixes assim vestir!

Porque há casacas feitas já p'ra ser viradas,
por mais que o digam não ser...
Não te deixes assim vestir!

Assim como há botas difíceis de descalçar,
por mais que o tentem não ser...
Não te deixes assim vestir!

Assim como há laços feitos já p'ra te enforcar,
por mais que o digam não ser...
Não te deixes assim vestir!

E há coturnos que eu diria são soturnos,
por mais que o não queiram ser...
Não te deixes assim vestir!

E não te deixes assim vestir!

Ai, Portugal...


* Sérgio Godinho – guitarra e voz
Rogério Gomes, Agostinho Caineta – clarinetes
João Paulo [Esteves da Silva] – piano
Guilherme Inês – bateria
José Martins, Macello Urgeghe – percussão
Filipe Larsen – baixo
Né Ladeiras, Isabel Bezelga – coros
Arranjo – Luís Caldeira

Direcção musical – João Paulo [Esteves da Silva] e Luís Caldeira
Produção – Sérgio Godinho, João Paulo [Esteves da Silva] e Luís Caldeira
Gravado no Angel Studio, Lisboa, de Fevereiro a Abril de 1983
Engenheiros de som – Rui Novais e José Fortes
Texto sobre o disco em: Grandes discos da música portuguesa: efemérides em 2008
URL: https://www.facebook.com/Sergio.Godinho.Oficial/
https://vachier.pt/sergio-godinho/
https://www.youtube.com/@SergioGodinhoTV
https://www.youtube.com/channel/UCCUWcMFHuwlLu7y8cX1LyJg
https://music.youtube.com/channel/UC6NItFDCOUpxXVmOfvAD3Rg



Capa do LP "Coincidências", de Sérgio Godinho (Philips/Polygram, 1983)
Desenhos – René Bertholo
Arranjo gráfico – António Inverno

___________________________________________

Outros artigos com repertório interpretado por Sérgio Godinho ou da sua autoria:
Música portuguesa de Natal
A infância e a música portuguesa
Celebrando Carlos Paredes
Sérgio Godinho: "Que Força É Essa?"
Sérgio Godinho: "Mão na Música"

Sem comentários: