26 maio 2020

Maio Moço: "Romance da Pastorinha"


Maio Moço, em 1989:
(da esquerda para a direita) Sérgio Contreiras, Vítor Reino, Mário Gameiro, Rui Sardinha e Ana Rita Reino.


Desde muito cedo apaixonado pelas questões ligadas à defesa e preservação do nosso riquíssimo património musical tradicional, Vítor Reino encontrou no Grupo de Recolha e Divulgação de Música Popular [fundado em 1974, a partir do coro da Juventude Musical Portuguesa], depois rebaptizado de Almanaque, agrupamento pioneiro e multifacetado, as condições essenciais que lhe permitiram iniciar uma fecunda actividade em que procurou aliar o trabalho científico de natureza etnomusicológica à criação e divulgação de uma nova música de raiz tradicional susceptível de contribuir para manter viva e actuante a inesgotável fonte do folclore musical português.
Em parceria com José Alberto Sardinha, Vítor Reino foi responsável pelos arranjos e direcção musical de dois discos que marcaram profundamente o movimento de progressivo interesse pela tradição musical portuguesa que atingiu o seu apogeu nos inícios da década de 80: Descantes e Cantaréus (1979) e Desfiando Cantigas (1984).
Ao mesmo tempo que continuava a colaborar com José Alberto Sardinha, nos inúmeros trabalhos de campo promovidos por este investigador que rapidamente se afirmou como nome cimeiro da moderna etnomusicologia portuguesa, Vítor Reino criou em 1983 o grupo Ronda dos Quatro Caminhos, sendo responsável pela selecção musical, estudo e textos explicativos, arranjos, produção e direcção artística dos álbuns Ronda dos Quatro Caminhos (1984) e Cantigas do Sete-Estrelo (1985), que incluem diversos temas e trechos musicais de sua autoria.
Com a preciosa participação de Ana Rita Reino, Sérgio Contreiras e João Simões Lima, que com ele haviam já integrado os dois agrupamentos atrás referidos, a que se juntou Mário Gameiro e, posteriormente, Rui Sardinha e Rui Sá Sequeira, Vítor Reino fundou em 1985 o grupo Maio Moço, cuja direcção continuou a assegurar. Projecto inovador por excelência, o Maio Moço impôs-se a árdua mas aliciante tarefa de lutar pela recuperação e revitalização da vasta e valiosa tradição musical portuguesa, criando uma nova música de raiz tradicional em que as ricas e fascinantes sonoridades tão características dos nossos velhos instrumentos populares se 'casam' com os modernos recursos da tecnologia actual, patente nos seis álbuns editados: Inda Canto, Inda Danço (1987), Cantigas de Marear (1989), Histórias de Portugal: De Dom Afonso Henriques a Dom Sebastião (1991), Amores Perfeitos (1994), Estrada de Santiago (1996) e CantoMaior (2002).
A convite do grupo de música tradicional Notas & Voltas, formado por funcionários do Banco de Portugal, Vítor Reino foi também o responsável pelas adaptações e arranjos, produção e direcção musical, execução de vários instrumentos, concepção, estudo e textos explicativos do álbum Decantado (2004), editado pela Tradisom. [ligeiramente adaptado do texto publicado no blogue "Rebaldeira"]


Vítor Reino deixou-nos este fim-de-semana, vítima de doença incurável (paralisia supra-nuclear progressiva). Neste blogue, em Dezembro de 2013, tivemos o ensejo de celebrar a sua obra, ainda que parcialmente, no artigo "Celebrando a Ronda dos Quatro Caminhos", pelo que decidimos trazer, para este breve e singelo tributo à sua memória, o belíssimo "Romance da Pastorinha", oriundo da aldeia de Monsanto, magnificamente cantado por ele próprio e pela companheira (na música e na vida) Ana Rita Reino. É a faixa que abre o lado B do LP conceptual Cantigas de Marear, primeiramente publicado em 1989, com chancela Discossete, que seria distinguido com o "Grande Prémio do Disco" da Rádio Renascença e, pouco depois (em 1991), reeditado no estrangeiro (em 26 países dos cinco continentes), com o título Portugal Novo sob o selo Playa Sound.
A Antena 1, por vontade e capricho de Rui Pêgo e dos seus acólitos, há largos anos que vem marginalizando a música tradicional, negando-lhe lugar na 'playlist' e confinando-a a guetos em horários de sono da generalidade dos ouvintes: a rubrica "Cantos da Casa" [>> RTP-Play], o programa homónimo [>> RTP-Play] e, em parte, o programa "Alma Lusa" [>> RTP-Play]. E apesar de Vítor Reino ter tantos pergaminhos no domínio da nossa música mais genuína (aquela que melhor nos identifica como país) e, nessa medida, ser credor do reconhecimento das entidades oficiais de Portugal, a opção dos altos (ir)responsáveis da rádio pública foi nada fazer. Vergonhoso!



Romance da Pastorinha



Letra: Tradicional (Monsanto, Idanha-a-Nova, Beira Baixa)
Música: Tradicional (Beira Baixa) e Vítor Reino
Recolha: Vítor Reino
Intérprete: Maio Moço* (in LP "Cantigas de Marear", Discossete, 1989, reed. CD "Portugal Novo", Playa Sound, 1991; CD "Histórias de Portugal: De Dom Afonso Henriques a Dom Sebastião / Cantigas de Marear", Discossete, 1991, reed. Espacial, 2013)


— Linda pastorinha
De além da ribeira,
Tira-te do sol,             | bis
Do sol que te queima! |

— O sol não me queima
Que eu estou calejada:
Do vento, da chuva,  | bis
Do rigor da calma.    |

— No cimo da serra
Ouvi berrar gado...
— São três ovelhinhas  | bis
Que me têm faltado.    |

— Dá-me a cestinha,
Também o cajado;
Que eu irei buscá-las  | bis
Com todo o cuidado!  |

— Não quero criados
Com meias de seda,
Que se rompem todas  | bis
Por essas estevas.       |

— Sapatos e meias,
Tudo romperei:
Pela pastorinha  | bis
A vida darei!      |

— Não quero criados
Com meias de linho,
Que se rompem todas  | bis
Pelo rosmaninho.         |

— O teu gado, ó Rosa,
Trago-o eu aqui.
Vem tu, pastorinha,  | bis
Para ao pé de mim!  |

[instrumental]


Nota: «Este belo e gracioso romance, em cujo fundo Almeida Garrett pretende ver uma verdadeira pastorela do género provençal, apresenta grande quantidade de variantes, podendo afirmar-se, com o mesmo autor, que "todo o reino a sabe e canta".
Não tendo embora uma relação directa com o tema do presente trabalho, o seu carácter tão tocantemente medieval-renascentista, que nos faz remontar de imediato a todo o mistério e magia da época das Descobertas, não deixa de se enquadrar à maravilha no ambiente histórico-musical que aqui procuramos recriar, justificando amplamente a respectiva inclusão. Decerto os próprios mareantes das nossas caravelas o cantariam no decurso das suas longas viagens, para lembrar as delícias da terra que deixavam para trás, ou como forma de entreter as lentas horas de calmaria que tinham pela frente...
A versão tão admirável de singeleza e sentimento — que colhemos pessoalmente na aldeia de Monsanto (Idanha-a-Nova) — inspirou-nos um arranjo musical de sabor ao mesmo tempo bucólico e palaciano, que termina com uma dança festiva por nós composta, em que alguns amigos têm pretendido identificar, para lá do tom marcadamente renascentista, ecos distantes da velha música celta (cuja influência, aliás, não será tão longínqua e desprezível, como se pode pensar, em certos aspectos do nosso folclore).» (Vítor Reino)

* [Créditos gerais do disco:]
Maio Moço:
Ana Rita Reino – bandolim, banjo, cavaquinho, e voz
Mário Gameiro – viola acústica, viola eléctrica, viola braguesa e voz
Sérgio Contreiras – bombo, castanholas, pandeireta, guizos, pinhas e voz
Vítor Reino – harmónio, concertina, acordeão, gaita-de-foles, ponteira, flautas, sintetizadores e voz
Colaborador regular:
Rui Sardinha – baixo, cavaquinho e voz
Músicos convidados:
Henry (Sousa) – bateria
João Nuno Represas – percussões
Jorge Lé – violinos
Participação especial:
Mulheres do grupo Etnograma, do Centro Cultural e Desportivo Rádio Marconi

Direcção musical, adaptações e arranjos, concepção e textos explicativos – Vítor Reino
Gravação efectuada em Março de 1989
Técnicos de som – José Félix e Victor Florêncio
Mistura – José Félix e Vítor Reino
URL: https://www.sinfonias.org/mais/musica-portuguesa-anos-80/directorio/858-maio-moco
https://tradicao.wordpress.com/projecto-rebaldeira/arquivos/grupos-musicais/maio-moco/
https://www.youtube.com/channel/UCKaVshF7etjejpZaWftgmNQ
https://www.youtube.com/user/HomemDeMuge/videos?query=maio+moco



Capa do LP "Cantigas de Marear", do grupo Maio Moço (Discossete, 1989)
Concepção – João Vaz de Carvalho

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Outro artigo contendo repertório com a marca de Vítor Reino:
Celebrando a Ronda dos Quatro Caminhos

1 comentário:

Fernando FIRMINO disse...

Honra ao talentoso e saudosíssimo Artista VÍTOR REINO (1956-2020)!...
Fernando FIRMINO [Setúbal]