
© John Oliveira, 2021
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Completou-se hoje (de madrugada) um decénio exacto sobre a data em que partiu, para o Olimpo dos Poetas, Herberto Helder, figura grada da poesia (de língua) portuguesa contemporânea pós-pessoana. Assinalamos a efeméride pondo em destaque a segunda parte do poema "Fonte", ou, se se preferir, o segundo poema do ciclo assim intitulado (não sabemos qual das duas formulações corresponde, em maior rigor, à intenção do poeta quando deu o título genérico de "Fonte" aos seis admiráveis nacos de poesia em homenagem às mães que publicou, no ano de 1961, em "A Colher na Boca", um dos seus livros mais fundamentais).
Quanto ao registo áudio, e uma vez que incluímos o lido pelo autor no artigo "Em memória de Herberto Helder (1930-2015)", achámos por bem ir respigar o recitado pela actriz Luísa Cruz do CD n.º 2 do antológico audiolivro "Ao Longe os Barcos de Flores: Poesia Portuguesa do Século XX", que a Assírio & Alvim editou em 2004, no âmbito da sua colecção "Sons".
Aproveitamos o ensejo para recomendar (vivamente) a audição da edição do programa "A Ronda da Noite" da passada sexta-feira, Dia Mundial da Poesia, que Luís Caetano (a nossa vénia!) dedicou à poética de Herberto Helder, na voz do autor, intercalada com sublimes trechos musicais bachianos, em comemoração do 340.° aniversário do nascimento do divino Johann Sebastian Bach [>> RTP-Play].
Boas celebrações herbertiana e bachiana!
FONTE (II)
Poema de Herberto Helder (in "A Colher na Boca", Lisboa: Edições Ática, 1961; "Poesia Toda", Vol. 1, Lisboa: Plátano Editora, 1973; "Poesia Toda", Lisboa: Assírio & Alvim, 1981; "Poesia Toda", Lisboa: Assírio & Alvim, 1990 – p. 43-44; "Ofício Cantante: Poesia Completa", Lisboa: Assírio & Alvim, 2009; "Poemas Completos", Porto: Porto Editora, 2014 – p. 47-48)
Recitado por Luísa Cruz* (in livro/2CD "Ao Longe os Barcos de Flores: Poesia Portuguesa do Século XX": CD 2, Col. Sons, Assírio & Alvim, 2004)
II
No sorriso louco das mães batem as leves
gotas de chuva. Nas amadas
caras loucas batem e batem
os dedos amarelos das candeias.
Que balouçam. Que são puras.
Gotas e candeias puras. E as mães
aproximam-se soprando os dedos frios.
Seu corpo move-se
pelo meio dos ossos filiais, pelos tendões
e órgãos mergulhados,
e as calmas mães intrínsecas sentam-se
nas cabeças filiais.
Sentam-se, e estão ali num silêncio demorado e apressado,
vendo tudo,
e queimando as imagens, alimentando as imagens,
enquanto o amor é cada vez mais forte.
E bate-lhes nas caras, o amor leve.
O amor feroz.
E as mães são cada vez mais belas.
Pensam os filhos que elas levitam.
Flores violentas batem nas suas pálpebras.
Elas respiram ao alto e em baixo. São
silenciosas.
E a sua cara está no meio das gotas particulares
da chuva,
em volta das candeias. No contínuo
escorrer dos filhos.
As mães são as mais altas coisas
que os filhos criam, porque se colocam
na combustão dos filhos, porque
os filhos estão como invasores dentes-de-leão
no terreno das mães.
E as mães são poços de petróleo nas palavras dos filhos,
e atiram-se, através deles, como jactos
para fora da terra.
E os filhos mergulham em escafandros no interior
de muitas águas,
e trazem as mães como polvos embrulhados nas mãos
e na agudeza de toda a sua vida.
E o filho senta-se com a sua mãe à cabeceira da mesa,
e através dele a mãe mexe aqui e ali,
nas chávenas e nos garfos.
E através da mãe o filho pensa
que nenhuma morte é possível e as águas
estão ligadas entre si
por meio da mão dele que toca a cara louca
da mãe que toca a mão pressentida do filho.
E por dentro do amor, até somente ser possível
amar tudo,
e ser possível tudo ser reencontrado por dentro do amor.
* Luísa Cruz – voz
Selecção de poemas e direcção de actores – Gastão Cruz
Coordenação editorial – Teresa Belo
Gravado e masterizado por Artur David e João Gomes, no Estúdio Praça das Flores, Lisboa, em Outubro de 2004
Supervisão de gravação – Vasco Pimentel
URL: https://www.facebook.com/actrizluisacruz/
https://www.alexandregoncalves.eu/luisa-cruz.html
https://wikidobragens.fandom.com/pt/wiki/Lu%C3%ADsa_Cruz

Capa do livro "A Colher na Boca", de Herberto Helder (Lisboa: Edições Ática, 1961)
Concepção – António Domingues

Capa da 1.ª edição do livro "Poesia Toda", Vol. 1, de Herberto Helder (Lisboa: Plátano Editora, 1973)

Capa da 2.ª edição do livro "Poesia Toda", de Herberto Helder (Lisboa: Assírio & Alvim, 1981)
Capa da 3.ª edição do livro "Poesia Toda", de Herberto Helder (Lisboa: Assírio & Alvim, Nov. 1990)

Capa do livro "Ofício Cantante: Poesia Completa", de Herberto Helder (Lisboa: Assírio & Alvim, Jan. 2009)
Pintura de Ilda David (2008)

Capa do livro "Poemas Completos", de Herberto Helder (Porto: Porto Editora, Out. 2014)

Capa do livro (com 2 CD) "Ao Longe os Barcos de Flores: Poesia Portuguesa do Século XX" (Col. Sons, Assírio & Alvim, 2004).
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Outro artigo com poesia de Herberto Helder:
Em memória de Herberto Helder (1930-2015)
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