02 novembro 2020

Belaurora: "Saudade"


Escultura funerária representativa da Saudade, pertencente ao jazigo de D. Joana Nepomuceno Burguette de Oliveira Barata, 1866, Cemitério dos Prazeres, Lisboa.
© Rotas Lusitanas (https://rotaslusitanas.blogspot.com/)


«A saudade é um luto, / Uma dor, uma aflição; / Ai, é um cortinado roxo, / Saudade, que me cobre o coração.» Esta quadra surge em diversas variantes daquela que é, muito provavelmente, a mais popular de todas as cantigas dolentes açorianas que exprimem a dor pela ausência ou perda de pessoa querida, comummente denominadas de "Saudade". Bem menos conhecida é uma outra "Saudade", da pequena ilha do Corvo, mas igualmente impregnada de profunda plangência; essa característica e o teor dos versos da autoria de Camilo Castelo Branco tornam-na perfeitamente adequada para assinalar este Dia de Finados, o primeiro (e, esperamos, o último) sob a vigência da pandemia de COVID-19, que tantas vítimas já causou, directas ou colaterais.
Conhecemos quatro recriações, publicadas em CD, da aludida "Saudade" corvina: a primeira, de 1999, pelo Grupo de Cantares Belaurora; a segunda, de 2010, por Helena Oliveira; a terceira, de 2015, pela Brigada Victor Jara; e a quarta, de 2018, por Rafael Carvalho, que tem a particularidade de ser um instrumental executado em viola da terra. Escolhemos a primeira, que consideramos ser a mais tocante e impressiva, quer pela irrepreensível interpretação vocal de Carla Medeiros, quer pelo muito bem gizado arranjo que serve primorosamente a índole melancólica da melodia.

Não somos ouvintes da Antena 1-Açores mas queremos acreditar que o Grupo de Cantares Belaurora, assim como outros grupos e artistas em nome individual radicados no arquipélago que se dedicam à recriação do cancioneiro açoriano, seja objecto de cabal divulgação. Na Antena 1 do continente, a música tradicional portuguesa (das múltiplas regiões) só tem lugar nos espaços "Cantos da Casa" [rubrica >> RTP-Play / programa >> RTP-Play] e, uma vez por outra, perdida no meio do fado, no programa "Alma Lusa" [>> RTP-Play]. E ainda por cima com a pecha de os horários de emissão se situarem no período em que a generalidade dos ouvintes está a dormir, ou seja, sempre depois do noticiário da meia-noite e antes do sinal horário das 08h:00 da manhã. Na 'playlist', música tradicional é coisa que não entra, talvez porque fosse destoar da imensa escória da área pop com que a atafulharam. Perguntamos: com que ânimo e disposição é que os pagantes da contribuição do audiovisual vão continuar a desembolsar a espórtula anual de 34,20 euros (+ I.V.A.) para sustentar uma rádio que lhes oculta a música mais identitária do seu país?



Saudade



Letra: Camilo Castelo Branco (adapt. de um poema publicado em "Miscelânia Poética", Porto, 1951)
Música: Tradicional (Vila Nova do Corvo, Açores)
Informante: Ti Pedro Pimentel Cepo
Recolha: Carlos Sousa (1995)
Intérprete: Belaurora* / voz solo de Carla Medeiros (in CD "Lágrimas de Saudade", Açor/Emiliano Toste, 1999; 2CD "Quinze Anos de Cantigas": CD 2, faixa 20, Açor/Emiliano Toste, 2000) [>> Facebook Vídeos]


[instrumental]

Oh! oh! oh!

Oh! Em má hora, oh!, em má hora, anjo querido,
Me pediste uma flor...
Das que eu tenho, das que eu tenho aqui,
São quatro, oh!, são quatro,
Nem uma fala em amor.

Oh! oh! oh!
Oh! oh! oh!
Oh! oh! oh!
Oh! oh! oh!

Oh! A primeira, oh!, a primeira é uma saudade
Que me deram quando amei;
Custa caro, custa caro,
É um tesouro, é um tesouro
Que com lágrimas comprei.

Oh! oh! oh!
Oh! oh! oh!
Oh! oh! oh!
Oh! oh! oh!

Oh! A segunda, oh!, a segunda é um martírio
Cujo espinho atravessou
O coração, o coração
Que a regava, que a regava...
De pranto ela murchou.

Oh! oh! oh!
Oh! oh! oh!
Oh! oh! oh!
Oh! oh! oh!

Oh! A terceira, oh!, a terceira é um cravo,
É um goivo, não to dou!
Fui colhê-lo, fui colhê-lo
Ao cemitério, ao cemitério...
Entre campas vegetou.

Oh! oh! oh!
Oh! oh! oh!
Oh! oh! oh!
Oh! oh! oh!

Oh! A quarta, oh!, a quarta é uma rosa,
É uma rosa, mas olha:
Se eu morrer, se eu morrer
E tu souberes, e tu souberes,
Na minha campa a desfolha!

Oh! oh! oh!
Oh! oh! oh!
Oh! oh! oh!
Oh! oh! oh!...


Nota: «Esta "Saudade" aprendi-a com o Ti Pedro Cepo, aquando do Primeiro Festival do Ramo Grande, na ilha Terceira (1995).
A letra foi-me enviada, directamente do Corvo, por Tibério Silva, com o desejo expresso de um dia a poder ouvir cantada pelo Belaurora.» (Carlos Sousa / Belaurora)

* Belaurora:
Ana Medeiros – coros, violão, cavaquinho, viola baixo e percussão
Carla Medeiros – voz solo, coros e percussão
Carlos Sousa – voz solo, coros, violão, bandolim e violino
Carmen Medeiros – coros e percussão
Carolina Costa – coros e percussão
Eduardo Medeiros – coros e acordeão
Francisco Nascimento – coros e violão
Isabel Meireles – coros e percussão
Laureno Sousa – coros e percussão
Margarida Sousa – coros e percussão
Pedro Medeiros – coros, flauta e clarinete
Quitéria Sousa – coros e percussão
Rui Lucas – coros e violão
Tiago Sousa – coros e percussão
Tomás Sousa – voz solo, coros e violão

Arranjos – Carlos Sousa e Ana Medeiros
Direcção artística – Carlos Sousa
Gravação – Emiliano Toste, no "Solar do Conde", Capelas (Ponta Delgada), em Dezembro de 1998
Misturas – Emiliano Toste, Carlos Sousa e Pedro Barreiros
Masterização – Emiliano Toste
URL: http://www.belaurora.com/iniciop.php
https://www.facebook.com/grupodecantaresbelaurora/
https://www.sinfonias.org/mais/musica-portuguesa-anos-80/directorio/760-belaurora
https://pgl.gal/belaurora-grupo-de-cantares-popular-dos-acores/
https://www.youtube.com/channel/UC2OgEof5SLnYuIxifii24hQ/videos?query=belaurora



Capa do CD "Lágrimas de Saudade", do grupo Belaurora (Açor/Emiliano Toste, 1999)
Desenho – Gilberto Bernardo

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