20 fevereiro 2009

Poesia na rádio (II)

Tendo chegado ao fim, em 31 de Dezembro último, o apontamento de poesia e música "Os Sons Férteis", era expectável que 2009 começasse, na Antena 2, com uma nova rubrica de poesia. Mas não! Decorridos quase dois meses o vazio continua. E porquê? Eu presumo que o autor de "Os Sons Férteis", Paulo Rato, tenha avisado com bastante antecedência a direcção da Antena 2 de modo a que esta tivesse tempo para tomar as medidas que se impunham. Como se explica então tal inoperância e passividade? Bem, dada a razia de pessoal qualificado que se registou nos últimos anos (e de que a actual direcção de programas tem bastantes culpas no cartório, convém não esquecer), admito que nos actuais quadros da RDP não seja fácil encontrar alguém à altura de um Paulo Rato ou de um António Cardoso Pinto. Mas isso não é razão para que não haja um apontamento de poesia recitada na rádio pública. Duas saídas se ofereciam. Uma delas seria recorrer a 'diseurs' externos com provas dadas: estou a lembrar-me de actores da Cornucópia – Luís Miguel Cintra, Luís Lima Barreto, Luís Lucas, Luísa Cruz, Manuela de Freitas, etc. –, aliás, com diversos discos editados ("A Margem da Alegria", de Ruy Belo, e "Ao longe os barcos de flores: poesia portuguesa do século XX" são apenas dois bons exemplos). A outra alternativa (esta sem qualquer repercussão orçamental) seria fazer uso do património fonográfico existente. E aqui cabe não só o riquíssimo arquivo histórico da RDP (registos de Maria Clara, Carlos Acheman, António Cardoso Pinto, Graça Vasconcelos, Paulo Rato, etc.) mas também as edições discográficas disponíveis, seja de actores/recitadores de renome (além dos já citados: João Villaret, Mário Viegas, Jacinto Ramos, Eunice Muñoz, Carmen Dolores, Maria Barroso, Maria Germana Tânger, Maria Helena d'Eça Leal, Diogo Dória, Carlos Daniel, João Grosso, Santos Manuel, Vítor de Sousa, Natália Luiza, Maria Emília Correia, Afonso Dias, Mário Máximo, etc.), seja dos próprios poetas (Almada Negreiros, José Régio, Miguel Torga, Natália Correia, Herberto Hélder, Ary dos Santos, Mário Cesariny de Vasconcelos, David Mourão-Ferreira, Eugénio de Andrade, Al Berto, José Manuel Mendes, Manuel Alegre, etc.). Nem sempre os poetas foram/são os melhores 'diseurs' da sua poesia, mas casos há em que ninguém melhor do que eles a disse (exemplos: Mário Cesariny de Vasconcelos e Eugénio de Andrade). E houve até poetas que emprestaram também a sua voz à obra alheia, como foi o caso de Ary dos Santos. Nunca mais me saiu da memória a sua admirável e tocante 'pregação' do célebre "Sermão de Santo António aos Peixes", do Padre António Vieira, que Judite Lima uma vez passou num dos seus programas (salvo erro, no "Jardim da Música").
Como ficou demonstrado, o que não falta é material de excepcional qualidade. E como escolher o poeta para cada emissão? Nada mais fácil e prático: a data de nascimento ou morte (no caso dos já desaparecidos). Creio que não deve haver um único dia do ano em que não tenha nascido ou morrido um poeta. Já o disse antes e volto a afirmá-lo: a rádio é de todos os media aquele que melhor serve a poesia, ainda mais que os próprios livros. Já dizia Federico García Lorca: "os poemas são feitos para serem recitados, porque num livro estão mortos". Não aproveitar a potencialidade única que a rádio tem no campo da poesia, além de ser uma atitude obscurantista é um crime contra a cultura.
Pergunta-se: porque é que a direcção da Antena 2 não mexeu uma palha durante este tempo todo? Será que Rui Pêgo e João Almeida entendem que a poesia não é realmente importante e necessária no serviço público de radiodifusão? É a impressão com que se fica. Para tais indivíduos a poesia parece ter muito menos importância que coisas do género "A Fuga da Arte" e "Vias de Facto"!...
É deveras confrangedor e triste ver como a Antena 2, de dia para dia, se vem afastando das obrigações culturais que são, afinal de contas, a razão da sua existência.
Apetece invocar a grande Natália Correia: "Ó subalimentados do sonho! / a poesia é para comer."


A DEFESA DO POETA



Senhores jurados sou um poeta
um multipétalo uivo um defeito
e ando com uma camisa de vento
ao contrário do esqueleto.

Sou um vestíbulo do impossível um lápis
de armazenado espanto e por fim
com a paciência dos versos
espero viver dentro de mim.

Sou em código o azul de todos
(curtido coiro de cicatrizes)
uma avaria cantante
na maquineta dos felizes.

Senhores banqueiros sois a cidade
o vosso enfarte serei
não há cidade sem o parque
do sono que vos roubei.

Senhores professores que pusestes
a prémio minha rara edição
de raptar-me em crianças que salvo
do incêndio da vossa lição.

Senhores tiranos que do baralho
de em pó volverdes sois os reis
sou um poeta jogo-me aos dados
ganho as paisagens que não vereis.

Senhores heróis até aos dentes
puro exercício de ninguém
minha cobardia é esperar-vos
umas estrofes mais além.

Senhores três quatro cinco e sete
que medo vos pôs por ordem?
que pavor fechou o leque
da vossa diferença enquanto homem?

Senhores juízes que não molhais
a pena na tinta da natureza
não apedrejeis meu pássaro
sem que ele cante minha defesa.

Sou um instantâneo das coisas
apanhadas em delito de perdão
a raiz quadrada da flor
que espalmais em apertos de mão.

Sou uma impudência a mesa posta
de um verso onde o possa escrever.
Ó subalimentados do sonho!
a poesia é para comer.


Poema de Natália Correia (in "A Mosca Iluminada", Colecção Poesia, vol. 3, Lisboa: Quadrante, 1972 – p. 44-45; "O Sol nas Noites e o Luar nos Dias I", Lisboa: Projornal/Círculo de Leitores, 1993 – p. 443-444; "Poesia Completa", Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1999 – p. 330-331)
Recitado pela autora (in EP "Natália Correia Diz Poemas de Sua Autoria", col. A Voz e o Texto, Decca/VC, 1969; CD "A Defesa do Poeta", EMI-VC, 2003)

2 comentários:

Unknown disse...

Tenho acompanhado ao longo do tempo a vossa crítica certeira ao dia a dia da rádio pública e ao modo como se alheia de muitas das suas obrigações no que diz respeito à defesa e divulgação da Cultura Portuguesa. Muita da vossa atenção se tem centrado na música que passa na Antena 1. Gostava de vos propor a abertura de outra frente de análise onde me parece que as coisas estão tão mal ou pior! O modo como a Rádio Pública se afasta cada vez mais do País e se centra a olhar o umbigo lisboeta. A Rádio Pública (falo especificamente da Antena 1) deixou de estar presente naquilo que de mais valioso temos: Festivais, Feiras, Debates, Encontroa, Iniciativas Culturais e Empresariais... O Algarve não sabe o que faz o Minho, o Douro não sabe o que fazem as Ilhas, Lisboa não sabe o que faz a Beira, mas todo o País sabe o que pensam os comentadores alfacinhas, sabe que música passa nas salas lisboetas, etc, etc. Aliás proponho que se desafiem os responsáveis da RTP (Rádio e Televisão) para se debruçarem sobre o modo como a RTP nos apresenta o País ao longo de um dia de emissão e comparem com o modo como por exemplo a Antena 1 se limita a espreitar muitas vezes com desdém o mesmo país. Pela minha parte estou disponível a participar nesta nova frente de discussão por um Rádio Pública que não nos envergonhe.

Luis Marques

Livraria Poesia Incompleta disse...

também acabou o belíssimo Voz Alta, de Alexandra Lucas Coelho.