25 junho 2025

José Craveirinha: "Um Céu sem Anjos de África", por Trupe Barlaventina


(in https://iriscordemelad.blogspot.com/)


«O repórter Frederico Pinheiro recolhe no gravador o som da cana cortada por Mateus Magule, nos campos de Xinavane [A1 Doc: "Moçambique, um sonho por cumprir" >> RTP-Play]. É como se a catana servisse de percussão à voz magoada de Mateus Magule que responde ao repórter em língua xangana. "Auxene", talvez tenha dito o cortador Magule quando o português o saudou nos grandes caniçais abraçados pelo rio Incomáti, a 80 km de Maputo. Talvez o repórter ainda não saiba, tal como eu não sabia, que o nome daquele lugar, Xinavane, dá ao lugar uma espécie de condão, de condição de gente: xinavane é aquele que espalha a notícia. Frederico é um xinavane. Tal como Magule, cortando a cana, espalha o açúcar para lá dos vastos domínios da Açucareira, a entidade tutelar daquela região de Moçambique. A cana que Magule corta (notável registo sonoro no gravador de Frederico Pinheiro) espalha notícia doce de açúcar, porque é plantada de novo, amarga vida a dos cortadores de cana, 50 anos depois das proclamações da Machava. Vida amarga, a dos trabalhadores da Açucareira. E a da mulher que não ganha o bastante para comer todos os dias. Pergunta o repórter: "Quanto consegue fazer por dia?". "Não está fácil para fazer. Não estou a conseguir", diz ela. "Às vezes durmo só com um chá". Ela percebe que aquele microfone e aquele gravador podem espalhar o seu lamento até ao palácio do presidente e diz: "Papai Chapo, abre as portas do dinheiro".
Mostra o esplendor da fruta que não consegue vender, o esplendor dos nomes tão saborosos de pronunciar, tão difíceis de vender. É como se os lamentos dela resgatassem da desmemória os versos de Craveirinha sensibilizando o "camarada Control" para que este deixe passar as "saborosas tanjarinas de Inhambane".
E logo escutamos os catadores de lixo que tratam o repórter por pai, por boss, por molungo (outra designação de branco). O que é que procuram? "Estou a procurar reciclado, pai".
É como se, cinquenta anos depois da independência, eles estivessem reescrevendo o Poema do Futuro Cidadão, aquele poema de Craveirinha, "Vim de qualquer parte de uma nação que ainda não existe".
"Todos nós temos um sonho", proclama o catador de lixo no país onde seis em cada 10 crianças passam fome. "Qual é o seu sonho, Paulo?", pergunta o espalhador da notícia. E Paulo, o que percorre a lixeira procurando plástico e garrafas: "Gostava de ser chamado de pai, um dia". Paulo, como se catasse versos antigos de Craveirinha: "Tenho no coração gritos que não são meus somente/ porque venho de um país que/ ainda não existe". E o miúdo Abdul, apanhador de garrafas, um quinhão de 10 meticais por dia. E os outros que vão falar, numa desesperança cantante.
Crianças de Moçambique apanhando garrafas no lixo. Que mensagem escreveriam elas para enviar no dorso das ondas?» [Fernando Alves, "Uma nação que ainda não existe", in "Os Dias que Correm", 25 Jun. 2025]


O remate mais lógico à crónica de hoje seria, obviamente, uma recitação de um dos dois poemas de José Craveirinha dos quais Fernando Alves citou partes – "As saborosas tangerinas de Inhambane" ou "Poema do Futuro Cidadão" –, idealmente na voz do autor. O primeiro, dito pelo próprio José Craveirinha, é certo que existe no arquivo da rádio pública pois já marcou presença, em Fevereiro de 2021, pela mão de Luís Caetano, na rubrica "A Vida Breve" [Partes I e II >> RTP-Play / Partes III a V >> RTP-Play / Partes VI a X >> RTP-Play].
Em edições discográficas não lográmos referenciar qualquer dos poemas mencionados, mas encontrámos outros da autoria de José Craveirinha. Um deles é aquele que dá pelo título de "Um Céu sem Anjos de África", e que trata de um problema de discriminação racial no tempo em que Moçambique era colónia: o contraste entre a menina filha de mãe negra, que morre por falta de cuidados médicos, e a menina filha de pais arianos, que recebe todo o desvelo e protecção. Cinquenta anos volvidos sobre a independência de Moçambique, a pobreza e a desigualdade prevalecem na população negra, pelo que não é descabido recuperar/revisitar aquele poema do primeiro autor moçambicano galardoado com o Prémio Camões. E fazemo-lo com a gravação da Trupe Barlaventina, de Afonso Dias e companhia, publicada no CD "O Perfume da Palavra" (Concertante, 1999). Os ouvintes da Antena 1 que se sentiram novamente defraudados pela rádio que pagam têm aqui a oportunidade de colmatar, ainda que algum desfasamento temporal, a lacuna com que ficaram de poesia de José Craveirinha. Boa escuta!



UM CÉU SEM ANJOS DE ÁFRICA



Poema de José Craveirinha (in "Xigubo", Col. Autores Moçambicanos, vol. 4, Lisboa: Edições 70, 1980 – p. 55; "Obra Poética I", Lisboa: Editorial Caminho, 1999)
Recitado por Afonso Dias / Trupe Barlaventina* (in CD "O Perfume da Palavra", Concertante, 1999)


                  À Guilhermina e ao Egídio

Detinha
a menina de cinco anos
tinha pai e tinha mãe
e tinha duas irmãs, Senhor!

Detinha
a menina de cinco anos
tinha uma filha de retalhos de chita
e fazia duas covinhas de ternura na face
quando sorria, Senhor!

Detinha
a menina de cinco anos
tinha uma filha de ágeis pernas de pano
olhos brilhantes de cabeças de alfinete
e fulvos cabelos de maçarocas maduras
que a febre derradeira da Detinha
não contaminou.

Olhos cerrados suavemente
boneca Detinha dos seus pais
adormeceu de tétano para sempre
mãozinhas postas sobre o peito
um vestido de renda branca
mais um anjo nosso partiu
no adeus silencioso de boneca
verdadeira num fúnebre berço branco
nossa Detinha tão pura na Munhuana
que até ainda não sabia que era mulata.

Oh! África!
Quantos anjos já nasceram das tuas Munhuanas de amor
e quantas Detinhas partiram para sempre dos teus braços
e quantos filhos inocentes deixaram o teu colo maternal
geraram rios e rios de lágrimas no teu rosto escravizado
e dormiram sem pesadelos na vasta solidão
de um coval mínimo de criança infelizmente
sem as duas covinhas na face
quando sorriam, Senhor?

E ainda não temos um talhão de céu azul para todos
e novamente uma África para amar à nossa imagem
num anjo verdadeiro anjo também cor da nossa pele
e da mesma carne mártir de feitiços estranhos
e o nosso sangue vermelho vermelho quente
como o sangue vermelho de toda a gente.

Para o tal céu onde existe o tal Deus que não sabe
línguas de África línguas de África línguas de África
e só sorriem anjos brancos de asas impossíveis de arminho
precisamente onde esse arminho só pode ser algodão de sofrimento
ainda não há lugar para meninas puras da cor
das meninas filhas e netas de mães e avós pretas
da nossa Detinha que partiu ainda boneca
e tão pura que ainda não sabia que era mulata.

E brinquedos de trapos não se misturam na Munhuana
com bonecas loiras de sapatos e tudo
porque os pais arianos rezando nas catedrais
não deixam, Senhor!

(1960)


* Afonso Dias – voz

Arranjos e direcção musical – Trupe Barlaventina (Afonso Dias, Carla Moreira, Luís de Abreu e Pedro Glória)
Produção – Trupe Barlaventina
Gravado nos Estúdios InforArte, Lagos, e nos Estúdios MTR, Faro
URL: https://www.algarvios.pt/members/afonso-dias/info/
https://pt.wikipedia.org/wiki/Afonso_Dias
https://www.facebook.com/afonso.dias.31
https://www.youtube.com/@afonsodias4584/videos
https://music.youtube.com/channel/UCChoajupsYfGsG5uIGj8XMA



Capa do livro "Xigubo" (2.ª edição aumentada), de José Craveirinha (Col. Autores Moçambicanos, vol. 4, Lisboa: Edições 70, 1980)



Capa do livro "Obra Poética I", de José Craveirinha (Lisboa: Editorial Caminho, 1999)



Capa do CD "O Perfume da Palavra", da Trupe Barlaventina (Concertante, 1999)

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Outros artigos com repertório (poemas recitados e canções) de Afonso Dias:
Galeria da Música Portuguesa: José Afonso
Amália: dez anos de saudade
A infância e a música portuguesa
Ser Poeta
Celebrando Natália Correia
Em memória de António Ramos Rosa (1924-2013)
Celebrando Sophia de Mello Breyner Andresen
Al-Mu'tamid: "Evocação de Silves"
Cesário Verde: "De Tarde"
António Gedeão: "Dia de Natal", por Afonso Dias
Camões recitado e cantado (VI)
Natália Correia: "A Casa do Poeta", por Afonso Dias
Afonso Dias: "Dieta Algarvia"
Natália Correia: "Ode à Paz", por Afonso Dias
Afonso Dias: "Os Amigos" (Camilo Castelo Branco)

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Outros artigos relacionados com a crónica de Fernando Alves na Antena 1:
Galandum Galundaina: "Chin Glin Din"
"Sons d'Outrora" em viola da terra, por Miguel Pimentel
Vitorino: "Moças de Bencatel" (Conde de Monsaraz)
Teresa Silva Carvalho: "Barca Bela" (Almeida Garrett)
António Borges Coelho: "Sou Barco"
Celeste Rodrigues: "Chapéu Preto"
Sérgio Godinho: "Tem Ratos"
Ruy Belo: "E Tudo Era Possível", por Nicolau Santos
Jacques Brel: "J'Arrive"
A tristeza lusitana
Segréis de Lisboa: "Ay flores do verde pino" (D. Dinis)
Manuel D'Oliveira: "O Momento Azul"
Aldina Duarte: "Flor do Cardo" (João Monge)
José Mário Branco: "Inquietação"
Chico Buarque: "Bom Conselho"
Teresa Paula Brito: "Meu Aceso Lume - Meu Amor" (Maria Teresa Horta)
Adriano Correia de Oliveira: "Pensamento" (Manuel Alegre)
Fausto Bordalo Dias: "Comboio Malandro" (António Jacinto)
Grupo Coral "Os Ganhões de Castro Verde" com Luiz Avellar: "As Nuvens Que Andam no Ar"
Amélia Muge: "Ai, Flores"
Afonso Dias: "Os Amigos" (Camilo Castelo Branco)
Pedro Barroso: "Barca em Chão de Lama"
António Gedeão: "Poema do Coração"
Reinaldo Ferreira: "Quero um cavalo de várias cores"
Chico Buarque: "Construção"
João Afonso: "Tangerina dos Algarves"
Joan Manuel Serrat: "Cantares" (Antonio Machado e Joan Manuel Serrat)
Belaurora: "Lamento do Camponês" (Popular e Onésimo Teotónio Almeida)
Manuel Freire: "Fala do Velho do Restelo ao Astronauta" (José Saramago)
João Afonso: "O Som dos Sapatos"
Fernando Pessoa: "Tenho dó das estrelas"
Carlos Mendes: "Alcácer Que Vier" (Joaquim Pessoa)
Janita Salomé: "Cerejeira das cerejas pretas miúdas" (Carlos Mota de Oliveira)
Mário Moita: "Senhora Cegonha"
Políbio Gomes dos Santos: "Poema da Voz Que Escuta", por Maria Barroso
Pedro Barroso: "Nasce Afrodite, amor, nasce o teu corpo" (José Saramago)
Bugalhos: "Carvalho Grande"
Eugénio de Andrade: "As Mães"
Cana rachada d'Azambuja
Janita Salomé: "Na Palestina"
Natália Correia: "Queixa das Almas Jovens Censuradas"
José Afonso: "Ali Está o Rio"
Jorge Palma: "A Escola"
Alexandre O'Neill: "Periclitam os grilos", por Mário Viegas
Chico Buarque com Milton Nascimento: "Cálice"
Irene Lisboa: "Pequeno Poema Mental", por José Rodrigues Miguéis
João Afonso: "Lagarto" (José Eduardo Agualusa)
Carlos Garcia com Luís Represas: "Noite Perdida" (António Feijó)
Mísia: "Sou de Vidro" (Lídia Jorge)
Teresa Rita Lopes: "Casa de Cacela"
Marta Pereira da Costa com Iván Melón Lewis: "Sem Palavras"
Amélia Muge: "O Robot Que Envelhece" (João Pedro Grabato Dias)

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