
(in https://www.barlavento.pt/)
Lídia Jorge discursando em Lagos na cerimónia oficial do Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas, 10 Jun. 2025
«O ominoso atrevimento que vem do medo e da ignorância espalha no submundo digital a execração de uma mulher sábia e livre que ontem subiu à tribuna para nos lembrar que, tal como nos dias testemunhados pelo nosso poeta maior, figuras enlouquecidas podem atingir o poder.
Muitas dessas vozes, acolchoadas no medo do que, por atavismo ou negligência, não entendem ou, por iniquidade, recusam entender, jamais sentiram o apelo de uma só das 1102 oitavas que compõem "Os Lusíadas". A mulher livre e digna que ontem subiu à tribuna, numa cidade rente ao mar, lembrou-nos que 22 dessas oitavas contêm "avisos explícitos" sobre a crise que se vivia no tempo do poeta, um tempo de transição, tal como este nosso de agora. O fim de um ciclo.
Maravilhamo-nos com as redondilhas daquele que morreu sem sequer um lençol cobrindo o seu corpo exaurido. Já não poderá a mão veemente de um qualquer frei José Índio, testemunha dessa ignomínia, ontem citado pela escritora, tapar de vergonhas o atrevimento que vergonha não tem de alarvemente revelar suas misérias.
É esse um sinal perturbador destes dias: a ignorância engrossa a voz e cerra os punhos; perdeu o ignorante a vergonha da ignorância, antes a exibe em voz alta, em arruaça, em demonstração de despeito.
E, todavia, eis-nos diante da inteireza complexa dos factos, a mais funda identidade na palma da mão, de tanta mistura feita, de tanta redondilha, de tanta variedade, em boa verdade. O que faz de nós "descendentes do escravo e do senhor que o escravizou".
Nestes dias em que, como ontem lembrou uma mulher sábia, digna e livre, nos deslocamos "à velocidade dos meteoros", cercados de "fios invisíveis", sentimos o bafo de um "poder demente, aliado ao triunfalismo tecnológico".
E a cidade, como reage, nos seus rossios, depois de tantas índias e de tantas áfricas, de tantas redondilhas? Escutai o que diz a mulher: "Os cidadãos são apenas público, que assiste a espectáculos em ecrãs de bolso. Por alguma razão, os cidadãos hoje regrediram à subtil designação de seguidores. E os seus ídolos são fantasmas".
Assim ligados por fios invisíveis mais do que pelas vozes do outro que somos e calamos em nós, cada dia mais seguidores e menos cidadãos, que lugar, pergunta a mulher na cidade da mais bela estátua portuguesa, que lugar ocuparemos adiante, como seres humanos? Ela pergunta: "O que passará a ser um humano?".
Essa é, por certo, a pergunta central deste tempo de tantas sombras. Essa pergunta pede que cortemos os fios invisíveis e procuremos os versos daquele que, como ela disse, "nasceu e nunca mais morreu". Ao menos as vinte e duas oitavas.
Obrigado, Lídia Jorge.» [Fernando Alves, "As vinte e duas oitavas", in "Os Dias que Correm", 11 Jun. 2025]
Outra crónica de se tirar o chapéu ao seu autor, Fernando Alves. E justíssima para com a pessoa que a motivou: a escritora e cidadã Lídia Jorge que ontem proferiu em Lagos aquele que é, muito provavelmente, o discurso mais fascinante alguma vez lido em cerimónias oficiais do Dia de Portugal. O escrevente destas linhas, apesar de não ser de veterana idade, já ouviu, geralmente via rádio (por ser meio de comunicação social que melhor serve a palavra dita), muitos discursos dos 10 de Junho, mas não tem memória de nenhum tão bom e inteligível pelo cidadão comum quanto o de Lídia Jorge: profundo sem ser críptico, claro sem ser banal, belo sem ser floreado, lúcido sem ser desesperançado, interpelante sem ser acintoso, cativante sem ser melífluo, humanista sem ser romântico, eloquente sem ser gongórico... Trata-se de um discurso absolutamente admirável, que vale muito a pena revisitar na íntegra [>> Apple Podcasts / >> texto] e que devia ser incluído, obrigatoriamente, no programa lectivo da disciplina de Educação para a Cidadania. O escrevente destas linhas considera-se afortunado por ter como língua materna a de Camões e ontem sentiu-se inusitadamente orgulhoso de tal condição porque lhe permitiu apreender com toda a objectividade e plenitude a mensagem em português de lei que Lídia Jorge lhe transmitiu. E redobradamente ufano (mas sem jactância) se sente por saber que muitos dos seus compatriotas, alguns dos quais nunca leram uma linha escrita por Lídia Jorge, também ficaram enlevados/elevados com o que ouviram ontem da sua boca. Oxalá nunca deixem de agir em conformidade!
Mais conhecida como ficcionista (romancista e contista), Lídia Jorge [resenha biográfica e bibliografia >> DGLAB] já mostrou ser também uma notável cronista e poetisa, designadamente com a interessantíssima série de crónicas "Em Todos os Sentidos", que leu aos microfones da Antena 2, à cadência de uma por semana durante o ano de 2019 [>> RTP-Play], e que veio a reunir em livro publicado no mês de Junho seguinte [vide capa ao fundo], e com o volume de poesia "O Livro das Tréguas", editado em Maio de 2019, com chancela das Publicações Dom Quixote (a casa editora de praticamente toda a sua bibliografia). Antes, nos anos 1990, já a autora havia correspondido ao pedido da fadista Mísia a fim de lhe escrever poemas para melodias do fado tradicional. Foi o caso, por exemplo, do que tem por título "Sou de Vidro", que Mísia gravou com a música do Fado Santa Luzia, da autoria de Armando Machado, para o álbum "Garras dos Sentidos" (Erato, 1998). Um poema de tocante beleza e sensibilidade, que a primorosa interpretação de Mísia acentua, e que podia muito bem ter sido tomado para remate à crónica de Fernando Alves, quando a Antena 1 a difundiu hoje de manhã – em devido reconhecimento e valorização do magistral trabalho do categorizado colaborador e como sinal de gratidão à distinta escritora que ontem exerceu uma relevante acção cívica em prol dos Portugueses com um discurso marcante e verdadeiramente antológico.
Sou de Vidro
Poema: Lídia Jorge
Música: Armando Machado (Fado Santa Luzia)
Intérprete: Mísia* (in CD "Garras dos Sentidos", Erato, 1998; 2CD "Mísia": CD 2, WEA/Warner Music Spain, 2005)
[instrumental]
Meus amigos, sou de vidro,
Sou de vidro escurecido,
Encubro a luz que me habita;
Não por ser feia ou bonita,
Mas por ter assim nascido,
Sou de vidro escurecido;
Mas por ter assim nascido,
Não me atinjam, não me toquem!
Meus amigos, sou de vidro.
Sou de vidro escurecido,
Tenho um fumo por vestido
E um cinto de escuridão,
Mas trago a transparência
Envolvida no que digo;
Meus amigos, sou de vidro.
Por isso não me maltratem,
Não me quebrem, não me partam!
Sou de vidro escurecido.
Tenho um fumo por vestido,
Mas por ter assim nascido,
Não por ser feia ou bonita;
Envolvida no que digo,
Encubro a luz que me habita;
Meus amigos, sou de vidro.
Não por ser feia ou bonita,
Mas por ter assim nascido,
Tenho um fumo por vestido.
[instrumental]
Não me quebrem, não me partam!
Não me atinjam, não me toquem!
Meus amigos, sou de vidro.
* Mísia – voz
António Chainho – guitarra portuguesa
Carlos Manuel Proença – viola
José Marino de Freitas – viola baixo
Arranjo – António Chainho, Carlos Manuel Proença e José Marino de Freitas
Direcção musical – Ricardo J. Dias
Co-direcção – Mísia
Produtor executivo – Ricardo J. Dias
Gravado nos Estúdios Xangrilá, Lisboa, em Outubro de 1997
Técnico de som – Nuno Pimentel
Mistura – Ricardo J. Dias e Mísia (Studios Plus XXX, Paris)
Técnico de som – Emmanuel Pothier
Masterização – Yves Delaunay (Dyam Studios, Paris)
Texto sobre o disco em: Grandes discos da música portuguesa: efemérides em 2008
URL: https://www.misia-musik.com/
https://www.museudofado.pt/fado/personalidade/misia
https://www.facebook.com/misia.musica/
https://www.instagram.com/misiafado/
https://www.youtube.com/@misiafado/videos
https://music.youtube.com/channel/UChWigY2MXihQHcJkD9O0How
https://music.youtube.com/channel/UC-6Z1geTUs70mQoO9frPrDA

Capa do CD "Garras dos Sentidos", de Mísia (Erato, 1998)
Fotografia e concepção – C.B. Aragão

Capa da compilação em duplo CD "Mísia" (WEA/Warner Music Spain, 2005)

Capa d' "O Livro das Tréguas", de Lídia Jorge (Lisboa: Publicações Dom Quixote, Mai. 2019)
Poesia.

Capa do livro "Em Todos os Sentidos", de Lídia Jorge (Lisboa: Publicações Dom Quixote, Jun. 2020)
Crónicas.
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Outros artigos com repertório de Mísia:
Ser Poeta
Celebrando Natália Correia
Em memória de Vasco Graça Moura (1942-2014)
Celebrando Carlos Paredes
Mísia: "Garras dos Sentidos" (Agustina Bessa-Luís)
Mísia: "Da Vida Quero os Sinais" (Mário Cláudio)
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Outros artigos relacionados com a crónica de Fernando Alves na Antena 1:
Galandum Galundaina: "Chin Glin Din"
"Sons d'Outrora" em viola da terra, por Miguel Pimentel
Vitorino: "Moças de Bencatel" (Conde de Monsaraz)
Teresa Silva Carvalho: "Barca Bela" (Almeida Garrett)
António Borges Coelho: "Sou Barco"
Celeste Rodrigues: "Chapéu Preto"
Sérgio Godinho: "Tem Ratos"
Ruy Belo: "E Tudo Era Possível", por Nicolau Santos
Jacques Brel: "J'Arrive"
A tristeza lusitana
Segréis de Lisboa: "Ay flores do verde pino" (D. Dinis)
Manuel D'Oliveira: "O Momento Azul"
Aldina Duarte: "Flor do Cardo" (João Monge)
José Mário Branco: "Inquietação"
Chico Buarque: "Bom Conselho"
Teresa Paula Brito: "Meu Aceso Lume - Meu Amor" (Maria Teresa Horta)
Adriano Correia de Oliveira: "Pensamento" (Manuel Alegre)
Fausto Bordalo Dias: "Comboio Malandro" (António Jacinto)
Grupo Coral "Os Ganhões de Castro Verde" com Luiz Avellar: "As Nuvens Que Andam no Ar"
Amélia Muge: "Ai, Flores"
Afonso Dias: "Os Amigos" (Camilo Castelo Branco)
Pedro Barroso: "Barca em Chão de Lama"
António Gedeão: "Poema do Coração"
Reinaldo Ferreira: "Quero um cavalo de várias cores"
Chico Buarque: "Construção"
João Afonso: "Tangerina dos Algarves"
Joan Manuel Serrat: "Cantares" (Antonio Machado e Joan Manuel Serrat)
Belaurora: "Lamento do Camponês" (Popular e Onésimo Teotónio Almeida)
Manuel Freire: "Fala do Velho do Restelo ao Astronauta" (José Saramago)
João Afonso: "O Som dos Sapatos"
Fernando Pessoa: "Tenho dó das estrelas"
Carlos Mendes: "Alcácer Que Vier" (Joaquim Pessoa)
Janita Salomé: "Cerejeira das cerejas pretas miúdas" (Carlos Mota de Oliveira)
Mário Moita: "Senhora Cegonha"
Políbio Gomes dos Santos: "Poema da Voz Que Escuta", por Maria Barroso
Pedro Barroso: "Nasce Afrodite, amor, nasce o teu corpo" (José Saramago)
Bugalhos: "Carvalho Grande"
Eugénio de Andrade: "As Mães"
Cana rachada d'Azambuja
Janita Salomé: "Na Palestina"
Natália Correia: "Queixa das Almas Jovens Censuradas"
José Afonso: "Ali Está o Rio"
Jorge Palma: "A Escola"
Alexandre O'Neill: "Periclitam os grilos", por Mário Viegas
Chico Buarque com Milton Nascimento: "Cálice"
Irene Lisboa: "Pequeno Poema Mental", por José Rodrigues Miguéis
João Afonso: "Lagarto" (José Eduardo Agualusa)
Carlos Garcia com Luís Represas: "Noite Perdida" (António Feijó)
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