05 junho 2025

Irene Lisboa: "Pequeno Poema Mental", por José Rodrigues Miguéis


(in https://super.abril.com.br/)
Olhos compostos da mosca.


«Por que letra de médico é ruim? – perguntava, há pouco mais de uma semana, a edição brasileira da "BBC News". Anotei a pergunta, à mão.
Folheando, esta manhã, o caderno onde anotara com a minha cada vez mais impenetrável caligrafia, esta pergunta e as respostas que ela trouxe por arrasto, dei comigo a pensar que médico teria eu dado, que médico teria eu podido ser. E lembrei-me de uma boa conversa que a repórter Isabel Cunha teve com o médico e poeta João Luís Barreto Guimarães num Dia da Escrita à Mão, trazendo à tona os magníficos cadernos do poeta e as suas canetas-bisturi.
Uma semana depois de ter anotado no meu caderno a pergunta e as respostas da BBC News brasileira ia desesperando com a minha letra de médico, com a clínica geral dos dias, tão pela rama; na rama, na pele, procurando a possível profundidade, um porquê, alguma coisa que torne o tempo livre menos ocioso, que obrigue a preguiça a alguma ginástica, ainda que pouca e breve, acima de tudo livre. Aqui chegado, anoto (antes que dela me esqueça) uma ideia partilhada esta manhã pelo filósofo Victor Gómez Pin com os leitores do jornal "El País". Ele acredita que "o tempo livre já não é livre" porque "o ócio pode embrutecer mais do que o trabalho". Anoto à mão, procurando que a letra de médico não me traia, mais adiante. E atrevo-me a acrescentar pergunta minha, corda esticada dentro de caderno meu, cá com os meus botões: "talvez devêssemos trabalhar um pouco mais o nosso tempo livre, fazer dele uma divertida trabalheira; e, do mesmo passo, aliviar a carga do trabalho, tentar descobrir no trabalho a possibilidade de divertimento, o jogo, o eureka do acaso e do gozo".
Não sei como dizer isso aos homens do lixo, ou aos cuidadores da aflição alheia, tantas vezes alvo do descuido geral, mas a letra de médico talvez torne ainda mais intraduzível para mim mesmo o devaneio que deixo correr no ecrã do computador. Não tenho receita. Apenas anoto. Apenas pergunto.
Vem este fio puxado a propósito de uma ideia colhida há pouco na edição digital do "El Mundo". O jornal escutou Miguel Angel Martinez Gonzalez, um famoso epidemiologista, catedrático de saúde pública da universidade de Navarra. Ele chama a atenção para a "epidemia de entontecimento massivo" em curso. Ela progride "através dos ecrãs".
O professor não usa de complacência no diagnóstico: "os ecrãs no ensino são armas de destruição massiva".
Por isso, o professor de saúde pública estabeleceu com os seus alunos um pacto, por escrito, estabelecendo que se retirem os computadores portáteis das aulas e se volte a tomar apontamentos à mão. O epidemiologista desafia os pais a que façam o mesmo em casa. Por vários motivos, um deles elementar: escrever à mão estimula a aprendizagem. Olho a mancha do texto, a pauta em que defino a cadência das palavras, e anoto: recuperar a caligrafia perdida.
Há uma foto em que João Luís Barreto Guimarães escreve junto à água, gaivotas por perto. Reencontro essa foto, ilustrando a conversa de há um ano, a conversa em que o artesão da palavra assina de viva-voz as suas receitas poéticas. E regresso ao meu caderno da caligrafia emaranhada, resistindo à epidemia em curso. Perdido no emaranhado, está um verso de Irene Lisboa, escrito por certo à mão: "gostava de escrever com um fio de água".» [Fernando Alves, "Com um fio de água", in "Os Dias que Correm", 5 Jun. 2025]


O poema de Irene Lisboa de que Fernando Alves citou um verso tem por título "Escrever", foi publicado no livro "Outono havias de vir" (Seara Nova, 1937), sob o pseudónimo de João Falco, e pode ser lido no sítio "A Viagem dos Argonautas". Não é de excluir a hipótese de que exista alguma recitação dele no arquivo histórico da rádio pública (em disco parece não haver) e, a confirmar-se, seria esse o mais adequado remate à crónica. Caso contrário, poderia deitar-se mão a outro poema da mesma autora e uma boa escolha seria o primeiro dos "Pequenos Poemas Mentais" que José Rodrigues Miguéis (também ele escritor, e dos grandes, embora hoje pouco lido) gravou para o LP "Modern Portuguese Poetry", editado em 1961 pela etiqueta norte-americana Folkway Records. O poema foi escrito em finais dos anos 1930 (saiu numa revista literária), portanto, umas boas décadas antes do aparecimento dos 'smartphones' e das chamadas redes sociais, mas pode ser perfeitamente transposto para a actualidade. O redondel mencionado por Irene Lisboa é agora o tal deslumbrante aparelho tecnológico que transformou os seus portadores (mais dependentes) em insectos de mil olhos que vêem em múltiplas direcções mas sem acuidade nem profundidade de campo: ficam-se pela superficialidade, pela incapacidade de pensar e de discernir de entre a imensa (pseudo)informação disponível a que tem real valor de conhecimento e de incremento cultural, gerando a desorientação e a alienação que redundam no vazio e na depressão.
Eis, pois, um interpelante "Pequeno Poema Mental" (Mental: nada, ou quase nada sentimental – segundo a definição de Irene Lisboa), na voz de José Rodrigues Miguéis. Podia muito bem ter funcionado como epílogo à crónica de Fernando Alves quando foi emitida pela Antena 1, hoje de manhã, se Ricardo Soares não preferisse voltar ao imobilismo negligente em que se compraz...



PEQUENO POEMA MENTAL



... de Irene Lisboa
Recitado por José Rodrigues Miguéis* (in LP "Modern Portuguese Poetry read by Dr. José Rodrigues Miguéis", Folkway Records, 1961, reed. Folkway Records, 2012)




Quem não sai da sua casa,
não atravessa povos, montes, vales,
não vê as cenas bíblicas das eiras,
nem mulheres de infusa, equilibradas,
nem carros lentos chiadores,
nem homens suados;
quem vive como o insecto cativo no seu redondel,
cria mil olhos para nada...
Mil olhos implacáveis!
E um dia diz: Odeio o que ontem amava,
sentindo indómitos ódios.
E diz depois: Ó tempo vazio, vazio, vazio...
sem amor nem ódio, terrivelmente pobre.
E ainda volta a dizer: Mas eu que sei, que sou?
Não sei nem sou, não me reconheço...
Nunca ninguém, sequer, me deteve, me falou, me interrogou.
Sou uma sombra, ou menos.
E o insecto,
ou o quer que é como o insecto no seu redondel, pára.
Pára circunvagando os mil olhos desgostosos,
pela paisagem pobre, irrenovada.


* José Rodrigues Miguéis – voz

Produção – Raymond S. Sayers e José Rodrigues Miguéis
URL: https://www.instituto-camoes.pt/activity/centro-virtual/bases-tematicas/figuras-da-cultura-portuguesa/jose-rodrigues-migueis
http://livro.dglab.gov.pt/sites/DGLB/Portugues/autores/Paginas/PesquisaAutores1.aspx?AutorId=9297
https://music.youtube.com/channel/UCYah_GtDwjfZYF3UiH3T_Cg



Capa do LP "Modern Portuguese Poetry read by Dr. José Rodrigues Miguéis" (Folkway Records, 1961)
Desenho – Ronald Clyne.

____________________________________________

Outros artigos relacionados com a crónica de Fernando Alves na Antena 1:
Galandum Galundaina: "Chin Glin Din"
"Sons d'Outrora" em viola da terra, por Miguel Pimentel
Vitorino: "Moças de Bencatel" (Conde de Monsaraz)
Teresa Silva Carvalho: "Barca Bela" (Almeida Garrett)
António Borges Coelho: "Sou Barco"
Celeste Rodrigues: "Chapéu Preto"
Sérgio Godinho: "Tem Ratos"
Ruy Belo: "E Tudo Era Possível", por Nicolau Santos
Jacques Brel: "J'Arrive"
A tristeza lusitana
Segréis de Lisboa: "Ay flores do verde pino" (D. Dinis)
Manuel D'Oliveira: "O Momento Azul"
Aldina Duarte: "Flor do Cardo" (João Monge)
José Mário Branco: "Inquietação"
Chico Buarque: "Bom Conselho"
Teresa Paula Brito: "Meu Aceso Lume - Meu Amor" (Maria Teresa Horta)
Adriano Correia de Oliveira: "Pensamento" (Manuel Alegre)
Fausto Bordalo Dias: "Comboio Malandro" (António Jacinto)
Grupo Coral "Os Ganhões de Castro Verde" com Luiz Avellar: "As Nuvens Que Andam no Ar"
Amélia Muge: "Ai, Flores"
Afonso Dias: "Os Amigos" (Camilo Castelo Branco)
Pedro Barroso: "Barca em Chão de Lama"
António Gedeão: "Poema do Coração"
Reinaldo Ferreira: "Quero um cavalo de várias cores"
Chico Buarque: "Construção"
João Afonso: "Tangerina dos Algarves"
Joan Manuel Serrat: "Cantares" (Antonio Machado e Joan Manuel Serrat)
Belaurora: "Lamento do Camponês" (Popular e Onésimo Teotónio Almeida)
Manuel Freire: "Fala do Velho do Restelo ao Astronauta" (José Saramago)
João Afonso: "O Som dos Sapatos"
Fernando Pessoa: "Tenho dó das estrelas"
Carlos Mendes: "Alcácer Que Vier" (Joaquim Pessoa)
Janita Salomé: "Cerejeira das cerejas pretas miúdas" (Carlos Mota de Oliveira)
Mário Moita: "Senhora Cegonha"
Políbio Gomes dos Santos: "Poema da Voz Que Escuta", por Maria Barroso
Pedro Barroso: "Nasce Afrodite, amor, nasce o teu corpo" (José Saramago)
Bugalhos: "Carvalho Grande"
Eugénio de Andrade: "As Mães"
Cana rachada d'Azambuja
Janita Salomé: "Na Palestina"
Natália Correia: "Queixa das Almas Jovens Censuradas"
José Afonso: "Ali Está o Rio"
Jorge Palma: "A Escola"
Alexandre O'Neill: "Periclitam os grilos", por Mário Viegas
Chico Buarque com Milton Nascimento: "Cálice"

Sem comentários: