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«Num Maio antigo, em 73, Gilberto Gil e Chico Buarque subiram ao palco e tentaram cantar juntos uma canção que tinham acabado de compor em parceria. A canção vinha dizer "como é difícil acordar calado" (como era difícil, nesses dias sombrios), vinha esconjurar um "silêncio que atordoa". Nesse Maio, em 73, eles começaram a erguer nas próprias vozes o "Cálice", a canção de uma aflição rebelada, mas não puderam chegar ao último acorde, mão nem sequer relapsa, escondida, desligou os microfones, a mando dos censores, dos esbirros do governo Médici. Não puderam dizer, na sua inteireza, "essa palavra presa na garganta".
A canção fez o seu caminho, foi gravada por Chico, Gil convocou há tempos a voz de Milton Nascimento para a celebrar num álbum de duetos. Mas nunca foi registada numa gravação conjunta dos seus dois autores e não tinha subido ao palco, as vozes de ambos abraçando-se, senão uma vez em meio século. Essa vez única em que Gil e Chico lembraram juntos, cantando, que "talvez o mundo não seja pequeno" foi num festival organizado em 2018 no Rio para reclamar a libertação de Lula, nessa altura preso em Curitiba.
Agora, pela segunda vez em meio século, eles estiveram juntos, com os seus cabelos brancos e as suas vozes já em notas talvez mais baixas, mas poderosamente revelando uma serenidade afinada, uma serenidade afiada, uma doçura combativa, e ergueram o cálice que não se tinha quebrado. Os dois octogenários abraçaram-se comovidamente no final da canção que, pela segunda vez em meio século, cantavam juntos. Os jornais brasileiros contam que no público muitos choravam. Lá na plateia, muitos sabiam que aqueles dois nunca desistiram de cantar, nunca atiraram ao chão as suas canções, mesmo quando viam "emergir o monstro da lagoa".
Se te escapou o momento inesquecível deste reencontro no palco da tournée Tempo Rei, que Gil iniciou em Março, procura-o no palco digital. Este momento é um testemunho de dois criadores que sempre se rebelaram contra os que lhes cortavam a palavra, de dois bravos que nunca se calaram. É um hino vibrante à liberdade.
Eles vêm dizer-nos afinal, cantando, que mesmo em democracia há palavras presas na garganta. Vêm dizer-nos que nunca devemos deixar cair a palavra ao chão. Mesmo atordoados, deveremos permanecer atentos.» [Fernando Alves, "Cálice", in "Os Dias que Correm", 4 Jun. 2025]
"Cálice" foi composta para a Phono 73, uma espécie de festival patrocinado pela nossa gravadora. Numa Sexta-Feira Santa, o Gil apareceu lá em casa, um apartamento à beira da Lagoa.
Servi uma bebida amarga, um Fernet Branca, e ele começou a dedilhar o violão e a cantarolar toda a primeira parte da canção, música e letra. Fiquei de compor a música da segunda parte, cuja letra dividimos por igual. A canção ficou um bom tempo censurada.
CHICO BUARQUE
(in https://artsandculture.google.com/)
A canção denunciadora da opressão e da mordaça ("cálice", na oralidade brasileira, subentende-se como "cale-se", dada a sua homofonia) que a ditadura militar brasileira não permitiu que fosse cantada em público teve de esperar cinco anos até que Chico Buarque a gravasse, para o álbum homónimo editado em 1978. Mas aí, o dueto não foi com o co-autor, possivelmente por impedimento deste, mas com Milton Nascimento. E o resultado é portentoso, conforme se poderá comprovar nesta mesma página onde que lhe damos realce.
Hoje, momentos antes das 09h:00 da manhã, o escrevente destas linhas, se tivesse à mão um foguete, mesmo sem ter experiência no manuseio de objectos pirotécnicos, atrever-se-ia a deitá-lo ao ar. E porquê? Precisamente porque Ricardo Soares se dignou passar um excerto da recente versão ao vivo de "Cálice", por Gilberto Gil e Chico Buarque, a que Fernando Alves fez referência [>> Globo Play]. Finalmente, ao cabo de oito meses em que a crónica está no ar nas ondas da Antena 1, Ricardo Soares parece ter tido um rebate de consciência e agiu como lhe compete. Terá sido um acto isolado ou foi o início de uma conduta diferente em prol do serviço público de rádio? Cá estaremos para ouvir e dizer de nossa justiça...
Cálice
Letra e música: Gilberto Gil e Chico Buarque (Francisco Buarque de Hollanda)
Intérpretes: Chico Buarque* com Milton Nascimento (in LP "Chico Buarque", Philips/Phonogram, 1978, reed. Philips/Polygram, 1993, Mercury/Universal Music Brazil, 2001)
[coro]
Pai, afasta de mim esse cálice!
Pai, afasta de mim esse cálice!
Pai, afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue!
[bis]
Como beber dessa bebida amarga
Tragar a dor, engolir a labuta
Mesmo calada a boca, resta o peito
Silêncio na cidade não se escuta
De que me vale ser filho da santa
Melhor seria ser filho da outra
Outra realidade menos morta
Tanta mentira, tanta força bruta
Pai, afasta de mim esse cálice!
Pai, afasta de mim esse cálice!
Pai, afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue!
Como é difícil acordar calado
Se na calada da noite eu me dano
Quero lançar um grito desumano
Que é uma maneira de ser escutado
Esse silêncio todo me atordoa
Atordoado eu permaneço atento
Na arquibancada pra a qualquer momento
Ver emergir o monstro da lagoa
Pai, afasta de mim esse cálice!
Pai, afasta de mim esse cálice!
Pai, afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue!
[instrumental]
De muito gorda a porca já não anda
De muito usada a faca já não corta
Como é difícil, pai, abrir a porta
Essa palavra presa na garganta
Esse pileque homérico no mundo
De que adianta ter boa vontade
Mesmo calado o peito, resta a cuca
Dos bêbados do centro da cidade
Pai, afasta de mim esse cálice!
Pai, afasta de mim esse cálice!
Pai, afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue!
Talvez o mundo não seja pequeno
Nem seja a vida um facto consumado
Quero inventar o meu próprio pecado
Quero morrer do meu próprio veneno
Quero perder de vez tua cabeça
Minha cabeça perder teu juízo
Quero cheirar fumaça de óleo diesel
Me embriagar até que alguém me esqueça
* Chico Buarque – voz
MPB-4 – coro
Magro (MPB-4) – piano, arranjo e regência
Miltinho (MPB-4) – violão
Luiz Cláudio Ramos – guitarra
Bebeto (Adalberto José Castilho e Souza) – baixo eléctrico
Mário Negrão – bateria
Participação especial:
Milton Nascimento – voz
Produção e direcção – Sérgio de Carvalho
Gravado nos Estúdios Phonogram, Rio de Janeiro
Técnicos de gravação – Ary Carvalhaes, Luís Cláudio Coutinho, Paulo Sérgio "Chocolate"
Mistura – Sérgio de Carvalho e Luigi Hoffer
Auxiliares de estúdio – Julinho e Vítor
Corte – Ivan Lisnik
Montagem – Barroso
URL: https://www.chicobuarque.com.br/
https://www.facebook.com/ChicoBuarque/
https://music.youtube.com/channel/UC0KFB-23-1AeWp1pOi6bvpQ

Capa do LP "Chico Buarque", de Chico Buarque (Philips/Phonogram, 1978)
Fotografia – Januário Garcia
Concepção – Aldo Luz
Arte – Jorge Vianna.
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Outros artigos com repertório de Chico Buarque:
Em memória de Georges Moustaki (1934-2013)
Celebrando Vinicius de Moraes
Chico Buarque: "Bom Conselho"
Chico Buarque: "Construção"
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Outros artigos relacionados com a crónica de Fernando Alves na Antena 1:
Galandum Galundaina: "Chin Glin Din"
"Sons d'Outrora" em viola da terra, por Miguel Pimentel
Vitorino: "Moças de Bencatel" (Conde de Monsaraz)
Teresa Silva Carvalho: "Barca Bela" (Almeida Garrett)
António Borges Coelho: "Sou Barco"
Celeste Rodrigues: "Chapéu Preto"
Sérgio Godinho: "Tem Ratos"
Ruy Belo: "E Tudo Era Possível", por Nicolau Santos
Jacques Brel: "J'Arrive"
A tristeza lusitana
Segréis de Lisboa: "Ay flores do verde pino" (D. Dinis)
Manuel D'Oliveira: "O Momento Azul"
Aldina Duarte: "Flor do Cardo" (João Monge)
José Mário Branco: "Inquietação"
Chico Buarque: "Bom Conselho"
Teresa Paula Brito: "Meu Aceso Lume - Meu Amor" (Maria Teresa Horta)
Adriano Correia de Oliveira: "Pensamento" (Manuel Alegre)
Fausto Bordalo Dias: "Comboio Malandro" (António Jacinto)
Grupo Coral "Os Ganhões de Castro Verde" com Luiz Avellar: "As Nuvens Que Andam no Ar"
Amélia Muge: "Ai, Flores"
Afonso Dias: "Os Amigos" (Camilo Castelo Branco)
Pedro Barroso: "Barca em Chão de Lama"
António Gedeão: "Poema do Coração"
Reinaldo Ferreira: "Quero um cavalo de várias cores"
Chico Buarque: "Construção"
João Afonso: "Tangerina dos Algarves"
Joan Manuel Serrat: "Cantares" (Antonio Machado e Joan Manuel Serrat)
Belaurora: "Lamento do Camponês" (Popular e Onésimo Teotónio Almeida)
Manuel Freire: "Fala do Velho do Restelo ao Astronauta" (José Saramago)
João Afonso: "O Som dos Sapatos"
Fernando Pessoa: "Tenho dó das estrelas"
Carlos Mendes: "Alcácer Que Vier" (Joaquim Pessoa)
Janita Salomé: "Cerejeira das cerejas pretas miúdas" (Carlos Mota de Oliveira)
Mário Moita: "Senhora Cegonha"
Políbio Gomes dos Santos: "Poema da Voz Que Escuta", por Maria Barroso
Pedro Barroso: "Nasce Afrodite, amor, nasce o teu corpo" (José Saramago)
Bugalhos: "Carvalho Grande"
Eugénio de Andrade: "As Mães"
Cana rachada d'Azambuja
Janita Salomé: "Na Palestina"
Natália Correia: "Queixa das Almas Jovens Censuradas"
José Afonso: "Ali Está o Rio"
Jorge Palma: "A Escola"
Alexandre O'Neill: "Periclitam os grilos", por Mário Viegas
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