10 junho 2019

Camões recitado e cantado (V)


"Luís de Camões preso e tendo aos pés quem quis perdê-lo. Pintado nas Índias e foi do próprio".
De autoria anónima, este retrato foi revelado pela investigadora Maria Antonieta Soares de Azevedo, em 1972, num artigo publicado na revista "Panorama" (N.º 42/43, IV Série), que o situa em 1556, sendo anterior ao outro retrato feito em vida do poeta, por Fernão Gomes.
Figurou na exposição que a Biblioteca Nacional organizou, no mesmo ano de 1972, a propósito do IV centenário da publicação de "Os Lusíadas".

«Sendo um testemunho muito importante, este retrato não é propriamente uma obra de arte. A peça é de execução tão imperfeita quanto colorida. O desenho é tosco e desajeitado, com flagrantes erros de perspectiva. Mostra um Camões arruivado, de guias do bigode assimétricas, sentado a uma mesa, segurando uma travessa na mão direita e uma pequena peça escura na esquerda. Estará prestes a trabalhar num dos cantos de Os Lusíadas (o décimo para Maria Antonieta Soares de Azevedo). Há duas folhas sobre essa mesa, mais um fragmento de outra folha.
O poeta parece dispor de um certo "conforto intelectual": vemos vários cartapácios na parede, está em fase de escrever ou a corrigir o seu poema, pode consultar uma carta geográfica que tem perto de si, certamente para verificar qualquer afirmação ou referência do poema. Mas o gibão está roto na manga esquerda e a comida representada não parece abundante, não se percebendo bem que objecto mostra na mão esquerda: um pedaço de pão ou biscoito? Uma pedra para raspar eventualmente a tinta com que escreve? Uma noz gálica para fazer mais tinta? Outra coisa?»

Vasco Graça Moura (in "Retratos de Camões", Lisboa: Guerra e Paz Editores, 2014 – p. 54-55)


Neste Dia de Camões, apresentamos a três últimas Canções, do conjunto de dez que compõe o CD "Luís de Camões: 10 Canções ditas por Luís Miguel Cintra" [as sete anteriores foram apresentadas nos artigos "Camões recitado e cantado (III)" e "Camões recitado e cantado (IV)"].
No que concerne a poemas camonianos musicados/cantados, resgatamos os cinco que Luís Cília gravou em França e incluiu no seu álbum "La Poésie Portugaise de Nos Jours et de Toujours – 1", editado em 1967. Sendo Luís Cília, hoje em dia, um compositor/intérprete banidíssimo do éter nacional, presumimos que seja elevado o número de rádio-ouvintes que nunca tiveram contacto auditivo com estas gravações, pelo que esta possibilidade de descoberta e fruição se pode considerar verdadeiro serviço público.
À laia de preâmbulo, e igualmente com música de Luís Cília, deixamos o poema "Lamento de Luís de Camões na morte de António, seu escravo", da autoria de Eugénio de Andrade, nas vozes de Mário Viegas (recitação) e de Luís Cília (canto).

Neste 10 de Junho, o que vem fazendo (está a fazer) a rádio pública em celebração do Poeta-Maior da Língua Portuguesa? Andámos a fazer 'zapping' entre as três antenas nacionais e apenas lográmos ouvir na Antena 2, pela mão de Gabriela Canavilhas, no programa "O Ar do Tempo" [>> RTP-Play], uma versão de "Na Fonte Está Lianor", na voz de Jennifer Smith, acompanhada ao alaúde por Manuel Morais, que faz parte do CD "Saudade, Amor e Morte: Cancioneiros Ibéricos dos Séculos XVI e XVII" (Philips, 1998). O poema é diferente do que foi cantado por José Afonso e não é garantido que seja de Camões pois não aparece na generalidade das edições da Lírica, mas admitamos que sim. Assim sendo, aquele espécime foi a minúscula ilha poético-musical no imenso mar de silêncio a que o Poeta foi votado. E se o silêncio imperou até agora, que são 21:45, não é de crer que o deplorável panorama se modifique durante o curto período que falta para a meia-noite.
Na Antena 2, devem ter-se esquecido, decerto, de que existem, gravadas em disco, abundantes canções sobre poemas de Camões, saídas do punho de compositores tão importantes como Luís de Freitas Branco, Joly Braga Santos e Fernando Lopes-Graça. Isto, sem referir obras evocativas de grande fôlego como é o caso do "Requiem à Memória de Camões", de João Domingos Bomtempo, e da "Sinfonia à Pátria", de José Vianna da Motta.
Na Antena 1, e sem prejuízo da transmissão de poemas ditos/recitados (coisa que as Antenas 2 e 3 também podiam e deviam fazer), já não seria mau se, ao menos no Dia de Camões, a oferta musical da 'playlist' fosse constituída somente por canções baseadas em poemas do genial Vate e de outros autores portugueses. Mas não! Nada! Apenas as mesmíssimas imundícies sonoras (exógenas e endógenas) que rodam nos demais 364 dias do ano. Absolutamente vergonhoso!
Meu caro Luís Vaz, foste grande demais para um país tão rasteiro, que não soube merecer-te em vida e continua a matar a tua memória a cada momento que passa, mesmo no dia que escolheu para te honrar. Citando Sophia, «Este país te mata lentamente».



Lamento de Luís de Camões na morte de António, seu escravo



Poema: Eugénio de Andrade (27-12-1979, de "Escrita da Terra / Epitáfios", in "Poesia e Prosa", Vol. I, Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1980; "Poesia", 2.ª edição, org. Arnaldo Saraiva, Porto: Fundação Eugénio de Andrade, 2005 – p. 242)
Música: Luís Cília
Intérprete: Luís Cília* com Mário Viegas (in LP "Marginal", Diapasão/Sassetti, 1981)


         ...viveu em tanta pobreza, que se não tivera
         um jau, chamado António, que da Índia trouxe,
         que de noite pedia esmola para o ajudar a
         sustentar, não pudera aturar a vida. Como se
         viu, tanto que o jau morreu, não durará ele
         muitos meses.
                                    PEDRO DE MARIZ


Devias estar aqui rente aos meus lábios
para dividir contigo esta amargura
dos meus dias partidos um a um

— eu vi a terra limpa no teu rosto,
só no teu rosto e nunca em mais nenhum.


* [créditos gerais do disco:]
Luís Cília – voz e viola
Mário Viegas – voz (em
António Serafim – oboé
Filomena Cardoso – violino
Teresa Ribeiro – violeta
João Neves – violoncelo
Pedro Caldeira Cabral – guitarra portuguesa
Pedro Osório – acordeão e sintetizador
Pedro Casaes – contrabaixo
Direcção musical – Luís Cília
Gravado nos Estúdios Musicorde, Lisboa, em Agosto de 1981
Técnico de som – Rui Remígio



Se de Saudade



Poema (vilancete em redondilha menor): Luís de Camões (in "Rimas", org. Fernão Rodrigues Lobo Soropita, Lisboa, 1595; "Obras de Luís de Camões", Porto: Lello & Irmão Editores, 1970 – p. 782-783)
Música: Luís Cília
Intérprete: Luís Cília* (in LP "La Poésie Portugaise de Nos Jours et de Toujours – 1", Moshé-Naïm, 1967; CD "La Poésie Portugaise de Nos Jours et de Toujours", Moshé-Naïm/EMEN, 1996)


          MOTE ALHEIO

Saudade minha,
quando vos veria?

          VOLTAS

Este tempo vão,
esta vida escassa,
pera todos passa,
só pera mim não.
Os dias se vão
sem ver este dia
quando vos veria.

Vede esta mudança
se está bem perdida
em tão curta vida
tão longa esperança!
Se este bem se alcança,
tudo sofreria,
quando vos veria.

Saudosa dor,
eu bem vos entendo;
mas não me defendo,
porque ofendo Amor.
Se fôsseis maior,
em maior valia
vos estimaria.

Minha saudade,
caro penhor meu,
a quem direi eu
tamanha verdade?
Na minha vontade,
de noite e de dia
sempre vos teria.


* Luís Cília – voz e guitarra
Marc Vic – guitarra
François Rabbath – contrabaixo
Produção – Moshé Naïm
Gravado nos Studios Europa-Sonor, Paris



CANÇÃO VIII



Poema de Luís de Camões (in "Rimas", org. Fernão Rodrigues Lobo Soropita, Lisboa, 1595; "Rimas", texto estabelecido e prefaciado por Álvaro Júlio da Costa Pimpão, Coimbra: Universidade de Coimbra, 1953, Coimbra: Livraria Almedina, 2005)
Dito por Luís Miguel Cintra* (in CD "Luís de Camões: 10 Canções ditas por Luís Miguel Cintra", Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1995, reed. livro/CD, Presente, 2011)




Tomei a triste pena
já de desesperado
de vos lembrar as muitas que padeço,
com ver que me condena
a ficar eu culpado
o mal que me tratais e o que mereço.
Confesso que conheço
que, em parte, eu causei
o mal em que me vejo,
pois sempre meu desejo
tão comprido, em vós cumprir deixei;
mas não tive suspeita
que seguísseis tenção tão imperfeita.

Se em vosso esquecimento
tão envolto estou
como os sinais demonstram, que mostrais;
vivo neste tormento,
lembranças mais não dou
que a que de razão tomar queirais:
olhai que me tratais
assi de dia em dia
com vossas esquivanças;
e as vossas esperanças,
de que, vãmente, eu me enriquecia,
renovam a memória;
pois com tê-la de vós, só tenho glória.

E se isto conhecêsseis
que é verdade pura
como ouro de Arábia reluzente,
inda que não quisésseis,
a condição tão dura
mudáreis noutra muito diferente.
E eu, como inocente
que estou neste caso,
isto em mãos pusera
de quem sentença dera
que ficasse o direito justo e raso,
se não arreceara
que a vós por mim, e a mim por vós matara.

Em vós escrita vi
vossa grande dureza,
e n'alma escrita está que de vós vive;
não que acabasse ali
sua grande firmeza
o triste desengano que então tive;
porque antes que a dor prive
de todos meus sentidos,
ao grande tormento
acode o entendimento
com dous fortes soldados, guarnecidos
de rica pedraria,
que ficam sendo minha luz e guia.

Destes acompanhado,
estou posto sem medo
a tudo o que o fatal destino ordene;
pode ser que, cansado,
ou seja tarde, ou cedo,
com pena de penar-me, me despene.
E quando me condene
(que isto é o que espero)
inda a maiores dores,
perdidos os temores,
por mais que venha, não direi: não quero.
Contudo estou tão forte
que nem me mudará a mesma morte.

Canção, se já não queres
ver tanta crueldade,
lá vás onde verás minha verdade.


* Luís Miguel Cintra – voz
Gravado no Grande Auditório do Centro Cultural de Belém, Lisboa, por Vasco Pimentel, em 1995
Pós-produzido no Estúdio Grande Som, Lisboa



Quem Ora Soubesse



Poema (vilancete em redondilha menor): Luís de Camões (in "Rimas", org. Fernão Rodrigues Lobo Soropita, Lisboa, 1595; "Obras de Luís de Camões", Porto: Lello & Irmão Editores, 1970 – p. 771-772)
Música: Luís Cília
Intérprete: Luís Cília* (in LP "La Poésie Portugaise de Nos Jours et de Toujours – 1", Moshé-Naïm, 1967; CD "La Poésie Portugaise de Nos Jours et de Toujours", Moshé-Naïm/EMEN, 1996)


          MOTE

Quem ora soubesse
onde o Amor nasce,
que o semeasse!

          VOLTAS

D'Amor e seus danos
me fiz lavrador;
semeava amor
e colhia enganos.
Não vi, em meus anos,
homem que apanhasse
o que semeasse.

Vi terra florida
de lindos abrolhos:
lindos pera os olhos,
duros pera a vida.
Mas a rês perdida
que tal erva pasce
em forte hora nasce.

Conquanto perdi,
trabalhava em vão:
se semeei grão,
grande dor colhi.
Amor nunca vi
que muito durasse,
que não magoasse.


* Luís Cília – voz e guitarra
Marc Vic – guitarra
François Rabbath – contrabaixo
Produção – Moshé Naïm
Gravado nos Studios Europa-Sonor, Paris



CANÇÃO IX



Poema de Luís de Camões (in "Rimas", org. Fernão Rodrigues Lobo Soropita, Lisboa, 1595; "Rimas", texto estabelecido e prefaciado por Álvaro Júlio da Costa Pimpão, Coimbra: Universidade de Coimbra, 1953, Coimbra: Livraria Almedina, 2005)
Dito por Luís Miguel Cintra* (in CD "Luís de Camões: 10 Canções ditas por Luís Miguel Cintra", Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1995, reed. livro/CD, Presente, 2011)




Junto de um seco, fero e estéril monte,
inútil e despido, calvo, informe,
da natureza em tudo aborrecido,
onde nem ave voa, ou fera dorme,
nem rio claro corre, ou ferve fonte,
nem verde ramo faz doce ruído;
cujo nome, do vulgo introduzido,
é Félix, por antífrase, infelice;
o qual a Natureza
situou junto à parte
onde um braço de mar alto reparte
Abássia da arábica aspereza,
onde fundada já foi Berenice,
ficando à parte donde
o Sol que nele ferve se lhe esconde;

nele aparece o Cabo com que a costa
Africana, que vem do Austro correndo,
limite faz, Arómata chamado
(Arómata outro tempo; que, volvendo
os céus, a ruda língua mal composta
dos próprios outro nome lhe tem dado).
Aqui, no mar que quer apressurado
entrar pela garganta deste braço,
me trouxe um tempo e teve
minha fera ventura.
Aqui, nesta remota, áspera e dura
parte do mundo, quis que a vida breve
também de si deixasse um breve espaço,
por que ficasse a vida
pelo mundo em pedaços repartida.

Aqui me achei gastando uns tristes dias,
tristes, forçados, maus e solitários,
trabalhosos, de dor e de ira cheios,
não tendo tão-somente por contrários
a vida, o sal ardente e águas frias,
os ares grossos, férvidos e feios;
mas os meus pensamentos, que são meios
para enganar a própria Natureza,
também vi contra mi,
trazendo-me à memória
algũa já passada e breve glória,
que eu já no mundo vi, quando vivi,
por me dobrar dos males a aspereza,
por me mostrar que havia
no mundo muitas horas de alegria.

Aqui estive eu co estes pensamentos
gastando o tempo e a vida; os quais tão alto
me subiam nas asas que caía
— e vede se seria leve o salto! —
de sonhados e vãos contentamentos
em desesperação de ver um dia.
Aqui o imaginar se convertia
num súbito chorar e nuns suspiros,
que rompiam os ares.
Aqui, a alma cativa,
chagada toda, estava em carne viva,
de dores rodeada e de pesares,
desamparada e descoberta aos tiros
da soberba Fortuna:
soberba, inexorável e importuna.

Não tinha parte donde se deitasse,
nem esperança algũa onde a cabeça
um pouco reclinasse, por descanso.
Todo lhe é dor e causa que padeça,
mas que pereça não, por que passasse
o que quis o Destino nunca manso.
Oh! que este irado mar, gritando, amanso!
Estes ventos da voz importunados,
parece que se enfreiam!
Somente o Céu severo,
as Estrelas e o Fado sempre fero
com meu perpétuo dano se recreiam,
mostrando-se potentes e indignados
contra um corpo terreno,
bicho da terra vil e tão pequeno.

Se de tantos trabalhos só tirasse
saber inda por certo que algũa hora
lembrava a uns claros olhos que já vi;
e se esta triste voz, rompendo fora,
as orelhas angélicas tocasse
daquela em cujo riso já vivi;
a qual, tornada um pouco sobre si,
revolvendo na mente pressurosa
os tempos já passados
de meus doces errores,
de meus suaves males e furores,
por ela padecidos e buscados,
tornada — inda que tarde — piadosa,
um pouco lhe pesasse
e consigo por dura se julgasse;

isto só que soubesse, me seria
descanso para a vida que me fica;
co isto afagaria o sofrimento.
Ah! Senhora, Senhora, que tão rica
estais que, cá tão longe, de alegria
me sustentais cum doce fingimento!
Em vos afigurando o pensamento,
foge todo o trabalho e toda a pena.
Só com vossas lembranças
me acho seguro e forte
contra o rosto feroz da fera Morte,
e logo se me ajuntam esperanças
com que a fronte, tornada mais serena,
torna os tormentos graves
em saudades brandas e suaves.

Aqui co eles fico, perguntando
aos ventos amorosos, que respiram
da parte donde estais, por vós, Senhora;
às aves que ali voam, se vos viram,
que fazíeis, que estáveis praticando,
onde, como, com quem, que dia e que hora.
Ali a vida cansada, que melhora,
toma novos espritos, com que vença
a Fortuna e Trabalho,
só por tornar a ver-vos,
só por ir a servir-vos e querer-vos.
Diz-me o Tempo que a tudo dará talho;
mas o Desejo ardente, que detença
nunca sofreu, sem tento
me abre as chagas de novo ao sofrimento.

Assi vivo; e se alguém te perguntasse,
Canção, como não mouro,
podes-lhe responder que porque mouro.


* Luís Miguel Cintra – voz
Gravado no Grande Auditório do Centro Cultural de Belém, Lisboa, por Vasco Pimentel, em 1995
Pós-produzido no Estúdio Grande Som, Lisboa



Se me Levam Águas



Poema (vilancete em redondilha menor): Luís de Camões (in "Rimas", org. Fernão Rodrigues Lobo Soropita, Lisboa, 1595; "Obras de Luís de Camões", Porto: Lello & Irmão Editores, 1970 – p. 772-773)
Música: Luís Cília
Intérprete: Luís Cília* (in LP "La Poésie Portugaise de Nos Jours et de Toujours – 1", Moshé-Naïm, 1967; CD "La Poésie Portugaise de Nos Jours et de Toujours", Moshé-Naïm/EMEN, 1996)


          MOTE ALHEIO

Se me levam águas,
nos olhos as levo.

          VOLTAS

Se de saudade
morrerei ou não,
meus olhos dirão
de mim a verdade.
Por eles me atrevo
a lançar as águas
que mostrem as mágoas
que nesta alma levo.

As águas que em vão
me fazem chorar,
se elas são do mar
estas de amor são.
Por elas relevo
todas minhas mágoas;
que, se força de águas
me leva, eu as levo.

Todas me entristecem,
todas são salgadas;
porém as choradas
doces me parecem.
Correi, doces águas,
que, se em vós me enlevo,
não doem as mágoas
que no peito levo.


Nota:
a lançar as águas – alcançar as águas

* Luís Cília – voz e guitarra
Marc Vic – guitarra
François Rabbath – contrabaixo
Produção – Moshé Naïm
Gravado nos Studios Europa-Sonor, Paris



CANÇÃO X



Poema de Luís de Camões (in "Rimas", org. Fernão Rodrigues Lobo Soropita, Lisboa, 1595; "Rimas", texto estabelecido e prefaciado por Álvaro Júlio da Costa Pimpão, Coimbra: Universidade de Coimbra, 1953, Coimbra: Livraria Almedina, 2005)
Dito por Luís Miguel Cintra* (in CD "Luís de Camões: 10 Canções ditas por Luís Miguel Cintra", Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1995, reed. livro/CD, Presente, 2011)




Vinde cá, meu tão certo secretário
dos queixumes que sempre ando fazendo,
papel, com que a pena desafogo!
As sem-razões digamos que, vivendo,
me faz o inexorável e contrário
Destino, surdo a lágrimas e a rogo.
Deitemos água pouca em muito fogo;
acenda-se com gritos um tormento
que a todas as memórias seja estranho.
Digamos mal tamanho
a Deus, ao mundo, à gente e, enfim, ao vento,
a quem já muitas vezes o contei,
tanto debalde como o conto agora;
mas, já que para errores fui nacido,
vir este a ser um deles não duvido.
Que, pois já de acertar estou tão fora,
não me culpem também, se nisto errei.
Sequer este refúgio só terei:
falar e errar sem culpa, livrte.
Triste quem de tão pouco está contente!

Já me desenganei que de queixar-me
não se alcança remédio; mas quem pena,
forçado lhe é gritar se a dor é grande.
Gritarei; mas é débil e pequena
a voz para poder desabafar-me,
porque nem com gritar a dor se abrande.
Quem me dará sequer que fora mande
lágrimas e suspiros infinitos
iguais ao mal que dentro n'alma mora?
Mas quem pode algũa hora
medir o mal com lágrimas ou gritos?
Enfim, direi aquilo que me ensinam
a ira, a mágoa, e delas a lembrança,
que é outra dor por si, mais dura e firme.
Chegai, desesperados, para ouvir-me,
e fujam os que vivem de esperança
ou aqueles que nela se imaginam,
porque Amor e Fortuna determinam
de lhe darem poder para entenderem,
à medida dos males que tiverem.

Quando vim da materna sepultura
de novo ao mundo, logo me fizeram
Estrelas infelices obrigado;
com ter livre alvedrio, mo não deram,
que eu conheci mil vezes na ventura
o melhor, e o pior segui, forçado.
E, para que o tormento conformado
me dessem com a idade, quando abrisse
inda menino, os olhos, brandamente,
mandam que, diligente,
um Menino sem olhos me ferisse.
As lágrimas da infância já manavam
com ũa saudade namorada:
o som dos gritos, que no berço dava,
já como de suspiros me soava.
Co a idade e Fado estava concertado;
porque quando, por caso, me embalavam,
se versos de Amor tristes me cantavam,
logo me adormecia a natureza,
que tão conforme estava co a tristeza.

Foi minha ama ũa fera, que o destino
não quis que mulher fosse a que tivesse
tal nome para mim; nem a haveria.
Assi criado fui, porque bebesse
o veneno amoroso, de menino,
que na maior idade beberia,
e, por costume, não me mataria.
Logo então vi a imagem e semelhança
daquela humana fera tão fermosa,
suave e venenosa,
que me criou aos peitos da esperança;
de que eu vi despois o original,
que de todos os grandes desatinos
faz a culpa soberba e soberana.
Parece-me que tinha forma humana,
mas cintilava espíritos divinos.
Um meneio e presença tinha tal
que se vangloriava todo o mal
na vista dela; a sombra, co a viveza,
excedia o poder da Natureza.

Não sei como sabia estar roubando
cos raios das entranhas, que fugiam
por ela, pelos olhos sutilmente!
Pouco a pouco invencíveis me saíam,
bem como do véu húmido exalando
está o sutil humor o Sol ardente.
Enfim, o gesto puro e transparente,
para quem fica baixo e sem valia
deste nome de belo e de fermoso;
o doce e piadoso
mover de olhos, que as almas suspendia
foram as ervas mágicas, que o Céu
me fez beber; as quais, por longos anos,
noutro ser me tiveram transformado,
e tão contente de me ver trocado
que as mágoas enganava cos enganos;
e diante dos olhos punha o véu
que me encobrisse o mal, que assi creceu,
como quem com afagos se criava
daquele para quem crecido estava.

Que género tão novo de tormento
teve Amor, que não fosse, não somente
provado em mim, mas todo executado?
Implacáveis durezas, que o fervente
desejo, que dá força ao pensamento,
tinham de seu propósito abalado,
e de se ver, corrido e injuriado;
aqui, sombras fantásticas, trazidas
de algũas temerárias esperanças;
as bem-aventuranças
nelas também pintadas e fingidas;
mas a dor do desprezo recebido,
que a fantasia me desatinava,
estes enganos punha em desconcerto;
aqui, o adevinhar e o ter por certo
que era verdade quanto adevinhava,
e logo o desdizer-se, de corrido;
dar às cousas que via outro sentido,
e para tudo, enfim, buscar razões;
mas eram muitas mais as sem-razões.

Pois quem pode pintar a vida ausente,
com um descontentar-me quanto via,
e aquele estar tão longe donde estava;
o falar, sem saber o que dezia;
andar, sem ver por onde, e juntamente
suspirar sem saber que suspirava?
Pois quando aquele mal me atormentava
e aquela dor que das Tartáreas águas
saiu ao mundo, e mais que todas dói,
que tantas vezes soe
duras iras tornar em brandas mágoas;
agora, co furor da mágoa irado,
querer e não querer deixar de amar,
e mudar noutra parte por vingança
o desejo privado de esperança,
que tão mal se podia já mudar;
agora, a saudade do passado
tormento, puro, doce e magoado,
fazia converter estes furores
em magoadas lágrimas de amores.

Que desculpas comigo que buscava
quando o suave Amor me não sofria
culpa na cousa amada, e tão amada!
Enfim, eram remédios que fingia
o medo do tormento que ensinava
a vida a sustentar-se, de enganada.
Nisto ũa parte dela foi passada,
na qual se tive algum contentamento
breve, imperfeito, tímido, indecente,
não foi senão ste
de longo e amaríssimo tormento.
Este curso contino de tristeza,
estes passos tão vãmente espalhados,
me foram apagando o ardente gosto
que tão de siso n'alma tinha posto,
daqueles pensamentos namorados
em que eu criei a tenra natureza,
que do longo costume da aspereza,
contra quem força humana não resiste,
se converteu no gosto de ser triste.

Dest'arte a vida noutra fui trocando;
eu não, mas o destino fero, irado,
que eu ainda assi por outra não trocara.
Fez-me deixar o pátrio ninho amado,
passando o longo mar, que ameaçando
tantas vezes me esteve a vida cara.
Agora, exprimentando a fúria rara
de Marte, que cos olhos quis que logo
visse e tocasse o acerbo fruto seu
(e neste escudo meu
a pintura verão do infesto fogo);
agora, peregrino vago e errante,
vendo nações, linguagens e costumes,
Céus vários, qualidades diferentes,
só por seguir com passos diligentes
a ti, Fortuna injusta, que consumes
as idades, levando-lhe diante
ũa esperança em vista de diamante,
mas quando das mãos cai se conhece
que é frágil vidro aquilo que aparece.

A piadade humana me faltava,
a gente amiga já contrária via,
no primeiro perigo; e, no segundo,
terra em que pôr os pés me falecia,
ar para respirar se me negava,
e faltavam-me, enfim, o tempo e o mundo.
Que segredo tão árduo e tão profundo:
nacer para viver, e para a vida
faltar-me quanto o mundo tem para ela!
E não poder perdê-la,
estando tantas vezes já perdida!
Enfim, não houve transe de fortuna,
nem perigos, nem casos duvidosos,
injustiças daqueles, que o confuso
regimento do mundo, antigo abuso,
faz sobre os outros homens poderosos,
que eu não passasse, atado à grã coluna
do sofrimento meu, que a importuna
perseguição de males em pedaços
mil vezes fez, à força de seus braços.

Não conto tanto males como aquele
que, despois da tormenta procelosa,
os casos dela conta em porto ledo;
que inda agora a Fortuna flutuosa
a tamanhas misérias me compele,
que de dar um só passo tenho medo.
Já de mal que me venha não me arredo,
nem bem que me faleça já pretendo,
que para mim não vale astúcia humana;
de força soberana,
da Providência, enfim, divina, pendo.
Isto que cuido e vejo, às vezes tomo
para consolação de tantos danos.
Mas a fraqueza humana, quando lança
os olhos no que corre, e não alcança
senão memória dos passados anos,
as águas que então bebo, e o pão que como,
lágrimas tristes são, que eu nunca domo
senão com fabricar na fantasia
fantásticas pinturas de alegria.

Que se possível fosse, que tornasse
o tempo para trás, como a memória,
pelos vestígios da primeira idade,
e de novo tecendo a antiga história
de meus doces errores, me levasse
pelas flores que vi da mocidade;
e a lembrança da longa saudade
então fosse maior contentamento,
vendo a conversação leda e suave,
onde ũa e outra chave
esteve de meu novo pensamento,
os campos, as passadas, os sinais,
a fermosura, os olhos, a brandura,
a graça, a mansidão, a cortesia,
a sincera amizade, que desvia
toda a baixa tenção, terrena, impura,
como a qual outra algũa não vi mais...
Ah! vãs memórias, onde me levais
o fraco coração, que ainda não posso
domar este tão vão desejo vosso?

Nõ mais, Canção, nõ mais; que irei falando,
sem o sentir, mil anos. E se acaso
te culparem de larga e de pesada,
não pode ser (lhe dize) limitada
a água do mar em tão pequeno vaso.
Nem eu delicadezas vou cantando
co gosto do louvor, mas explicando
puras verdades já por mim passadas.
Oxalá foram fábulas sonhadas!


* Luís Miguel Cintra – voz
Gravado no Grande Auditório do Centro Cultural de Belém, Lisboa, por Vasco Pimentel, em 1995
Pós-produzido no Estúdio Grande Som, Lisboa



Babel e Sião



Poema (trova em redondilha maior): Luís de Camões (excerto adaptado) [texto integral >> abaixo]
Música: Luís Cília
Intérprete: Luís Cília* (in LP "La Poésie Portugaise de Nos Jours et de Toujours – 1", Moshé-Naïm, 1967)


[instrumental]

Canta o caminhante ledo
no caminho trabalhoso,
por entre o espesso arvoredo;
e, de noite, o temeroso,
cantando, refreia o medo. [bis]

Canta o preso docte,
os duros grilhões cantando;
canta o segador contente;
e o trabalhador, cantando,
o trabalho menos sente. [bis]

Como poderá cantar
quem em choro banha o peito?
Porque, se quem trabalhar
canta por menos cansar,
eu só descansos enjeito. [bis]

Canta o preso docte,
os duros grilhões cantando;
canta o segador contente;
e o trabalhador, cantando,
o trabalho menos sente. [bis]

[instrumental]


* Luís Cília – voz e guitarra
Marc Vic – guitarra
François Rabbath – contrabaixo
Produção – Moshé Naïm
Gravado nos Studios Europa-Sonor, Paris



Sôbolos rios que vão

(Luís de Camões, in "Rimas", org. Fernão Rodrigues Lobo Soropita, Lisboa, 1595; "Obras de Luís de Camões", Porto: Lello & Irmão Editores, 1970 – p. 711-721)


Sôbolos rios que vão
por Babilónia, me achei,
onde sentado chorei
as lembranças de Sião,
e quanto nela passei.
Ali o rio corrente
de meus olhos foi manado;
e tudo bem comparado:
Babilónia ao mal presente,
Sião ao tempo passado.

Ali, lembranças contentes
na alma se representam,
e minhas cousas ausentes
se fizeram tão presentes,
como se nunca passaram.
Ali, depois de acordado,
co rosto banhado em água,
deste sonho imaginado,
vi que todo o bem passado
não é gosto, mas é mágoa.

E vi que todos os danos
se causavam das mudanças,
e as mudanças dos anos;
onde vi quantos enganos
faz o tempo às esperanças.
Ali vi o maior bem
quão pouco espaço que dura,
o mal quão depressa vem,
e quão triste estado tem
quem se fia da ventura.

Vi aquilo que mais val
que então se entende milhor
quando mais perdido for;
vi ao bem suceder mal,
e ao mal muito pior.
E vi com muito trabalho
comprar arrependimento;
vi nenhum contentamento,
e vejo-me a mim, que espalho
tristes palavras ao vento.

Bem são rios estas águas
com que banho este papel;
bem parece esta scruel
variedade de mágoas
a confusão de Babel.
Como homem que, por exemplo
dos transes em que se achou,
despois que a guerra deixou,
pelas paredes do templo
suas armas pendurou:

assi, despois que assentei
que tudo a tempo gastava,
da tristeza que tomei,
nos salgueiros pendurei
os órgãos com que cantava.
Aquele instrumento ledo
deixei da vida passada,
dizendo: — «Música amada,
deixo-vos neste arvoredo
à memória consagrada.

Frauta minha que, tangendo,
os montes fazíeis vir
para onde estáveis, correndo;
e as águas, que iam descendo,
tornavam logo a subir;
jamais vos não ouvirão
os tigres, que se amansavam;
e as ovelhas, que pastavam,
das ervas se fartarão
que por vos ouvir deixavam.

Já não fareis docte
em rosas tornar abrolhos
na ribeira florescente;
nem poreis freio à corrente,
e mais, se for dos meus olhos.
Não movereis a espessura,
nem podereis já trazer
atrás vós a fonte pura,
pois não pudestes mover
desconcertos da ventura.

Ficareis oferecida
à Fama que sempre vela,
frauta de mim tão querida;
porque, mudando-se a vida,
se mudam os gostos dela.»
Acha a tenra mocidade
prazeres acomodados,
e logo a maior idade
já sente por pouquidade
aqueles gostos passados.

Um gosto que hoje se alcança,
amanhã já o não vejo;
assi nos traz a mudança
de esperança em esperança
e de desejo em desejo.
Mas em vida tão escassa
que esperança será forte?
Fraqueza da humana sorte,
que, quanto da vida passa,
está receitando a morte!

Mas deixar nesta espessura
o canto da mocidade,
não cuide a gente futura
que será obra da idade
o que é força da ventura.
Que idade, tempo, o espanto
de ver quão ligeiro passe,
nunca em mim puderam tanto
que, posto que deixe o canto,
a causa dele deixasse.

Mas em tristezas e enojos,
em gosto e contentamento,
por sol, por neve, por vento,
terné presente à los ojos
por quien muero tan contento.
Órgãos e frauta deixava,
despojo meu tão querido,
no salgueiro que ali estava,
que para troféu ficava
de quem me tinha vencido.

Mas lembranças de afeição
que ali cativo me tinha,
me perguntaram então
que era da música minha
que eu cantava em Sião.
Que foi daquele cantar,
das gentes tão celebrado?
Porque o deixava de usar,
pois sempre ajuda a passar
qualquer trabalho passado?

Canta o caminhante ledo
no caminho trabalhoso,
por entre o espesso arvoredo;
e, de noite, o temeroso,
cantando, refreia o medo.
Canta o preso docte,
os duros grilhões tocando;
canta o segador contente;
e o trabalhador, cantando,
o trabalho menos sente.

Eu, que estas cousas senti
na alma, de mágoas tão cheia,
como dirá, respondi,
quem tão alheio está de si
doce canto em terra alheia?
Como poderá cantar
quem em choro banha o peito?
Porque, se quem trabalhar
canta por menos cansar,
eu só descansos enjeito.

Que não parece razão
nem seria cousa idónea,
por abrandar a paixão,
que cantasse em Babilónia
as cantigas de Sião.
Que, quando a muita graveza
da saudade quebrante
esta vital fortaleza,
antes moura de tristeza
que, por abrandá-la, cante.

Que, se o fino pensamento
só na tristeza consiste,
não tenho medo ao tormento:
que morrer de puro triste,
que maior contentamento?
Nem na frauta cantarei
o que passo, e passei já,
nem menos o escreverei,
porque a pena cansará,
e eu não descansarei.

Que, se vida tão pequena
se acrecenta em terra estranha,
e se Amor assim o ordena,
razão é que canse a pena
de escrever pena tamanha.
Porém se, pera assentar
o que sente o coração,
a pena já me cansar,
não canse para voar
a memória em Sião.

Terra bem-aventurada,
se, por algum movimento,
da alma me fores mudada,
minha pena seja dada
a perpétuo esquecimento.
A pena deste desterro,
que eu mais desejo esculpida
em pedra ou em duro ferro,
essa nunca seja ouvida,
em castigo de meu erro.

E se eu cantar quiser,
em Babilónia sujeito,
Hierusalém, sem te ver,
a voz, quando a mover,
se me congele no peito.
A minha língua se apegue
às fauces, pois te perdi,
se, enquanto viver assi,
houver tempo em que te negue
ou que me esqueça de ti.

Mas ó tu, terra de Glória,
se eu nunca vi tua essência,
como me lembras na ausência?
Não me lembras na memória,
senão na reminiscência.
Que a alma é tábua rasa,
que, com a escrita doutrina
celeste, tanto imagina,
que voa da própria casa
e sobe à pátria divina.

Não é, logo, a saudade
das terras onde naceu
a carne, mas é do Céu,
daquela santa cidade
donde esta alma descendeu.
E aquela humana figura,
que cá me pode alterar,
não é quem se há-de buscar:
é raio de Fermosura,
que só se deve de amar.

Que os olhos e a luz que ateia
o fogo que cá sujeita,
não do Sol, mas da candeia,
é sombra daquela Ideia,
que em Deus está mais perfeita.
E os que cá me cativaram,
são poderosos afeitos
que os corações têm sujeitos;
sofistas que me ensinaram
maus caminhos por direitos.

Destes o mando tirano
me obriga, com desatino,
a cantar, ao som do dano,
cantares de amor profano
por versos de amor divino.
Mas eu, lustrado co santo
Raio, na terra de dor,
de confusão e de espanto,
como hei-de cantar o canto
que se deve ao Senhor?

Tanto pode o benefício
da Graça, que dá saúde,
que ordena que a vida mude;
e o que eu tomei por vício
me faz grau pera a virtude;
e faz que este natural
amor, que tanto se preza,
suba da sombra ao Real,
da particular beleza
para a Beleza geral.

Fique logo pendurada
a frauta com que tangi,
ó Hierusalém sagrada,
e tome a lira dourada
para só cantar de ti!
Não cativo e ferrolhado
na Babilónia infernal,
mas dos vícios desatado,
e cá desta a ti levado,
Pátria minha natural.

E se eu mais der a cerviz
a mundanos acidentes,
duros, tiranos e urgentes,
risque-se quanto já fiz
do grão livro dos viventes.
E, tomando já na mão
a lira santa, e capaz
doutra mais alta invenção,
cale-se esta confusão,
cante-se a visão da paz.

Ouça-me o pastor e o rei,
retumbe este acento santo,
mova-se no mundo espanto,
que do que já mal cantei
a palinódia já canto.
A vós só me quero ir,
Senhor e grão Capitão
da alta torre de Sião,
à qual não posso subir
se me vós não dais a mão.

No grão dia singular
que na lira o douto som
Hierusalém celebrar,
lembrai-vos de castigar
os ruins filhos de Edom.
Aqueles que tintos vão
no nobre sangue inocente,
soberbos co poder vão,
arrasá-los igualmente,
conheçam que humanos são.

E aquele poder tão duro
dos afeitos com que venho,
que encendem alma e engenho,
que já me entraram o muro
do livre alvidrio que tenho;
estes, que tão furiosos
gritando vêm a escalar-me,
maus espíritos danosos,
que querem como forçosos
do alicerce derrubar-me;

derrubai-os, fiquem sós,
de forças fracos, imbeles,
porque não podemos nós
nem com eles ir a Vós,
nem sem Vós tirar-nos deles.
Não basta minha fraqueza
para me dar defensão,
se Vós, santo Capitão,
nesta minha fortaleza
não puserdes guarnição.

E tu, ó carne que encantas,
filha de Babel tão feia,
toda de misérias cheia,
que mil vezes te levantas
contra quem te senhoreia:
beato só pode ser
quem co a ajuda celeste
contra ti prevalecer,
e te vier a fazer
o mal que lhe tu fizeste.

Quem com disciplina crua
se fere mais que ũa vez,
cuja alma, de vícios nua,
faz nódoas na carne sua,
que já a carne na alma fez.
E beato quem tomar
seus pensamentos recentes
e, em nacendo, os afogar,
por não virem a parar
em vícios graves e urgentes.

Quem com eles logo der
na pedra do furor santo,
e, batendo, os desfizer
na Pedra, que veio a ser
enfim cabeça do Canto.
Quem logo, quando imagina
nos vícios da carne má,
os pensamentos declina
àquela Carne divina
que na Cruz esteve já.

Quem do vil contentamento
cá deste mundo visível,
quanto ao homem for possível,
passar logo o entendimento
para o mundo inteligível;
ali achará alegria,
em tudo perfeita e cheia
de tão suave harmonia
que, nem por pouca, recreia,
nem, por sobeja, enfastia;

ali verá tão profundo
mistério na Suma Alteza,
que, vencida a natureza,
os mores faustos do mundo
julgue por maior baixeza.
Ó tu, divino aposento,
minha pátria singular,
se só com te imaginar,
tanto sobe o entendimento,
que fará se em ti se achar?

Ditoso quem se partir
para ti, terra excelente,
tão justo e tão penitente
que, despois de a ti subir
lá descanse eternamente.



Alma minha gentil, que te partiste



Poema (soneto): Luís de Camões (in "Rimas", org. Fernão Rodrigues Lobo Soropita, Lisboa, 1595; "Obras de Luís de Camões", Porto: Lello & Irmão Editores, 1970 – p. 9)
Música: Luís Cília
Intérprete: Luís Cília* (in LP "La Poésie Portugaise de Nos Jours et de Toujours – 1", Moshé-Naïm, 1967)


Alma minha gentil, que te partiste
tão cedo desta vida, descontente,
repousa lá no Céu eternamente,
e viva eu cá na terra sempre triste.

Se lá no assento etéreo, onde subiste,
memória desta vida se consente,
não te esqueças daquele amor ardente
que já nos olhos meus tão puro viste.

E se vires que pode merecer-te
alguma coisa a dor que me ficou
da mágoa, sem remédio, de perder-te,

roga a Deus, que teus anos encurtou,
que tão cedo de cá me leve a ver-te,
quão cedo de meus olhos te levou.


Nota:
No manuscrito da "Década VIII", atribuído a Diogo do Couto, lê-se: «Vindo de lá [da China] se foi perder na costa de Sião [Tailândia], onde se salvaram todos despidos e o Camões por dita escapou com as suas "Lusíadas", como ele diz nelas, e ali se afogou ũa moça china muito fermosa com que vinha embarcado e muito obrigado, e em terra fez sonetos à sua morte em que entrou aquele que diz: "Alma minha gentil, que te partiste...»

* Luís Cília – voz e guitarra
Marc Vic – guitarra
François Rabbath – contrabaixo
Produção – Moshé Naïm
Gravado nos Studios Europa-Sonor, Paris
URL: http://www.luiscilia.com/



Capa do LP "La Poésie Portugaise de Nos Jours et de Toujours – 1", de Luís Cília (Moshé-Naïm, 1967).
Fotografia – Ludwik Lewin.
Concepção – Henri Matchavariani.



Capa da antologia em CD "La Poésie Portugaise de Nos Jours et de Toujours", de Luís Cília (Moshé-Naïm/EMEN, 1996).
Pintura (à esquerda) – Maria Helena Vieira da Silva.
Fotografia (à direita) – Alain Appéré.



Capa do CD "Luís de Camões: 10 Canções ditas por Luís Miguel Cintra" (Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1995).
Concepção – Cristina Reis.

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Outros artigos com poesia de Luís de Camões:
Camões recitado e cantado
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