30 abril 2025

Joan Manuel Serrat: "Cantares" (Antonio Machado e Joan Manuel Serrat)


© EFE/Arquivo Díaz Casariego (in https://efe.com/)
O poeta andaluz Antonio Machado durante a entrevista conduzida pelo jornalista Ángel Lázaro, em Madrid, Junho de 1927.


«Ontem, sacudindo a letargia de um outro apagão lento e longo, Joan Manuel Serrat soltou a mediterrânica voz com a qual honrada e garbosamente chegou a velho e com ela encheu o nobre salão da Real Academia Espanhola. Serrat cantou quatro canções de Machado, Antonio Machado, o poeta sevilhano de quem se celebram os 150 anos de nascimento. Serrat tem caminhado longa e fraternalmente com aquele cujos versos não param de caminhar em nós. Foi a voz de Serrat que deu mais vastidão, mais lonjura, aos versos do mais célebre poema de Machado, Cantares, que confrontam o suposto caminhante que levamos às costas. "Caminhante, não há caminho", avisa Machado pela voz do catalão. Há, no álbum Bienaventurados, de 1987, uma canção de Serrat que nos fala do velho que cada um de nós leva às costas e essa é, também, uma canção que fala de caminhos ("se fossem pondo luzes no caminho / à medida que o coração se acobarda / e os anjos da guarda / dessem sinais de vida")...
Ontem, Serrat cantou quatro poemas de Machado, acompanhado pelo pianista Ricardo Millares. E os que o escutaram no salão nobre da Real Academia Espahola ouviram ainda, lido pelo actor José Sacristán, o discurso de Machado, escrito para ser lido na cerimónia de entronização académica, mas até agora nunca proferido. Porque as circunstâncias ditaram que Machado se fizesse a outros caminhos, adiando o momento da honraria e do seu cerimonial.
Machado conheceu dois exílios. Um ditado pela morte de Leonor, sua amada, que o levou a despedir-se dos campos de Sória ("Adeus, campos de Sória / já não posso cantar-vos"). Outro que o levou, coração republicano em alvoroço, seis dias atravessando os Pirenéus, em fuga para França, no auge da Guerra Civil. Serrat haveria de cantar esse fim de caminho em Coulliure, numa canção inesquecível: "sopravam ventos do Sul / e o homem empreendeu viagem. / O seu orgulho, um pouco de fé e um gosto amargo / foram sua bagagem".
A cerimónia de ontem na Real Academia Espanhola revela-nos um discurso que nunca fora lido pelo seu autor, entretanto lançado ao caminho sem regresso.
O discurso de Machado perguntava, perguntava-nos: "O que é a poesia?". Essa é, também, uma pergunta que abre caminhos.
Como numa bela canção portuguesa, uma bela cantiga de um marginal do século XIX, ela mostra-nos, com a solenidade necessária, que "os caminhos nunca acabam".
Eis um formidável exercício para um dia como este, sacudindo a letargia de um apagão lento e longo, resgatando do vento onde nos perdemos deles, poemas e canções que falem de caminhos, porque "qualquer caminho leva a toda a parte".» [Fernando Alves, "Nos 150 anos de Machado", in "Os Dias que Correm", 30 Abr. 2025]


Qualquer uma das canções de Joan Manuel Serrat com versos do poeta Antonio Machado a que Fernando Alves faz alusão teria sido o remate perfeito à crónica de hoje aquando da transmissão pela Antena 1 no programa da manhã. "Teria" se quem manda no canal tivesse real empenho na prestação de bom serviço público...
Alguns ouvintes terão ficado com vontade de ouvir "Cantares" que inclui o verso "se hace camino al andar" ("faz-se caminho ao andar", segundo a tradução de José Bento), o mais conhecido de Antonio Machado, bastíssimas vezes citado, ainda que nem sempre devidamente compreendido no seu significado mais profundo e filosófico. A pensar especialmente nesses ouvintes desconsiderados pela rádio que pagam, aqui deixamos "Cantares", na interpretação de Joan Manuel Serrat com música da sua autoria sobre poema compósito de Antonio Machado (excertos de "Proverbios y Cantares", infra apresentados) e do próprio compositor. Boa escuta!



Cantares



Versos: Antonio Machado (de "Proverbios y Cantares" >> abaixo] e Joan Manuel Serrat
Música: Joan Manuel Serrat
Arranjo: Ricardo Miralles
Intérprete: Joan Manuel Serrat* (in LP "Dedicado a Antonio Machado, Poeta", Novola, 1969, reed. Zafiro, 1987)




Todo pasa y todo queda,
pero lo nuestro es pasar,
pasar haciendo caminos,
caminos sobre la mar.

Nunca perseguí la gloria,
ni dejar en la memoria
de los hombres mi canción;
yo amo los mundos sutiles,
ingrávidos y gentiles
como pompas de jabón.
Me gusta verlos pintarse
de sol y grana, volar
bajo el cielo azul, temblar
súbitamente y quebrarse.

Nunca perseguí la gloria...

Caminante, son tus huellas
el camino, y nada más;
caminante, no hay camino,
se hace camino al andar.
Al andar se hace camino,
y al volver la vista atrás
se ve la senda que nunca
se ha de volver a pisar.
Caminante, no hay camino,
sino estelas en la mar.

Hace algún tiempo, en ese lugar
donde hoy los bosques se visten de espinos,
se oyó la voz de un poeta gritar:
caminante, no hay camino,
se hace camino al andar,
golpe a golpe, verso a verso.

Murió el poeta lejos del hogar,
le cubre el polvo de un país vecino.
Al alejarse le vieron llorar,
caminante, no hay camino,
se hace camino al andar,
golpe a golpe, verso a verso.

Cuando el jilguero no puede cantar,
cuando el poeta es un peregrino,
cuando de nada nos sirve rezar,
caminante, no hay camino,
se hace camino al andar,
golpe a golpe, verso a verso. [3x]


* Joan Manuel Serrat – voz
Orquestra dirigida por Ricardo Miralles
URL: https://pt.wikipedia.org/wiki/Joan_Manuel_Serrat
https://jmserrat.com/
https://music.youtube.com/channel/UCrUiOJEGdgQEh6Ol4tPLJNg



PROVERBIOS Y CANTARES

(Antonio Machado, in "Campos de Castilla", Madrid: Renacimiento - Sociedad Anónima Editorial, 1912)


I

Nunca perseguí la gloria
ni dejar en la memoria
de los hombres mi canción;
yo amo los mundos sutiles
ingrávidos y gentiles
como pompas de jabón.
Me gusta verlos pintarse
de sol y grana, volar
bajo el cielo azul, temblar
súbitamente y quebrarse.


XXIX

Caminante, son tus huellas
el camino, y nada más;
caminante, no hay camino,
se hace camino al andar.
Al andar se hace camino,
y al volver la vista atrás
se ve la senda que nunca
se ha de volver a pisar.
Caminante, no hay camino,
sino estelas en la mar.


XLIV

Todo pasa y todo queda,
pero lo nuestro es pasar,
pasar haciendo caminos,
caminos sobre la mar.


[Texto integral em: https://poemas.uned.es/]



PROVÉRBIOS E CANTARES

(Antonio Machado / Tradução: José Bento, in "Antonio Machado: Antologia Poética", Lisboa: Edições Cotovia, 1989 – p. 143 e 147)


XXIX

Caminhante, são teus rastos
o caminho, e nada mais;
caminhante, não há caminho,
faz-se caminho ao andar.
Ao andar faz-se o caminho,
e ao olhar-se para trás
vê-se a senda que jamais
se há-de voltar a pisar.
Caminhante, não há caminho,
somente sulcos no mar.


XLIV

Tudo passa e tudo fica;
mas nossa vida é passar,
passar fazendo caminhos,
caminhos por sobre o mar.



Capa da 1.ª edição do livro "Campos de Castilla", de Antonio Machado (Madrid: Renacimiento - Sociedad Anónima Editorial, 1912)



Capa do LP "Dedicado a Antonio Machado, Poeta", de Joan Manuel Serrat (Novola, 1969).



Capa do livro "Antonio Machado: Antologia Poética", Selecção, tradução, prólogo e notas de José Bento (Lisboa: Edições Cotovia, 1989)
Concepção gráfica – João Botelho

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Outros artigos relacionados com a crónica de Fernando Alves na Antena 1:
Galandum Galundaina: "Chin Glin Din"
"Sons d'Outrora" em viola da terra, por Miguel Pimentel
Vitorino: "Moças de Bencatel" (Conde de Monsaraz)
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A tristeza lusitana
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Fausto Bordalo Dias: "Comboio Malandro" (António Jacinto)
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Amélia Muge: "Ai, Flores"
Afonso Dias: "Os Amigos" (Camilo Castelo Branco)
Pedro Barroso: "Barca em Chão de Lama"
António Gedeão: "Poema do Coração"
Reinaldo Ferreira: "Quero um cavalo de várias cores"
Chico Buarque: "Construção"
João Afonso: "Tangerina dos Algarves"

25 abril 2025

Ary dos Santos: "As Portas Que Abril Abriu"


Ilustração de António Pimentel publicada na primeira edição do livro "As Portas Que Abril Abriu" (Lisboa: Editorial Comunicação, Nov. 1975), tendo como legenda o seguinte dístico de Ary dos Santos:
«Quando a terra for do povo
o povo deita-lhe a mão!».


O Processo Revolucionário em Curso (acrónimo PREC), também conhecido como Período Revolucionário em Curso, designa, em sentido lato, o período de actividades revolucionárias, marcante na História de Portugal do século XX, iniciada com o golpe militar de 25 de Abril de 1974 e concluída com a aprovação e entrada em vigor da nova Constituição da República Portuguesa, em Abril de 1976. A expressão, no entanto, é frequentemente usada para aludir ao período mais agitado e conturbado que decorreu entre 28 de Setembro de 1974, data da frustrada manifestação da denominada «maioria silenciosa» em apoio ao então Presidente da República General António de Spínola (representante dos sectores mais conservadores), que se demitiria do cargo dois dias depois e viria a dirigir a intentona de golpe militar de 11 de Março seguinte (após o que fugiu para Espanha), e o 25 de Novembro de 1975, que ditou o refreamento da via revolucionária mais extremista. Num sentido mais restrito, designa a acção dos partidos, quadros militares e grupos de esquerda que, por entre efervescente agitação popular e alguma desordem, com particular ênfase no chamado Verão Quente de 1975, conduziram o processo político do pós-25 de Abril «rumo ao socialismo». Nesse processo estavam envolvidos militantes de uma vasta franja do espectro partidário de esquerda, desde o Partido Socialista (PS) aos mais radicais, como o maoísta Movimento Reorganizativo do Partido do Proletariado (MRPP). Entre eles, apesar da contenda ideológica, havia coesão cerrada em torno dos chamados "ideais de Abril" e a convicção de que uma verdadeira justiça social seria instalada em Portugal. [adaptado da Wikipédia]

Foi durante o mencionado Verão Quente de 1975, mais precisamente nos meses de Julho e Agosto, que José Carlos Ary dos Santos, animado de fervor revolucionário, escreveu aquele que pode considerar-se, sem exagero, o poema épico do PREC: "As Portas Que Abril Abriu", cuja publicação se deu autonomamente, com ilustrações de António Pimentel, no livro de título homónimo, pela Editorial Comunicação, já no final do ano (no colofão da edição dá-se nota de que «acabou de se imprimir em Novembro de 1975»). Apenso ao livro vinha um disco de vinil de 45 r.p.m. (EP), sob a chancela Discófilo, com a recitação (vigorosa e empolgada) do poema integral pelo próprio autor. Um quarto de século mais tarde, o texto podia parecer extemporâneo e datado, até pelas passagens de cunho mais panfletário... Volvido outro quarto de século, essa percepção desvaneceu-se consideravelmente ante a reaproximação, entretanto ocorrida, do país ao que era antes do 25 de Abril de 1974, patente na degradação das condições de vida da maioria da população (autóctone), a par da gradual falência das funções sociais do Estado (conquistas de Abril), principalmente nas áreas da saúde, do ensino e da habitação, que afecta sobretudo as pessoas economicamente mais débeis. Em face de tal situação, muitas das denúncias que Ary dos Santos faz em "As Portas Que Abril Abriu" são hoje assaz pertinentes, pelo que a audição/leitura do poema, quase cinquenta anos decorridos sobre a primeira edição, se justifica plenamente e se recomenda – a fim de que cresçam e se fortaleçam as vontades que impeçam que as portas que Abril abriu alguma vez sejam cerradas.

O registo ora destacado é um dos que poderia ouvir-se na Antena 1 por estes dias do cinquentenário do PREC, se acaso existisse na grelha um apontamento regular de poesia dita/recitada, fazendo jus à mui honrosa tradição do canal generalista da rádio do Estado nesse domínio (desde os primórdios, na década de 1930, até 2003, ano em que se aposentou António Cardoso Pinto, que vinha mantendo a memorável rubrica "À Esquina do Mundo"). Quanto mais tempo vão os ouvintes da Antena 1 que apreciam poesia (ou aprenderiam a apreciá-la) ter de esperar por essa rubrica diária (ou de segunda a sexta-feira) reservada às lúcidas, interpelantes e tão necessárias palavras dos poetas?



AS PORTAS QUE ABRIL ABRIU



Poema de José Carlos Ary dos Santos (in "As Portas Que Abril Abriu", Lisboa: Editorial Comunicação, 1975, Lisboa: Edições Avante!, 2022; "Obra Poética", Lisboa: Edições Avante!, 1994 – p. 311-327, 7.ª edição, Lisboa: Edições Avante!, 2017)
Recitado pelo autor* (in EP "As Portas Que Abril Abriu", Discófilo, 1975; CD "As Portas Que Abril Abriu", Edições Avante!, 2004; 2CD "Ary Sempre": CD 1, Movieplay/CNM/Edições Avante!, 2009)




Era uma vez um país
onde entre o mar e a guerra
vivia o mais infeliz
dos povos à beira-terra.

Onde entre vinhas   sobredos
vales   socalcos   searas
serras   atalhos   veredas
lezírias e praias claras
um povo se debruçava
como um vime de tristeza
sobre um rio onde mirava
a sua própria pobreza.

Era uma vez um país
onde o pão era contado
onde quem tinha a raiz
tinha o fruto arrecadado
onde quem tinha o dinheiro
tinha o operário algemado
onde suava o ceifeiro
que dormia com o gado
onde tossia o mineiro
em Aljustrel ajustado
onde morria primeiro
quem nascia desgraçado.

Era uma vez um país
de tal maneira explorado
pelos consórcios fabris
pelo mando acumulado
pelas ideias nazis
pelo dinheiro estragado
pelo dobrar da cerviz
pelo trabalho amarrado
que até hoje já se diz
que nos tempos do passado
se chamava esse país
Portugal suicidado.

Ali nas vinhas   sobredos
vales   socalcos   searas
serras   atalhos   veredas
lezírias e praias claras
vivia um povo tão pobre
que partia para a guerra
para encher quem estava podre
de comer a sua terra.

Um povo que era levado
para Angola nos porões
um povo que era tratado
como a arma dos patrões
um povo que era obrigado
a matar por suas mãos
sem saber que um bom soldado
nunca fere os seus irmãos.

Ora passou-se porém
que dentro dum povo escravo
alguém que lhe queria bem
um dia plantou um cravo.

Era a semente da esperança
feita de força e vontade
era ainda uma criança
mas já era a liberdade.

Era já uma promessa
era a força da razão
do coração à cabeça
da cabeça ao coração.
Quem o fez era soldado
homem novo   capitão
mas também tinha a seu lado
muitos homens na prisão.

Esses que tinham lutado
a defender um irmão
esses que tinham passado
o horror da solidão
esses que tinham jurado
sobre uma côdea de pão
ver o povo libertado
do terror da opressão.

Não tinham armas é certo
mas tinham toda a razão
quando um homem morre perto
tem de haver distanciação

uma pistola guardada
nas dobras da sua opção
uma bala disparada
contra a sua própria mão
e uma força perseguida
que na escolha do mais forte
faz com que a força da vida
seja maior do que a morte.

Quem o fez era soldado
homem novo   capitão
mas também tinha a seu lado
muitos homens na prisão.

Posta a semente do cravo
começou a floração
do capitão ao soldado
do soldado ao capitão.

Foi então que o povo armado
percebeu qual a razão
porque o povo despojado
lhe punha as armas na mão.

Pois também ele   humilhado
em sua própria grandeza
era soldado forçado
contra a pátria portuguesa.

Era preso e exilado
e no seu próprio país
muitas vezes estrangulado
pelos generais senis.

Capitão que não comanda
não pode ficar calado
é o povo que lhe manda
ser capitão revoltado
é o povo que lhe diz
que não ceda e não hesite
— pode nascer um país
do ventre duma chaimite.

Porque a força bem empregue
contra a posição contrária
nunca oprime nem persegue
— é força revolucionária!

Foi então que Abril abriu
as portas da claridade
e a nossa gente invadiu
a sua própria cidade.

Disse a primeira palavra
na madrugada serena
um poeta que cantava
o povo é quem mais ordena.

E então por vinhas   sobredos
vales   socalcos   searas
serras   atalhos   veredas
lezírias e praias claras
desceram homens sem medo
marujos   soldados   "páras"
que não queriam o degredo
dum povo que se separa.
E chegaram à cidade
onde os monstros se acoitavam
era a hora da verdade
para as hienas que mandavam
a hora da claridade
para os sóis que despontavam
e a hora da vontade
para os homens que lutavam.

Em idas   vindas   esperas
encontros   esquinas e praças
não se pouparam as feras
arrancaram-se as mordaças
e o povo saiu à rua
com sete pedras na mão
e uma pedra de lua
no lugar do coração.

Dizia soldado   amigo
meu camarada e irmão
este povo está contigo
nascemos do mesmo chão
trazemos a mesma chama
temos a mesma ração
dormimos na mesma cama
comendo do mesmo pão.
Camarada e meu amigo
soldadinho ou capitão
este povo está contigo
a malta dá-te razão.

Foi esta força sem tiros
de antes quebrar que torcer
esta ausência de suspiros
esta fúria de viver
este mar de vozes livres
sempre a crescer   a crescer
que das espingardas fez livros
para aprendermos a ler
que dos canhões fez enxadas
para lavrarmos a terra
e das balas disparadas
apenas o fim da guerra.

Foi esta força viril
de antes quebrar que torcer
que em vinte e cinco de Abril
fez Portugal renascer.

E em Lisboa   capital
dos novos mestres de Aviz
o povo de Portugal
deu o poder a quem quis.

Mesmo que tenha passado
às vezes por mãos estranhas
o poder que ali foi dado
saiu das nossas entranhas.
Saiu das vinhas   sobredos
vales   socalcos   searas
serras   atalhos   veredas
lezírias e praias claras
onde um povo se curvava
como um vime de tristeza
sobre um rio onde mirava
a sua própria pobreza.

E se esse poder um dia
o quiser roubar alguém
não fica na burguesia
volta à barriga da mãe.
Volta à barriga da terra
que em boa hora o pariu
agora ninguém mais cerra
as portas que Abril abriu.

Essas portas que em Caxias
se escancararam de vez
essas janelas vazias
que se encheram outra vez
e essas celas tão frias
tão cheias de sordidez
que espiavam como espias
todo o povo português.

Agora que já floriu
a esperança na nossa terra
as portas que Abril abriu
nunca mais ninguém as cerra.

Contra tudo o que era velho
levantado como um punho
em Maio surgiu   vermelho
o cravo do mês de Junho.

Quando o povo desfilou
nas ruas em procissão
de novo se processou
a própria revolução.

Mas eram olhos as balas
abraços punhais e lanças
enamoradas as alas
dos soldados e crianças.

E o grito que foi ouvido
tantas vezes repetido
dizia que o povo unido
jamais seria vencido.

Contra tudo o que era velho
levantado como um punho
em Maio surgiu   vermelho
o cravo do mês de Junho.

E então operários   mineiros
pescadores e ganhões
marçanos e carpinteiros
empregados dos balcões
mulheres a dias   pedreiros
reformados sem pensões
dactilógrafos   carteiros
e outras muitas profissões
souberam que o seu dinheiro
era a presa dos patrões.

A seu lado também estavam
jornalistas que escreviam
actores que se desdobravam
cientistas que aprendiam
poetas que estrebuchavam
cantores que não se vendiam
mas enquanto estes lutavam
é certo que não sentiam
a fome com que apertavam
os cintos dos que os ouviam.

Porém cantar é ternura
escrever constrói liberdade
e não há coisa mais pura
do que dizer a verdade.

E uns e outros irmanados
na mesma luta de ideais
ambos sectores explorados
ficaram partes iguais.

Entanto não descansavam
entre pragas e perjúrios
agulhas que se espetavam
silêncios   boatos   murmúrios
risinhos que se calavam
palácios contra tugúrios
fortunas que levantavam
promessas de maus augúrios
os que em vida se enterravam
por serem falsos e espúrios
maiorais da minoria
que diziam silenciosa
e que em silêncio fazia
a coisa mais horrorosa:
minar como um sinapismo
e com ordenados régios
o alvor do socialismo
e o fim dos privilégios.

Foi então   se bem vos lembro
que sucedeu a vindima
quando pisámos Setembro
a verdade veio acima.

E foi um mosto tão forte
que sabia tanto a Abril
que nem o medo da morte
nos fez voltar ao redil.

Ali dissemos   não passa!
E a reacção não passou.
Quem já viveu a desgraça
odeia a quem desgraçou.

Foi a força do Outono
mais forte que a Primavera
que trouxe os homens sem dono
de que o povo estava à espera.

Foi a força dos mineiros
pescadores e ganhões
operários e carpinteiros
empregados dos balcões
mulheres a dias   pedreiros
reformados sem pensões
dactilógrafos   carteiros
e outras muitas profissões
que deu o poder cimeiro
a quem não queria os patrões.

Desde esse dia em que todos
nós repartimos o pão
é que acabaram os bodos
— cumpriu-se a revolução.

Porém em quintas   vivendas
palácios e palacetes
os generais com prebendas
caciques e cacetetes
os que montavam cavalos
para caçarem veados
os que davam dois estalos
na cara dos empregados
os que tinham bons amigos
no consórcio dos sabões
e coçavam os umbigos
como quem coça os galões
os generais subalternos
que aceitavam os patrões
os generais inimigos
os generais garanhões
teciam teias de aranha
e eram mais camaleões
que a lombriga que se amanha
com os próprios cagalhões.
Com generais desta apanha
já não há revoluções.

Por isso   o onze de Março
foi um baile de Tartufos
uma alternância de terços
entre ricaços e bufos.

E tivemos de pagar
com o sangue dum soldado
o preço de já não estar
Portugal suicidado.

Fugiram como cobardes
e para terras de Espanha
os que faziam alardes
dos combates em campanha.

E aqui ficaram de pé
capitães de pedra e cal
os homens que na Guiné
aprenderam Portugal.

Os tais homens que sentiram
que um animal racional
opõe àqueles que o firam
consciência nacional.

Os tais homens que souberam
fazer a revolução
porque na guerra entenderam
o que era a libertação.

Os que viram claramente
e com os cinco sentidos
morrer tanta   tanta gente
que todos ficaram vivos.

Os tais homens feitos de aço
temperado com a tristeza
que envolveram num abraço
toda a história portuguesa.

Essa história tão bonita
e depois tão maltratada
por quem viveu a desdita
da história colonizada.

Dai ao povo o que é do povo
porque o mar não tem patrões.
— Não havia estado novo
nos poemas de Camões!

Havia sim a lonjura
e uma vela desfraldada
para levar a ternura
à distância imaginada.

Foi este lado da história
que os capitães descobriram
que ficará na memória
das naus que de Abril partiram

das naves que transportaram
o nosso abraço profundo
aos povos que agora deram
novos países ao mundo.

Por saberem como é
ficaram de pedra e cal
capitães que na Guiné
descobriram Portugal.

E em sua pátria fizeram
o que deviam fazer:
ao seu povo devolveram
o que o povo tinha a haver:
Bancos   seguros   petróleos
que ficarão a render
ao invés dos monopólios
para o trabalho crescer.
Guindastes   portos   navios
e outras coisas para erguer
antenas   centrais e fios
dum país que vai nascer.

Mesmo que seja com frio
é preciso é aquecer
pensar que somos um rio
que vai dar onde quiser

pensar que somos um mar
que nunca mais tem fronteiras
e havemos de navegar
de muitíssimas maneiras.

No Minho com pés de linho
no Alentejo com pão
no Ribatejo com vinho
na Beira com requeijão
e trocando agora as voltas
ao vira da produção
no Alentejo bolotas
no Algarve maçapão
vindimas no Alto Douro
tomates em Azeitão
azeite da cor do ouro
que é verde ao pé do Fundão
e fica amarelo puro
nos campos do Baleizão.
Quando a terra for do povo
o povo deita-lhe a mão!

É isto a reforma agrária
em sua própria expressão:
a maneira mais primária
de nós termos um quinhão
da semente proletária
da nossa revolução.

Quem a fez era soldado
homem novo   capitão
mas também tinha a seu lado
muitos homens na prisão.

De tudo o que Abril abriu
ainda pouco se disse
um menino que sorriu
uma porta que se abrisse
um pão que se repartiu
um capitão que seguiu
o que a história lhe predisse
e entre vinhas   sobredos
vales   socalcos   searas
serras   atalhos   veredas
lezírias e praias claras
um povo que levantava
sobre um rio de pobreza
a bandeira em que ondulava
a sua própria grandeza!
De tudo o que Abril abriu
ainda pouco se disse
e só nos faltava agora
que este Abril não se cumprisse.
Só nos faltava que os cães
viessem ferrar o dente
na carne dos capitães
que se arriscaram na frente.

Na frente de todos nós
povo soberano e total
que ao mesmo tempo é a voz
e o braço de Portugal.

Ouvi banqueiros   fascistas
agiotas do lazer
latifundiários   machistas
balofos verbos de encher
e outras coisas em istas
que não cabe aqui dizer
que aos capitães progressistas
o povo deu o poder!
E se esse poder um dia
o quiser roubar alguém
não fica na burguesia
volta à barriga da mãe!
Volta à barriga da terra
que em boa hora o pariu
agora ninguém mais cerra
as portas que Abril abriu!

Lisboa, Julho-Agosto de 1975


* Ary dos Santos – voz
Produção – Discófilo
URL: https://pt.wikipedia.org/wiki/Ary_dos_Santos
https://www.museudofado.pt/fado/personalidade/ary-dos-santos
https://music.youtube.com/channel/UC5g45r_3KaXFJbuEI5KE0cg



Capa do livro (com EP) "As Portas Que Abril Abriu", de Ary dos Santos (Lisboa: Editorial Comunicação, Nov. 1975)
Ilustrações – António Pimentel



Capa da nova edição do livro "As Portas Que Abril Abriu", de Ary dos Santos (Lisboa: Edições Avante!, Jan. 2022)
Ilustrações – Filipa Malva



Sobrecapa da 1.ª edição do livro "Obra Poética", de José Carlos Ary dos Santos (Lisboa: Edições Avante!, 1994)
Arranjo gráfico – Colectivo das Edições «Avante!»
Organização e notas – Francisco Melo



Capa da 7.ª edição do livro "Obra Poética", de José Carlos Ary dos Santos (Lisboa: Edições Avante!, Out. 2017)



Capa do CD "As Portas Que Abril Abriu", de Ary dos Santos (Edições Avante!, Jan. 2004)



Capa do duplo CD "Ary Sempre" (Movieplay/CNM/Edições Avante!, Jan. 2009)
Arranjo gráfico – José Monginho
Coordenação e textos – Ruben de Carvalho

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Contrabando: "Verdade ou Mentira?"
Grupo Coral "Os Ganhões de Castro Verde": "Grândola, Vila Morena"
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Natália Correia: "Rascunho de uma Epístola", por Ilda Feteira
Carlos do Carmo: "O Madrugar de um Sonho"
Amália Rodrigues: "Abril" (Manuel Alegre)
Manuel Alegre: "País de Abril", por Mário Viegas
Manuel Freire: "Livre" (Carlos de Oliveira)
Vitorino: "O Capitão dos Tanques"
Teresa Salgueiro: "Liberdade"
José Mário Branco: "Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades"

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Outros artigos com poesia da autoria ou na voz de Ary dos Santos:
Amália: dez anos de saudade
Camões recitado e cantado (II)
Celebrando Carlos Paredes
Elisa Lisboa: "Mulher-Mágoa" (Ary dos Santos)
Poesia trovadoresca adaptada por Natália Correia
Carlos do Carmo: "Fado Varina" (Ary dos Santos)

22 abril 2025

Carlos Mendes: "Terra-Mãe" (José Jorge Letria)


(in https://www.terra.com.br/noticias/climatempo/)


Quando pensamos na situação em que se deixa o planeta às gerações futuras, entramos noutra lógica: a do dom gratuito, que recebemos e comunicamos. Se a Terra nos é dada, não podemos pensar apenas a partir dum critério utilitarista de eficiência e produtividade para lucro individual. Não estamos a falar duma atitude opcional, mas duma questão essencial de justiça, pois a terra que recebemos pertence também àqueles que hão-de vir.
[...]
As previsões catastróficas já não se podem olhar com desprezo e ironia. Às próximas gerações, poderíamos deixar demasiadas ruínas, desertos e lixo. O ritmo de consumo, desperdício e alteração do meio ambiente superou de tal maneira as possibilidades do planeta, que o estilo de vida actual — por ser insustentável — só pode desembocar em catástrofes, como aliás já está a acontecer periodicamente em várias regiões. A atenuação dos efeitos do desequilíbrio actual depende do que fizermos agora, sobretudo se pensarmos na responsabilidade que nos atribuirão aqueles que deverão suportar as piores consequências.
[...]
A educação na responsabilidade ambiental pode incentivar vários comportamentos que têm incidência directa e importante no cuidado do meio ambiente, tais como evitar o uso de plástico e papel, reduzir o consumo de água, diferenciar o lixo, cozinhar apenas aquilo que razoavelmente se poderá comer, tratar com desvelo os outros seres vivos, servir-se dos transportes públicos ou partilhar o mesmo veículo com várias pessoas, plantar árvores, apagar as luzes desnecessárias... Tudo isto faz parte duma criatividade generosa e dignificante, que põe a descoberto o melhor do ser humano. Voltar – com base em motivações profundas – a utilizar algo em vez de o desperdiçar rapidamente pode ser um acto de amor que exprime a nossa dignidade.


               PAPA FRANCISCO
               (passagens dos parágrafos 159, 161 e 211
               da carta encíclica Laudato si', 24 Mai. 2015)


O blogue "A Nossa Rádio" assinala o presente Dia Internacional da Mãe Terra dando destaque à canção "Terra-Mãe", interpretada por Carlos Mendes com música da sua autoria sobre letra de José Jorge Letria. Faz parte do álbum "Triângulo do Mar", um dos trabalhos fundamentais do artista que teve edição em vinil no ano de 1982, sob o selo Triângulo da editora Sassetti, mas – e incompreensivelmente – nunca reeditado em CD. A boa notícia é que foi entretanto, em Fevereiro de 2021, disponibilizada a versão digital nas plataformas de 'streaming'.
Dedicamos este singelo artigo à memória do bom papa Francisco, que ontem nos deixou. É a dedicatória de alguém que não professa o catolicismo (nem qualquer outra confissão religiosa), mas que não é desprovido de discernimento para reconhecer o humanismo do homem Jorge Mario Bergoglio que, na qualidade de chefe da Igreja Católica Apostólica Romana, foi um eminente paladino da causa ambiental – causa vital para a sobrevivência da Humanidade à face da Terra.

Está, acaso, Carlos Mendes representado na 'playlist' da Antena 1? Temos seriíssimas dúvidas de que algo do seu meritório repertório lá conste, a avaliar pela enorme quantidade de lixo sonoro (chamá-lo "música" seria ofender a musa) que pulula naquela lista. Sendo Carlos Mendes um das figuras de primeiro plano da Música Portuguesa, a sua aparente ausência na 'playlist' do canal generalista da rádio do Estado configura uma situação de clamorosa injustiça ao artista e, simultaneamente, uma intolerável sonegação cultural aos ouvintes. A canção "Terra-Mãe", aqui em realce, e outras do primoroso álbum "Triângulo do Mar" clamam pela oportunidade de chegarem aos tímpanos dos hodiernos rádio-ouvintes/contribuintes...



Terra-Mãe



Letra: José Jorge Letria
Música: Carlos Mendes
Intérprete: Carlos Mendes* (in LP "Triângulo do Mar", Triângulo/Sassetti, 1982; reed. digital: World Music Records, 2021)




[instrumental]

Terra-mãe! Terra-mãe! Terra-mãe!...

Tens olhos de água,
Tens brincos de trigo
e um filho em cada mão.

Tens lábios de terra,
Tens dedos de mágoa
e um lugar nesta canção.

És sal tão amargo,
És sonho adiado,
És fruto guardado
desta primavera.

Terra-mãe! Terra-mãe! Terra-mãe! Terra-mãe!...

[instrumental]

Tens corpo de vento
e um rosto de mar
e as cores da alvorada.

Tens nome de guerra
em tempo de paz
que te faz ser tão amada.

És sangue, és mudança,
És data marcada,
És cais de chegada
no dia da esperança.

Terra-mãe! Terra-mãe! Terra-mãe! Terra-mãe!...

[instrumental / coros]


* Carlos Mendes – vozes e crumar
Zézé N'Gambi – bateria
Chico Zé – baixo eléctrico
Mário Jorge – guitarra eléctrica
Quim M'Jojo – tumbadoras e percussão
Emílio Robalo – piano Fender, crumar e oberheim
Fernando Girão, Argentina, Madalena – coros

Direcção musical e produtor delegado – Fernando Girão
Produção – Sassetti
Gravado e misturado no Angel Studio, Lisboa, em Fevereiro de 1982
Técnicos de som – José Manuel Fortes e Rui Novais
Texto sobre o disco em: Grandes discos da música portuguesa: efemérides em 2007
URL: https://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Mendes
https://www.facebook.com/CarlosMendes.Musica/
https://music.youtube.com/channel/UC9NTrNKsDP8bzcqwNLJLy-g
https://music.youtube.com/channel/UCjYpU_PTbPpPI-sjFJDrUFQ
https://www.youtube.com/@DoTempoDosSonhos/videos?query=carlos+mendes



Capa do LP "Triângulo do Mar", de Carlos Mendes (Triângulo/Sassetti, 1982)
Fotografia – Inácio Ludgero
Concepção – José Brandão.

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Artigos relacionados:
Mário Dionísio: "Solidariedade", por Carmen Dolores
Luís Cília: "Tango Poluído"

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Outro artigo com repertório de Carlos Mendes:
Carlos Mendes: "Calçada de Carriche" (António Gedeão)

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Outros artigos com poesia de José Jorge Letria:
A infância e a música portuguesa
Manuel Freire: "O Zeca"
Vitorino: "O Capitão dos Tanques"

18 abril 2025

Ala dos Namorados: "Canção de Ida e Volta" (João Monge)


Nuno Guerreiro – fotografia reproduzida na capa do seu primeiro álbum em nome próprio, "Carta de Amor" (EMI-VC, 1999).


Decorria o ano de 1992. Na altura fazia vozes para os Diva. Uma banda que adorava. A voz era da Natália Casanova. Uma voz de soprano lindíssima e uma mulher extraordinária. Um dia a Natália ia a um ensaio e eu fui acompanhá-la, nem imaginava do que se tratava. Chegámos e a sala era um pequeno auditório, havia muitos músicos no palco. Fiquei algo nervoso, pois não parecia mas era um rapaz bastante tímido em situações fora do comum. Sentámo-nos e só aí é que percebi de quem se tratava. O grande e único Carlos Paredes. Nem queria acreditar, e que emoção. Entretanto a Natália começou a cantar e a puxar por mim para cantar também com ela duma forma descontraída e nem percebi que alguém estava mesmo muito atento ao que ali se passava. E assim foi, ficou algo impressionado com o que estava a ouvir e perguntou de quem era essa voz que vinha lá do fundo da sala. Sabem que mais: o grande génio e mestre Carlos Paredes convidou-me para cantar nos seus próximos concertos no São Luiz e Rivoli do Porto. Eu nem estava bem a perceber e nem queria acreditar no que tinha acontecido ali. Estava a acontecer história! Um grande momento da minha vida! OBRIGADO aos Diva e Natália Casanova por terem proporcionado este grande encontro que mudou a minha vida. OBRIGADO AO GÉNIO, AO MESTRE E AO AMIGO CARLOS PAREDES.
Sabem como foi o convite? "O amigo não quer vir cantar no São Luiz?" Das pessoas mais talentosas e mais humildes que conheci! E que honra e privilégio que a vida me deu! OBRIGADO MEU MESTRE!!! A minha homenagem e agradecimento está por aí a chegar. Fiquem atentos, está quase! Quem quiser assistir a este momento icónico tem aí o link: https://www.youtube.com/watch?v=9OqHXSFwA3s.


     NUNO GUERREIRO, 16 Fev. 2025
     (in https://www.instagram.com/souguerreiromusic/)


Nessa memorável versão de "Cantigas do Maio", a partir do original de José Afonso, que Carlos Paredes quis que Nuno Guerreiro cantasse ao lado de Natália Casanova, também participou o músico Manuel Paulo Felgueiras, tocando órgão e acordeão. E foi na sequência desse casual e venturoso encontro que Nuno Guerreiro veio a receber o convite para ser a voz do grupo Ala dos Namorados, no seio do qual atingiria o zénite do seu percurso artístico, enquanto o timbre de voz se manteve de uma pureza cristalina, fazendo inveja aos angelicais querubins e serafins. Um dos mais perfeitos testemunhos desse extraordinário dom tímbrico de Nuno Guerreiro é a "Canção de Ida e Volta", com letra de João Monge e música de João Gil, que ocupa a posição sétima do alinhamento do álbum "Por Minha Dama", gravado e publicado no primeiro semestre de 1995, sob a chancela da EMI-Valentim de Carvalho. Graças à simplicidade e subtileza do arranjo, a voz de Nuno Guerreiro pôde evidenciar-se e mostrar em plenitude o seu singular e irresistível fascínio. Um portento capaz de nos causar arrepios na espinal medula!
Obrigado, Nuno Guerreiro, pela tocante beleza que trouxe à música portuguesa!

Oxalá as Antenas 1 e 3 tivessem nas respectivas 'playlists' esta maravilhosa "Canção de Ida e Volta" e outras pérolas do período áureo de Nuno Guerreiro!



Canção de Ida e Volta



Letra: João Monge
Música: João Gil
Intérprete: Ala dos Namorados* / voz de Nuno Guerreiro (in CD "Por Minha Dama", EMI-VC, 1995)




Ai amor
O tempo vai e vem
Os meus olhos
Não são de mais ninguém

Quem partiu
Canta o que deixou
Haja alguém
Que mesmo assim cantou

Ai amor
O tempo vai e vem

Estas casas
Não mudarão de cor
São de prata
À hora do Sol-pôr

Corre o vento
Dos lados de Espanha
Ai amor
A ver se me apanha

Estas casas
Não mudarão de cor

Ai amor
O tempo vai e vem
Os meus olhos
Não são de mais ninguém

Volta a rola
Sabe o seu caminho
Volta alguém
Há luz no montinho

Ai amor
O tempo vai e vem


* [Créditos gerais do disco:]
Ala dos Namorados:
Nuno Guerreiro – voz
João Gil – guitarra acústica, percussão e coros
José Moz Carrapa – guitarra acústica, guitarra eléctrica e percussão
Manuel Paulo – piano, piano eléctrico, acordeão, órgão Hammond e coros

Músicos convidados:
Nelson Cascais – contrabaixo
Rui Alves – bateria e percussão
José António Santos – clarinete
Nuno Rodrigues – oboé
Claus Nymark – trombone
Jacinto Santos – tuba
Celso de Carvalho – violoncelo

Arranjos de sopros – Manuel Paulo Felgueiras e João Gil
Produção – Ala dos Namorados
Produção executiva – João Teixeira (EMI-Valentim de Carvalho) e Manuel Moura dos Santos
Gravado e misturado nos Estúdios Valentim de Carvalho, Paço d'Arcos, durante o mês de Janeiro de 1995, por Rafe McKenna, assistido por Jorge Avillez
Editing e masterização – Rafe McKenna, nos Whitfield Street Recording Studios, Londres
URL: https://pt.wikipedia.org/wiki/Ala_dos_Namorados
https://www.facebook.com/AlaDosNamorados/
https://www.youtube.com/@aladosnamorados/videos
https://music.youtube.com/channel/UCCVlQxqjphWgffTFAJ2rN8Q



Capa do CD "Por Minha Dama", do grupo Ala dos Namorados (EMI-VC, 1995)
Fotografia – José Mário Frade (pormenor do painel azulejar da autoria de Jorge Colaço, 1922, patente no Pavilhão Carlos Lopes, em Lisboa, representando a chamada Ala dos Namorados em combate no campo de São Jorge durante a Batalha de Aljubarrota, no dia 14 de Agosto de 1385) [imagem da obra integral infra].
Design gráfico – Roda Dentada



© Alves Gaspar, Jun. 2007 (in https://commons.wikimedia.org/)
[Para ver a imagem em ecrã inteiro, noutra janela, clicar aqui]


Adenda (em 27 Abr. 2025):
João Carlos Callixto também teve a louvável iniciativa de homenagear o malogrado cantor consagrando-lhe uma edição especial do seu programa "Gramofone" (Antena 1), que pode ser escutada, a todo o momento, na plataforma RTP-Play.

17 abril 2025

João Afonso: "Tangerina dos Algarves"


(in https://loja.mondiniplantas.com.br/)


«Desculpai-me se regresso ao poeta Ferreira Gullar, ainda ontem aqui citado. Faço-o por causa das duas tangerinas que tirei do saco, por volta das cinco e meia da manhã, ao mesmo tempo que, na mesa ao lado, Gonçalo Costa Martins retirava, do saco dele, duas tangerinas semelhantes às minhas na cor, mas menos encorpadas. A coincidência levou-nos a imaginar um jogo de damas ou de xadrez, no qual as peças fossem tangerinas de cores diferentes, talvez azuis as dele, ou verdes; vermelhas ou cor de laranja desmaiado as minhas.
Faço-o acima de tudo para abordar singelamente as questões do método, inspirado no modo como o Imortal da Academia explicou, certa vez, as etapas percorridas até nos brindar com o perfume desse preciso poema intitulado "O cheiro das tangerinas". Ele explicou que, estando numa sala, sentiu o cheiro de tangerinas, mil vezes experimentado, mas nunca com aquela fragância tão especial. Usou estas precisas palavras, falando com leitores: "Aquele cheiro, daquela vez, abriu para mim um mundo que eu não sabia qual era". E, nesse momento, ele o afirma, Ferreira Gullar saiu da sala para escrever o poema. Abençoada decisão. O resultado foi o que se sabe, aqueles primeiros versos, "Com raras excepções / os minerais não têm cheiro". É um longo poema de desconcertos: os minerais não respiram e a nada aspiram, ao contrário da trepadeira da casa de São Luís, lá no Maranhão onde o poeta nasceu. "Nunca se acenderá neles" (é outra passagem do poema) "– em sua massa quase eterna – um cheiro de tangerina".
Ferreira Gullar está a explicar aos seus leitores o método que utilizou para chegar ao poema. Ele diz que não sabia sobre o que iria escrever. Sobre "a tangerina cheirosa"? Há risos na sala. E o poeta explica que pegou na enciclopédia e leu tudo o que encontrou sobre tangerinas. Descobriu que a tangerina é "a laranja da China". Depois descobriu que "a laranja da China foi levada para a Califórnia". E eu, lançado a tomar notas numa folha A4, presumo que tal transporte não terá sido sobrecarregado com tarifas semelhantes às de uma guerra comercial futura, tão de alecrim e manjerona, não fora os estragos. E anoto também, lançado já em consultas de ecrã, mandarina, laranja mimosa, mexerica, manjerica... nomes de gomos sumarentos.
Ferreira Gullar, podeis encontrar no YouTube estas suas revelações sobre o método, conta que nessa tarde foi "descobrindo coisas sobre a tangerina, mas o poema não nascia". E ele mergulhado na enciclopédia, descobrindo coisas que não sabia, sobre o enxofre, o único mineral que tem cheiro, ele surpreendendo-se até chegar à música mais secreta, partindo de um "jovem cheiro / que nada tem da noite do gás metano" até ao cheiro daquela fruta inesperada que solta, fechando o poema, "sua notícia matinal".
Às sete e meia desta manhã de intenso perfume nos dedos eu fantasiava um tabuleiro de damas ou de xadrez em que as peças fossem tangerinas de cores improváveis. Em vez de comermos metaforicamente torres, cavalos ou rainhas ao adversário, comeríamos literalmente as peças que lhes conquistássemos.
Mas eis que o ecrã, enciclopédia mais à mão, me revela a improvável tangerina, não tanto pelo cheiro, nem sequer pela cor, a tangerina que talvez tenha escapado à pesquisa de Ferreira Gullar: a tangerina montenegrina. Existe, sim. Produz poucas sementes e isso pode dificultar a montenegrização do fruto. A árvore em que é colhida produz frutos tardios, tem "ramos finos e – estou a citar – quase sem espinhos". Assim a encontrei, em página científica, remetendo para o município brasileiro de Montenegro, onde foi descoberta em 1940, resultante de uma mutação espontânea. O método de Ferreira Gullar pode levar-nos a lugares improváveis. Quando isso acontece, ganhamos o dia. Agora, vou despachar a única tangerina que me resta. Boa Páscoa.» [Fernando Alves, "Tangerina montenegrina", in "Os Dias que Correm", 17 Abr. 2025]


Uma crónica glosando as tangerinas, como a que hoje Fernando Alves leu aos microfones da Antena 1, estava mesmo a pedir que fosse rematada com uma canção alusiva, directa ou indirectamente, àquele citrino cujo nome deriva da cidade magrebina de Tânger. No universo da música portuguesa, duas boas canções se prestavam, em excelente adequação, a tal propósito: "O Primeiro Gomo da Tangerina", de Sérgio Godinho (in CD "Tinta Permanente", EMI-VC, 1993) e "Tangerina dos Algarves", de João Afonso (in CD "Barco Voador", Mercury/Universal Music Portugal, 1999). Escusado será referir que nenhuma delas, nem qualquer outra, foi dada a ouvir aos rádio-ouvintes, que se viram, uma vez mais, torpemente desconsiderados por Nuno Galopim de Carvalho e o seu subordinado Ricardo Soares, indivíduos que valorizam muito mais o descanso e o "não te rales" do que o dever de prestarem bom serviço público a quem lhes garante os (imerecidos) salários.
Das duas canções indicadas, a menos conhecida é a de João Afonso, circunstância que aliada à qualidade intrínseca – belíssima a melodia (concebida pelo próprio intérprete) e muito cativante o arranjo (gizado pelo categorizado guitarrista José Moz Carrapa) – nos motivou a destacá-la no presente artigo. É nossa firme convicção que a esmagadora maioria dos ouvintes da Antena 1 teria apreciado este mimo poético-musical à guisa de epílogo às palavras de Fernando Alves. E o canal generalista da rádio do Estado teria também o ensejo de fazer alguma justiça, ainda que mínima, ao cantautor João Afonso, proscrito que está às mãos de quem gere a 'playlist'.
Eis, pois, a sumarenta e doce "Tangerina dos Algarves" cultivada, com muito primor, por João Afonso. Boa degustação e melhor proveito!



Tangerina dos Algarves



Letra e música: João Afonso Lima
Intérprete: João Afonso* (in CD "Barco Voador", Mercury/Universal Music Portugal, 1999; CD "João Afonso: A Arte e a Música", Universal Music Portugal, 2004)




[instrumental]

Tenho uma rosa p'ra ti
Tenho uma rosa encarnada
Tenho uma rosa no mar
Tenho uma rosa molhada
Circula a noite no tempo
sobre as nossas gargalhadas
Tenho uma rosa p'ra ti
Tenho uma rosa encarnada

Vou sonhar com o teu olhar
oceano de água e mar

Vou fugir com o teu olhar
oceano de água e mar
sobre o mistério

Vou fugir com o teu olhar
oceano de água e mar
sobre o mistério

Em castelos de areia
eu escrevi um nome ao lado
Foi por ti que conheci
a tangerina dos Algarves

Em castelos de areia
eu escrevi um nome ao lado
Foi por ti que conheci
a tangerina dos Algarves

[instrumental]

Anda o Sol por trás da serra
Há cheiro a funcho queimado
E este abanão duma vaga
que chega sem avisar

Vinho rubro a navegar
por segredos do Universo
Desfolho a rosa no rio
p'ra te oferecer com um verso

Vou sentir o teu sabor
oceano de água e mar

Vou sentir com o teu sabor
oceano de água e flor
de tangerina

Vou sentir com o teu sabor
oceano de água e flor
de tangerina

Em castelos de areia
eu escrevi um nome ao lado
Foi por ti que conheci
a tangerina dos Algarves

Em castelos de areia
eu escrevi um nome ao lado
Foi por ti que conheci
a tangerina dos Algarves

[instrumental]


* João Afonso – voz
António Afonso – 2.ª voz
João Frazão – guitarra
José Moz Carrapa – guitarra
António Pedro Vasques – percussão, reco-reco
Músico convidado:
Ricardo J. Dias – acordeão

Produção e arranjos – José Moz Carrapa
Gravado nos Estúdios Valentim de Carvalho, Paço d'Arcos, de 22 de Fevereiro a 21 de Março de 1999
Gravação e masterização – Jorge Avillez
Técnico assistente – Artur David
Misturas – Jorge Avillez e José Moz Carrapa
URL: https://pt.wikipedia.org/wiki/Jo%C3%A3o_Afonso
https://www.facebook.com/JoaoAfonso.musico/
https://www.youtube.com/Jo%C3%A3oAfonsoMusico
https://www.youtube.com/@DoTempoDosSonhos/videos?query=joao+afonso
https://music.youtube.com/channel/UCCmbVQRLE6IHLbp_EYXro7w



Capa do CD "Barco Voador", de João Afonso (Mercury/Universal Music Portugal, 1999)
Fotografia – Augusto Brázio
Design e ilustração – António Afonso e Rita Ventura



Capa da compilação em CD "João Afonso: A Arte e a Música", Universal Music Portugal, 2004)

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Outros artigos com repertório de João Afonso:
A infância e a música portuguesa
Celebrando Natália Correia

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Outros artigos relacionados com a crónica de Fernando Alves na Antena 1:
Galandum Galundaina: "Chin Glin Din"
"Sons d'Outrora" em viola da terra, por Miguel Pimentel
Vitorino: "Moças de Bencatel" (Conde de Monsaraz)
Teresa Silva Carvalho: "Barca Bela" (Almeida Garrett)
António Borges Coelho: "Sou Barco"
Celeste Rodrigues: "Chapéu Preto"
Sérgio Godinho: "Tem Ratos"
Ruy Belo: "E Tudo Era Possível", por Nicolau Santos
Jacques Brel: "J'Arrive"
A tristeza lusitana
Segréis de Lisboa: "Ay flores do verde pino" (D. Dinis)
Manuel D'Oliveira: "O Momento Azul"
Aldina Duarte: "Flor do Cardo" (João Monge)
José Mário Branco: "Inquietação"
Chico Buarque: "Bom Conselho"
Teresa Paula Brito: "Meu Aceso Lume - Meu Amor" (Maria Teresa Horta)
Adriano Correia de Oliveira: "Pensamento" (Manuel Alegre)
Fausto Bordalo Dias: "Comboio Malandro" (António Jacinto)
Grupo Coral "Os Ganhões de Castro Verde" com Luiz Avellar: "As Nuvens Que Andam no Ar"
Amélia Muge: "Ai, Flores"
Afonso Dias: "Os Amigos" (Camilo Castelo Branco)
Pedro Barroso: "Barca em Chão de Lama"
António Gedeão: "Poema do Coração"
Reinaldo Ferreira: "Quero um cavalo de várias cores"
Chico Buarque: "Construção"

03 abril 2025

Chico Buarque: "Construção"




«Por momentos, estive tentado a aviar-me com as postas de pescada eleitorais de um governo em peso junto à banca do peixe. Mas logo me libertei do Bolhão mediático porque o título de uma notícia do "Correio Braziliense" me fez soar dentro da cabeça os versos de uma poderosa canção do Chico.
A notícia do "Correio Braziliense" contava a morte de Cleonilson, catador de recicláveis, apanhado por uma descarga eléctrica na via pública. Foi a sua maneira de morrer "na contramão, atrapalhando o tráfego".
Na verdade, Cleonilson morreu em sentido inverso ao do operário da canção que "flutuou no ar como se fosse um pássaro". As asas dele iam nos calcanhares, quando pisou um fio desencapado no chão, junto a um poste eléctrico em dia de chuva. Foi levado em coma para o hospital da Asa Norte. Há nomes que nos elevam, mesmo em desgraça.
Este nome Cleonilson faz pensar em pontas de lança, mas o mais conhecido Cleonilson que encontrei numa pesquisa breve na internet foi um certo Cleonilson Protásio de Souza (Souza com zê), pós-doutorado em Engenharia Eléctrica (oh, ironia!)
Já o Cleonilson da notícia, sendo catador de recicláveis, raras vezes terá tido direito a tratamento respeitoso de instituições. Mas a Companhia Eléctrica Brasileira, neste contexto, lamentou profundamente "o falecimento do senhor Cleonilson Borges Pimentel".
O "Correio Braziliense" faz um apanhado de casos semelhantes mais recentes, todos de Março, casos de gente que pisa fios desencapados em dias de chuva. Raios sacudindo em plenas águas de Março. Um deles é o de um homem não identificado que fazia uma ligação clandestina, na zona do Sol Nascente. Outro é o de um menino que morreu electrocutado por um fio de alta tensão, durante uma tempestade. Outro é de um técnico de som que montava uma instalação no estádio Mané Garrincha.
A notícia da morte de Cleonilson tem uma frase tocada por uma subtil força electromotriz: explica que o catador de recicláveis "passava pelo local após uma chuva, quando pisou no chão, próximo a um poste e caiu desacordado". Um tipo lê isto "caiu desacordado" e é sacudido por uma aprazível voltagem. Pena que Cleonilson tenha acabado no chão, "feito um pacote tímido". Um quase morto que dá choque.
Tudo nesta notícia tem um não sei quê. Apetece dizer ao repórter no batente: "Deus lhe pague".» [Fernando Alves, "Catador de recicláveis", in "Os Dias que Correm", 3 Abr. 2025]


Das pérolas poético-musicais que Chico Buarque criou – e não foram poucas –, o poema-canção "Construção", publicado em 1971 no LP homónimo sob o selo Philips, é (quase) unanimemente considerada a mais preciosa e resplandecente. Em tal apreciação pesa sobretudo a maneira absolutamente admirável e magistral como o poema foi elaborado e estruturado com versos dodecassilábicos terminados em trissílabos esdrúxulos (nas três primeiras estofes) e em verbos do tipo -ir no infinitivo (no último conjunto de três tercetos rematados com o estribilho-súplica "Deus lhe pague").
A evocação da sublime "Construção", de Chico Buarque, que Fernando Alves fez na sua crónica de hoje era mesmo uma convocação tácita para que lhe fossem dadas honras de transmissão a seguir às suas palavras de homenagem a infortunadas vítimas de electrocussão no Brasil, em sorte idêntica à do operário de construção civil que caído das alturas «se acabou no chão feito um pacote flácido». As honras de radiodifusão eram garantidas se a crónica tivesse sido emitida no âmbito dos "Sinais", na privada TSF-Rádio-Jornal, mas na pública Antena 1 é pedir de mais. Não o seria se Nuno Galopim de Carvalho e o seu subalterno encarregado de conduzir o programa da manhã, Ricardo Soares, fossem pessoas diligentes e sempre empenhadas em prestar o melhor serviço aos ouvintes/contribuintes...



Construção



Letra e música: Chico Buarque (Francisco Buarque de Hollanda)
Intérprete: Chico Buarque* (in LP "Construção", Philips/Phonogram, 1971, reed. Philips/Polygram, 1988; 2CD "Antologia 66/84": CD 1, Universal Music Portugal, 2004)




Amou daquela vez como se fosse a última
Beijou sua mulher como se fosse a última
E cada filho seu como se fosse o único
E atravessou a rua com seu passo tímido
Subiu a construção como se fosse máquina
Ergueu no patamar quatro paredes sólidas
Tijolo com tijolo num desenho mágico
Seus olhos embotados de cimento e lágrima
Sentou pra descansar como se fosse sábado
Comeu feijão com arroz como se fosse um príncipe
Bebeu e soluçou como se fosse um náufrago
Dançou e gargalhou como se ouvisse música
E tropeçou no céu como se fosse um bêbado
E flutuou no ar como se fosse um pássaro
E se acabou no chão feito um pacote flácido
Agonizou no meio do passeio público
Morreu na contramão atrapalhando o tráfego

Amou daquela vez como se fosse o último
Beijou sua mulher como se fosse a única
E cada filho seu como se fosse o pródigo
E atravessou a rua com seu passo bêbado
Subiu a construção como se fosse sólido
Ergueu no patamar quatro paredes mágicas
Tijolo com tijolo num desenho lógico
Seus olhos embotados de cimento e tráfego
Sentou pra descansar como se fosse um príncipe
Comeu feijão com arroz como se fosse o máximo
Bebeu e soluçou como se fosse máquina
Dançou e gargalhou como se fosse o próximo
E tropeçou no céu como se ouvisse música
E flutuou no ar como se fosse sábado
E se acabou no chão feito um pacote tímido
Agonizou no meio do passeio náufrago
Morreu na contramão atrapalhando o público

Amou daquela vez como se fosse máquina
Beijou sua mulher como se fosse lógico
Ergueu no patamar quatro paredes flácidas
Sentou pra descansar como se fosse um pássaro
E flutuou no ar como se fosse um príncipe
E se acabou no chão feito um pacote bêbado
Morreu na contramão atrapalhando o sábado

Por esse pão pra comer, por esse chão pra dormir
A certidão pra nascer e a concessão pra sorrir
Por me deixar respirar, por me deixar existir
Deus lhe pague

Pela cachaça de graça que a gente tem que engolir
Pela fumaça, desgraça, que a gente tem que tossir
Pelos andaimes, pingentes, que a gente tem que cair
Deus lhe pague

Pela mulher carpideira pra nos louvar e cuspir
E pelas moscas-bicheiras a nos beijar e cobrir
E pela paz derradeira que enfim vai nos redimir
Deus lhe pague


* Chico Buarque – voz
Participação especial de:
Tom Jobim, Paulinho Jobim e MPB4

Direcção musical – Magro
Direcção de produção e de estúdio – Roberto Menescal
Gravado nos Estúdios Phonogram, Rio de Janeiro
Técnicos de gravação – Toninho e Mazola
URL: https://www.chicobuarque.com.br/
https://www.facebook.com/ChicoBuarque/
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Capa do LP "Construção", de Chico Buarque (Philips/Phonogram, 1971)
Fotografia – Carlos Leonam
Concepção – Aldo Luz



Capa da compilação em duplo CD "Antologia 66/84" (Universal Music Portugal, 2004).

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Outros artigos com repertório de Chico Buarque:
Em memória de Georges Moustaki (1934-2013)
Celebrando Vinicius de Moraes
Chico Buarque: "Bom Conselho"

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Outros artigos relacionados com a crónica de Fernando Alves na Antena 1:
Galandum Galundaina: "Chin Glin Din"
"Sons d'Outrora" em viola da terra, por Miguel Pimentel
Vitorino: "Moças de Bencatel" (Conde de Monsaraz)
Teresa Silva Carvalho: "Barca Bela" (Almeida Garrett)
António Borges Coelho: "Sou Barco"
Celeste Rodrigues: "Chapéu Preto"
Sérgio Godinho: "Tem Ratos"
Ruy Belo: "E Tudo Era Possível", por Nicolau Santos
Jacques Brel: "J'Arrive"
A tristeza lusitana
Segréis de Lisboa: "Ay flores do verde pino" (D. Dinis)
Manuel D'Oliveira: "O Momento Azul"
Aldina Duarte: "Flor do Cardo" (João Monge)
José Mário Branco: "Inquietação"
Chico Buarque: "Bom Conselho"
Teresa Paula Brito: "Meu Aceso Lume - Meu Amor" (Maria Teresa Horta)
Adriano Correia de Oliveira: "Pensamento" (Manuel Alegre)
Fausto Bordalo Dias: "Comboio Malandro" (António Jacinto)
Grupo Coral "Os Ganhões de Castro Verde" com Luiz Avellar: "As Nuvens Que Andam no Ar"
Amélia Muge: "Ai, Flores"
Afonso Dias: "Os Amigos" (Camilo Castelo Branco)
Pedro Barroso: "Barca em Chão de Lama"
António Gedeão: "Poema do Coração"
Reinaldo Ferreira: "Quero um cavalo de várias cores"