29 outubro 2024
António Borges Coelho: "Sou Barco"
António Borges Coelho (n. 1928), poeta e historiador português.
«Folheio, de novo, em voz alta, o jornal "Região de Leiria", lançando amarras à penúltima página habitualmente dedicada às histórias dos nossos mais velhos. Desta vez, decido ancorar na notícia da exposição que Carlos Santos, carpinteiro naval durante 60 anos, montou na sua garagem, na rua das Arribas do Mar, em Peniche.
O repórter fotográfico Joaquim Dâmaso mostra-nos as paredes da oficina do carpinteiro naval agora reformado: são como redes ao alto que, em vez de peixe, recolhessem pagaias, canas de leme, serrotes, furadeiras. Carlos explica à jornalista Joana Magalhães que nenhuma outra arte em que se trabalhe a madeira exige tantas ferramentas como a carpintaria naval. O homem cujas mãos são agora um mar calmo de onde poderiam zarpar navios alados tem sempre o mar diante dos olhos no seu pequeno santuário do bairro do Visconde. É o mesmo mar que fez soar o fragor da vaga durante a dura vigília de António Borges Coelho, preso em Peniche. "Sou barco abandonado / na praia ao pé do mar", gritou, há muitos anos, o poeta para a carpintaria melódica de Luís Cília e a canção foi em ondas na voz de Adriano. Já Carlos talhava barcos nos troncos das árvores. Também através do seu coração, tal como no poema de Sophia, passou um barco que não pára de seguir, sem ele, o seu caminho. Ele cuida de uma inumerável frota na angra da memória, no porto de abrigo da sua garagem diante do mar. Gravuras antigas, com motivos marítimos, repousam nas paredes como o peixe seco ao sol, nos paneiros.
Quantas árvores terão nascido para ser barco nas suas mãos? Em quantas talhou a sua arte curvilínea entre amuras e anteparas?
O velho carpinteiro naval olha-nos na doca seca de uma página de jornal enquanto explica suavemente a geometria que guiou, a vida toda, o seu formão. "O barco é todo torto", observa. Por isso, o seu ofício cuida de fazer nascer a curva no mastro maciço da árvore. "Do direito temos de fazer torto, é diferente de outras artes da madeira", explica o carpinteiro naval.
E eu fico preso ao sereno olhar de Carlos Santos nesta página de jornal. As mãos dele estão pousadas num cavername encalhado. Ainda que, como ele assegura, apenas um carpinteiro naval permaneça activo em Peniche, imagino o mestre afagando o dorso de um pinheiro manso ou de um carvalho como quem acalenta um navio e o lança a todas as Berlengas do mar.» [Fernando Alves, "O carpinteiro naval", in "Os Dias que Correm", 29 Out. 2024]
«É o mesmo mar que fez soar o fragor da vaga durante a dura vigília de António Borges Coelho, preso em Peniche. "Sou barco abandonado / na praia ao pé do mar", gritou, há muitos anos, o poeta para a carpintaria melódica de Luís Cília e a canção foi em ondas na voz de Adriano.»
O intertexto poético-musical não podia ser mais objectivo e preciso, e Fernando Alves não o fez gratuitamente. O poema "Sou Barco" foi mesmo escrito em Peniche, mais concretamente no tenebroso forte-prisão, quando o seu autor, o poeta e historiador António Borges Coelho, aí esteve encarcerado, durante seis longos anos, por motivos políticos. Ao ler o poema, no livro "Roseira Verde" (1962), Luís Cília, já exilado em Paris, achou por bem musicá-lo e gravá-lo para o seu primeiro álbum, de título genérico "Portugal-Angola: Chants de Lutte", publicado em 1964, sob a chancela Le Chant du Monde. E quando Adriano Correia de Oliveira visitou Luís Cília na Cidade-Luz, aquele tocante "Sou Barco" seria um dos três espécimes que pediria emprestados ao talentoso compositor/intérprete natural de Angola (cidade de Nova Lisboa, actual Huambo) para ele próprio os gravar. E foi essa versão de Adriano, com o sublime arranjo e o primoroso acompanhamento de Rui Pato à viola que mais navegou nas ondas hertzianas portuguesas, como muito apropriadamente alude Fernando Alves. Nomeando o autor do poema, o inspirado compositor e o distinto intérprete por cuja voz aquele "Sou Barco" chegou aos ouvidos de mais gente, o preclaro cronista, além de aproveitar o pretexto para desse modo render homenagem a três figuras gradas da Cultura Portuguesa, teria certamente apreciado e ficado reconhecido se tal gravação servisse de epílogo à sua crónica, quando esta foi difundida hoje de manhã pela Antena 1, a exemplo do que acontecia na TSF-Rádio Jornal. O ouvinte e escrevente destas linhas, ainda assim, não censuraria o locutor de serviço, Ricardo Soares, nem o seu chefe, Nuno Galopim de Carvalho, se um ou outro tivesse optado pela gravação original de Luís Cília ou a sua regravação presente no álbum "Meu País" (1973). Mas nem isso aconteceu. Nadinha de nada! Enfim, para mal dos pecados dos ouvintes e da reputação do serviço público de rádio, o imobilismo e a inércia sobrepuseram-se, uma vez mais, ao zelo e ao brio profissional que deviam ser sempre o timbre de quem vive do dinheiro dos ouvintes/contribuintes.
Para que conste, e como os ouvintes merecem o melhor, o blogue "A Nossa Rádio" proporciona aos que aqui acederem as duas primeiras gravações de "Sou Barco": a original de Luís Cília e a versão de Adriano Correia de Oliveira. Boa escuta!
Sou Barco
Poema: António Borges Coelho (in "Roseira Verde", Lisboa: Edição do autor, 1962)
Música: Luís Cília
Intérprete: Luís Cília (in LP "Portugal-Angola: Chants de Lutte", Le Chant du Monde, 1964)
[Marulhar das ondas / instrumental]
Sou barco abandonado
Na praia ao pé do mar
E os pensamentos são
Meninos a brincar.
Ei-lo que salta bravo
E a onda verde-escura
Desfaz-se em trigo
De raiva e amargura.
Ouço o fragor da vaga
Sempre a bater ao fundo,
Escrevo, leio, penso,
Passeio neste mundo
De seis passos
E o mar a bater ao fundo.
Agora é todo azul,
Com barras de cinzento,
E logo é verde, verde,
Seu brando chamamento.
Ó mar, venha a onda forte
Por cima do areal
E os barcos abandonados
Voltarão a Portugal.
* Luís Cília – voz e guitarra
URL: http://www.luiscilia.com/
https://www.youtube.com/user/LeoMOV/videos
https://music.youtube.com/channel/UCqL_T8TPQ2ffVAKn-v4kN_A
Sou Barco
Poema: António Borges Coelho (in "Roseira Verde", Lisboa: Edição do autor, 1962)
Música: Luís Cília
Arranjo: Rui Pato
Intérprete: Adriano Correia de Oliveira* [in LP "Adriano Correia de Oliveira ("Rosa de Sangue")", Orfeu, 1967, reed. LP "Margem Sul", Orfeu, 1982; EP "Para Que Quero Eu Olhos", Orfeu, 1968; 2LP "Memória de Adriano": LP 1, Orfeu, 1983, reed. Movieplay, 1992; 7CD "Adriano: Obra Completa": CD "A Noite dos Poetas", Movieplay, 1994; 7 livros/CD "Obra Completa de Adriano Correia de Oliveira": vol. 7 -"Menina dos Olhos Tristes: A Noite dos Poetas", Movieplay/Público, 2007]
[instrumental]
Sou barco abandonado
Na praia ao pé do mar
E os pensamentos são
Meninos a brincar.
Ei-lo que salta bravo
E a onda verde-escura
Desfaz-se em trigo
De raiva e amargura.
Oiço o fragor da vaga
Sempre a bater ao fundo,
Escrevo, leio, penso,
Passeio neste mundo
De seis passos
E o mar a bater ao fundo.
Agora é todo azul,
Com barras de cinzento,
E logo é verde, verde,
Seu brando chamamento.
Ó mar, venha a onda forte
Por cima do areal
E os barcos abandonados
Voltarão a Portugal.
[instrumental / assobio]
* Adriano Correia de Oliveira – voz
Rui Pato – viola
Montagem DAT (edição de 1994) – João Pedro Castro, nos Estúdios Namouche, Lisboa
Biografia e discografia em: A Nossa Rádio
URL: https://adrianocorreiadeoliveira.org/
https://www.facebook.com/adrianocorreiadeoliveira/
https://www.youtube.com/user/DoTempoDosSonhos/videos?query=adriano+correia+oliveira
Capa do livro "Roseira Verde", de António Borges Coelho (Lisboa: Edição do autor, 1962)
Capa do LP "Portugal-Angola: Chants de Lutte", de Luís Cília (Le Chant du Monde, 1964)
Capa do LP "Adriano Correia de Oliveira ("Rosa de Sangue")" (Orfeu, 1967)
Concepção – Fernando Aroso
Capa do EP "Para Que Quero Eu Olhos", de Adriano Correia de Oliveira (Orfeu, 1968)
Concepção – Fernando Aroso
Capa do LP "Margem Sul", de Adriano Correia de Oliveira (Orfeu, 1982)
Reedição LP "Adriano Correia de Oliveira ("Rosa de Sangue")", de 1967
Capa da compilação em duplo LP "Memória de Adriano" (Orfeu, 1983)
Design – João Machado
Capa da caixa de 7CD "Adriano: Obra Completa", org. José Niza (Movieplay, 1994)
Fotografia – Inácio Ludgero
Design gráfico – José Santa-Bárbara
Edição electrónica/digitalização gráfica – Olívia Braga
Capa do CD "A Noite dos Poetas", org. José Niza (Movieplay, 1994)
Design gráfico – José Santa-Bárbara
Edição electrónica/digitalização gráfica – Olívia Braga
Capa do livro/CD "Menina dos Olhos Tristes: A Noite dos Poetas", vol. 7 da "Obra Completa de Adriano Correia de Oliveira", org. José Niza (Movieplay/Público, 2007)
Na fotografia, tirada em 1962, em Estocolmo, à direita de Adriano estão José Afonso e José Niza.
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Outros artigos com repertório interpretado por Luís Cília ou da sua autoria:
A infância e a música portuguesa
Em memória de Urbano Tavares Rodrigues (1923-2013)
Celebrando Eugénio de Andrade
Camões recitado e cantado (V)
José Saramago: "Dia Não"
Adriano Correia de Oliveira: "Exílio" (Manuel Alegre)
Luís Cília: "Tango Poluído"
Luís Cília: "O Cavador" (Guerra Junqueiro)
Poesia trovadoresca adaptada por Natália Correia
Luís Cília: "Se me Levam Águas" (Luís de Camões)
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Outros artigos com canções interpretadas por Adriano Correia de Oliveira:
Adriano Correia de Oliveira: um grande cantor silenciado na rádio pública
E Alegre se Fez Triste
Galeria da Música Portuguesa: Adriano Correia de Oliveira
Em memória de Adriano
Adriano Correia de Oliveira: "As Balas" (Manuel da Fonseca)
Adriano Correia de Oliveira: "Cantar de Emigração"
Em memória de Urbano Tavares Rodrigues (1923-2013)
Celebrando Luís Pignatelli
Adriano Correia de Oliveira: "Exílio" (Manuel Alegre)
Adriano Correia de Oliveira: "Canção da Fronteira" (António Cabral)
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Outros artigos relacionados com a crónica de Fernando Alves na Antena 1:
Galandum Galundaina: "Chin Glin Din"
"Sons d'Outrora" em viola da terra, por Miguel Pimentel
Vitorino: "Moças de Bencatel" (Conde de Monsaraz)
Teresa Silva Carvalho: "Barca Bela" (Almeida Garrett)
22 outubro 2024
Teresa Silva Carvalho: "Barca Bela" (Almeida Garrett)
Ilustração do francês Thierry Murat, para a sua adaptação em banda desenhada do romance "O Velho e o Mar", de Ernest Hemingway ("Le Vieil Homme et la Mer", Paris: Futuropolis, 2014 – p. 9)
«Num 22 de Outubro de há cem anos redondos, o "Diário de Lisboa" consagra uma coluna ao peixe "que está a apodrecer em Cezimbra e falta em Lisboa". O título propaga o fedor de um problema de "transportes e subsistências" para que o antetítulo remete o leitor, embora com menor destaque do que aquele conferido, na mesma página, em duas largas colunas, à sorte do cão "Tejo", "o amigo mais fiel que Sidónio Pais teve" e que subsistia com a trela da subscrição pública, nem sequer ladrando, enquanto passava a caravana da polémica a que não escapava a Sociedade Protectora dos Animais.
Regressemos à notícia de há cem anos redondos e precisos: "Há dois meses que Lisboa está sem peixe. E o pouco que aparece na Ribeira, vindo de Cezimbra, é vendido por um preço fabuloso. Anteontem", detalha o repórter, "vimos vender pescada a 25$00 o quilo, goraz a 15$00 e dois pargos por 150$00".
Não tenho, e creio que os ouvintes também não, nesta voraz míngua de euros no bolso, uma razoável tabela de equivalência de preços à mão. Mas seria cometimento apenas acessível a mais do que remediados esportular por dois pargos 150$00, nesse Outubro de 1924.
Que diz mais a notícia? Prossegue com o que o articulista considera "o mais curioso de tudo isto". Passo a ler: "O mais curioso de tudo isto é que, em Cezimbra, a abundância de peixe é tal que os armadores o vendem para adubo de terras por falta de transportes para o enviarem para Lisboa".
O repórter cuida de saber o que pretendem os "capitães de pesca, que se encontram em greve". E porque falta o peixe. A resposta aponta o dedo aos armadores e ao comissário dos Abastecimentos. E que reclamam os pescadores? Resposta obtida: "Nós reclamamos um por cento sobre o meio por cento que já temos no produto líquido da venda do peixe".
Ora, que mudou neste século no quadro que a notícia descreve? Passou a haver câmaras frigoríficas, o peixe já não apodrece a não ser por más práticas que caiam na alçada da ASAE.
Quanto ao mais, os pescadores da barca bela não precisam de ler o Garrett para identificarem as novas sereias, o seu canto lúgubre. Eles partilham com o freguês da Ribeira ou do Livramento a posta do rabo de um lance em que ganham sempre os intermediários.
Outra coisa mudou, contudo, nestes cem anos: Sesimbra já não se escreve com cê e zê, mas com dois esses, ora essa.
Cuidemos, pois, da bolsa e da ortografia.
Já agora: a quanto está o pargo, esta manhã? E o goraz?» [Fernando Alves, "Cezimbra, há cem anos", in "Os Dias que Correm", 22 Out. 2024]
A referência que Fernando Alves fez a Garrett e ao seu conhecido poema "Barca Bela" estavam mesmo a pedir, para remate musical da sua crónica, quando foi radiodifundida pela Antena 1 hoje de manhã, a belíssima canção homónima interpretada por Teresa Silva Carvalho, com música da sua autoria sobre os versos do autor de "Folhas Caídas" e esplêndida orquestração de Thilo Krasmann. Quem, porventura, teve essa expectativa bem pôde esperar sentado. Além de não ter sido feita devida justiça ao louvável intertexto do eminente cronista, ficaram a perder esses rádio-ouvintes, e todos os demais que decerto escutariam com imenso prazer aquela maravilhosa canção, quer os que já a conheciam (em gratíssima revisitação), quer todos os outros (em deslumbrante descoberta). O canal generalista da rádio do Estado, esse pecou uma vez mais por clamorosa omissão, e em algo que era bem simples e fácil de concretizar. Dar a ouvir Teresa Silva Carvalho naquele horário, em que se registam boas audiências (graças também à crónica de Fernando Alves), seria relevante serviço público, atendendo ao vil ostracismo a que a notabilíssima intérprete e compositora tem sido votada pelas rádios nacionais, inclusive a pública.
De referir, a título de curiosidade, que esta fascinante "Barca Bela", de Teresa Silva Carvalho, agradou tanto a José Afonso que ele fez questão de convidar a meritória artista para participar na gravação, em Madrid, do seu álbum "Eu Vou Ser Como a Toupeira" (1972). E ela não deixou também de manifestar a sua admiração pelo genial cantautor ao gravar versões de várias canções dele, para os álbuns "Ó Rama, Ó Que Linda Rama" (1977) e "Canções Gratas" (1994).
Eis, pois, a encantadora "Barca Bela" que a Antena 1 negligentemente sonegou aos seus ouvintes, os quais tem a agora a oportunidade de escutá-la nesta página. É serviço público que o blogue "A Nossa Rádio" se orgulha de prestar aos seus visitantes!
Barca Bela
Poema: Almeida Garrett (ligeiramente adaptado) [texto original >> abaixo]
Música: Teresa Silva Carvalho
Arranjo: Thilo Krasmann
Intérprete: Teresa Silva Carvalho* (in EP "Adágio", Movieplay, 1971; CD "Teresa Silva Carvalho", Col. O Melhor dos Melhores, vol. 35, Movieplay, 1994; CD "Teresa Silva Carvalho", Col. Clássicos da Renascença, vol. 63, Movieplay, 2000; CD "Poesia EnCantada", vol. 1, EMI-VC, 2002)
[instrumental]
Pescador da barca bela,
Onde vais pescar com ela,
Que é tão bela, | bis
Oh pescador?! |
Pescador da barca bela,
Onde vais pescar com ela,
Que é tão bela, | bis
Oh pescador?! |
Não vês que a última estrela
No céu nublado se vela?
Colhe a vela, | bis
Oh pescador! |
[instrumental]
Deita o lanço com cautela,
Que a sereia canta bela...
Mas cautela, | bis
Oh pescador! |
Deita o lanço com cautela,
Que a sereia canta bela...
Mas cautela, | bis
Oh pescador! |
Não se enrede a rede nela,
Que perdido é remo e vela
Só de vê-la, | bis
Oh pescador. |
[instrumental]
Pescador da barca bela,
Inda é tempo, foge dela,
Foge dela | bis
Oh pescador! |
* Teresa Silva Carvalho – voz
Orquestra dirigida por Thilo Krasmann
Produção – Movieplay
Gravado nos Estúdios Polysom, Lisboa
Técnico de som – Jean-François Beaudet
URL: https://www.museudofado.pt/fado/personalidade/teresa-silva-carvalho
https://music.youtube.com/channel/UCkAbckRH-jBkegIgZ5iqx3A
https://www.youtube.com/@AlainJEANPIERRE/videos?query=teresa+silva+carvalho
https://www.youtube.com/c/Am%C3%A9ricoPereiraFado/videos?query=teresa+silva+carvalho
https://www.youtube.com/@carlosportelo9319/videos?query=teresa+silva+carvalho
BARCA BELA
(Almeida Garrett, in "Folhas Caídas", Lisboa: em casa da viúva Bertrand e Filhos, 1853 – p. 91-92)
Pescador da barca bela,
Onde vais pescar com ela,
Que é tão bela,
Oh pescador?!
Não vês que a última estrela
No céu nublado se vela?
Colhe a vela,
Oh pescador!
Deita o lanço com cautela,
Que a sereia canta bela...
Mas cautela,
Oh pescador!
Não se enrede a rede nela,
Que perdido é remo e vela
Só de vê-la,
Oh pescador.
Pescador da barca bela,
Inda é tempo, foge dela,
Foge dela
Oh pescador!
Frontispício da primeira edição do livro "Folhas Caídas", de Almeida Garrett (Lisboa: em casa da viúva Bertrand e Filhos, 1853)
Capa de outra edição do livro "Folhas Caídas", de Almeida Garrett (Lisboa: Portugália Editora, 1955)
Ilustração – Maria Keil
"Barca Bela", desenho de Maria Keil para o livro "Folhas Caídas", de Almeida Garrett (Lisboa: Portugália Editora, 1955)
Capa do EP "Adágio", de Teresa Silva Carvalho (Movieplay, 1971)
Fotografia – Michel Ribó
Capa da compilação em CD "Teresa Silva Carvalho" (Col. O Melhor dos Melhores, vol. 35, Movieplay, 1994)
Capa da compilação em CD "Teresa Silva Carvalho" (Col. Clássicos da Renascença, vol. 63, Movieplay, 2000)
Capa da compilação em CD "Poesia EnCantada", vol. 1 (EMI-VC, 2002)
Selecção e notas – David Ferreira
Assistência na recolha de trechos – Jwana Godinho.
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Outros artigos com repertório de Teresa Silva Carvalho:
A infância e a música portuguesa
A vitória do azeite
Ser Poeta
Celebrando Luís Pignatelli
Teresa Silva Carvalho: "Mulher da Erva"
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Outros artigos relacionados com a crónica de Fernando Alves na Antena 1:
Galandum Galundaina: "Chin Glin Din"
"Sons d'Outrora" em viola da terra, por Miguel Pimentel
Vitorino: "Moças de Bencatel" (Conde de Monsaraz)
16 outubro 2024
Vitorino: "Moças de Bencatel" (Conde de Monsaraz)
Ceifeira do Baixo Alentejo, 1957, ilustração da autoria de Laura Costa.
«A notícia já terá justificado mais do que uma rodada numa das noites decantadas em volta das talhas da adega Manuel Varrasquinho, na rua do Monte de Cima. Ou na adega Moreira. Ou na do Amador. São tantas as adegas de Ervidel.
A Voz da Planície e a Rádio Castrense fizeram ecoar a novidade e, nos campos que Giacometti percorreu colhendo toadas da monda, alguém terá ensaiado a receita de um verso, saudando a chegada da nova médica. "Ervidel tem bons cantores", apregoava uma moda que talvez conste do rol de cantorias do Grupo Coral As Margens do Roxo. Magníficos altos, como Inácio Moleirinho Valverde, belos pontos, um deles de apelido Virtuoso. Quererá saber, por certo, a nova doutora, quando os ouvir, que apelido têm os cantadores de Ervidel, "terra brilhante". E eles, levando a mão à aba do chapéu, entre duas rodadas de vinho novo, "Caixinha, um seu criado", Chaíça, Pão Mole, é bela e longa a correnteza de apelidos em "Ervidel, terra brilhante".
Lembro-me da primeira vez que se me revelou Ervidel, na dobra da Nacional 2, ainda a estrada não estava na moda. Vinha de Ferreira, de umas migas de espargos no Chico, e ali estava aquele aconchego de cal, um presépio de talhas a dois passos das largas águas do Roxo.
Em boa hora, como se dizia nos discursos de vénia cheios de nove horas, a Câmara de Aljustrel apreciou ao detalhe o Regulamento Municipal de Apoio à Fixação de Médicos e, ainda que tal empreitada devesse caber em primeira instância ao governo, fez a sua parte. Está formalizado o apoio à fixação de uma nova médica no concelho. E a nova médica vai garantir a prestação de cuidados de saúde na extensão de Ervidel.
Andam caçadores pelos campos, outros pescam nas águas da barragem. Assim pudesse passar por estes campos, como passou pelos de Bencatel, um novo conde de Monsaraz que enaltecesse as moças da terra nuns versos a pedir uma moda charmosa de Vitorino. Também aqui "estão desertas as eiras".
A nova médica de Ervidel ouvirá, por certo, na dobra de uma consulta, mais cedo que tarde, por entre avulsos ais das cruzes e suspiros de melancolia dos mais velhos, os versos do poeta popular Raimundo Afonso que ali nasceu e, ainda menino, pastoreou rebanhos, e no vento imprimiu as rimas com que entendia o mundo, doze livros publicados antes de aprender a ler. Figura maior, dele ficou para a memória mais funda da rádio, a conversa que mestre Rafael Correia registou no "Lugar ao Sul" [edição de 10 Fev. 2007 >> RTP-Arquivos]. Já cá não estão, ambos, estão desertas as eiras. Mas em chegando o São Martinho, brindemos, nós todos e a nova médica da extensão de Ervidel, com o vinho novo das talhas. No Varrasquinho ou no Raposo, no Moreira ou no Amador. Onde houver uma talha, em Ervidel, terra brilhante.» [Fernando Alves, "Ervidel, terra brilhante", in "Os Dias que Correm", 16 Out. 2024]
A alusão poético-musical que Fernando Alves fez na sua crónica de hoje não podia ser mais explícita: canção "Moças de Bencatel", de Vitorino, sobre poema do Conde de Monsaraz. Infelizmente, o manga-de-alpaca Ricardo Soares, por sua espontânea vontade ou acatando ordens estritas de Nuno Galopim de Carvalho (não sabemos ao certo), nada fez. E assim a crónica de Fernando Alves foi para o ar, mais uma vez, a seco, sem o remate musical que a complementaria e muito contentaria os ouvintes da Antena 1, mormente aqueles – entre os quais se conta o escrevente destas linhas – que se habituaram (e bem) a escutar a crónica na TSF-Rádio Jornal sempre seguida de um trecho musical relacionado com o assunto tratado.
Neste caso, a transmissão da canção de Vitorino, além de revelá-la a alguns ouvintes que a desconhecem (sobretudo os mais jovens), teria o 'efeito colateral' de fazer alguma justiça ao cantautor que tão marginalizado tem sido por quem administra a 'playlist'. Aqui fica, pois, o espécime poético-musical que foi rudemente sonegado ao auditório da Antena 1. Boa escuta!
Moças de Bencatel
Poema: Conde de Monsaraz (António de Macedo Papança, 1852-1913) (excerto ligeiramente adaptado) [texto integral >> abaixo]
Música: Vitorino Salomé
Arranjo: João Lucas
Intérprete: Vitorino* (in LP "Sul", EMI-VC, 1985, reed. EMI-VC, 1994, Parlophone/Warner Music Portugal, 201?)
Ó moças de Bencatel,
Não vos zangueis se vos ralho:
Muito amor, pouco trabalho;
Pouco trigo, muito mel;
— Fiai-vos no que vos digo
E não fiqueis mal comigo,
Ó moças de Bencatel —
Para vós, para a lavoira,
Tomai tento, melhor fôra
Muito trigo e pouco mel.
Vejo terras de pousio,
Que andaram sempre lavradas,
Todas cobertas de flores;
Mas quando chegar o frio
E passarem os calores,
E as chaminés apagadas
E as camas sem cobertores,
Mal irá às namoradas
E pior aos lavradores. [bis]
[instrumental]
Funçanatas e derriços,
Cantigas e pasmaceiras,
Fazem fugir aos serviços
E faltar às sementeiras:
Eis porque estão os cortiços
Abarrotados de mel
E estão desertas as eiras, | bis
Ó moças de Bencatel. |
[instrumental]
* [Créditos gerais do disco:]
Vitorino – voz
Zé Peixoto – guitarras
Zé Marreiros – sintetizadores
Paulo Jorge Ferreira – baixo
João Lucas – piano e acordeão
Carlos Salomé – guitarra, cavaquinho e trancanholas
José Salguiero – bateria e percussões
Rui Castro – baixo
Edgar Caramelo – saxofones alto e tenor
Tomás Pimentel – trompete
Eduardo Abreu – flauta
Elsa Bruxelas – flauta
Manuel Salomé – acordeão
Janita Salomé – voz em "Moças de Bencatel" e adufes
Joaquim C. de Lima – violino
Martin Turnlund – violino
Kenneth Frazer – violoncelo
Teófilo Moreira – contrabaixo
Pedro Caldeira Cabral – baixo e viola francesa
Manuel João Vieira – bandolim
"Camisa Amarela"
Márcio – cavaquinho
Tércio – cavaquinho
Rodrigo – bandolim
Luchinha – violão
António Pinho Vargas – piano e sintetizador
José Nogueira – saxofone alto
Pedro Barreiros – contrabaixo
Mário Barreiros – bateria
Paulo Curado – saxofone soprano
E orquestra composta por:
António Miranda, Floriana Oliveira, Cecília Branco, Alexandra Mendes, Luís Cunha, Stephanie Abson, Catherine Graig, Aníbal Lima, Rosário Oliveira, Oliver Pereira, Jorge Teixeira, Teresa Beatriz, André Cameron, Joaquim Lima, Bernard Lindley, Irene Lima, Richard Higgins, Andrea Arksey, Alberto Campos, Mary Sue, António Ferreira, Fernando Flores, Ricardo Ramalho, Denise Ribera, António Serafim, Artur Moreira, Ian Scott, Orlando Ribeiro, Arlindo Santos, Adácio Pestana, Jonatham Luxton, António Nogueira, A. Reis Gomes, Tomás Pimentel, Nélson Rocha, Emídio Coutinho, José Oliveira
Produção – Vitorino e João Lucas
Gravado nos Estúdios Valentim de Carvalho, Paço d'Arcos
Engenheiros de som – Hugo Ribeiro, Tó Pinheiro da Silva e Pedro Vasconcelos
URL: https://www.vitorinosalome.pt/
https://www.meloteca.com/portfolio-item/vitorino/
https://www.facebook.com/VitorinoSalome.officialpage
https://www.youtube.com/channel/UCuRPFnby4OlKEz5kzN655bA
https://www.youtube.com/user/DoTempoDosSonhos/videos?query=vitorino
MOÇAS DE BENCATEL
(Conde de Monsaraz, in "Musa Alentejana", Lisboa: Livraria Clássica Editora, 1908 – p. 117-119; "Obras do Conde de Monsaraz", Vol. III, Lisboa: Instituto de Alta Cultura, 1958)
Ó moças de Bencatel,
Não vos zangueis se vos ralho:
Muito amor, pouco trabalho;
Pouco trigo, muito mel;
— Fiai-vos no que vos digo
E não fiqueis mal comigo,
Ó moças de Bencatel —
Para vós, para a lavoura,
Tomai tento, melhor fôra
Muito trigo e pouco mel.
Vejo terras de pousio,
Que andaram sempre lavradas,
Todas cobertas de flores;
Mas quando chegar o frio
E passarem os calores,
E as chaminés apagadas
E as camas sem cobertores,
Mal irá às namoradas
E pior aos lavradores.
Funçanatas e derriços,
Cantigas e pasmaceiras,
Fazem fugir aos serviços
E faltar às sementeiras:
Eis porque estão os cortiços
Abarrotados de mel
E estão desertas as eiras,
Ó moças de Bencatel.
Como abelhas, as cantigas,
Por entre moitas e brejos,
Fabricam favos de beijos
Nas bocas das raparigas,
E os mocetões das aldeias,
Sem canseiras nem cuidados,
Largam ancinhos e arados
Para crestar as colmeias...
Ó moças de Bencatel,
Vós tendes as bocas cheias…
Acautelai-vos, senão
Haveis de ficar sem mel,
Sem maridos e sem pão!
António de Macedo Papança (1852-1913), 1.º Conde de Monsaraz – fotografia publicada na revista "O Occidente", de 20 Out. 1906 [>> resenha biográfica]
Capa da 1.ª edição do livro "Musa Alentejana", do Conde de Monsaraz (Lisboa: Livraria Clássica Editora, 1908)
Capa de outra edição do livro "Musa Alentejana", do Conde de Monsaraz (Lisboa: Livraria Ferin, 1954)
Ilustração – Alberto Souza
Capa do LP "Sul", de Vitorino (EMI-VC, 1985)
Concepção – Fátima Rolo.
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Outros artigos com repertório interpretado por Vitorino ou da sua autoria:
A infância e a música portuguesa
Celebrando Luís Pignatelli
Em memória de Fernando Alvim (1934-2015)
Em memória de Herberto Helder (1930-2015)
Vitorino: "Marcha Ingénua"
Vitorino: "O Capitão dos Tanques"
Vitorino: "Postal para D. João III"
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Outros artigos relacionados com a crónica de Fernando Alves na Antena 1:
Galandum Galundaina: "Chin Glin Din"
"Sons d'Outrora" em viola da terra, por Miguel Pimentel
Pablo Neruda: "Ode ao Pão", por Mário Viegas
Pão alentejano
(in https://ruralea.com/pao-alentejano-receita-original/)
PÃO
São muito antigos os registos do fabrico de pão, sendo um dos primeiros alimentos processados pelo Homem. Consta que foi nas pequenas aldeias palafitas, na região actualmente ocupada pela Suíça, que surgiu pela primeira vez esta mistura de grãos de cereal moídos (farinha) com água e sal, em 10 000 a.C.. Mais tarde, cerca de 5000 a.C., com a descoberta dos fermentos, o pão aproximou-se mais daquilo que comemos actualmente. Aproximadamente um milénio depois, os Egípcios vulgarizaram a produção de pão e, por volta do ano 500 a. C., surgia em Roma a primeira escola de padaria. O pão foi sustento de civilizações inteiras e o seu fabrico manteve-se quase inalterado até ao século XIX, altura em que foi pela primeira vez introduzida a mecanização nos processos de fabrico. Inicialmente rejeitado pelos consumidores, este pão "industrial" veio fazer com que as padarias dessem lugar a panificadoras com grande capacidade de produção.
O pão é o produto obtido da amassadura, fermentação e cozedura, em condições adequadas, das farinhas de trigo, centeio, triticale ou milho, estremes ou em mistura, com água potável e fermento ou levedura. Pode ainda conter sal e outros ingredientes, nomeadamente aditivos e auxiliares tecnológicos, nas condições legalmente fixadas [Portaria n.º 425/98, de 25 de Julho]. Nutricionalmente, o pão é uma boa fonte de hidratos de carbono, proteínas vegetais, ferro, magnésio, fibras alimentares e vitaminas do complexo B, fundamentais para o desenvolvimento e saúde do organismo.
[in https://www.asae.gov.pt/perguntas-frequentes1/area-alimentar/pao.aspx]
Assinalamos o presente Dia Mundial da Alimentação, que é igualmente o Dia Mundial do Pão, nada mais nada menos do que com a admirável "Ode ao Pão", escrita por Pablo Neruda, traduzida por Fernando Assis Pacheco e recitada por Mário Viegas. A eloquência das palavras do poeta «chileno de nascimento, hispano-americano pela língua e pela cultura, universalista pelo coração, pela razão, pela poesia» (citando o tradutor), notavelmente reforçada pela primorosa recitação, em tom de proclamação, de Mário Viegas, dispensa-nos o esforço de tecer comentários que, aliás, pecariam por superfluidade. É ouvir/ler este impressivo fonograma/texto e, depois, jamais esmorecer na luta para que nunca falte o pão a cada ser humano que habita a Terra.
Lembramo-nos muito bem de ter ouvido este tocante registo pela mão do saudoso Rafael Correia, no seu memorável "Lugar ao Sul", e de nos ter causado uma indelével impressão. Nunca mais lográmos apanhá-lo na Antena 1 (nem noutra rádio). E aqui temos, inevitavelmente, de voltar a denunciar a gritante lacuna de uma rubrica regular de poesia na grelha do primeiro canal da estação pública de radiodifusão. O mesmo – convém lembrar – que tem um mui digno e honroso historial nessa vertente cultural, quer antes quer depois do 25 de Abril de 1974, e que um tal António Luís Marinho, já no presente século, criminosamente descontinuou, sem que os sucedâneos locatários da direcção de programação tivessem a clarividência de emendar a mão. Um apontamento diário de poesia feito com registos do arquivo histórico e de edições discográficas teria uma repercussão insignificante no orçamento do canal, pelo que o factor económico não pode ser aduzido como justificação. É tão-somente uma questão de sensibilidade e de efectiva tomada de consciência, por parte de quem manda, das obrigações culturais que a Antena 1 também tem e nunca devia descurar.
Ode ao Pão
Poema de Pablo Neruda ("Oda al Pan", in "Odas Elementales", Buenos Aires: Editorial Losada, 1954) [texto original em castelhano >> abaixo]
Traduzido por Fernando Assis Pacheco (in "Antologia Breve", de Pablo Neruda, Col. Cadernos de Poesia, Vol. 2, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1969 – p. 68-75)
Recitado por Mário Viegas* (in LP "Pretextos para Dizer...", Orfeu, 1978; "Mário Viegas: Discografia Completa": Vol. 5 – "Pretextos para Dizer", Público, 2006)
Pão,
com farinha,
água
e fogo
te levantas.
Espesso e leve,
reclinado e redondo,
repetes
o ventre
da mãe,
equinocial
germinação
terrestre.
Pão,
que fácil
e que profundo tu és:
no tabuleiro branco
da padaria
estendem-se as tuas filas
como utensílios, pratos
ou papéis,
e de súbito
a onda
da vida,
a conjunção do germe
e do fogo,
cresces, cresces
de súbito
como
cintura, boca, seios,
colinas da terra,
vidas,
sobe o calor, inunda-te
a plenitude, o vento
da fecundidade,
e então
imobiliza-se a tua cor de oiro,
e quando já estão prenhes
os teus pequenos ventres
a cicatriz escura
deixou sinal de fogo
em todo o teu doirado
sistema
de hemisférios.
Agora,
intacto,
és
acção de homem,
milagre repetido,
vontade da vida.
Ó pão de cada boca
não
te imploraremos,
nós, os homens,
não somos
mendigos
de vagos deuses
ou de anjos obscuros:
do mar e da terra
faremos pão,
plantaremos de trigo
a terra e os planetas,
o pão de cada boca,
de cada homem,
em cada dia
chegará porque fomos
semeá-lo
e fazê-lo,
não para um homem, mas
para todos,
o pão, o pão
para todos os povos
e com ele o que possui
forma e sabor de pão
repartiremos:
a terra,
a beleza,
o amor,
tudo isso
tem sabor de pão,
forma de pão,
germinação de farinha,
tudo
nasceu para ser compartilhado,
para ser entregue,
para se multiplicar.
Por isso, Pão,
se foges
da casa do homem,
se te escondem,
se te negam,
se o avarento
te prostitui,
se o rico
te armazena,
se o trigo
não procura sulco e terra,
pão,
não rezaremos
pão,
não mendigaremos,
lutaremos por ti com outros homens,
com todos os famintos,
por todos os rios, pelo ar
iremos procurar-te,
a terra toda repartiremos
para que tu germines,
e connosco
avançará a terra:
a água, o fogo, o homem
lutarão junto a nós.
Iremos coroados
de espigas,
conquistando
terra e pão para todos,
e então
também a vida
terá forma de pão,
será simples e profunda,
inumerável e pura.
Todos os seres
terão direito
à terra e à vida,
e assim será o pão de amanhã,
o pão de cada boca,
sagrado,
consagrado,
porque será o produto
da mais longa e dura
luta humana.
Não tem asas
a vitória terrestre:
tem pão sobre os seus ombros,
e voa corajosa
libertando a terra
como uma padeira
levada pelo vento.
* Mário Viegas – voz
Gravado nos Estúdios Arnaldo Trindade, Lisboa
Técnico de som – Moreno Pinto
Masterização (edição em CD) – José António Regada
Texto sobre o disco em: Grandes discos da música portuguesa: efemérides em 2008
URL: https://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A1rio_Viegas
https://www.infopedia.pt/$mario-viegas
https://www.youtube.com/@DoTempoDosSonhos/videos?query=mario+viegas
Oda al Pan
(Pablo Neruda, in "Odas Elementales", Buenos Aires: Editorial Losada, 1954, 2.ª edição, Buenos Aires: Editorial Losada, 1958 – p. 151-154)
Pan,
con harina,
agua
y fuego
te levantas.
Espeso y leve,
recostado y redondo,
repites
el vientre
de la madre,
equinoccial
germinación
terrestre.
Pan,
qué fácil
y qué profundo eres:
en la bandeja blanca
de la panadería
se alargan tus hileras
como utensilios, platos
o papeles,
y de pronto,
la ola
de la vida,
la conjunción del germen
y del fuego,
creces, creces
de pronto
como
cintura, boca, senos,
colinas de la tierra,
vidas,
sube el calor, te inunda
la plenitud, el viento
de la fecundidad,
y entonces
se inmoviliza tu color de oro,
y cuando se preñaron
tus pequeños vientres,
la cicatriz morena
dejó su quemadura
en todo su dorado
sistema
de hemisferios.
Ahora,
intacto,
eres
acción de hombre,
milagro repetido,
voluntad de la vida.
Oh pan de cada boca,
no
te imploraremos,
los hombres
no somos
mendigos
de vagos dioses
o de ángeles oscuros:
del mar y de la tierra
haremos pan,
plantaremos de trigo,
la tierra y los planetas,
el pan de cada boca,
de cada hombre,
en cada día
llegará porque fuimos
a sembrarlo
y a hacerlo,
no para un hombre sino
para todos,
el pan, el pan
para todos los pueblos
y con él lo que tiene
forma y sabor de pan
repartiremos:
la tierra,
la belleza,
el amor,
todo eso
tiene sabor de pan,
forma de pan,
germinación de harina,
todo
nació para ser compartido,
para ser entregado,
para multiplicarse.
Por eso, Pan,
si huyes
de la casa del hombre,
si te ocultan,
te niegan,
si el avaro
te prostituye,
si el rico
te acapara,
si el trigo
no busca surco y tierra,
pan,
no rezaremos,
pan,
no mendigaremos,
lucharemos por ti con otros hombres,
con todos los hambrientos,
por todos los ríos y el aire
iremos a buscarte,
toda la tierra la repartiremos
para que tú germines,
y con nosotros
avanzará la tierra:
el agua, el fuego, el hombre
lucharán con nosotros.
Iremos coronados
con espigas,
conquistando
tierra y pan para todos,
y entonces
también la vida
tendrá forma de pan,
será simple y profunda,
imnumerable y pura.
Todos los seres
tendrán derecho
a la tierra y la vida,
y así será el pan de mañana,
el pan de cada boca,
sagrado,
consagrado,
porque será el producto
de la más larga dura
lucha humana.
No tiene alas
la victoria terrestre:
tiene pan en sus hombros,
y vuela valerosa
liberando la tierra
como una panadera
conducida en el viento.
Capa da 1.ª edição do livro "Odas Elementales", de Pablo Neruda (Buenos Aires: Editorial Losada, 1954)
Desenho – Silvio Baldessari
Capa da 1.ª edição do livro "Antologia Breve", de Pablo Neruda; Selecção e tradução: Fernando Assis Pacheco (Col. Cadernos de Poesia, N.º 2, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1969)
Capa do LP "Pretextos para Dizer...", de Mário Viegas (Orfeu, 1978)
Fotografia – Luiz Carvalho
Design gráfico – João Massapina
Capa do livro/CD "Pretextos para Dizer", Vol. 5 de "Mário Viegas: Discografia Completa" (Público, 2006)
Design gráfico – José Santa-Bárbara.
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Outros artigos com poesia recitada por Mário Viegas:
Mário Viegas: 10 anos de saudade
A infância e a música portuguesa
Jorge de Sena: "Carta a Meus Filhos sobre os Fuzilamentos de Goya", por Mário Viegas
Ser Poeta
Em memória de António Ramos Rosa (1924-2013)
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Celebrando Eugénio de Andrade
Fernando Pessoa/Álvaro de Campos: "Dois Excertos de Odes", por Mário Viegas
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Cesário Verde por Mário Viegas
Camilo Pessanha: "Singra o navio", por Mário Viegas
Manuel Alegre: "País de Abril", por Mário Viegas
06 outubro 2024
Luís de Camões: "Perdigão perdeu a pena"
Perdiz-vermelha ou perdiz-comum (Alectoris rufa).
© Alexandre Rica Cardoso, 2019 (in https://www.avesdeportugal.info/aleruf/).
«Camões escreveu essas coisas porque lá por dentro dele era bem português e o seu estado de alma era o nosso. A pena de nós próprios. Isso tudo é a mesma coisa. O Camões tratou as palavras "destino" e "fado" como nunca mais ninguém tratará, assim eu penso. Há nele a mesma noção de destino, de fatalidade, de pena de si próprio. Fiquei toda contente quando descobri que ele dava a isto o mesmo sentido que lhe dá o povo que eu tinha ao pé da porta. Para mim, ele é o maior fadista português: sabia falar de fado como ninguém.»
AMÁLIA RODRIGUES
(em entrevista concedida a João Gonçalves,
in jornal "Semanário", 27 Abr. 1985)
Completando-se o primeiro quarto de século sobre a morte de Amália no ano do quinto centenário do nascimento de Luís de Camões, que ela tanto admirava e com quem muito se identificava nesse estado de alma fadista, impunha-se, neste dia amaliano que é de saudade por excelência, fazer uma celebração conjunta. Ora como já apresentámos, no artigo "Camões recitado e cantado (II)", a totalidade dos seis poemas camonianos (canónicos) mais o apócrifo "Com que voz chorarei meu triste fado" a que Amália deu voz e foram publicados em disco, cinco com música de Alain Oulman e dois de Carlos Gonçalves, entendemos direccionar o foco da nossa atenção, na presente data, para um deles em particular: o vilancete em redondilha maior incipit "Perdigão perdeu a pena", que na edição discográfica – álbum "Cantigas numa Língua Antiga" (1977) – surge com o título simples de "Perdigão". Trata-se de um espécime da Lírica Camoniana em que está lapidarmente expresso o sentimento de desventura e fatalidade do genial vate (no caso, respeitante ao insucesso do Poeta – metaforicamente figurado num perdigão – nos seus esforços para alcançar o amor da amada – alta torre –, a qual se mostra sobranceiramente indiferente ao amador) que muito dizia a Amália e que a motivou a gravá-lo, num momento do seu percurso artístico – é oportuno referi-lo – ainda no rescaldo do PREC, durante o qual a colossal artista fora vítima de golpes baixos e acusada, por alguns indivíduos mais fanáticos e insolentes, de ter sido uma despudorada apoiante do Estado Novo. Talvez esses seus mesquinhos detractores nunca tivessem ouvido "Abandono (Fado Peniche)" [>> YouTube Music], "Senhora do Livramento" [>> YouTube Music], "Trova do Vento que Passa" [>> YouTube Music] e outro repertório sobre poesia de autores que estavam longe de serem simpatizantes do regime instituído por Salazar e mantido por Caetano (como Sidónio Muralha, Manuel Alegre e Ary dos Santos), e também talvez eles desconhecessem (ou quisessem ignorar) que Amália havia ajudado, com dinheiro, boa gente que, na clandestinidade, lutava contra a ditadura, e que ela mesma fora vigiada pela PIDE precisamente por suspeita de auxiliar antifascistas.
Aproveitamos o ensejo para deixar também, a seguir ao original amaliano, a versão (muito competente) que Katia Guerreiro gravou do mesmo "Perdigão" com música de Alain Oulman, e, a abrir a sequência, o registo recitado na voz do actor Carlos Wallenstein.
Votos de escuta prazenteira bafejada pelo enlevante estro camoniano!
E de que modo tem a Antena 1 evocado Amália neste 6 de Outubro, o 25.º após a sua partida para a eternidade?
Assinalamos a edição especial do programa "Gramofone", de João Carlos Callixto, que teve como convidado Frederico Santiago, o curador das novas edições (com muitos inéditos) do espólio fonográfico amaliano à guarda das Edições Valentim de Carvalho [>> RTP-Play]. E está também anunciado que a emissão do programa "Alma Lusa" (depois do noticiário da meia-noite), com realização de Edgar Canelas, será igualmente consagrada a Amália, «ora em palavras ditas na primeira pessoa ora através de memórias do seu biógrafo, Vítor Pavão dos Santos» (cf. https://antena1.rtp.pt/antena1/amalia-25-anos-depois/).
Registamos estas iniciativas com agrado, mas não podemos deixar de apontar o dedo acusador à direcção de programas da Antena 1, na pessoa de Nuno Galopim de Carvalho, pelo silenciamento na 'playlist', ao longo do ano, da obra discográfica de Amália, que não é uma artista qualquer – convém ter isto sempre bem presente – mas tão-só a maior intérprete vocal portuguesa (popular), provavelmente de todos os tempos, indubitavelmente a maior desde que foi inventado o registo sonoro. E não estamos a pedir que passem os espécimes mais conhecidos do vulgo, mas que haja a preocupação de pegar em repertório menos divulgado, porque é também (e sobretudo) para isso que existe o serviço público de radiodifusão.
Perdigão perdeu a pena
Poema (vilancete em redondilha maior) de Luís de Camões (in "Rimas", org. Estêvão Lopes, Lisboa, 1598; "Obras de Luís de Camões", Porto: Lello & Irmão Editores, 1970 – p. 805)
Recitado por Carlos Wallenstein* (in LP "Camões: Antologia", Série 'Disco Falado', Guilda da Música/Sassetti, 1973; CD "Camões: Antologia", Série 'Palavras', Strauss, 2002)
MOTE ALHEIO
Perdigão perdeu a pena,
não há mal que lhe não venha.
VOLTAS
Perdigão, que o pensamento
subiu em alto lugar,
perde a pena do voar,
ganha a pena do tormento.
Não tem no ar nem no vento
asas com que se sustenha:
não há mal que lhe não venha.
Quis voar a uma alta torre,
mas achou-se desasado;
e, vendo-se depenado,
de puro penado morre.
Se a queixumes se socorre,
lança no fogo mais lenha:
não há mal que lhe não venha.
* Carlos Wallenstein – voz
Selecção de textos/poemas – Carlos Wallenstein
Direcção literária – Alberto Ferreira
Assistente de produção – Carmen Santos
Produção – Sassetti
Gravado nos Estúdios Polysom, Lisboa
Captação de som e montagem – Moreno Pinto
Remasterização – Jorge d'Avillez (Strauss Studio, Lisboa)
URL: http://www.cinept.ubi.pt/pt/pessoa/2143690279/Carlos+Wallenstein
https://arquivos.rtp.pt/conteudos/perfil-carlos-wallenstein/
https://music.youtube.com/channel/UCAB5mYWk4Z9tVkwp-RrXdgQ
Perdigão
Poema: Luís de Camões (ligeiramente adaptado) [texto original >> acima]
Música: Alain Oulman
Intérprete: Amália Rodrigues* (in LP "Cantigas numa Língua Antiga", Columbia/VC, 1977, reed. EMI-VC, 1992, Edições Valentim de Carvalho/Som Livre, 2007)
[instrumental]
Perdigão, que o pensamento
subiu em alto lugar,
perde a pena do voar,
ganha a pena do tormento.
Não tem no ar nem no vento
asas com que se sustenha:
não há mal que lhe não venha.
Perdigão perdeu a pena.
[instrumental]
Quis voar a uma alta torre
mas achou-se desasado;
e, vendo-se depenado,
de puro penado morre.
Se a queixumes se socorre,
lança no fogo mais lenha:
não há mal que lhe não venha. | bis
Perdigão perdeu a pena. |
* Amália Rodrigues – voz
José Fontes Rocha – guitarra portuguesa
Martinho d'Assunção – viola
Gravado nos Estúdios Valentim de Carvalho, Paço d'Arcos
Engenheiro de som – Hugo Ribeiro
Montagem digital (edição em CD) – Fernando Paulo
Texto sobre o disco em: Grandes discos da música portuguesa: efemérides em 2007
URL: https://amaliarodrigues.pt/pt/amalia/
https://www.museudofado.pt/index.php/fado/personalidade/amalia-rodrigues
https://centenarioamaliarodrigues.pt/
https://www.youtube.com/c/amaliarodriguesofficial
https://music.youtube.com/channel/UCF_E888KGi1ko8nk9Pus_2g
Perdigão
Poema: Luís de Camões (ligeiramente adaptado) [texto original >> no topo]
Música: Alain Oulman
Intérprete: Katia Guerreiro* (in CD "Nas Mãos do Fado", Ocarina, 2003)
[instrumental]
Perdigão, que o pensamento
subiu em alto lugar,
perde a pena do voar,
ganha a pena do tormento.
Não tem no ar nem no vento
asas com que se sustenha:
não há mal que lhe não venha.
Perdigão perdeu a pena.
[instrumental]
Quis voar a uma alta torre
mas achou-se desasado;
e, vendo-se depenado,
de puro penado morre.
Se a queixumes se socorre,
lança no fogo mais lenha:
não há mal que lhe não venha. | bis
Perdigão perdeu a pena. |
* Katia Guerreiro – voz
Paulo Valentim – guitarra portuguesa
João Veiga – guitarra clássica
Rodrigo Serrão – contrabaixo
Produção executiva – Joaquim Balas
Gravado e masterizado por António Cordeiro, no Estúdio d'Aldeia, Cacém, de Agosto a Outubro de 2003
Misturado por Katia Guerreiro e António Cordeiro
URL: https://katiaguerreiro.pt/
https://www.museudofado.pt/index.php/fado/personalidade/katia-guerreiro
https://www.facebook.com/katiaguerreiro.official/
https://www.youtube.com/@KatiaGuerreiroFado
https://music.youtube.com/channel/UCk8hihYmq_eb4SPXenCGqnA
Capa e contracapa do LP "Cantigas numa Língua Antiga", de Amália Rodrigues (Columbia/VC, 1977)
Concepção – Manuel Correia
Fotografias – Augusto Cabrita
Capa do LP "Camões: Antologia", de Carlos Wallenstein (Série 'Disco Falado', Guilda da Música/Sassetti, 1973)
Concepção – Soares Rocha
Capa da reedição em CD do álbum "Camões: Antologia", de Carlos Wallenstein (Série 'Palavras', Strauss, 2002)
Retrato de Camões – Soares Rocha
Grafismo – João P. Cachenha
Capa do CD "Nas Mãos do Fado", de Katia Guerreiro (Ocarina, 2003)
Fotografia – Rui Ochôa
Grafismo – Ivone Ralha.
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Camões recitado e cantado (II)
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Camões recitado e cantado (VI)
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