29 outubro 2024

António Borges Coelho: "Sou Barco"


António Borges Coelho (n. 1928), poeta e historiador português.


«Folheio, de novo, em voz alta, o jornal "Região de Leiria", lançando amarras à penúltima página habitualmente dedicada às histórias dos nossos mais velhos. Desta vez, decido ancorar na notícia da exposição que Carlos Santos, carpinteiro naval durante 60 anos, montou na sua garagem, na rua das Arribas do Mar, em Peniche.
O repórter fotográfico Joaquim Dâmaso mostra-nos as paredes da oficina do carpinteiro naval agora reformado: são como redes ao alto que, em vez de peixe, recolhessem pagaias, canas de leme, serrotes, furadeiras. Carlos explica à jornalista Joana Magalhães que nenhuma outra arte em que se trabalhe a madeira exige tantas ferramentas como a carpintaria naval. O homem cujas mãos são agora um mar calmo de onde poderiam zarpar navios alados tem sempre o mar diante dos olhos no seu pequeno santuário do bairro do Visconde. É o mesmo mar que fez soar o fragor da vaga durante a dura vigília de António Borges Coelho, preso em Peniche. "Sou barco abandonado / na praia ao pé do mar", gritou, há muitos anos, o poeta para a carpintaria melódica de Luís Cília e a canção foi em ondas na voz de Adriano. Já Carlos talhava barcos nos troncos das árvores. Também através do seu coração, tal como no poema de Sophia, passou um barco que não pára de seguir, sem ele, o seu caminho. Ele cuida de uma inumerável frota na angra da memória, no porto de abrigo da sua garagem diante do mar. Gravuras antigas, com motivos marítimos, repousam nas paredes como o peixe seco ao sol, nos paneiros.
Quantas árvores terão nascido para ser barco nas suas mãos? Em quantas talhou a sua arte curvilínea entre amuras e anteparas?
O velho carpinteiro naval olha-nos na doca seca de uma página de jornal enquanto explica suavemente a geometria que guiou, a vida toda, o seu formão. "O barco é todo torto", observa. Por isso, o seu ofício cuida de fazer nascer a curva no mastro maciço da árvore. "Do direito temos de fazer torto, é diferente de outras artes da madeira", explica o carpinteiro naval.
E eu fico preso ao sereno olhar de Carlos Santos nesta página de jornal. As mãos dele estão pousadas num cavername encalhado. Ainda que, como ele assegura, apenas um carpinteiro naval permaneça activo em Peniche, imagino o mestre afagando o dorso de um pinheiro manso ou de um carvalho como quem acalenta um navio e o lança a todas as Berlengas do mar.» [Fernando Alves, "O carpinteiro naval", in "Os Dias que Correm", 29 Out. 2024]


«É o mesmo mar que fez soar o fragor da vaga durante a dura vigília de António Borges Coelho, preso em Peniche. "Sou barco abandonado / na praia ao pé do mar", gritou, há muitos anos, o poeta para a carpintaria melódica de Luís Cília e a canção foi em ondas na voz de Adriano
O intertexto poético-musical não podia ser mais objectivo e preciso, e Fernando Alves não o fez gratuitamente. O poema "Sou Barco" foi mesmo escrito em Peniche, mais concretamente no tenebroso forte-prisão, quando o seu autor, o poeta e historiador António Borges Coelho, aí esteve encarcerado, durante seis longos anos, por motivos políticos. Ao ler o poema, no livro "Roseira Verde" (1962), Luís Cília, já exilado em Paris, achou por bem musicá-lo e gravá-lo para o seu primeiro álbum, de título genérico "Portugal-Angola: Chants de Lutte", publicado em 1964, sob a chancela Le Chant du Monde. E quando Adriano Correia de Oliveira visitou Luís Cília na Cidade-Luz, aquele tocante "Sou Barco" seria um dos três espécimes que pediria emprestados ao talentoso compositor/intérprete natural de Angola (cidade de Nova Lisboa, actual Huambo) para ele próprio os gravar. E foi essa versão de Adriano, com o sublime arranjo e o primoroso acompanhamento de Rui Pato à viola que mais navegou nas ondas hertzianas portuguesas, como muito apropriadamente alude Fernando Alves. Nomeando o autor do poema, o inspirado compositor e o distinto intérprete por cuja voz aquele "Sou Barco" chegou aos ouvidos de mais gente, o preclaro cronista, além de aproveitar o pretexto para desse modo render homenagem a três figuras gradas da Cultura Portuguesa, teria certamente apreciado e ficado reconhecido se tal gravação servisse de epílogo à sua crónica, quando esta foi difundida hoje de manhã pela Antena 1, a exemplo do que acontecia na TSF-Rádio Jornal. O ouvinte e escrevente destas linhas, ainda assim, não censuraria o locutor de serviço, Ricardo Soares, nem o seu chefe, Nuno Galopim de Carvalho, se um ou outro tivesse optado pela gravação original de Luís Cília ou a sua regravação presente no álbum "Meu País" (1973). Mas nem isso aconteceu. Nadinha de nada! Enfim, para mal dos pecados dos ouvintes e da reputação do serviço público de rádio, o imobilismo e a inércia sobrepuseram-se, uma vez mais, ao zelo e ao brio profissional que deviam ser sempre o timbre de quem vive do dinheiro dos ouvintes/contribuintes.
Para que conste, e como os ouvintes merecem o melhor, o blogue "A Nossa Rádio" proporciona aos que aqui acederem as duas primeiras gravações de "Sou Barco": a original de Luís Cília e a versão de Adriano Correia de Oliveira. Boa escuta!



Sou Barco



Poema: António Borges Coelho (in "Roseira Verde", Lisboa: Edição do autor, 1962)
Música: Luís Cília
Intérprete: Luís Cília (in LP "Portugal-Angola: Chants de Lutte", Le Chant du Monde, 1964)




[Marulhar das ondas / instrumental]

Sou barco abandonado
Na praia ao pé do mar
E os pensamentos são
Meninos a brincar.

Ei-lo que salta bravo
E a onda verde-escura
Desfaz-se em trigo
De raiva e amargura.

Ouço o fragor da vaga
Sempre a bater ao fundo,
Escrevo, leio, penso,
Passeio neste mundo
De seis passos
E o mar a bater ao fundo.

Agora é todo azul,
Com barras de cinzento,
E logo é verde, verde,
Seu brando chamamento.

Ó mar, venha a onda forte
Por cima do areal
E os barcos abandonados
Voltarão a Portugal.


* Luís Cília – voz e guitarra
URL: http://www.luiscilia.com/
https://www.youtube.com/user/LeoMOV/videos
https://music.youtube.com/channel/UCqL_T8TPQ2ffVAKn-v4kN_A



Sou Barco



Poema: António Borges Coelho (in "Roseira Verde", Lisboa: Edição do autor, 1962)
Música: Luís Cília
Arranjo: Rui Pato
Intérprete: Adriano Correia de Oliveira* [in LP "Adriano Correia de Oliveira ("Rosa de Sangue")", Orfeu, 1967, reed. LP "Margem Sul", Orfeu, 1982; EP "Para Que Quero Eu Olhos", Orfeu, 1968; 2LP "Memória de Adriano": LP 1, Orfeu, 1983, reed. Movieplay, 1992; 7CD "Adriano: Obra Completa": CD "A Noite dos Poetas", Movieplay, 1994; 7 livros/CD "Obra Completa de Adriano Correia de Oliveira": vol. 7 -"Menina dos Olhos Tristes: A Noite dos Poetas", Movieplay/Público, 2007]




[instrumental]

Sou barco abandonado
Na praia ao pé do mar
E os pensamentos são
Meninos a brincar.

Ei-lo que salta bravo
E a onda verde-escura
Desfaz-se em trigo
De raiva e amargura.

Oiço o fragor da vaga
Sempre a bater ao fundo,
Escrevo, leio, penso,
Passeio neste mundo
De seis passos
E o mar a bater ao fundo.

Agora é todo azul,
Com barras de cinzento,
E logo é verde, verde,
Seu brando chamamento.

Ó mar, venha a onda forte
Por cima do areal
E os barcos abandonados
Voltarão a Portugal.

[instrumental / assobio]


* Adriano Correia de Oliveira – voz
Rui Pato – viola

Montagem DAT (edição de 1994) – João Pedro Castro, nos Estúdios Namouche, Lisboa
Biografia e discografia em: A Nossa Rádio
URL: https://adrianocorreiadeoliveira.org/
https://www.facebook.com/adrianocorreiadeoliveira/
https://www.youtube.com/user/DoTempoDosSonhos/videos?query=adriano+correia+oliveira



Capa do livro "Roseira Verde", de António Borges Coelho (Lisboa: Edição do autor, 1962)



Capa do LP "Portugal-Angola: Chants de Lutte", de Luís Cília (Le Chant du Monde, 1964)



Capa do LP "Adriano Correia de Oliveira ("Rosa de Sangue")" (Orfeu, 1967)
Concepção – Fernando Aroso



Capa do EP "Para Que Quero Eu Olhos", de Adriano Correia de Oliveira (Orfeu, 1968)
Concepção – Fernando Aroso



Capa do LP "Margem Sul", de Adriano Correia de Oliveira (Orfeu, 1982)
Reedição LP "Adriano Correia de Oliveira ("Rosa de Sangue")", de 1967



Capa da compilação em duplo LP "Memória de Adriano" (Orfeu, 1983)
Design – João Machado



Capa da caixa de 7CD "Adriano: Obra Completa", org. José Niza (Movieplay, 1994)
Fotografia – Inácio Ludgero
Design gráfico – José Santa-Bárbara
Edição electrónica/digitalização gráfica – Olívia Braga



Capa do CD "A Noite dos Poetas", org. José Niza (Movieplay, 1994)
Design gráfico – José Santa-Bárbara
Edição electrónica/digitalização gráfica – Olívia Braga



Capa do livro/CD "Menina dos Olhos Tristes: A Noite dos Poetas", vol. 7 da "Obra Completa de Adriano Correia de Oliveira", org. José Niza (Movieplay/Público, 2007)
Na fotografia, tirada em 1962, em Estocolmo, à direita de Adriano estão José Afonso e José Niza.

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Outros artigos com repertório interpretado por Luís Cília ou da sua autoria:
A infância e a música portuguesa
Em memória de Urbano Tavares Rodrigues (1923-2013)
Celebrando Eugénio de Andrade
Camões recitado e cantado (V)
José Saramago: "Dia Não"
Adriano Correia de Oliveira: "Exílio" (Manuel Alegre)
Luís Cília: "Tango Poluído"
Luís Cília: "O Cavador" (Guerra Junqueiro)
Poesia trovadoresca adaptada por Natália Correia
Luís Cília: "Se me Levam Águas" (Luís de Camões)

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Outros artigos com canções interpretadas por Adriano Correia de Oliveira:
Adriano Correia de Oliveira: um grande cantor silenciado na rádio pública
E Alegre se Fez Triste
Galeria da Música Portuguesa: Adriano Correia de Oliveira
Em memória de Adriano
Adriano Correia de Oliveira: "As Balas" (Manuel da Fonseca)
Adriano Correia de Oliveira: "Cantar de Emigração"
Em memória de Urbano Tavares Rodrigues (1923-2013)
Celebrando Luís Pignatelli
Adriano Correia de Oliveira: "Exílio" (Manuel Alegre)
Adriano Correia de Oliveira: "Canção da Fronteira" (António Cabral)

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Outros artigos relacionados com a crónica de Fernando Alves na Antena 1:
Galandum Galundaina: "Chin Glin Din"
"Sons d'Outrora" em viola da terra, por Miguel Pimentel
Vitorino: "Moças de Bencatel" (Conde de Monsaraz)
Teresa Silva Carvalho: "Barca Bela" (Almeida Garrett)

1 comentário:

  1. Pode haver falhas na rádio, lamentavelmente, as há, e algumas, em alguns casos, são deliberadas. Não sei se foi este o caso.
    Contudo, com o rigor deste blog, estamos "salvos" de omissões e de esquecimentos. Bem haja. É para isto que a internet foi feita, para a partilha de informação verídica e verificada. Bem haja e continuação do bom trabalho.

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