29 maio 2025

José Afonso: "Ali Está o Rio"


Rio Fervença, em Bragança
© Jorge Soares, Jul. 2009
(in https://momentoseolhares.blogs.sapo.pt/)


«A notícia já tem uns dias, cinco ou seis, mas só agora desaguou no ecrã do meu computador. Para o que me interessa, vem mais do que a tempo. Procurando "combater a desinformação em matérias ambientais", conta a notícia, a biblioteca municipal de Bragança organizou no passado fim-de-semana uma caminhada que levou os participantes ao longo das margens dos rios Fervença e Sabor. O Fervença desce a serra da Nogueira até abraçar o Sabor, depois de bordejar Bragança onde um programa Polis o salvou dos esgotos urbanos e o Sabor é uma criatura mutante, por vezes rio, por vezes lago, plantado de santuários. Uma biblioteca pode e deve dizer aos seus frequentadores, neste caso alunos do Politécnico de Bragança e da Escola Abade de Baçal, "ali está o rio". Uma biblioteca pode e deve levar os seus leitores à margem do rio onde uma certa canção do Zeca colocou dois homens, um determinado a dar um passo, o outro não. Iniciativas como a da biblioteca de Bragança ajudam o poltrão a ser destemido, a dar o passo para a margem de lá, a colher o figo que, na canção, só o atrevido alcança. Procurai a canção, está no álbum "Enquanto Há Força". Procurai o rio.
Esta notícia interessa-me porque me insinua perguntas improváveis. Por exemplo: onde desagua uma biblioteca?
Uma biblioteca é um lugar onde se guardam livros e rios. Não apenas porque guarde livros que falam de rios. Mas porque é o lugar de onde se pode ir a qualquer parte navegando um rio ou um livro. Há rios que nascem nos livros.
Nas "Memórias Inventadas para Crianças", Manoel de Barros conta que, certo dia, a mãe lhe deu um rio. Foi isso no dia dos seus anos. O irmão deixou escapar algum ciúme, afinal o rio era o que passava atrás da casa e tinha por ele um igual desvelo. Então a mãe disse ao irmão de Manoel que, no dia dos seus anos, lhe daria, de prenda, uma árvore com pássaros. Dar um livro não é muito diferente.
Os rios, tal como os livros, são capazes de nos surpreender e de nos desconcertar. Li, por estes dias, sobre um rio, algures no Brasil, que corre ao contrário. E sobre outro que corre nos dois sentidos, como se tivesse duas faixas de água, com um talvez caótico trânsito de peixes (isso não apurei). E li que quando o Paquistão e a Índia desatinaram gravemente na linha de fronteira, o primeiro-ministro indiano ameaçou cortar a água dos rios que correm da Índia para o Paquistão.
Cortar a água de um rio é como proibir um livro ou fechá-lo de tal modo que não possa desaguar no leitor.» [Fernando Alves, "Onde desagua uma biblioteca?", in "Os Dias que Correm", 29 Mai. 2025]


«[...] "ali está o rio" [...] rio onde uma certa canção do Zeca colocou dois homens, um determinado a dar um passo, o outro não. [...] Procurai a canção, está no álbum "Enquanto Há Força".»
A recomendação formulada por Fernando Alves não se dirige somente aos seus ouvintes. Nela está implicitamente expresso (para bom entendedor meia palavra basta) o desejo de que a Antena 1 transmitisse a canção logo a seguir à crónica, bastando antecipar esta em cerca de 3 minutos. Mesmo tendo recebido o áudio da crónica com suficiente tempo de antecedência, Ricardo Soares não se quis dar ao singelo trabalhinho de pedir a alguém que lhe trouxesse o referido CD para pôr a tocar a faixa n.º 4. Isto, claro está, se não tinha à mão o respectivo ficheiro áudio em WAVE, FLAC, MP3 ou noutro formato compatível com o sistema de reprodução em uso na rádio pública. O seu chefe, Nuno Galopim de Carvalho, se acaso não estava ainda a dormir e sabendo que o seu subalterno não é indivíduo para esforços, por mais pequenos que sejam, que vão além do rame-rame maquinal a que se habituou e que parece satisfazê-lo, podia muito bem enviar-lhe o ficheiro áudio juntamente com a instrução de que devia reproduzi-lo a seguir à crónica. Enfim!... Mais uma vez, a Antena 1 pecou por omissão e em algo que era bem simples de fazer para conferir ao serviço a qualidade que os ouvintes/contribuintes merecem e desejam.
Eis, pois, a bela canção "Ali Está o Rio" que José Afonso gravou em 1978 para o álbum "Enquanto Há Força", mas que fora originalmente concebida em Moçambique, no ano de 1966, a fim de ser cantada na representação, pelo Teatro de Amadores da Beira, da peça "A Excepção e a Regra", de Bertolt Brecht, na tradução feita por Luiz Francisco Rebello. Boa escuta!



Ali Está o Rio



Letra: José Afonso, a partir da versão portuguesa, por Luiz Francisco Rebello, da peça "A Excepção e a Regra", de Bertolt Brecht (levada à cena pelo Teatro de Amadores da Beira, Moçambique, em 1966)
Música: José Afonso
Intérprete: José Afonso* (in LP "Enquanto Há Força", Orfeu, 1978, reed. Movieplay, 1987, 1996, Art'Orfeu Media, 2013, Mais Cinco, 2023)




[instrumental]

Ali está o rio,
Dois homens na margem estão;
Se um dá um passo, o outro hesita... | bis
Será um valente? O outro não?          |

Bom negócio faz um deles,
Tem o triunfo na mão;
Do outro lado do rio                     | bis
Só um come o fruto, o outro não.  |

[instrumental]

Ao outro, passado o p'rigo,
Novos castigos virão;
Se ambos venceram o rio,          | bis
Só um tudo ganha, o outro não.  |

Na margem já conquistada,
Só um venceu a valer;
Perdeu o outro a saúde,        | bis
Mas nada ganhou p'ra viver.  |

[instrumental]

Quem diz "nós" saiba ver bem
Se diz a verdade ou não;
Ambos vencemos o rio,                 | bis
A mim quem me vence é o patrão. |

[instrumental]


* [Créditos gerais do disco:]
Voz – José Afonso
Percussões – Michel Delaporte, Pintinhas, Guilherme Scarpa
Guitarra eléctrica – Fausto Bordalo Dias
Guitarras acústicas – Fausto Bordalo Dias, José Luís Iglésias
Violino – Carlos Zíngaro
Guitarra portuguesa, cistre, viola e alaúde – Pedro Caldeira Cabral
Flautas – Rão Kyao, Manuel Guerreiro
Clarinetes – João Rodrigues, João Magalhães
Harmónica de acordes e harmónica baixo – Ermenegildo, José Luís
Baixos – Luís Duarte, Paulo Godinho
Acordeão – Dimas Pereira
Coros – Yório Gonçalves, Adriano Correia de Oliveira, Sérgio Godinho, Fausto, Alfredo Vieira de Sousa, Cecília, Grupo de Cantigas do Centro Cultural da Anadia

Arranjos e direcção musical – Fausto e José Afonso
Gravado nos Estúdios Arnaldo Trindade, Lisboa
Técnico de som – Moreno Pinto
Remasterização (edição de 2013) – António Pinheiro da Silva
Textos sobre o disco em: Associação José Afonso e Altamont
Biografia e discografia em: A Nossa Rádio
URL: https://aja.pt/
https://joseafonso.net/
https://pt.wikipedia.org/wiki/Jos%C3%A9_Afonso
https://www.infopedia.pt/$jose-afonso
https://www.arlindo-correia.com/080401.html
https://www.youtube.com/@AssociacaoJoseAfonso/videos
https://www.youtube.com/@DoTempoDosSonhos/videos?query=jose+afonso
https://music.youtube.com/channel/UC3ibjT8j2cysFnZ2dVB76yg



Capa do LP "Enquanto Há Força", de José Afonso (Orfeu, 1978)
Concepção e arranjo gráfico – José Santa-Bárbara.

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