23 maio 2025

Eugénio de Andrade: "As Mães"


(in https://trajesdeportugal.blogspot.com/)
Retrato de mulheres portuguesas trajando de luto, séc. XX, Museu de Arte Popular, Lisboa.


«Pedro Biscaia sabe muito sobre a história, mas também sobre a intimidade dos lugares. As cidades dele, a Figueira da Foz onde nasceu e a Leiria onde vive, no modo como se oferece a delas ser cicerone, são povoadas de vozes que vêm da infância ou de mais lá atrás, das leituras, da investigação, do namoro com os lugares. Já o vi puxar nas suas cidades o fio peripatético do conhecimento e da ternura, desbravando o emaranhado da toponímia e da História. Caminhando nas cidades onde dirigiu escolas e fundou roteiros imprescindíveis, a todo o tempo ele se cruza com amigos ou com antigos alunos que dele colheram as artes da pergunta e do espanto sem as quais pouco se retém do pó dos caminhos. A escrita de Pedro Biscaia é finíssima filigrana com que surpreende e cativa. Pedro tem desbaratado generosamente uma prosa hipnótica e andarilha em jornadas de afirmação alheia ou em combates cívicos a que nunca se furta.
Finalmente, o discreto Pedro Biscaia decidiu saltar o muro da Quinta Nova e entregar-nos um belíssimo, comovente "Roteiro dos Afectos Maternos" que a Âncora acaba de editar.
É este livro um poliedro de oito faces rodando sobre a tribo de uma imaginária Vila Nova de Jericó e a vida mais ou menos atribulada que coube viver a cada um dos oito narradores. É um hino às mães, a oito vozes. Ouso pensar que o primeiro entre os salteadores da memória quase perdida é Pedro, ele mesmo. Ou poderia ser. Na verdade, o filho de Teresa, a primeira mulher evocada neste livro, é aquele que não chega a ser nomeado, mas deseja para si um nome minúsculo e um lugar minúsculo onde possa deixar correr o fio da própria história. Chamo-lhe Pedro, ao rapaz que queria ser de Ul.
Onde será Ul? O Google explicou-me que se trata de uma aldeia perto de Oliveira de Azeméis, um dos mais curtos nomes de povoados em Portugal, tão clarividente a máquina de desvendar mistérios; há de facto um lugar assim designado, Ul, terra de pão e de mel e de romarias em honra da Senhora das Candeias, já foi aldeia do mês na National Geographic, houve por lá em tempos muitos moinhos, aproveitando os açudes dos ribeiros de Ul e de Antuã (nome que, para muitos é apenas o de uma área de serviço na A1). É famosa, aliás, a regueifa de Ul. Não é esta a Ul que procuro, como quem procura a sombra de um ulmeiro. Mas, sim, Ul existe. Nestas páginas.
E será Vila Nova de Jericó a Figueira do menino Pedro de Melo Biscaia? Tanto esperámos por este livro de uma beleza pungente que nos tardava. Porque este livro, este "Roteiro dos Afectos Maternos", nos leva à Vila Nova de Jericó da memória mais funda da infância de cada um de nós, ao que tínhamos deixado para trás, ao que de nós perdêramos. Como exemplarmente lembra José Luís Peixoto numa frase que Pedro Biscaia puxou para epígrafe deste livro, "o passado é uma história que contamos a nós próprios".
Lendo este livro, por vezes contendo as lágrimas, somos levados aos primeiros versos daquele poema inesquecível de Drummond, "Por que Deus permite/ que as mães vão-se embora?". Outras vezes a ave dos poemas pousa no nosso ombro aquele verso de Herberto, "As mães são as mais altas coisas que os filhos criam".
Pedro Biscaia traz de volta, por instantes, as nossas mães, "cada vez mais belas", a tal ponto que somos levados a pensar "que elas levitam".» [Fernando Alves, "Roteiro dos Afectos Maternos", in "Os Dias que Correm", 23 Mai. 2025]


Os trechos dos poemas de Carlos Drummond de Andrade e de Herberto Helder que Fernando Alves citou eram as sugestões mais imediatas de que poderia ser a gravação do texto integral de um ou de outro a servir de remate à crónica quando esta foi difundida hoje de manhã pela Antena 1. Coisa que não se verificou e deixou o escrevente destas linhas, mais uma vez, desgostoso e defraudado. Que não deixaria se a opção tivesse sido passar outro bom registo de poema ou de canção devotado às mães – por exemplo, o poema "As Mães", de Eugénio de Andrade dito pelo autor, que integra o CD "Eugénio de Andrade por Eugénio de Andrade" (Numérica, 1997). Dado que já aqui apresentámos o poema de Herberto Helder e em duas gravações – uma pelo autor e outra por Luísa Cruz – trazemos agora o referido registo do poema eugeniano: um delicioso naco de poesia em prosa impregnado de empatia e de ternura pelo eterno feminino maternal. Haveria ouvintes a reclamar se a Antena 1 o transmitisse a seguir à crónica? Não acreditamos, sinceramente...



AS MÃES



Poema de Eugénio de Andrade (in "Vertentes do Olhar", Col. Obra de Eugénio de Andrade, vol. 19, Porto: Limiar, 1987 – p. 42-44; "Poesia", 2.ª edição, org. Arnaldo Saraiva, Porto: Fundação Eugénio de Andrade, 2005 – p. 412-414; "Poesia", Col. Obras de Eugénio de Andrade, Lisboa: Assírio & Alvim, 2017 – p. 433-434)
Dito pelo autor* (in CD "Eugénio de Andrade por Eugénio de Andrade", Numérica, 1997)


       Quando voltar ao Alentejo as cigarras já terão morrido. Passaram o verão todo a transformar a luz em canto — não sei de destino mais glorioso. Quem lá encontraremos, pela certa, são aquelas mulheres envolvidas na sombra dos seus lutos, como se a terra lhes tivesse morrido e para todo o sempre se quedassem órfãs. Não as veremos apenas em Barrancos ou em Castro Laboreiro, elas estão em toda a parte onde nasça o sol: em Cória ou Catania, em Mistras ou Santa Clara del Cobre, em Varchats ou Beni Mellal, porque elas são as Mães. O olhar esperto ou sonolento, o corpo feito um espeto ou mal podendo com as carnes, elas são as Mães. A tua; a minha, se não tivera morrido tão cedo, sem tempo para que o rosto viesse a ser lavrado pelo vento. Provavelmente estão aí desde a primeira estrela. E como duram! Feitas de urze ressequida, parecem imortais. Se o não forem, são pelo menos incorruptíveis, como se participassem da natureza do fogo. Com mãos friáveis teceram a rede dos nossos sonhos, alimentaram-nos com a luz coada pela obscuridade dos seus lenços. Às vezes encostam-se à cal dos muros a ver passar os dias, roendo uma côdea ou fazendo uns carapins para o último dos netos, as entranhas abertas nas palavras que vão trocando entre si; outras vezes caminham por quelhas e quelhas de pedra solta, batem a um postigo, pedem lume, umas pedrinhas de sal, agradecem pela alma de quem lá têm, voltam ao calor animal da casa, aquecem um migalho de café, regam as sardinheiras, depois de varrerem o terreiro. Elas são as Mães, essas mulheres que Goethe pensa estarem fora do tempo e do espaço, anteriores ao Céu e ao Inferno, assim velhas, assim terrosas, os olhos perdidos e vazios, ou vivos como brasas assopradas. Solitárias ou inumeráveis, aí as tens na tua frente, graves, caladas, quase solenes na sua imobilidade, esquecidas de que foram o primeiro orvalho do homem, a primeira luz. Mas também as podes ver seguindo por lentas veredas de sombra, as pernas pouco ajudando a vontade, atrás de uma ou duas cabras, com restos de garbo na cabeça levantada, apesar das tetas mirradas. Como encontrarão descanso nos caminhos do mundo? Não há ninguém que as não tenha visto com umas contas nas mãos engelhadas rezando pelos seus defuntos, rogando pragas a uma vizinha que plantou à roda do curral mais três pés de couve do que ela, regressando da fonte amaldiçoando os anos que já não podem com o cântaro, ou debaixo de uma oliveira roubando alguma azeitona para retalhar. E cheiram a migas de alho, a ranço, a aguardente, mas também a poejos colhidos nas represas, a manjerico quando é pelo S. João. E aos domingos lavam a cara, e mudam de roupa, e vão buscar à arca um lenço de seda preta, que também põem nos enterros. E vede como, ao abrir, a arca cheira a alfazema! Algumas ainda cuidam das sécias que levam aos cemitérios ou vendem pelas bermas, juntamente com um punhado de maçãs amadurecidas no aroma dos fenos. E conheço uma que passa as horas vigiando as traquinices de um garoto que tem na testa uma estrelinha de cabrito montês — e que só ela vê, só ela vê.

       Elas são as Mães, ignorantes da morte mas certas da sua ressurreição.

       17.8.85


* Eugénio de Andrade – voz
URL: https://www.instituto-camoes.pt/activity/centro-virtual/bases-tematicas/figuras-da-cultura-portuguesa/eugenio-de-andrade
http://livro.dglab.gov.pt/sites/DGLB/Portugues/autores/Paginas/PesquisaAutores1.aspx?AutorId=8993
https://www.bibliotecadigitaleugeniodeandrade.pt/



Capa da 1.ª edição autónoma do poemário "Vertentes do Olhar", de Eugénio de Andrade (Col. Obra de Eugénio de Andrade, vol. 19, Porto: Limiar, 1987)
Direcção gráfica – Armando Alves



Capa da nova edição do livro "Vertentes do Olhar", de Eugénio de Andrade, pref. Fernando J. B. Martinho (Col. Obras de Eugénio de Andrade, Lisboa: Assírio & Alvim, Abr. 2016)



Sobrecapa da 2.ª edição, revista e acrescentada do livro "Poesia", de Eugénio de Andrade (Porto: Fundação Eugénio de Andrade, Dez. 2005)
Gravura – Ângelo de Sousa (1964)
Concepção – Armando Alves
Poesia reunida. Organização, nota de edição e bibliografia por Arnaldo Saraiva



Capa da nova edição do livro "Poesia", de Eugénio de Andrade (Col. Obras de Eugénio de Andrade, Lisboa: Assírio & Alvim, Set. 2017)
Pintura – Ilda David (2017)
Poesia reunida. Prefácio de José Tolentino Mendonça



Capa do CD "Eugénio de Andrade por Eugénio de Andrade" (Numérica, 1997)
Retrato por Jorge Ulisses (1980)
Contém quarenta e dois poemas de Eugénio de Andrade ditos pelo autor



Capa do livro "Roteiro dos Afectos Maternos", de Pedro Biscaia (Lisboa: Âncora Editora, Mai. 2025)
«Roteiro dos Afectos Maternos, o primeiro livro publicado de Pedro Biscaia, é uma urdidura de histórias de oito mulheres, no Portugal dos anos 1970, assente na diversidade do viver e sentir, em que a ficção se entrelaça com a realidade e cujo fio de Ariadne dos recantos da narrativa é a essência da condição maternal.
Será também uma história que quer fixar referências, memórias e a consciência de um contexto de vida colectiva, antes que tudo se torne descartável e se esfume no esquecimento.»
(in https://ancora-editora.pt/).

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Outros artigos com poesia de Eugénio de Andrade:
A infância e a música portuguesa
Eugénio de Andrade por Eugénio de Andrade
Celebrando Eugénio de Andrade
Camões recitado e cantado (V)
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Eugénio de Andrade e Fernando Lopes-Graça: "Aquela Nuvem e Outras"

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