
Cerejeira-negra (Prunus serotina)
© Rasbak, Set. 2005 (in https://commons.wikimedia.org/)
«Há dias, nas voltas da estrada entre Vila Real e São Martinho de Anta, vi letreiros anunciando cerejas de Resende. Senti-me tentado, mas não parei. Será, este, já o tempo delas, maduras e irresistíveis? E teriam sido aquelas precisas cerejas, assim oferecidas ao desprevenido viajante, de facto colhidas nos cerejais da margem direita do Douro? Perguntei a amigos, sugeriram que os dias não aqueceram ainda o bastante para que nos entreguemos, rendidos, ao apetecido fruto.
As cerejeiras, que explodem em flor antes de se embelezarem em lábios carmim, no reino da Gardunha, na dobra de Resende, nos tantos enclaves como o de Montes da Senhora, na zona do pinhal beirão mais chegado ao Tejo, são as árvores a que mais trepei durante a infância, nenhum outro fruto pede, como a cereja, que o apreciemos empoleirados num galho.
Num surpreendente livro de Carlos Steinwender, "Crónicas do Meu Jardim", agora colhido pelas Edições Afrontamento, a infância do autor espairece num jardim com bichos, alguns improváveis, a lagartixa-de-bocage, a carriça, o ouriço, o rato-do-campo-de-rabo-curto, o estranho licranço, as aves cantantes, a rola-turca, o mocho-galego, o pisco-de-peito-ruivo que ele tenta certa vez alcançar, imitando-lhe o trinado e convocando a indesejada curiosidade da vizinha Cesaltina, quando estava empoleirado numa cerejeira. Tão enfeitiçado pelo pisco-de-peito-ruivo que nem lhe deu para um piquenique aéreo, só trinados empoleirados. É surpreendente a infância de um jardineiro de histórias.
Passei muitas horas observando, nas estradas mais ermas, a beleza estonteante das cerejeiras em flor, com menor cartaz turístico que aquele outro conquistado pela floração das amendoeiras. Não é justo esse desnível de apetecimento. Por isso me sinto tão tocado por um certo poema de Eugénio de Andrade, ele também nascido em pátria de cerejais. É o poema "A uma cerejeira em flor", está no livro "As Mãos e os Frutos" e desafia-nos a "abrir os braços, acolher nos ramos / o vento, a luz, ou o que quer que seja; / sentir o tempo, fibra a fibra, / a tecer o coração de uma cereja".
Mas a minha infância trepava às cerejeiras, não tanto pela beleza das árvores, mais pelos piqueniques secretos que elas me permitiam, no pequeno pomar de que meu pai cuidava como um jardineiro, enquanto reproduzia trinados das aves que pareciam visitá-lo.
Esta manhã, tanta a nostalgia provocada por um cartaz na berma de uma estrada secundária a norte, procurei cerejas maduras no noticiário regional. Colho esta notícia do jornal "A Reconquista", de Castelo Branco: "O valor do leilão das primeiras cerejas do Fundão vai ajudar este ano a Liga Portuguesa contra o Cancro. É no dia 20. Notícias destas fazem florir algo em nós.» [Fernando Alves, "Um letreiro na estrada", in "Os Dias que Correm", 15 Mai. 2025]
No arquivo histórico da rádio pública não existe qualquer registo da recitação do poema de Eugénio de Andrade, "A uma cerejeira em flor"? E na discoteca da casa não consta o CD "Eugénio de Andrade dito por Nuno Miguel Henriques" (2002)? Se a resposta é negativa em ambos os casos, ainda assim não há desculpa para a ausência do desejado e conveniente remate à crónica de Fernando Alves. Podia muito bem deitar-se mão a uma canção alusiva às cerejeiras e/ou ao seu fruto, de entre as várias existentes com letras diferentes e em estilos diversos. Alguns exemplos: "Cerejeira das cerejas pretas miúdas" (poema de Carlos Mota de Oliveira), por Janita Salomé; "Cerejeira" (letra de Ana Barroso), por Ana Barroso; "Brincos para Brincar" (letra de João Linhares Barbosa), por Maria Pereira, ou Fernanda Maria, ou Tânia Oleiro, ou outra fadista; "Cerejas Frescas" (letra de João Linhares Barbosa), por Filipe Duarte; "A Estação das Cerejas" (letra de João Monge), por Aldina Duarte; "Cerejas e Jasmins" (letra de Yola Dinis), por Yola Dinis.
Para aqui destacar, escolhemos "Cerejeira das cerejas pretas miúdas", na voz de Janita Salomé com música da sua autoria sobre poema de Carlos Mota de Oliveira, que saiu no álbum "Tão Pouco e Tanto" (2003). Pesou na nossa escolha, além da excepcional qualidade da interpretação de Janita, a referência feita a Eugénio de Andrade («e as cabras/ do poeta/ Eugénio») que não podia vir mais a propósito dada a evocação que Fernando Alves fez ao mais ilustre filho de Póvoa da Atalaia, no concelho do Fundão.
Se a Antena 1 tivesse presenteado com esta pérola de Janita os ouvintes que ouviram a crónica de Fernando Alves hoje de manhã, é certo que para muitos seria uma excelente descoberta. E ao meritório artista também se faria alguma justiça, ainda que breve, considerando a vil proscrição de que tem sido alvo por quem administra a 'playlist'...
Cerejeira das cerejas pretas miúdas
Poema: Carlos Mota de Oliveira
Música: Janita Salomé
Intérprete: Janita Salomé* (in CD "Tão Pouco e Tanto", Capella/AudioPro, 2003)
Ai, cerejeira
das cerejas
pretas miúdas
esqueçamos
tudo
e tudo:
As intrincadas
veredas
de Verão
e as cabras
do poeta
Eugénio.
Ai, cerejeira
das cerejas
pretas miúdas
esqueçamos
tudo
e tudo:
O sonho
de livros
amorosamente
penteados
e despenteados
o sonho
de versos
escritos
em piões
as cadeiras
de vidro
no meio do mar
[instrumental]
Ai, cerejeira
das cerejas
pretas miúdas
sem paciência
o Mundo
não dura
e o castelo
de Noudar
lá está:
sem terra
casa ou
leite.
Ai, cerejeira,
o amor
é uma luta?
* Janita Salomé – voz
Mário Delgado – guitarras
Arranjo – Janita Salomé (guitarra acústica) e Mário Delgado (guitarra acústica com arco electrónico
e respectivo acompanhamento harmónico)
Produção – Paulo Jorge Ferreira
Consultor de produção – Jorge Mourinha
Produção executiva – Janita Salomé, Bárbara Barros Viseu, Nuno Faria
Gravado nos Estúdios Xangrilá e Masterix, Lisboa, de Julho de 2002 a Fevereiro de 2003
Captação – Paulo Jorge Ferreira, Carlos Jorge Vales, Pedro Rêgo, Jorge Avillez
Misturas e masterização – Paulo Jorge Ferreira
Biografia e discografia em: A Nossa Rádio
URL: https://www.facebook.com/janitasalome
https://music.youtube.com/channel/UC1E-8f0Ab_zxiFZQloSHSGg
https://www.youtube.com/@DoTempoDosSonhos/videos?query=janita+salome

Capa do CD "Tão Pouco e Tanto", de Janita Salomé (Capella/AudioPro, 2003)
Fotografia – Paulo Jorge Ferreira
Grafismo – Golpe de Estado
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Outros artigos com repertório de Janita Salomé:
Galeria da Música Portuguesa: Janita Salomé
A infância e a música portuguesa
Celebrando Natália Correia
Celebrando Luís Pignatelli
Celebrando Sophia de Mello Breyner Andresen
Al-Mu'tamid: "Evocação de Silves"
Em memória de Herberto Helder (1930-2015)
Janita Salomé: "Reino de Verão"
Janita Salomé: "Quando a Luz Fechou os Olhos"
Janita Salomé: "Zeca"
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Outros artigos relacionados com a crónica de Fernando Alves na Antena 1:
Galandum Galundaina: "Chin Glin Din"
"Sons d'Outrora" em viola da terra, por Miguel Pimentel
Vitorino: "Moças de Bencatel" (Conde de Monsaraz)
Teresa Silva Carvalho: "Barca Bela" (Almeida Garrett)
António Borges Coelho: "Sou Barco"
Celeste Rodrigues: "Chapéu Preto"
Sérgio Godinho: "Tem Ratos"
Ruy Belo: "E Tudo Era Possível", por Nicolau Santos
Jacques Brel: "J'Arrive"
A tristeza lusitana
Segréis de Lisboa: "Ay flores do verde pino" (D. Dinis)
Manuel D'Oliveira: "O Momento Azul"
Aldina Duarte: "Flor do Cardo" (João Monge)
José Mário Branco: "Inquietação"
Chico Buarque: "Bom Conselho"
Teresa Paula Brito: "Meu Aceso Lume - Meu Amor" (Maria Teresa Horta)
Adriano Correia de Oliveira: "Pensamento" (Manuel Alegre)
Fausto Bordalo Dias: "Comboio Malandro" (António Jacinto)
Grupo Coral "Os Ganhões de Castro Verde" com Luiz Avellar: "As Nuvens Que Andam no Ar"
Amélia Muge: "Ai, Flores"
Afonso Dias: "Os Amigos" (Camilo Castelo Branco)
Pedro Barroso: "Barca em Chão de Lama"
António Gedeão: "Poema do Coração"
Reinaldo Ferreira: "Quero um cavalo de várias cores"
Chico Buarque: "Construção"
João Afonso: "Tangerina dos Algarves"
Joan Manuel Serrat: "Cantares" (Antonio Machado e Joan Manuel Serrat)
Belaurora: "Lamento do Camponês" (Popular e Onésimo Teotónio Almeida)
Manuel Freire: "Fala do Velho do Restelo ao Astronauta" (José Saramago)
João Afonso: "O Som dos Sapatos"
Fernando Pessoa: "Tenho dó das estrelas"
Carlos Mendes: "Alcácer Que Vier" (Joaquim Pessoa)
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