12 maio 2025

Carlos Mendes: "Alcácer Que Vier" (Joaquim Pessoa)


© Tiago Petinga / LUSA
(in https://www.publico.pt/)


«Aquele verde, com franqueza, não é o "verde que te quero verde", não é o verde do Lorca, não lança "um barco sobre o mar", nem um cavalo à brida na montanha.
Nem é a "verdura bela" da cor de limão sobre a qual Camões estendeu os olhos de seu coração.
Não basta guardares num saquinho escondido no bolso um pó verde desmaiado para que ele se transforme na tinta verde com que Octavio Paz fez o seu poema ambiental. No poema de Paz, "a tinta verde cria jardins, selvas, prados/ folhas onde cantam as letras,/ palavras que são árvores,/ frases que são verdes constelações".
O vosso verde não é um verde lima. É verde limo, viscoso, peganhoso.
Não se lança um verde, seja qual for o tom, à cara de um homem que nos aperta a mão. Não há desculpa, nem a dos verdes anos. Não há clemência, seja o verde oliva ou esmeralda, turquesa ou marciano. Seja o verde verdinho.
O grande poeta Manoel de Barros viu que a tarde estava verde "no olho das garças". Drummond gostava de se deitar "à sombra doce das moças em flor" que era "uma sombra verde, macia, vã". Não assim o verde que levas escondido, num plástico manhoso, o verde que te preparas para lançar à cara de um homem que te aperta a mão.
Não acaba bem o poema a que Leminski chamou "Verdura". Começa assim: "De repente,/ me lembro do verde,/ a cor verde/ a mais verde que existe/ a cor mais alegre/ a cor mais triste/ o verde que vestes/ o verde que vestiste/ no dia em que te vi/ no dia em que me viste". Se te deres à maçada de o ler, verás que não acaba bem.
Como não acabou bem o verde que a tua mão tornou eléctrico.
Diz-se que a cor verde alivia o stress. Mas não um verde assim, manhoso, embrulhado em plástico, leveza fóssil de bolso. O vosso é um verde papel da parede à qual bem podeis limpar as mãos.» [Fernando Alves, "Aquele verde", in "Os Dias que Correm", 12 Mai. 2025]


Fernando Alves refere-se, bem entendido, ao episódio em que dois jovens, activistas do movimento Fim ao Fóssil, lançaram pó verde sobre a cara e o casaco do presidente do partido Iniciativa Liberal, Rui Rocha (fotografia supra). O gesto não é bonito, mas não é de todo condenável. E porquê? Simplesmente por estar em causa um bem maior: o futuro e a vida das gerações mais novas e das vindouras que estarão em seriíssimo risco se não se puser travão a fundo, agora (já!), ao uso massificado de combustíveis fósseis – carvão, petróleo e gás natural – e, bem assim, à desflorestação, mormente nas zonas tropicais, e à criação intensiva de gado, principalmente do ruminante (cujo processo digestivo provoca a libertação de metano). Estes actos de rebeldia e de protesto, embora desagradáveis para os afectados, têm de ser tolerados porque à compostura e às boas maneiras esperadas nos jovens para com os mais velhos se alevanta um valor mais alto que é, reiteramos, a preservação das condições de habitabilidade para a espécie humana (e para tantas outras espécies) no planeta Terra. São gritos de revolta contra a marcha da Humanidade rumo ao abismo e, nessa medida, dignos da condescendência e até da solidariedade dos menos jovens que não estão comprometidos nem querem ser coniventes com a devastação da Terra e não são egoístas a ponto de deixarem aos jovens e aos ainda não nascidos um planeta inóspito e impróprio para a vida humana, cheio de «ruínas, desertos e lixo», como referia o papa Francisco. Rui Rocha e os dirigentes de outros partidos, qualquer que seja a sua posição no espectro político-ideológico, que não assumam publicamente uma atitude firme e consistente a favor do fim, a breve prazo, do consumo de combustíveis fósseis e de outras práticas ecologicamente perniciosas não podem, por isso, queixar-se de serem pintados com pó ou tinta verde. «Quem não quer ser lobo não lhe veste a pele.»
Para rematar a crónica, caso não existisse no arquivo histórico da rádio pública um registo recitado do poema (traduzido em português, obviamente) de Octavio Paz, que foi parcialmente citado por Fernando Alves, uma óptima escolha seria a maravilhosa canção "Alcácer Que Vier", interpretada por Carlos Mendes com inspirada música da sua autoria sobre um belíssimo poema de Joaquim Pessoa. A gravação original, com o primoroso arranjo de Pedro Osório, saída no LP "Carlos Mendes canta 'Amor Combate' de Joaquim Pessoa" (Toma Lá Disco, 1976) e posteriormente incluída na compilação da Colecção Clássicos da Renascença (Movieplay, 2000) é a nossa preferida, mas não apontaríamos o dedo acusador à Antena 1 se a opção fosse passar a versão integrante do CD "Festa da Vida" (Glam Music, 2018)...
Assim como Alcácer Quibir significou o desastre para Portugal, a expelição de gases carbónicos (essencialmente dióxido de carbono e metano) para a atmosfera, a continuar, será calamitosa para a Terra e para a vida que nela existir. «Em Alcácer eram verdes/ os homens que não voltaram» mas no planeta Terra os homens poderão continuar verdes (vivos) se a cupidez e a loucura de uns quantos forem travadas a tempo por muitos. Oxalá!



Alcácer Que Vier



Poema: Joaquim Pessoa (in "Amor Combate", Col. Círculo de Poesia, Vol. 77, Lisboa: Moraes Editores, 1977 – p. 43-44; "Amor Combate", Col. De Viva Voz, Vol. 14, Lisboa: Litexa, 1985)
Música: Carlos Mendes
Orquestração: Pedro Osório
Intérprete: Carlos Mendes* (in LP "Carlos Mendes canta 'Amor Combate' de Joaquim Pessoa", Toma Lá Disco, 1976; single "Alcácer Que Vier / Balada para uma Mulher", Toma Lá Disco, 1977; CD "Carlos Mendes", Col. Clássicos da Renascença, vol. 73, Movieplay, 2000)




Em Alcácer eram verdes
as aves do pensamento.
Eram tão leves tão leves
como as lanternas do vento.

Em Alcácer eram verdes
os cavalos encarnados.
Eram tão fortes tão negros
como os punhos decepados.

Em Alcácer eram verdes
as armas que eu inventei.
Eram tão leves tão leves
tão leves que nem eu sei.

Em Alcácer eram verdes
os homens que não voltaram.
Eram tão verdes tão verdes
como os campos que deixaram.

Em Alcácer eram verdes
as maçãs feitas de lume.
Eram tão frias tão frias
como as dobras do ciúme.

Em Alcácer eram verdes
estas palavras que agora
são tão caladas tão cernes
tão feitas desta demora.

Em Alcácer eram verdes
as flores da sepultura.
Eram tão verdes tão verdes
tão verdes como a loucura.

Em Alcácer era verde
meu amor o teu olhar.
Era tão verde tão verde
quase à beira de cegar.

Em Alcácer eram verdes
os lençóis onde morri.
Eram tão frios tão verdes
como os campos que eu não vi.

Em Alcácer eram verdes
as feridas do meu país.
Eram tão fundas tão verdes
como este mal de raiz.

[instrumental]

Em Alcácer era verde
meu amor o teu olhar.
Era tão verde tão verde
quase à beira de cegar.

Em Alcácer eram verdes
os lençóis onde morri.
Eram tão frios tão verdes
como os campos que eu não vi.

Em Alcácer eram verdes
as feridas do meu país.
Eram tão fundas tão verdes
como este mal de raiz.

[instrumental / vocalizos]


* [Créditos gerais do disco:]
Carlos Mendes – voz
Músicos:
Ricardo Ventura, João Oliver Pereira, Clóvis Sá de Bandeira, Adolfo Campos Chaves, Joaquim Falcão, Maria Margarida Justo Pereira, António de Oliveira e Silva, Idílio Gomes, Agostinho Jorge Henriques, Joaquim Martins de Carvalho, António da Cunha Neto, Adácio Pestana, Gilberto Mota, Amâncio Freitas Costa, Fernando Falé, Zé da Ponte, Rui Reis, Fernando Tordo, Carlos Mendes, Pedro Osório, João Augusto Nogueira, Maria Manuela Rosado Mora, José Manuel Rosa de Sá Machado, René Felix da Costa, António Duarte Neves, Luísa Vasconcelos, Henrique Luz Fernandes, Maria da Conceição Nogueira Gomes, Manuel Lopes Fernandes, Manuel Augusto Póvoas
Coros:
Fernando Tordo, Paulo de Carvalho, Carlo Mendes

Produção – Toma Lá Disco
Feito em Lisboa e Odeceixe, de Fevereiro a Agosto de 1976
Gravado no Estúdio da Rádio Triunfo, Lisboa
Engenheiro de som – José Manuel Fortes
Misturas – Carlos Mendes, Pedro Osório e José Luís Simões
URL: https://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Mendes
https://www.facebook.com/CarlosMendes.Musica/
https://music.youtube.com/channel/UC9NTrNKsDP8bzcqwNLJLy-g
https://music.youtube.com/channel/UCjYpU_PTbPpPI-sjFJDrUFQ
https://www.youtube.com/@DoTempoDosSonhos/videos?query=carlos+mendes



Capa da 1.ª edição do livro "Amor Combate", de Joaquim Pessoa (Col. Círculo de Poesia, Vol. 77, Lisboa: Moraes Editores, 1977)



Capa do volume "Amor Combate" (poesia reunida), de Joaquim Pessoa (Col. De Viva Voz, Vol. 14, Lisboa: Litexa, 1985)
Concepção – Carlos Campos
Nota na contracapa:
«Amor Combate é a reedição integral da poesia de Joaquim Pessoa desde "O Pássaro no Espelho" (1975) até "Os Dias da Serpente" (1981), incluindo agora "A Morte Absoluta" que, tendo sido publicado apenas em 1983 na antologia "Paiol de Polén" (Círculo de Leitores), foi escrito em 1974.
Não é, portanto, Amor Combate uma recolha selectiva de poemas, mas antes a pura e simples re-publicação dos oito livros de poesia em um único volume.»



Capa do LP "Carlos Mendes canta 'Amor Combate' de Joaquim Pessoa" (Toma Lá Disco, 1976)
Concepção e orientação gráfica – António Pimentel



Capa do single "Alcácer Que Vier / Balada para uma Mulher", de Carlos Mendes (Toma Lá Disco, 1977)



Capa da compilação em CD "Carlos Mendes" (Col. Clássicos da Renascença, vol. 73, Movieplay, 2000)

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