02 junho 2025

Alexandre O'Neill: "Periclitam os grilos", por Mário Viegas


Grilo do campo (Gryllus campestris)
© Acervo Zoológico do Estado da Baviera, Munique
(in https://commons.wikimedia.org/)


«Hesito entre ficar à escuta de Daniel, o vendedor de grilos do Senhor de Matosinhos, ou da batida do coração de Lucas, aluno da Secundária Alves Martins, de Viseu. Se não houve sobressaltos, se Lucas não periclitou, como "periclitam os grilos" num poema de O'Neill, leva já uma hora quase certinha a experiência de abandono vigiado a que se pretende entregar até às cinco da tarde de hoje. Nove horas sem comer, sem beber, e sem falar, o corpo abandonado num cubo de ferro de três metros, é uma instalação, como se diz, mas em silêncio, em abandono vigiado, por uma nutricionista e um fisiologista [>> "Diário de Viseu"].
Daniel, o vendedor de grilos com quem o repórter Miguel Amorim, do JN, conversou na feira de Matosinhos, pode ser que tenha ido buscar grilos ao produtor, em Penafiel. Vai lá todos os dias, explica ele. Lucas, se tudo correr como previsto, não explica nada até às cinco da tarde. Este é um gesto de despedida, está de abalada para Belas Artes, no Chiado à tardinha, às vezes.
Dá Lucas o corpo ao manifesto, se de um manifesto se trata. E trata. Corpo e espaço, sustenta o jovem, "são unos e contínuos". Não é provável que as televisões mostrem em directo este corpo ao cubo, não tendo ele sido anavalhado, não estando Lucas barricado num centro comercial com reféns presos por um fio, ou mergulhado até à cintura em água do mar confirmando ao repórter que o calor sim dilata os corpos.
Periclitam os grilos? É o periclitas. Cala-te, Grilo Falante, não sejas Pinóquio.
Já Daniel, na instalação por certo acanhada do Senhor de Matosinhos, regressado de Penafiel onde todos os dias vai buscar grilos ao produtor, prepara-se para a instalação que o obriga a raspar as asas, a estridular freguesas. Todos os dias, garante Daniel ao JN, vende uma média de cinquenta grilos, a cinco euros cada um, com gaiola.
É a nossa infância que arregala os olhos, dá uma volta no carrossel e canta com as asas, ou melhor, estridula, a nossa infância aprendendo mais adiante na vida que alguns grilos não cantam. São os chamados grilos-tigre, e até às cinco da tarde também o grilo-Lucas, fazendo de bicho-da-seda, de bicho da sede, no cubo, linda mocidade, foi-se o sol embora.
Não podes, sequer, raspar as asas, Lucas, e estridular? Já nem te pergunto se aceitas uma fartura da Lola ou um bolinho de amor da confeitaria Sarita. Depois vingas-te, faz de conta que te vingas, na Marques, lá para as Belas Artes.» [Fernando Alves, "Não podes, sequer, estridular?", in "Os Dias que Correm", 2 Jun. 2025]


O epílogo à crónica de hoje era, evidentemente, o poema "Periclitam os grilos", de Alexandre O'Neill, que Fernando Alves fez questão de evocar. Ora existindo, pelo menos, dois registos na forma dita/recitada editados em disco – um pelo autor e outro por Mário Viegas –, além dos que, provavelmente, estão no arquivo histórico da rádio pública, dava até para escolher. Mas Ricardo Soares não esteve, uma vez mais, para se ralar e aos ouvintes que ficaram com o desejo de ouvir o poema não restou outra alternativa do que ir tentar encontrá-lo na internet, se acaso não possuíssem ou não tivessem à mão uma gravação digna de apreço. Ambas as mencionadas são muito boas, mas confessamos a nossa preferência pela que Mário Viegas gravou para o álbum "Poemas de Bibe: Grande Poesia Portuguesa Escolhida para os Mais Pequenos" (UPAV, 1990), que ali mostra a sua superior e incomparável arte de recitar poesia. Uma lição de mestre como já não há!



PERICLITAM OS GRILOS



Poema de Alexandre O'Neill (in "Abandono Vigiado", Col. Poesia e Verdade, Lisboa: Guimarães Editores, 1960; "Poesias Completas: 1951-1981", Col. Biblioteca de Autores Portugueses, Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1982 – p. 152; "Poesias Completas: 1951-1986", 3.ª edição, Col. Biblioteca de Autores Portugueses, Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1990 – p. 152; "Poesias Completas", 4.ª edição, Lisboa: Assírio & Alvim, 2000 – p. 140; "Poesias Completas & Dispersos", Col. Obras de Alexandre O'Neill, Porto: Assírio & Alvim, 2017 – p. 140)
Recitado por Mário Viegas* (in LP/CD "Poemas de Bibe: Grande Poesia Portuguesa Escolhida para os Mais Pequenos", UPAV, 1990, reed. Público, 2006)




Periclitam os grilos:
a noite é nada.
Quem tem filhos tem cadilhos.
(Que quadra tão bem rimada!)

Não espere, leitor, que eu diga:
«Debaixo daquela arcada...».
Não venho fazer intriga:
versejo só — e mais nada.

Assim o terceiro verso
desta tirada
(reparou que é um provérbio?)
não significa mais nada.

Se a noite é nada e os grilos
não estão de asa parada,
não vou puxar, só por isso,
o fio à sua meada,

leitor que me pede a história
que já traz engatilhada,
leitor que não se habitua
a que não aconteça nada

em poesia que comece
como esta foi começada
e acabe como esta
vai ser agora acabada...


* Mário Viegas – voz

Produção – José Mário Branco e António José Martins
Gravado no Angel Studio, Lisboa, em 2, 6, 7 e 8 de Outubro de 1990
Engenheiro de som – José Manuel Fortes
URL: https://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A1rio_Viegas
https://www.infopedia.pt/$mario-viegas
https://www.youtube.com/@DoTempoDosSonhos/videos?query=mario+viegas



Capa do livro "Abandono Vigiado", de Alexandre O'Neill (Col. Poesia e Verdade, Lisboa: Guimarães Editores, 1960)



Capa da 1.ª edição do volume "Poesias Completas", de Alexandre O'Neill, pref. Clara Crabbée Rocha (Col. Biblioteca de Autores Portugueses, Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1982)



Capa da 3.ª edição revista e aumentada do volume "Poesias Completas: 1951-1986", de Alexandre O'Neill, pref. Clara Crabbée Rocha (Col. Biblioteca de Autores Portugueses, Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Mai. 1990)



Capa da 4.ª edição do volume "Poesias Completas", de Alexandre O'Neill, introd. Miguel Tamen (Lisboa: Assírio & Alvim, Nov. 2000)



Capa do volume "Poesias Completas & Dispersos", de Alexandre O'Neill, posf. Maria Antónia Oliveira (Col. Obras de Alexandre O'Neill, Porto: Assírio & Alvim, Abr. 2017)



Capa do LP/CD "Poemas de Bibe: Grande Poesia Portuguesa Escolhida para os Mais Pequenos", de Mário Viegas e Manuela de Freitas (UPAV, 1990)
Fotografia – Rui Cunha.

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Outro artigo com poesia de Alexandre O'Neill:
Carlos do Carmo: "Gaivota" (Alexandre O'Neill)

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Outros artigos com poesia recitada por Mário Viegas:
Mário Viegas: 10 anos de saudade
A infância e a música portuguesa
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Ser Poeta
Em memória de António Ramos Rosa (1924-2013)
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Em memória de Herberto Helder (1930-2015)
Celebrando Eugénio de Andrade
Fernando Pessoa/Álvaro de Campos: "Dois Excertos de Odes", por Mário Viegas
Cesário Verde: "De Tarde"
Cesário Verde por Mário Viegas
Camilo Pessanha: "Singra o navio", por Mário Viegas
Manuel Alegre: "País de Abril", por Mário Viegas
Pablo Neruda: "Ode ao Pão", por Mário Viegas

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Outros artigos relacionados com a crónica de Fernando Alves na Antena 1:
Galandum Galundaina: "Chin Glin Din"
"Sons d'Outrora" em viola da terra, por Miguel Pimentel
Vitorino: "Moças de Bencatel" (Conde de Monsaraz)
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A tristeza lusitana
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Aldina Duarte: "Flor do Cardo" (João Monge)
José Mário Branco: "Inquietação"
Chico Buarque: "Bom Conselho"
Teresa Paula Brito: "Meu Aceso Lume - Meu Amor" (Maria Teresa Horta)
Adriano Correia de Oliveira: "Pensamento" (Manuel Alegre)
Fausto Bordalo Dias: "Comboio Malandro" (António Jacinto)
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Afonso Dias: "Os Amigos" (Camilo Castelo Branco)
Pedro Barroso: "Barca em Chão de Lama"
António Gedeão: "Poema do Coração"
Reinaldo Ferreira: "Quero um cavalo de várias cores"
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Joan Manuel Serrat: "Cantares" (Antonio Machado e Joan Manuel Serrat)
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Manuel Freire: "Fala do Velho do Restelo ao Astronauta" (José Saramago)
João Afonso: "O Som dos Sapatos"
Fernando Pessoa: "Tenho dó das estrelas"
Carlos Mendes: "Alcácer Que Vier" (Joaquim Pessoa)
Janita Salomé: "Cerejeira das cerejas pretas miúdas" (Carlos Mota de Oliveira)
Mário Moita: "Senhora Cegonha"
Políbio Gomes dos Santos: "Poema da Voz Que Escuta", por Maria Barroso
Pedro Barroso: "Nasce Afrodite, amor, nasce o teu corpo" (José Saramago)
Bugalhos: "Carvalho Grande"
Eugénio de Andrade: "As Mães"
Cana rachada d'Azambuja
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