08 maio 2025

Fernando Pessoa: "Tenho dó das estrelas"


© Akira Fujii / Hubble, ESA
(in https://canaltech.com.br/)
Sirius: estrela-alfa da constelação de Canis Major (Cão Maior) e a mais brilhante do céu nocturno da Terra.


«Ontem, também pendurei longamente o olhar no plano fixo de um telhado de Roma onde uma gaivota enchia o peito ao vento como um guarda suíço, parecendo vigiar a chaminé mais mediática destes dias.
Nos canais que fui sintonizando, repetia-se aquele plano fixo. E a dado momento, os enormes ecrãs montados na praça apinhada onde todos esperavam, daquela chaminé, um fumo que se espalhasse no céu como música tocada por uma revoada de anjos ou de estorninhos, revelavam à multidão apinhada o mesmo plano fixo.
Poderia o fumo sair claro ou escuro e, entretanto, instalava-se o crepúsculo, o dia declinava. Em alguns momentos, o plano fixo parecia ter o dedo de um cineasta desenhador de nuvens. O rebanho voador, o céu a que chamam os metereólogos encarneirado deu lugar, em plena hora de vésperas, a um negrume cumuliforme que, em certos momentos, parecia sair daquela chaminé. Logo um clarão fugaz se intrometia, o sol furava entre nuvens pesadas.
Na véspera eu lera que astrónomos de um observatório do Havai tinham ouvido "música" de uma estrela, até agora considerada silenciosa. Nos vários estúdios de televisão presbíteros sugeriam que "Nosso Senhor faz surpresas" e que os cardeais em sua silenciosa compenetração seriam tocados pelo Espírito Santo e eu pensei em pombas voando muito longe do telhado guardado pela gaivota com porte de guarda suíço.
Um padre chamado João Vila Chã fala, já não sei em que canal, de "igrejas longínquas", quase tão longínquas (sou eu a deixar-me ir com as nuvens, os olhos ainda presos à chaminé do plano fixo) quase tão longínquas como a estrela cujas "oscilações ondulantes" ressoam nos ouvidos dos astrónomos do Havai. E o padre, cuja voz me soa a música, explica agora que o cardeal da Mongólia é visto, até pelos observadores qualificados, como o pároco de uma pequena aldeia. E, todavia, é o cardeal da Mongólia.
Em cima das seis da tarde, nuvens negras, de fumo nada. "Para o bem da Igreja, é bom que não haja pressa", diz outro presbítero comentador. A gaivota imóvel parece estar de acordo. Alguém observa, noutro canal talvez: "Não sei se é a mesma gaivota de 2013".
O telhado, sim, é o mesmo. E a chaminé, também. E lembro-me de Mia Couto, poeta muito atento à ciência: "Se construísse uma chaminé em minha casa, não era para sair o fumo, mas para entrar o céu".
Yaguang Li, o investigador do Instituto de Astronomia da Universidade do Havai, explica entretanto que "as vibrações de uma estrela são como a sua canção única". O Espírito Santo, sentado numa nuvem por detrás da Mongólia, trauteia um nome, um ponto cardeal.
Mesmo diante de um plano fixo, os pensamentos levantam voo.» [Fernando Alves, "O plano fixo", in "Os Dias que Correm", 8 Mai. 2025]


Que poema ou canção podia escolher-se para servir de remate à crónica que Fernando Alves lavrou para o dia de hoje? Um(a) que falasse de chaminés seria o(a) mais óbvio(a), mas é aparentemente difícil encontrar alguma gravação de interesse que não seja de cariz natalício...
Já quanto a registos (quer recitados, quer cantados) versando sobre estrelas a situação é bem diferente, e em face de tal abundância a selecção não se afiguraria fácil e imediata, a menos que se seguisse um determinado critério de incidência, como a efeméride de um autor ou de um intérprete. Ora, dado que em 2025 se completam 90 anos sobre a morte de Fernando Pessoa, podemos com toda a oportunidade e justeza trazer o seu poema "Tenho dó das estrelas". De entre as múltiplas gravações existentes, em português de Portugal e do Brasil, damos enfoque a duas feitas do lado de cá do Atlântico: uma recitada (por Varela Silva) e outra cantada (por José Mário Branco & Grupo Coral "Os Escolhidos").
Não teriam os ouvintes que escutaram a crónica em directo, quando foi transmitida hoje de manhã pela Antena 1, apreciado esta prendinha pessoana, mesmo que fosse noutra voz? Fernando Alves, conhecida que é a sua paixão pela poesia, teria certamente também gostado que um destes registos fosse tomado como epílogo ilustrativo das alusões a uma estrela de brilho oscilante que fez na sua crónica...



Tenho dó das estrelas



Poema de Fernando Pessoa (in revista "Mensagem", n.º 1, Abr. 1938; "Poesias de Fernando Pessoa", Col. Obras Completas de Fernando Pessoa, Vol. I, Lisboa: Edições Ática, 1942, 14.ª edição, 1993 – p. 204-205)
Recitado por Varela Silva* (in LP "Fernando Pessoa", Philips, 1970; reed. digital: Universal Music Portugal, 2021)




Tenho dó das estrelas
Luzindo há tanto tempo,
Há tanto tempo...
Tenho dó delas.

Não haverá um cansaço
Das coisas,
De todas as coisas,
Como das pernas ou de um braço?

Um cansaço de existir,
De ser,
Só de ser,
O ser triste brilhar ou sorrir...

Não haverá, enfim,
Para as coisas que são,
Não a morte, mas sim
Uma outra espécie de fim,
Ou uma grande razão —
Qualquer coisa assim
Como um perdão?


* Varela Silva – voz
URL: https://pt.wikipedia.org/wiki/Alberto_Varela_Silva
https://www.infopedia.pt/artigos/$varela-silva
https://music.youtube.com/channel/UCys9lzYjkce5-V0aNfjRCrw



Tenho dó das estrelas



Poema: Fernando Pessoa (in revista "Mensagem", n.º 1, Abr. 1938; "Poesias de Fernando Pessoa", Col. Obras Completas de Fernando Pessoa, Vol. I, Lisboa: Edições Ática, 1942, 14.ª edição, 1993 – p. 204)
Música: José Mário Branco
Intérpretes: José Mário Branco* & Grupo Coral "Os Escolhidos" (in CD "Resistir É Vencer", José Mário Branco/EMI-VC, 2004, reed. Parlophone/Warner Music Portugal, 2017)




Tenho dó das estrelas
Luzindo há tanto tempo,
Há tanto tempo...
Tenho dó delas.

Não haverá um cansaço
Das coisas,
De todas as coisas,
Como das pernas ou de um braço?

Um cansaço de existir,
De ser,
Só de ser,
O ser triste brilhar ou sorrir...

Não haverá, enfim,
Para as coisas que são,
Não a morte, mas sim
Uma outra espécie de fim,
Ou uma grande razão —
Qualquer coisa assim
Como um perdão?


* José Mário Branco – voz
Luís Cunha – trombone tenor
Carlos Gonçalves – trombone baixo

Grupo Coral "Os Escolhidos" (Amélia Muge, Fernando Pinheiro, Filipa Pais, Genoveva Faísca, Guilhermino Monteiro, Jorge Palma, José Manuel David, Luísa Rodrigues, Manuela de Brito, Paulo Santos Silva e Rui Vaz) – coro

Orquestra de Gratz (Viena):
Dong Hynk Kim – maestro
Luís Morais, Sergei Bolotny, Andreas Kalfmann, Annette Veiltendorber, Narachi Nima e Kathrin Lenzenweger – 1.os violinos
Ko Wang-Yo, Smaranda Lelutiv, Orsolya Pálfi, Nora Põtter, Stalislava Svirac e Ardian Lahi – 2.os violinos
Michael Trabesinger, Marie Therese Hartet, Laura Jungairth e Margarethe Hlava – violas d'arco
Lee il-Se, Pflegard Wilhelm e Ele Schõfmann – violoncelos
James Rapport e König Franz – contrabaixos

Direcção, produção, arranjos e orquestrações – José Mário Branco
Assistência de produção artística – Manuela de Freitas
Assistência de produção musical – António José Martins
Produção executiva – Paulo Salgado / Vachier & Associados, Lda.
Direcção técnica – António Pinheiro da Silva
Assistência de direcção técnica e anotações – Maria João Castanheira
Gravado e masterizado no Estúdio 'O Circo a Vapor' (Lisboa), por António Pinheiro da Silva, Frederico Pereira e Maria João Castanheira, de Janeiro a Março de 2004
Gravação de cordas na Wiener Konzerthaus (Viena) por António Pinheiro da Silva, Maria João Castanheira, Georg Burdicek e Andreas Melcher, em Fevereiro de 2004
Edição e misturas nos Estúdios Pé-de-Meia (Oeiras), por António Pinheiro da Silva, Frederico Pereira, Maria João Castanheira e José Mário Branco, em Fevereiro e Março de 2004
URL: https://pt.wikipedia.org/wiki/Jos%C3%A9_M%C3%A1rio_Branco
https://arquivojosemariobranco.fcsh.unl.pt/
https://www.facebook.com/FascismoNuncaMais/posts/725849500857765/
https://expresso.pt/cultura/2019-11-19-O-momento-antes-de-disparar-a-seta-a-entrevista-de-Jose-Mario-Branco
https://www.buala.org/pt/cara-a-cara/jose-mario-branco-a-eterna-inquietacao
https://www.nit.pt/cultura/musica/morte-lenda-momentos-marcantes-vida-jose-mario-branco
https://www.esquerda.net/topics/dossier-303-jose-mario-branco-voz-da-inquietacao
https://www.publico.pt/jose-mario-branco
https://www.youtube.com/channel/UChQPBSV5W6kL-jw1Tp08g_w
https://www.youtube.com/user/DoTempoDosSonhos/videos?query=jose+mario+branco



Capa da 1.ª edição do livro "Poesias de Fernando Pessoa", Col. Obras Completas de Fernando Pessoa, Vol. I (Lisboa: Edições Ática, 1942)



Capa do LP "Fernando Pessoa", de Varela Silva (Philips, 1970)
Fotografia – Nuno Calvet



Capa do CD "Resistir É Vencer", de José Mário Branco (EMI-VC, 2004)
Reprodução parcial do quadro "Resistência", 1946, de Júlio Pomar [imagem da obra integral e texto explicativo de Ana Anacleto >> aqui]

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Outros artigos com poesia de Fernando Pessoa:
João Villaret: centenário do nascimento
Ser Poeta
Fernando Pessoa por João Villaret
Fernando Pessoa/Álvaro de Campos: "Dois Excertos de Odes", por Mário Viegas
Fernando Pessoa/Álvaro de Campos: "Aniversário", por Luís Lima Barreto
Em memória de Tereza Tarouca (1942-1919)
Cantos de Natal da Galiza e de Portugal
Celebrando Jorge Croner de Vasconcellos

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Outro artigo com poesia dita por Varela Silva:
Camões por Carmen Dolores

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Outros artigos com repertório interpretado por José Mário Branco ou da sua autoria:
A infância e a música portuguesa
Celebrando Natália Correia
Celebrando Sophia de Mello Breyner Andresen
José Mário Branco: "Zeca (Carta a José Afonso)"
Gina Branco: "Cantiga do Leite" (José Mário Branco)
Camões recitado e cantado (VI)
José Mário Branco: "Do Que um Homem É Capaz"
José Mário Branco: "Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades"
Camões evocado por Sophia
José Mário Branco com Fausto: "Canto dos Torna-Viagem"
José Mário Branco: "Inquietação"

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Outros artigos relacionados com a crónica de Fernando Alves na Antena 1:
Galandum Galundaina: "Chin Glin Din"
"Sons d'Outrora" em viola da terra, por Miguel Pimentel
Vitorino: "Moças de Bencatel" (Conde de Monsaraz)
Teresa Silva Carvalho: "Barca Bela" (Almeida Garrett)
António Borges Coelho: "Sou Barco"
Celeste Rodrigues: "Chapéu Preto"
Sérgio Godinho: "Tem Ratos"
Ruy Belo: "E Tudo Era Possível", por Nicolau Santos
Jacques Brel: "J'Arrive"
A tristeza lusitana
Segréis de Lisboa: "Ay flores do verde pino" (D. Dinis)
Manuel D'Oliveira: "O Momento Azul"
Aldina Duarte: "Flor do Cardo" (João Monge)
José Mário Branco: "Inquietação"
Chico Buarque: "Bom Conselho"
Teresa Paula Brito: "Meu Aceso Lume - Meu Amor" (Maria Teresa Horta)
Adriano Correia de Oliveira: "Pensamento" (Manuel Alegre)
Fausto Bordalo Dias: "Comboio Malandro" (António Jacinto)
Grupo Coral "Os Ganhões de Castro Verde" com Luiz Avellar: "As Nuvens Que Andam no Ar"
Amélia Muge: "Ai, Flores"
Afonso Dias: "Os Amigos" (Camilo Castelo Branco)
Pedro Barroso: "Barca em Chão de Lama"
António Gedeão: "Poema do Coração"
Reinaldo Ferreira: "Quero um cavalo de várias cores"
Chico Buarque: "Construção"
João Afonso: "Tangerina dos Algarves"
Joan Manuel Serrat: "Cantares" (Antonio Machado e Joan Manuel Serrat)
Belaurora: "Lamento do Camponês" (Popular e Onésimo Teotónio Almeida)
Manuel Freire: "Fala do Velho do Restelo ao Astronauta" (José Saramago)
João Afonso: "O Som dos Sapatos"

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