
© Haitham Imad / European Pressphoto Agency
[imagem extraída da primeira página do jornal "Público", de 27 Mai. 2025]
«Num poema em que fala de um Ulisses farto de prodígios, chorando de amor "ao divisar a Ítaca / verde e humilde", uma Ítaca que seria, afinal, "a própria arte", Jorge Luis Borges chama a nossa atenção para o que um espelho nos pode devolver, poço sem fundo de uma alteridade desconcertante: "Às vezes certas tardes uma cara/ olha-nos do mais fundo dum espelho;/ a arte deve ser como esse espelho/ que nos revela a nossa própria cara" – uso a tradução de Ruy Belo, na selecção de poemas escolhidos do argentino que o próprio Ruy Belo organizou para a Dom Quixote, no início da década de 70.
Borges ocupou-se muito de espelhos e do inesperado que eles podem devolver-nos, incluindo a margem do grotesco e do fantasioso com que nos surpreende no "Livro dos Seres Imaginários". Ruy Belo deu-nos a ver os rostos, "o inesgotável rosto" de que fala no primeiro poema de Outono, a nossa cara de andar na rua, a enorme responsabilidade de que se reveste a circunstância de termos cara.
A todo o tempo, alguém nos diz, a respeito de um objecto, de uma vestimenta, de uma ocupação mais ou menos trivial: "é a tua cara". Não é a isso, a esse modo de dizer que afinal pouco diz, não é a isso que pretendo chegar.
Tomemos que os jornais espalhados sobre a mesa são espelhos, de outra maneira. Folheamo-los, não tanto em busca de Ítacas verdes, mas de rostos que nos acrescentem uma explicação do mundo ou, vá lá, uma perplexidade que desenhe uma pergunta, um sentido, um pé atrás, uma incredulidade. Nos jornais de hoje, os desta manhã, ainda escondida no seu próprio insólito, a pergunta que tornou um vídeo viral, espelho sem fundo de um voyeurismo que precisa de ser alimentado, a mão de Brigitte na cara do marido presidente, à saída de um avião na pista de Hanói. O que foi aquilo, espelho nosso, uma bofetada ou, como explicou, o Eliseu, um gesto de cumplicidade? E o que é aquilo, no rosto de Jacinta, avó de dois rapazes levados pelo mar, na capa do JN? São talvez lágrimas, senhor. E que pedem tantos banqueiros, de cara fechada, sentados na capa do DN? Pedem estabilidade e medidas, diz a tituleira. E a cara de Marcelo, ao que vem, na última do Negócios? Vem admitir que indigita. Não tarda, indigita.
Não te aproximes entretanto demasiado da foto de capa do Público. Ela é, entre todas as que povoam as capas de jornais portugueses, esta manhã, a que mais se confunde com a ideia de espelho. Tem cuidado, afasta de ti o jornal, mantém uma distância cautelar de segurança durante a leitura. Esta criança que parece fitar-te na foto premiada de Haitham Imad, da agência EPA, já nem mexe da face um músculo, já nem insinua um gesto na tua direcção. O rosto tem estampada uma palidez cadavérica, os braços e as pernas estão pousados numa esqualidez que abraça já a morte, uma das mãos suspensa como se pedisse a tua mão ainda, a minha mão ainda, o olhar parecendo saltar da órbita para um abismo insondável. Não olhes muito de perto este rapaz de Gaza, ele pode morrer por um euro e sessenta sobre a tua mesa, ao lado do teu café da manhã, bofetada ou apenas a mão que quer pousar, cúmplice na tua cara, o que fica suspenso da mão desta criança que parece saída de um livro dos seres imaginários... Não olhes muito de perto, o espelho que devolve a tua cara.» [Fernando Alves, "Espelhos na primeira página", in "Os Dias que Correm", 27 Mai. 2025]
A fotografia deveras chocante do rapaz faminto de Gaza cujo olhar macilento interpela a nossa passividade, para a qual Fernando Alves fez questão de chamar a atenção dos seus ouvintes (e cumpre-nos enaltecer esse gesto cívico e humanista), remete-nos para os corpos esqueléticos dos prisioneiros, mal se sustendo em pé, quando foram libertados dos campos de concentração nazis pelas tropas aliadas em 1945. Oitenta anos volvidos o Holocausto reedita-se, só que agora em lugar daqueles que Hitler queria erradicar – judeus, ciganos, homossexuais, comunistas – está o povo palestino de Gaza, sequestrado no gigantesco campo de concentração em que o território onde sempre viveu foi transformado. E no lugar dos carrascos hitlerianos estão presentemente os descendentes dos tais judeus de aspecto famélico e cadavérico que horrorizou as pessoas de bem que viram aquelas imagens aterradoras. Mas há uma diferença de monta entre os dois momentos históricos: em 1945 o mundo desconhecia que na Alemanha nazi e em alguns países ocupados havia campos de extermínio de seres humanos; hoje, apesar do enorme condicionamento do trabalho dos jornalistas na Faixa de Gaza pelo criminoso estado sionista, o mundo sabe que os filhos daquela terra na orla oriental do Mediterrâneo estão a ser dizimados pelas bombas e pela fome. Manifestações de repúdio e de contestação por gente anónima e figuras públicas respeitáveis têm-se sucedido na Europa e na América, mas sem que os dirigentes políticos dos países com poder para estancar o genocídio do povo palestino procedam em conformidade. Trump, Ursula von der Leyen, Keir Starmer, Macron e Friedrich Merz são acaso dotados de consciência? Se um resquício da dita ainda houver dentro das respectivas caixas cranianas, como é o sono deles depois de verem imagens como a supra-estampada?
Para epílogo musical à crónica de hoje, uma boa escolha seria a peça instrumental com vocalizos "Palestina", de e por Janita Salomé, que fecha o alinhamento do álbum "A Cantar ao Sol", editado em Novembro de 1983 pela EMI-Valentim de Carvalho. Aqueles impressivos vocalizos de Janita de há mais de 40 anos equivalem hoje aos gritos agonizantes do martirizado povo palestino às mãos de um hediondo facínora chamado Netanyahu, ante a contemporização criminosa dos que mandam nos países que instituíram os direitos humanos. Suprema e inquietante incoerência!
Na Palestina
Música: Janita Salomé
Arranjo: Janita Salomé
Intérprete: Janita Salomé* (in LP "A Cantar ao Sol", EMI-VC, 1983, reed. EMI-VC, 1995)
(instrumental / vocalizos)
* Janita Salomé – tamboril da Provença, tam-tam, daadô, coro
Carlos Zíngaro – violino
Júlio Pereira – viola braguesa
Produção – João Gil
Gravado nos Estúdios Valentim de Carvalho, Paço d'Arcos, em 1983
Engenheiro de som – António Pinheiro da Silva
Técnico assistente – José Valverde
Texto sobre o disco em: Grandes discos da música portuguesa: efemérides em 2008
Biografia e discografia em: A Nossa Rádio
URL: https://www.facebook.com/janitasalome
https://music.youtube.com/channel/UC1E-8f0Ab_zxiFZQloSHSGg
https://www.youtube.com/@DoTempoDosSonhos/videos?query=janita+salome

Capa do LP "A Cantar ao Sol", de Janita Salomé (EMI-VC, 1983)
Fotografia – Luís Vasconcelos
Concepção – Fátima Rolo Duarte.
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Em memória de Herberto Helder (1930-2015)
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A tristeza lusitana
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Fausto Bordalo Dias: "Comboio Malandro" (António Jacinto)
Grupo Coral "Os Ganhões de Castro Verde" com Luiz Avellar: "As Nuvens Que Andam no Ar"
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Janita Salomé: "Cerejeira das cerejas pretas miúdas" (Carlos Mota de Oliveira)
Mário Moita: "Senhora Cegonha"
Políbio Gomes dos Santos: "Poema da Voz Que Escuta", por Maria Barroso
Pedro Barroso: "Nasce Afrodite, amor, nasce o teu corpo" (José Saramago)
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Cana rachada d'Azambuja
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