
(in https://www.youtube.com/watch?v=jZlHHptuOK8)
Miguel Ouro e João Paulo Mota tocando cana rachada, instrumento de percussão típico da Azambuja (2013).
«O grupo Terra Velhinha foi ao Sardoal dinamizar uma "oficina de cana rachada". Fiz o teste aqui entre a gente boa das notícias. Se vos disser "cana rachada", de que estarei a falar? E todos à uma, afinados na pronta resposta: "estarás a falar de uma voz desafinada". Era o que eu diria, voz aguda, agreste como unha gutural a raspar no vidro, voz desafinada.
Ora, a Terra Velhinha é a Azambuja e a cana rachada é um instrumento de percussão muito utilizado na lezíria ribatejana. Já tinha visto em função tocadores deste instrumento, mas não lhe conhecia o nome.
Mas o jornal "Médio Tejo" chama-nos para a oficina realizada no Sardoal. Está o jornal cheio de tambores e de flautas e de canas acabadas de talhar. Já tenho com que entreter os olhos e os outros sentidos. Vou pois pelo ecrã até ao canavial onde João Paulo Costa, unanimemente considerado um "virtuoso" da cana rachada, escolhe, afaga e talha, a golpes de canivete, a cana pronta para a função. Em poucos minutos está pronto o idiofone que marcará compasso e ritmo das modas da Lezíria.
Estou agora a aprender com a entrevista de Miguel Ouro ao sítio "Portugal num Mapa", há coisa de cinco anos. Miguel é um dos pilares do projecto Terra Velhinha e fala das canas com uma simplicidade sábia. Palavras de Ouro: "As canas, no canavial, falam com o tocador; por isso o tocador sabe quais as canas que estão prontas para ser tocadas".
Lembro-me de um poema de Ferreira Gullar, sobre o açúcar com que adoça o café em Ipanema. Esse açúcar, lembra o poema, "veio dos canaviais extensos/ que não nascem por acaso/ no regaço do vale./ Em lugares distantes onde não há hospital/ nem escola,/ homens que não sabem ler e morrem de fome/ aos 27 anos/ plantaram e colheram a cana/ que viraria açúcar".
Não assim estes canaviais de Aveiras de Cima ou da Azambuja. As canas que hão-de ser rachadas com a arte fina da navalha, são canas para o vento, para a batida do vento, castanholas de vento esguias, ao vento dançam, no vento se fazem batida, nas mãos em concha, no corpo feito tambor, chamando para a festa o pote e o cavaquinho.
Entretanto encontro noutra janela de conversa mestre Filipe Carapinha, do grupo de Aveiras de Baixo para o qual fez, com o seu canivete, quase trezentas canas rachadas, com canas que apanhou num caniçal junto a um curso de água. São as melhores para a função, acredita e garante o mestre de Aveiras. "A boa irrigação dá canas mais fortes e resistentes". Mais explica que a cana deve ser retirada do canavial nem muito verde nem muito seca. Só assim será uma cana rachada perfeita. É sabedoria muito próxima daquele que podemos colher no poema de João Cabral de Melo Neto sobre o que o mar, sim, aprende do canavial, e o canavial, sim, aprende do mar. O poema explica, também, o que não aprendem. É como as vozes, as de cana rachada.
Desaprenderam de ser vozes, talvez por vento a mais.» [Fernando Alves, "Oficina de cana rachada", in "Os Dias que Correm", 26 Mai. 2025]
A esta crónica que Fernando Alves teve a mui louvável ideia de consagrar à cana rachada, ficou a faltar um trecho ilustrativo da sonoridade daquele instrumento de percussão típico da Azambuja. Se não estava à mão uma gravação publicada em disco – idealmente uma versão instrumental de um fandango ribatejano – na qual o ritmo seja marcado pela cana rachada e se ouça bem, podia respigar-se um trecho do videograma apresentado no sítio "Portugal num Mapa" referido pelo cronista e cujo autor é o mencionado animador Miguel Ouro. Estamos em crer que ele não levantaria objecções a tal, fosse ou não possível a Antena 1 contactá-lo em tempo útil para lhe solicitar permissão...
Aqui fica, pois, o interessantíssimo mini-documentário que Miguel Ouro em boa hora decidiu produzir para divulgação do instrumento musical azambujense cana rachada.
Cana Rachada d'Azambuja
Assista neste mini-documentário à construção dum instrumento de percussão emblemático das Terras Azambujenses. A cana rachada é um daqueles instrumentos improvisados e feitos a partir dos recursos naturais existentes. Uma simples cana de caneira transforma-se em alguns minutos num belíssimo instrumento rítmico de acompanhamento musical com uma sonoridade idêntica às castanholas ou patas de cavalo. É um produto típico de Azambuja e apesar de aparentemente ter uma manufacturação e manuseio simples, esta prática requer já alguma técnica. Na segunda parte do mini-doc observe as potencialidades rítmicas da cana rachada d' Azambuja com outros instrumentos de percussão e também com o cavaquinho e o harmónio. Destaque para o melhor tocador de cana rachada português e provavelmente do Mundo, João Paulo Mota que nos mostra o seu desempenho musical através duma cana-da-índia que tem desde 1988. Mais uma produção MOA a captar o melhor do que se faz numa terra velhinha de talentos artísticos e capacidades ilimitadas. Assim saibamos preservá-las.
Uma produção MOA com realização ZDT.
Miguel Ouro
___________________________________________
Outros artigos relacionados com a crónica de Fernando Alves na Antena 1:
Galandum Galundaina: "Chin Glin Din"
"Sons d'Outrora" em viola da terra, por Miguel Pimentel
Vitorino: "Moças de Bencatel" (Conde de Monsaraz)
Teresa Silva Carvalho: "Barca Bela" (Almeida Garrett)
António Borges Coelho: "Sou Barco"
Celeste Rodrigues: "Chapéu Preto"
Sérgio Godinho: "Tem Ratos"
Ruy Belo: "E Tudo Era Possível", por Nicolau Santos
Jacques Brel: "J'Arrive"
A tristeza lusitana
Segréis de Lisboa: "Ay flores do verde pino" (D. Dinis)
Manuel D'Oliveira: "O Momento Azul"
Aldina Duarte: "Flor do Cardo" (João Monge)
José Mário Branco: "Inquietação"
Chico Buarque: "Bom Conselho"
Teresa Paula Brito: "Meu Aceso Lume - Meu Amor" (Maria Teresa Horta)
Adriano Correia de Oliveira: "Pensamento" (Manuel Alegre)
Fausto Bordalo Dias: "Comboio Malandro" (António Jacinto)
Grupo Coral "Os Ganhões de Castro Verde" com Luiz Avellar: "As Nuvens Que Andam no Ar"
Amélia Muge: "Ai, Flores"
Afonso Dias: "Os Amigos" (Camilo Castelo Branco)
Pedro Barroso: "Barca em Chão de Lama"
António Gedeão: "Poema do Coração"
Reinaldo Ferreira: "Quero um cavalo de várias cores"
Chico Buarque: "Construção"
João Afonso: "Tangerina dos Algarves"
Joan Manuel Serrat: "Cantares" (Antonio Machado e Joan Manuel Serrat)
Belaurora: "Lamento do Camponês" (Popular e Onésimo Teotónio Almeida)
Manuel Freire: "Fala do Velho do Restelo ao Astronauta" (José Saramago)
João Afonso: "O Som dos Sapatos"
Fernando Pessoa: "Tenho dó das estrelas"
Carlos Mendes: "Alcácer Que Vier" (Joaquim Pessoa)
Janita Salomé: "Cerejeira das cerejas pretas miúdas" (Carlos Mota de Oliveira)
Mário Moita: "Senhora Cegonha"
Políbio Gomes dos Santos: "Poema da Voz Que Escuta", por Maria Barroso
Pedro Barroso: "Nasce Afrodite, amor, nasce o teu corpo" (José Saramago)
Bugalhos: "Carvalho Grande"
Eugénio de Andrade: "As Mães"
Sem comentários:
Enviar um comentário