06 junho 2025

João Afonso: "Lagarto" (José Eduardo Agualusa)


Dois exemplares de lagartixas pitiusas (Podarcis pityusensis)
© Guillem Casbas (in https://elpais.com/)


«Ibiza tem praias de areia fina, festas intermináveis e antigas histórias de piratas. Mas pode acontecer que um dia destes acorde sem lagartixas. E essa será uma perda irreparável.
Há uma lagartixa endémica das Pitiusas, a sub-região das Baleares que inclui Ibiza. Essa espécie de lagartixa, única no mundo, espalhou-se pela ilha. Mas, conta o jornal "El País", está a ser dizimada por milhares de cobras de ferradura que invadiram a quase totalidade do território e nem as pequenas ilhotas em redor escapam à voragem. Estas são cobras nadadoras, as lagartixas das Pitiusas estão, pois, seriamente ameaçadas.
O jornal "El País" conta que as predadoras das lagartixas foram introduzidas em Ibiza há coisa de duas décadas, por desleixo ou por sacanagem, e de nada parecem valer as campanhas de combate à praga que, entretanto, foram lançadas. As armadilhas, por mais milhares de cobras que tenham sido eliminadas, não indiciam resultados promissores. As cobras atacam de um modo organizado, como um exército, como os Vândalos que devastaram a ilha há pouco mais de 1500 anos ou como os Mouros que a tomaram, entretanto, ou como as tropas de Jaime I de Aragão que delas, em seguida, se apossaram.
Os técnicos ambientais estão muito preocupados com a ameaça tão devastadora que põe em perigo o único vertebrado endémico da ilha, tão estimado localmente que se pode mesmo considerar um símbolo da identidade pitiusa. O que lá pode vir é a desgraça costumeira, uma quebra na cadeia alimentar: as lagartixas deixarão de travar a propagação de insectos e isso vai provocar novas pragas na agricultura. Chegou-se a um ponto em que a erradicação das serpentes invasoras parece já impossível e a sua propagação às ilhotas em redor mais do que certa, dada a circunstância de serem elas excelentes nadadoras.
Gosto de lagartixas, de as ver deslizando nas paredes, virando de pantanas a lei da gravidade, delineando uma geometria vertiginosa que atordoa o mosquedo. E gosto também delas porque me chamam para Manoel de Barros que, na infância, tanto brincou "a fingir que pedra era lagarto". Esta notícia tê-lo-ia entristecido.
Quando o pai de Manoel decidiu iniciar uma fazenda no Pantanal, ele encheu a infância de espantos e de bichos de todos os tamanhos. Numa entrevista, contou o que tinha à mão do olhar nesses dias longínquos: "Ali, o que eu tinha era ver a atrapalhação das formigas, caramujos, lagartixas. Era o apogeu do chão e do pequeno".
Ora o chão de Ibiza, visto a partir desta notícia, não se reveste de qualquer apogeu. Tomando a bitola dos especialistas ambientais, mas também a dos poetas, é um chão desapossado de identidade. No "Tratado das Grandezas do Ínfimo", Manoel de Barros explicava que poesia "é quando o homem faz sua primeira lagartixa".
Entretanto entrámos no tempo dos predadores.» [Fernando Alves, "As lagartixas de Ibiza", in "Os Dias que Correm", 6 Jun. 2025]


Em matéria de gravações de poemas ou canções aludindo especificamente a lagartixas, em sentido literal ou figurado, e não destinados ao público infantil, apenas lográmos referenciar a canção 'proto-pimba' "Lagartixa", de Vítor Silva, publicada em 1990, cujo refrão reza assim: «Quem nasceu para lagartixa / Nunca chega a jacaré; / Há muitos que querem sê-lo / Mas não sabem como é.» [>> YouTube Music]. Não a considerando digna de destaque neste blogue que procura pautar-se por critérios estéticos mais elevados, viramo-nos para o grupo dos lagartos no qual se inclui a lagartixa, também designada popularmente por sardanisca. E aí há mais quantidade e qualidade. Entre o que encontrámos, relevamos o poema "Eh! amigo lagarto", de José Gomes Ferreira, em dois registos – um recitado por Carmen Dolores e outro cantado por José Almada –, e a canção "Lagarto", interpretada por João Afonso, com música da sua autoria sobre poema de José Eduardo Agualusa, que faz parte do álbum "Sangue Bom" (2014). Dado que o teor da última se adequa melhor ao assunto enunciado por Fernando Alves, foi sobre ela que recaiu a nossa escolha para aqui figurar, a título de exemplo do que poderia ter sido um bom remate à crónica quando foi transmitida hoje de manhã pela Antena 1, em lugar do nada que imperou uma vez mais...



Lagarto



Poema: José Eduardo Agualusa
Música: João Afonso Lima
Intérprete: João Afonso* (in CD "Sangue Bom: João Afonso canta Agualusa e Mia Couto", João Afonso/Universal Music Portugal, 2014)




Aqui já fui lagarto ao sol
Na pedra ardendo exacto
Aqui restou de mim o Eu
Lagarto, lagarto
Estive e fui ardendo ao sol
Agora parto. Parto
Aqui já fui lagarto ao sol
Na pedra ardendo exacto

Aqui já fui lagarto ao sol
Na pedra ardendo exacto
Aqui restou de mim o Eu
Lagarto, lagarto
Aqui já fui lagarto ao sol
Na pedra ardendo exacto
Aqui restou de mim o Eu
Lagarto ardendo. Parto

Aqui já fui lagarto ao sol
Na pedra ardendo exacto
Aqui restou de mim o Eu
Lagarto, lagarto
Estive e fui ardendo ao sol
Agora parto. Parto
Aqui já fui lagarto ao sol
Na pedra ardendo exacto

Aqui já fui lagarto ao sol
Na pedra ardendo exacto
Aqui restou de mim o Eu
Lagarto, lagarto
Aqui já fui lagarto ao sol
Na pedra ardendo exacto
Aqui restou de mim o Eu
Lagarto ardendo. Parto

[instrumental]

Aqui já fui lagarto ao sol
Na pedra ardendo exacto
Aqui restou de mim o Eu
Lagarto, lagarto
Estive e fui ardendo ao sol
Agora parto. Parto
Aqui já fui lagarto ao sol
Na pedra ardendo exacto

[instrumental / vocalizos]


* António Pinto – guitarra eléctrica
Miguel Fevereiro – guitarras
Quiné Teles – bateria e timbilas
Vítor Milhanas – baixo, sintetizadores e programação rítmica
Paulo Curado – saxofone alto
Fausto Ferreira – sintetizadores
João Lucas – órgão
António Afonso – voz
João Afonso – voz

Produção, direcção musical e arranjos – Vítor Milhanas
Gravado e misturado por Vítor Milhanas, nos Estúdios Mister Noise, Lisboa
Assistente de estúdio – Carolina Milhanas
Masterização – Tiago Lopes
Textos sobre o disco em: Público e Portugal Rebelde
URL: https://pt.wikipedia.org/wiki/Jo%C3%A3o_Afonso
https://www.facebook.com/JoaoAfonso.musico/
https://www.youtube.com/Jo%C3%A3oAfonsoMusico
https://www.youtube.com/@DoTempoDosSonhos/videos?query=joao+afonso
https://music.youtube.com/channel/UCCmbVQRLE6IHLbp_EYXro7w



Capa do CD "Sangue Bom: João Afonso canta Agualusa e Mia Couto" (João Afonso/Universal Music Portugal, 2014)
Fotografia – Zé Rui/Teatro ACERT
Ilustração – Mariazinha e António Afonso Lima
Concepção gráfica – António Afonso Lima.

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Outros artigos com repertório de João Afonso:
A infância e a música portuguesa
Celebrando Natália Correia
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João Afonso: "O Som dos Sapatos"

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Outros artigos relacionados com a crónica de Fernando Alves na Antena 1:
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"Sons d'Outrora" em viola da terra, por Miguel Pimentel
Vitorino: "Moças de Bencatel" (Conde de Monsaraz)
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