09 junho 2025

Carlos Garcia com Luís Represas: "Noite Perdida" (António Feijó)


(in https://elpais.com/babelia/)
Max Ernst, "Deux Enfants sont menacés par un rossignol" ("Duas crianças ameaçadas por um rouxinol", 1924, óleo com elementos de madeira pintada e papel impresso recortado e colado sobre madeira com moldura de madeira, 69,8 x 57,1 x 11,4 cm, Museum of Modern Art, Nova Iorque
[Para ver a imagem em ecrã inteiro, noutra janela, é favor clicar aqui]


«Esta madrugada, no breve percurso entre a portaria geral e o edifício da rádio, fui sobressaltado por um som que parecia de um pássaro imitando o assobio humano. A tal ponto aquele canto me soava estranho, que detive o passo e apurei o ouvido. Vinha o som da copa da árvore mais frondosa e era discreto e cadenciado, semelhante a um assobio, mas despido de estridência. Era apenas um pássaro pontuando discretamente a noite. Ou talvez um pássaro dormindo e sonhando alto que assobiava como os homens. Aquele som veio pousado no meu ombro e ficou comigo enquanto folheava os jornais. Quando se acendeu a luz no ecrã do computador senti no ombro um breve estremecimento. Um texto do suplemento Babelia, no "El País", fazia soar a música dos pássaros que inspirou os grandes compositores, de Mozart a Vivaldi, de Beethoven a Bach. O texto é ilustrado por uma das mais surpreendentes e inquietantes obras de Max Ernst, aquela que nos mostra duas crianças ameaçadas por um rouxinol. É o quadro cuja explosão onírica tocou particularmente Leonora Carrington, a escritora que ainda muito jovem viveu dias intensos ao lado do grande pintor dele escutando o esplendor de um sussurro surreal. Há no quadro um portão de madeira que ela transpôs, não obstante dar passagem para um universo assustador, ou talvez por isso.
O mais certo é que o meu pássaro madrugador não seja um rouxinol. De qualquer modo, ele pôs-se a assobiar no quadro de Max Ernst e voltou ao meu ombro, antes de saltar para um conto breve de Hans Christian Andersen e adormecer num poema de António Feijó até ao romper do sol. Ao levar-me nessa viagem inesperada, passou a ser um rouxinol. E eu senti o deleite com que os pescadores suspenderam a faina, lá onde o mar tocava os confins do palácio do imperador da China, para escutarem o canto irresistível do rouxinol, o mais belo canto do mundo. Era tão grande esse palácio construído em porcelana, que nem o jardineiro sabia onde o jardim terminava. Soube o imperador deste canto por relatos que lhe chegaram entretanto em livros que um outro imperador lhe enviara de longe.
Era tal maravilha coisa de seus domínios. Como poderia não ter chegado até aos seus ouvidos tão formidável canto? Mandou que procurassem o rouxinol e o trouxessem à sua presença. Foram e o trouxeram e cantou. E os olhos do imperador se povoaram de lágrimas. Um dia, veio de longe um novo presente para o imperador, um pássaro mecânico. O pássaro mecânico passou a ser a alegria do palácio pois cantava sem parar, sem cansaço, a qualquer hora. Bastava dar-lhe corda. Um dia, o mecanismo estoirou. Já o rouxinol, relegado para uma sombra do palácio, batera asas. Procurai o conto, dai ao vosso dia, com tal leitura, um galho de reflexão, uma ideia de voo que vos possa levar, também, entretanto, ao poema "Noite Perdida", de António Feijó. Trata o poema de um rouxinol que passou a noite ao relento, "sempre a cantar, sem dormir,/ absorto no pensamento/ de ver uma rosa a abrir". Tanto cantou, o rouxinol do poema, que cerrou os olhos, cansado, no preciso momento em que, "ao luar e ao relento/ a rosa desabrochou".
Na próxima madrugada, se o pássaro da árvore mais frondosa junto à recepção geral voltar a cantar como se imitasse o assobio humano, procurarei em redor o canteiro das rosas e ficarei em vigília até que o dia rompa. Não vá, entretanto, o pássaro, cansado, adormecer.» [Fernando Alves, "Talvez um rouxinol", in "Os Dias que Correm", 9 Jun. 2025]


O epílogo mais lógico à encantadora crónica que Fernando Alves levou hoje à Antena 1 era, evidentemente, uma gravação do conto de Hans Christian Andersen, "O Rouxinol" [>> texto], ou do poema "Noite Perdida", de António Feijó. Sem prejuízo de se resgatar um registo eventualmente existente no arquivo histórico da rádio pública, podia deitar-se mão à gravação da leitura do conto (que dura apenas 3':05") por Joel Branco, integrante do CD "Histórias Mágicas" (Boa Memória - Produções Multimédia, Lda., 1999), ou da versão musicada do poema que Luís Represas cantou, a convite do compositor e pianista Carlos Garcia, para fazer parte do CD "Cancioneiro da Bicharada", com selo Constroisons, acompanhante do livro homónimo lançado pela Porto Editora em Outubro de 2014. Aqui fica o segundo registo, à guisa de oferenda aos visitantes do blogue "A Nossa Rádio", muito especialmente àqueles que costumam ouvir a crónica via rádio e tiveram, sem apelo nem agravo, de voltar a engolir em seco. Boa escuta!



NOITE PERDIDA



Poema: António Feijó (in "Novas Bailatas", sob o pseudónimo de Ignacio d'Abreu e Lima, Paris-Lisboa: Livrarias Aillaud e Bertrand, 1926; "Poesias Completas de António Feijó", Lisboa: Livraria Bertrand, 1940 – p. 424; "Poesias Completas", pref. J. Cândido Martins, Porto: Edições Caixotim, 2004)
Música: Carlos Garcia
Intérpretes: Carlos Garcia* com Luís Represas (in livro/CD "Cancioneiro da Bicharada", Porto Editora/Constroisons, 2014)




Coitado do rouxinol!
Passou a noite ao relento,
do pôr ao nascer do Sol,
sem descansar um momento,
sempre a cantar, sem dormir,
absorto no pensamento
de ver uma rosa a abrir...

Coitado do rouxinol!
Passou a noite ao relento,
do pôr ao nascer do Sol,
sempre a cantar, sem dormir...

Mas o mísero — coitado!
Cantando tão requebrado,
com tal cuidado velou,
que adormeceu de cansado,
e os olhos tristes cerrou
no minuto, no momento
em que ao luar e ao relento
a rosa desabrochou.

Coitado do rouxinol!
Com tal cuidado velou
do pôr ao nascer do Sol,
e tanto, tanto cantou,
a noite inteira ao relento,
que de fadiga e tormento,
sem descansar, sem dormir,
fecha os olhos, perde o alento,
no minuto, no momento
em que a rosa vai abrir...

Coitado do rouxinol!


* Luís Represas – voz
Ana Pereira – flauta
Ricardo Toscano – clarinete
Marcos Alves – bateria
Cícero Lee – contrabaixo
Carlos Garcia – piano

Direcção musical e arranjos – Carlos Garcia
Arranjos de bateria e percurssão – Marcos Alves e Carlos Garcia
Captação e edição – André Tavares
Edição e misturas – Carlos Garcia e Fernando Abrantes
Masterização – Fernando Abrantes
Sonoplastia – Carlos Garcia, Carolina Gaspar, Frederico Projecto
URL: https://www.carlosgarcia.pt/
https://music.youtube.com/channel/UCiHg9NtZMxoIKFu_N8fNiog



Capa do livro "Novas Bailatas", de António Feijó, sob o pseudónimo de Ignacio d'Abreu e Lima (Paris-Lisboa: Livrarias Aillaud e Bertrand, 1926)



Capa do livro "Poesias Completas de António Feijó" (Lisboa: Livraria Bertrand, 1940)
Obra poética reunida num volume, em edição revista por Afonso Lopes Vieira



Capa do livro "Poesias Completas", de António Feijó, pref. J. Cândido Martins (Porto: Edições Caixotim, Abr. 2004)



Capa do livro/CD "Cancioneiro da Bicharada", de Carlos Garcia (Porto Editora/Constroisons, Out. 2014)
Ilustração e design gráfico – Carla Nazareh / Nósnalinha



Capa de uma edição portuguesa do conto "O Rouxinol", de Hans Christian Andersen (Col. Histórias de Todos os Tempos, Porto: Edições ASA, 1982)
Tradução de Ilse Losa
Ilustrações de Manuela Bacelar



Capa de outra edição portuguesa do conto "O Rouxinol", de Hans Christian Andersen (Col. Caleidoscópio, Porto: Edinter, 1989)
Tradução de Jorge F. Rocha; adapt. Martins da Rocha
Ilustrações de Alison Claire Darke



Capa de outra edição portuguesa do conto "O Rouxinol", de Hans Christian Andersen (Col. Contos de Hans Christian Andersen, Lisboa: Editora Replicação, 1990)
Tradução de Leonor Campos; rev. Rosa Catalão Lopes
Ilustrações de François Crozat



Capa de outra edição portuguesa do conto "O Rouxinol", de Hans Christian Andersen (Col. Obras Completas de Ilse Losa, Porto: Edições Afrontamento, Abr. 2018)
Tradução de Ilse Losa
Ilustrações de Manuela Bacelar



Capa do livro "Os mais belos contos de Andersen" (Porto: Civilização Editora, 1992)
Tradução de Carlos José Marques Duarte de Jesus
Ilustrações de Michael Fiodorov
Contém os seguintes contos de Hans Christian Andersen: A Polegarzinha; A Caixinha de Pederneira; O Valente Soldadinho de Chumbo; O Fato Novo do Imperador; O Guardador de Porcos; O Rouxinol do Imperador; Uma Verdadeira Princesa.

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