12 novembro 2024

Sérgio Godinho: "Tem Ratos"



«O grande compositor e poeta repentista Patativa do Assaré, cinco vezes doutor honoris causa, capaz de aliar a mais rústica voz do Ceará às regras do soneto clássico, sabia de pragas e do modo de as rogar. Certa vez, percebendo que vizinhos não identificados lhe roubavam do quintal sucessivas varas de feijão, compôs um poema que lançava sobre eles mais pragas do que as do livro do Êxodo sobre o Egipto. Roubo, para dar algum sabor à crónica, uma breve passagem do poema "Rogando Pragas", de Patativa: "O santo Deus de Moisés/ lhe mande bexiga roxa/ saia carbúnculo na coxa/ cravo na sola dos pés/ sofra os incómodos cruéis/ da doença hidropsia/ icterícia e anemia/ tuberculose e diarreia/ e a lepra da morféia/ seja a sua companhia./ Deus lhe dê reumatismo/ com a sinusite crónica/ a sezão, o impaludismo/ e os ataques da bubónica/ além de quatro picadas/ de quatro cobras danadas/ cada qual a mais cruel/ de veneno fatal/ a urutu, a coral/ jararaca e cascavel".
A rogação é um vasto lençol de pragas, nuvem de gafanhotos verbais, rãs cobrindo a terra como vírgulas. Contudo, mais assustador do que um lançador de pragas contra a saúde alheia é o aparecimento de uma praga numa qualquer instituição dedicada ao cuidado da saúde pública. A praga de ratos que levou, por duas vezes, ao encerramento do Centro de Saúde de São Martinho do Bispo [Coimbra], encosta-nos, na verdade, mais à parede do que as rimas de Patativa, consegue roer muito mais do que a rolha da garrafa do rei da Rússia.
Uma praga de ratos num Centro de Saúde? Aqui há gato. Por mais que nos prometa a notícia uma desinfestação, instala-se o estribilho de uma velha canção do Sérgio: "Tem ratos/ tem ratos/ vivem escondidos/ nos nossos sapatos".
Certas estratégias de alegado combate a pragas são, em si mesmas, calamitosas, pestíferas. Como combatê-las? Há dias, um superintendente da PSP foi chamado a uma comissão do parlamento regional dos Açores. Pediram-lhe que se pronunciasse sobre uma proposta apresentada por cinco deputados do Chega no arquipélago visando a permissão da caça aos ratos e às rolas com armas de fogo, de modo a combater as pragas que afectam as culturas agrícolas. O comandante da Polícia dos Açores considerou a proposta "muito perigosa" e lembrou que ela viola o estabelecido na lei.
Há, na verdade, um abismo entre a caça e o combate às pragas. Algumas escapam, aliás, a todas as técnicas de desinfestação. Este fim-de-semana, em vésperas do jogo entre o Fabril e o Barreirense, para a série D do Campeonato de Portugal, alguém colocou uma tarja na parede do Estádio Alfredo da Silva com os dizeres "Esperamos vocês, ratos brancos". As pragas tomam formas diversas, ora de bicho, ora de palavra, ora de piolho, ora de pensamento maléfico.
Mas um centro de saúde ameaçado por praga de ratos, sendo assustador em si mesmo, ao ponto de obrigar ao encerramento do centro, é também metáfora de outros perigos.
O caso de São Martinho do Bispo sugere, talvez, uma pergunta estranha: haverá um flautista disponível no mercado, um flautista como aquele saído do conto dos irmãos Grimm, capaz de conduzir a praga para a margem de lá da ponte de Negrelos?» [Fernando Alves, "Tem ratos, tem ratos", in "Os Dias que Correm", 12 Nov. 2024]


«... instala-se o estribilho de uma velha canção do Sérgio: "Tem ratos/ tem ratos/ vivem escondidos/ nos nossos sapatos.»
Identificando a canção e o intérprete, Fernando Alves fez a papinha toda, pelo que Ricardo Soares ou o seu chefe, Nuno Galopim de Carvalho, nada mais precisava fazer do que ir (ou encarregar alguém da produção que fosse) buscar o CD "À Queima-Roupa", caso não houvesse o áudio digital à mão de semear, e transmitir o tema "Tem Ratos" imediatamente a seguir à crónica. Escusado será referir que os ouvintes da Antena 1 tiveram, uma vez mais, de engolir em seco, e se ficaram com vontade de ouvir a canção evocada por Fernando Alves, a qual é das menos conhecidas de toda a produção de Sérgio Godinho, não lhes restou outra saída do que fazerem uso da sua fonoteca particular ou de se socorrerem do YouTube ou doutra plataforma digital.
Esta canção-miniatura, uma espécie de haiku cantado, é virtualmente impossível de se ouvir no éter nacional (o escrevente destas linhas não tem memória de alguma vez a ter escutado via rádio) e a essa circunstância se deve, em grande medida, que seja tão pouco conhecida. Ora, uma das mais nobres missões do serviço público de radiodifusão é justamente a de divulgar repertório de qualidade, com primazia para o português, que não é objecto de (cabal) divulgação pelas estações privadas. Não cumprindo essa missão, a Antena 1, além de falhar na promoção a uma tão importante vertente da cultura portuguesa, está a gozar com os pagantes da contribuição do audiovisual e a dar argumentos àqueles que advogam a privatização da rádio do Estado. Nuno Galopim de Carvalho parece não ter noção disso. E quem está acima dele, também não?



Tem Ratos



Letra e música: Sérgio Godinho
Intérprete: Sérgio Godinho* (in LP "À Queima-Roupa", Guilda da Música/Sassetti, 1974, reed. Philips/Polygram, 1990, Universal Music Portugal, 2001, 2018)




Tem ratos
Tem ratos
Tem ratos
Vivem escondidos
Nos nossos sapatos

Tem ratos
Vivem escondidos
Nos nossos sapatos
Roem-nos os dedos

Tem medos
Tem medos
Vivem escondidos
Nos nossos segredos

[instrumental]


* Sérgio Godinho – voz e viola
Sheila Charlesworth – 2.ª voz

Supervisão – Pedro Osório
Produção – Sassetti
Gravado em Vancouver (Canadá) e nos Estúdios da Rádio Triunfo, Lisboa
Engenheiro de som – José Fortes
URL: https://www.facebook.com/Sergio.Godinho.Oficial/
https://vachier.pt/sergio-godinho/
https://pt.wikipedia.org/wiki/S%C3%A9rgio_Godinho
https://altamont.pt/sergio-godinho-a-queima-roupa/
https://www.youtube.com/@SergioGodinhoTV
https://www.youtube.com/channel/UCCUWcMFHuwlLu7y8cX1LyJg
https://www.youtube.com/@DoTempoDosSonhos/videos?query=sergio+godinho
https://music.youtube.com/channel/UC6NItFDCOUpxXVmOfvAD3Rg



Capa do LP "À Queima-Roupa", de Sérgio Godinho (Guilda da Música/Sassetti, 1974)
Concepção – Argos Publicidade.

___________________________________________

Outros artigos com repertório interpretado por Sérgio Godinho ou da sua autoria:
Música portuguesa de Natal
A infância e a música portuguesa
Celebrando Carlos Paredes
Sérgio Godinho: "Que Força É Essa?"
Sérgio Godinho: "Mão na Música"
Sérgio Godinho: "Não te Deixes Assim Vestir..."
Em memória de Armando Carvalhêda (1950-2024)
Luís de Camões: "Endechas a Bárbara Escrava"

___________________________________________

Outros artigos relacionados com a crónica de Fernando Alves na Antena 1:
Galandum Galundaina: "Chin Glin Din"
"Sons d'Outrora" em viola da terra, por Miguel Pimentel
Vitorino: "Moças de Bencatel" (Conde de Monsaraz)
Teresa Silva Carvalho: "Barca Bela" (Almeida Garrett)
António Borges Coelho: "Sou Barco"
Celeste Rodrigues: "Chapéu Preto"

11 novembro 2024

Celeste Rodrigues: "Chapéu Preto"



«Já tinha lido no "Jornal do Fundão" que, neste arranque de Novembro, "a azeitona faz triplicar a população em Malpica do Tejo". A aldeia de Castelo Branco acolhe os que regressam para varejar as oliveiras da família. O mesmo se passa nos tantos povoados em redor. Na manhã de sábado, retive a imagem de uma longa fila de carrinhas de caixa aberta carregadas de azeitona, à porta do lagar, em São Miguel de Acha. Ou foi em Aldeia do Bispo? Tantos os nomes que retive na lenta revisitação de lugares há muito guardados apenas no mapa mais íntimo, ao longo da manhã e em parte da tarde, fazendo horas para a apresentação do romance "O Tribunal das Almas: Os Espiões de Deus e as Fogueiras" que Fernando Paulouro das Neves acaba de editar na Guerra & Paz. Quando a noite pousar, depois do bacalhau na Hermínia, estará cheia a sala do Casino Fundanense, Lavacolhos fará soar os bombos diante dos inquisidores, se for necessário. Não foi. Mas é ainda manhã de sábado e deixo-me levar pelos caminhos sob um sol manso: Penamacor anuncia já o seu madeiro, Monsanto à vista, tomo o sentido de Medelim e de Proença-a-Velha, desta vez não compro queijo na Lardosa, nem no mercado de Alcains, a voz de meu pai canta dentro da minha cabeça uma moda antiga, "a azeitona já está preta, já se pode armar aos tordos".
Entro em Castelo Branco com um programa muito bem definido: almoço breve e a tarde no Jardim do Paço onde sempre acredito que o poeta António Salvado continua a conversar com as estátuas dos reis sob o olhar comovido de José Manuel Castanheira que há-de estar na roda da mesa dos amigos de Paulouro a escutar as andanças do ficcionista até à descoberta dos atalhos da vida de Martinho Pessoa, um antepassado do poeta cuja relação com o Fundão fora aflorada num texto de Arnaldo Saraiva nos anos 80.
Fernando Paulouro das Neves acalentou longamente a saga deste encontro com uma personagem tão exaltante como a de Martinho Pessoa, beirão do Fundão, judeu perseguido por honrar convicções, fugido aos "espiões de Deus" para um Brasil onde a vida não foram favas contadas, "oh que lindo chapéu preto!". Regressa agora aos lugares onde, por estes dias, os filhos da terra varejam as oliveiras da família, cuidando que não lhe hão-de colocar, desta vez, a carocha na cabeça.
Incansável labor, o de Fernando Paulouro das Neves, entretecendo numa escrita admirável as memórias de Martinho, o pai de Martinho legendando a água caída na seca planura idanhense com palavras que sabiam a pão: "Deus choveu". E o romance nos leva, entretanto, nas páginas iniciais, pelos estes campos de Idanha que encheram de luz, no sábado, os meus olhos. Por estes campos cresceu, também, como esteva maligna, a baba denunciante dos caçadores de cristãos-novos, esse lastro de tempos de infâmia com as suas fogueiras purificadoras. Os repuxos do parque da cidade sacodem a tarde como chicotes, enquanto retenho a memória daquele que há-de perecer na fogueira do Rossio, diante de um rei, um Rei Nosso Senhor que não suspende o riso. As fogueiras de homens eram "teatro divino", lembra o ficcionista.
Fernando Paulouro das Neves retém o pensamento de Martinho Pessoa: "O Santo Ofício queima homens e livros". Vamos por este romance como se varejássemos a nossa própria História ferida. É uma ferida tão funda que nunca cicatriza.» [Fernando Alves, "Um romance", in "Os Dias que Correm", 11 Nov. 2024]


Ao evocar a conhecida cantiga "Chapéu Preto", citando os versos «a azeitona já está preta, / já se pode armar aos tordos» e «Ai, que lindo chapéu preto», Fernando Alves teria certamente apreciado que a sua crónica fosse rematada/ilustrada, na emissão hoje de manhã, com uma gravação do mencionado trecho musical. E os ouvintes, na sua esmagadora maioria, não deixariam também de receber com imenso agrado e satisfação esse mimo musical, em complemento às palavras ditas pelo eminente cronista. A Antena 1, ao contrário do que acontecia na TSF-Rádio Jornal com a crónica congénere "Sinais", optou, uma vez mais, pela inacção. E seria bem fácil deitar mãos a uma boa gravação, dada a abundância delas, quer cantadas quer instrumentais. Das últimas apontamos três, cujos arranjos são de superior qualidade: a de Júlio Pereira, com a participação de Janita Salomé a fazer vocalizos (in "Cádoi", 1984) [>> YouTube Music], a de Rão Kyao (in "Danças de Rua", 1987) [>> YouTube Music] e a de Carlos Araújo (in "Duo", 2015) [>> YouTube Music]. Resolvemos dar destaque à mui cativante e fresquíssima versão cantada por Celeste Rodrigues, publicada em 1959, aproveitando para assim rendermos homenagem, singela mas sincera, àquela distinta filha do Fundão e extraordinária intérprete, quer de fado, quer da chamada canção parafolclórica de que o presente espécime, concebido por Arlindo de Carvalho (também ele natural do concelho do Fundão), é um magnífico exemplo (no disco original vem classificado como chula).
O verso «Já se pode armar aos tordos» é hoje – e ainda bem – ecologicamente incorrecto, mas não devemos censurar/cancelar a canção por causa disso pois seria adoptar uma atitude inquisitorial. As canções – e isto vale igualmente para quaisquer obras artísticas e literárias – são um testemunho da mundividência de um autor e reflectem a mentalidade e os costumes da época em que foram criadas. São instantâneos culturais do processo histórico e, nessa medida, sagrados e invioláveis, não se podendo jamais aceitar que, por não estarem em perfeita e estreita conformidade com o pensamento prevalecente num determinado momento histórico posterior (que é, por definição, transitório), sejam modificadas, amputadas ou, pura e simplesmente, banidas. A obra é o que é, e se tem valor artístico, estético e/ou filosófico, em lugar da atitude paternalista de pretensa protecção dos seus fruidores a ideias e a conceitos considerados errados à luz do pensamento mais validado pelas elites (ou pseudo-elites), importa dotar as pessoas dos instrumentos de interpretação e análise crítica dessas obras do passado. Proceder desse modo é também promover a liberdade de pensamento dos cidadãos e desenvolver as suas faculdades de discernimento, no escrupuloso respeito pelos inalienáveis valores democráticos e pluralistas.
Eis, pois, a cantiga "Chapéu Preto", com versos e música de Arlindo de Carvalho, na primorosa interpretação de Celeste Rodrigues, à qual apensamos a prévia nota (especialmente dirigida aos menos conscienciosos em questões ambientais) de que já não se deve "armar aos tordos" (seja com azeitonas maduras ou com qualquer outro engodo), porque aqueles pássaros, assim como todas as demais aves, são importantes para o equilíbrio dos ecossistemas e, por extensão, para a própria sobrevivência da espécie humana no planeta Terra. Sortudos os visitantes do blogue "A Nossa Rádio" pela oportunidade de aqui se deleitarem com este encantador "Chapéu Preto", os quais – se ouvintes da Antena 1 nas matinas de segunda a sexta-feira – bem podem lamentar-se por terem sido outra vez desconsiderados pela rádio que vive do seu dinheiro!



Chapéu Preto



Letra e música: Arlindo de Carvalho
Intérprete: Celeste Rodrigues* [in EP "Celeste (Chapéu Preto)", Parlophone/VC, 1959; reed. digital: Edições Valentim de Carvalho, 2019]




A azeitona já está preta, [bis]
Já se pode armar aos tordos, [bis]
Diz-me lá, ó cara linda: [bis]
Como vais d'amores novos?
Já se pode armar aos tordos.

É mentira, é mentira,
É mentira, sim, senhor!
Eu nunca roubei um beijo,
Quem mo deu foi meu amor.
[bis]

Quem me dera ser colete! [bis]
Quem me dera ser botão, [bis]
Para andar agarradinha [bis]
Juntinho ao teu coração!
Quem me dera ser botão!

É mentira, é mentira,
É mentira, sim, senhor!
Eu nunca roubei um beijo,
Quem mo deu foi meu amor.
[bis]

Ai, que lindo chapéu preto [bis]
Naquela cabeça vai! [bis]
Ai, que lindo rapazinho [bis]
Para genro do meu pai!
Naquela cabeça vai!

É mentira, é mentira,
É mentira, sim, senhor!
Eu nunca roubei um beijo,
Quem mo deu foi meu amor.
[bis]

É mentira, é mentira,
É mentira, é mentira,
É mentira, é mentira...


* Celeste Rodrigues – voz
Adelino dos Santos – guitarra portuguesa
Carlos Neves – viola
URL: https://www.museudofado.pt/fado/personalidade/celeste-rodrigues
https://www.youtube.com/@ValentimdeCarvalhoPT/videos?query=celeste+rodrigues
https://music.youtube.com/channel/UCcVQ5pMWj0gEjkzEg9RqVJQ



Capa do EP "Celeste (Chapéu Preto)", de Celeste Rodrigues (Parlophone/VC, 1959)
Fotografia – João Paulo Gil (na Casa de Fados "A Viela", à Rua das Taipas, em Lisboa)
Arranjo gráfico – Morato



Capa do romance "O Tribunal das Almas: os Espiões de Deus e as Fogueiras", de Fernando Paulouro das Neves (Lisboa: Guerra & Paz, Ago. 2024)

___________________________________________

Outro artigo com repertório de Celeste Rodrigues:
Celeste Rodrigues: "Velhas Sombras"

___________________________________________

Outros artigos relacionados com a crónica de Fernando Alves na Antena 1:
Galandum Galundaina: "Chin Glin Din"
"Sons d'Outrora" em viola da terra, por Miguel Pimentel
Vitorino: "Moças de Bencatel" (Conde de Monsaraz)
Teresa Silva Carvalho: "Barca Bela" (Almeida Garrett)
António Borges Coelho: "Sou Barco"

02 novembro 2024

José Pracana: "Lenda das Rosas" (João Linhares Barbosa)



Quando se alude a lendas associadas a rosas, a que surge mais de imediato na mente de maior número de pessoas é, muito provavelmente, aquela em que foi protagonista a esposa do rei D. Dinis, D. Isabel de Aragão, posteriormente mais conhecida como Rainha Santa Isabel. Entre os fadistas, outra lenda sobre rosas de feição bem diferente tem sido muito cultivada e objecto de múltiplas gravações (por Frei Hermano da Câmara, José Pracana, Mariette Pessanha, Maria Leopoldina Guia, Nuno da Câmara Pereira, etc.). A de José Pracana, publicada no EP homónimo, em 1972, é a que mais nos cativa e, por isso, sobre ela recaiu a nossa escolha para assinalar este Dia de Finados. Porém, sem intentos de proselitismo religioso e tentando não cair no lúgubre e tétrico, pois é mesmo uma bela e poética história de amor no Além-Morte a que se conta nas quatro décimas glosando uma quadra-mote, admiravelmente concebidas por João Linhares Barbosa, sem dúvida alguma um dos maiores poetas do Fado.
Dando destaque a esta tocante e romântica "Lenda das Rosas" (brancas e vermelhas) queremos também render homenagem, ainda que singela, ao distinto guitarrista e cantador açoriano (micaelense) José Pracana (1946-2016), que se devotou de alma e coração ao Fado e a quem devemos, além dessa notável contribuição artística, o avalizado trabalho de curadoria das compilações em CD "Biografia do Fado" (EMI-VC, 1994) e "Biografia da Guitarra" (EMI-VC, 2005), e, igualmente, da série discográfica "Biografias do Fado" (EMI-VC, 1997, 1998, 2004) consagrada a fadistas de renome, entre os quais Alfredo Marceneiro, Maria Teresa de Noronha, Lucília do Carmo e Max, assim como da avultada edição "Um Século de Fado" (Ediclube, 1999), constituída por 33 CDs, videogramas e livros.

Esta "Lenda das Rosas", na voz de José Pracana, foi um das muitas pérolas do Fado que Edgar Canelas levou à sua rubrica "Alma Lusa" [>> RTP-Play] que se manteve na grelha da Antena 1, de segunda a sexta-feira, durante quase 10 anos (desde Novembro de 2005 até Setembro de 2015). Rui Pêgo tomou a decisão de suprimi-la, com o argumento de alegada redundância por haver um programa alargado consagrado ao fado, "Alma Lusa (Fim-de-Semana)", emitido depois da meia-noite de domingo, e também por o género estar representado na 'playlist'. A justificação era, evidentemente, falaciosa porque o fado tinha (e ainda tem) uma presença bastante residual na 'playlist', e o programa referido peca por ter um horário que nem todos podem praticar. Um apontamento de fado com notas informativas e de contextualização (a pensar sobretudo nos ouvintes menos iniciados no género) e transmitido em vários momentos do dia, longe de ser redundante, constitui uma real mais-valia na programação do canal generalista da estação pública de rádio, pelo que se impõe que regresse à antena. Estamos em crer que Edgar Canelas, se desafiado a retomar a rubrica "Alma Lusa", encarará tal missão com o mesmo entusiasmo e dedicação.



Lenda das Rosas



Letra: João Linhares Barbosa
Música: Popular e Maria Teresa de Noronha (Fado da Horas)
Arranjo: José Pracana
Intérprete: José Pracana* (in EP "Lenda das Rosas", Parlophone/VC, 1972; 2CD "Biografia do Fado": CD 2, EMI-VC, 1994)




[instrumental]

Na mesma campa nasceram
Duas roseiras a par;
Conforme o vento as movia,
Iam-se as rosas beijar.


Deu uma rosas vermelhas,
Desse vermelho que os sábios
Dizem ser a cor dos lábios
Onde o amor põe centelhas;
Da outra, gentis parelhas
De rosas brancas vieram;
Só nisso diferentes eram,
Nada mais as diferençou:
A mesma seiva as criou,
Na mesma campa nasceram.

Dizem contos magoados
Que aquele triste coval
Fora leito nupcial
De dois jovens namorados,
Que no amor contrariados
Ali se foram finar,
E continuaram a amar
Lá no Além, todavia:
E por isso ali havia
Duas roseiras a par.

A lenda simples, singela,
Conta mais: que as rosas brancas
Eram as mãos puras, francas,
Da desditosa donzela;
E ao querer beijar as mãos dela,
Como na vida o fazia,
A boca dele se abria
Em rosas de rubra cor
E segredavam o amor,
Conforme o vento as movia.

Quando as crianças passavam
Junto à linda sepultura,
Toda a gente afirma e jura
Que as rosas brancas coravam
E as vermelhas se fechavam
Para ninguém lhes tocar;
Mas que, alta noite, ao luar,
Entre um séquito de goivos,
Tal qual os lábios dos noivos,  | bis
Iam-se as rosas beijar.          |


* José Pracana – voz e guitarra portuguesa
José Nunes – guitarra portuguesa
José Inácio e Segismundo de Bragança – violas

Gravado nos Estúdios Valentim de Carvalho, Paço d'Arcos
Técnico de som – Hugo Ribeiro
Montagem digital (edição em CD) – Miguel Gonçalves
URL: https://www.museudofado.pt/fado/personalidade/jose-pracana
https://www.rtp.pt/rtpmemoria/gramofone/jose-pracana-por-joao-carlos-callixto_1422
https://www.publico.pt/2016/12/26/culturaipsilon/noticia/morreu-jose-pracana-um-distinto-amador-do-fado-1756120
https://www.youtube.com/@fadomeu/videos?query=jose+pracana
https://www.youtube.com/@MikeFadoEtc/videos?query=jose+pracana



Capa do EP "Lenda das Rosas", de José Pracana (Parlophone/VC, 1972)
Fotografia – L. Lourenço



Capa da compilação em duplo CD "Biografia do Fado", organizada por José Pracana e David Ferreira (EMI-VC, 1994)
Ilustração – Stuart Carvalhais
Design gráfico – Fátima Rolo Duarte, com Paulo Faria.

___________________________________________

Outro artigo tematicamente relacionado:
Belaurora: "Saudade"

___________________________________________

Outro artigo com repertório da autoria de João Linhares Barbosa:
Celebrando Lucília do Carmo