16 junho 2025

Teresa Rita Lopes: "Casa de Cacela"


Teresa Rita Lopes fotografada por João Girão, 2016.
(in https://sol.sapo.pt/)


«O jornal espanhol "Público" contava este fim-de-semana a história de Kevin Mochales, um rapaz franzino, estudante de filosofia na Universidade Autónoma de Madrid e jovem escritor por conta própria.
Kevin levou de casa uma cadeira desdobrável e improvisou uma banca rudimentar junto ao bloco 20A da Feira do Livro de Madrid.
Num cartaz virado a quem passava escreveu em maiúsculas: "Humilde escritor tenta publicar o seu primeiro livro".
Ele conta que, se não vender 150 exemplares até ao último dia da Feira do Livro, a editora "queimará" o seu poemário. Mas se conseguir esgotar essa primeira tiragem de prova, a editora assinará com ele um contrato que prevê a publicação de mil exemplares. A alternativa é a guilhotina.
Até ao momento em que o repórter o interpelou tinha vendido 70 exemplares. Não ensaiara qualquer estratégia de abordagem aos que passam. Está sentado. Se se aproximam, se lhe sorriem, ele sorri. Aproximam-se e falam. "O livro vende-se sozinho", acredita ele.
Tem os livros num saco, só os tira quando o abordam. Agora, o jovem autor de "Diário de um Deus muito humano" está a ser abordado por um segurança que o convida a desmontar a banca. Um segurança pouco humano, mais poderoso que um deus menor.
O jovem autor de "Diário de um Deus muito humano", fala da sua ópera prima, no sentido de primeira obra, artesanal. E se dentro do saco ele tiver mesmo uma obra-prima?
Afastado por um segurança, ele observa: "Não lhes faço concorrência. Sou eu e um cartel". O autor de "Diário de um Deus muito humano" desmonta a tenda sob a ameaça de um segurança pouco humano.
Um poeta maior, cuja obra nos foi longínqua durante muito tempo, um vasto desconhecido, deixou uns versos sobre o tema: "Falaram-me os homens em humanidade, / mas eu nunca vi homens nem vi humanidade. / Vi vários homens assombrosamente diferentes entre si. / Cada um separado do outro por um espaço sem homens.".
A mulher que garantiu a edição crítica desses versos e impediu que o espólio do poeta, um tal Pessoa, daqui fosse levado e lutou para que a fabulosa arca ficasse em posse do Estado Português, morreu este fim-de-semana, enquanto um humilde escritor tentava salvar da guilhotina o seu primeiro livro. Não nos esqueçamos dela, Teresa Rita Lopes. Já o jovem Kevin, se o desumano segurança não se lhe atravessar de novo num recanto discreto da feira do livro de Madrid, tem muito caminho pela frente.» [Fernando Alves, "Humilde escritor tenta", in "Os Dias que Correm", 16 Jun. 2025]


Teresa Rita Lopes, a quem Portugal deve estar desmedidamente grato por ter diligenciado para que o espólio de Fernando Pessoa não fosse vendido para o estrangeiro [vide declarações da própria abaixo transcritas] e se afirmou a mais distinta estudiosa pessoana, foi também poetisa. Ora, o epílogo à crónica de Fernando Alves, quando foi emitida hoje de manhã pela Antena 1, podia muito bem ter sido um poema da autora de "Cicatriz", idealmente dito pela própria. É de crer que existam registos no arquivo histórico da rádio pública. Em disco, é certo que os há em, pelo menos, duas edições: no CD "E a Fala se Fez Canto" (IELT - Instituto de Estudos de Literatura Tradicional, 2005) gravado em parceria com o compositor e intérprete Rui Moura, e na compilação colectiva "A Voz dos Poetas" (Sociedade Portuguesa de Autores/Ovação, 2017). Resgatámos do primeiro álbum o poema "Casa de Cacela", em singela homenagem a Teresa Rita Lopes e também a pensar nos ouvintes da Antena 1 que foram, uma vez mais, torpemente desconsiderados pela rádio que pagam. Boa escuta!



Casa de Cacela



Poema: Teresa Rita Lopes
Música: Rui Moura
Intérpretes: Rui Moura & Teresa Rita Lopes* (in CD "E a Fala se Fez Canto", IELT - Instituto de Estudos de Literatura Tradicional, 2005)


[instrumental]

Sentada no chão quente
Pus um colar de cheiros ao pescoço
Melão maduro
Uva a fermentar
Entranhada nas tábuas dos caixotes
Figos a cair maduros das figueiras
Revendo docemente
Leite das folhas arrancadas
Pôr no dedo uma argola
De sol mágico regresso
Mas não a essa infância
De que fugi correndo
Escondendo a cara com o braço
Figos a cair maduros das figueiras
O galo da avó
Atirava-se aos olhos dos passantes
De quê de quem de quê de quem
De quê me sinto regressar?

Sentada no chão quente
Pus um colar de cheiros ao pescoço
Melão maduro
Uva a fermentar
Entranhada nas tábuas dos caixotes
Figos a cair maduros das figueiras
Revendo docemente
Leite das folhas arrancadas


De quê de quem de quê de quem
De quem me sinto regressar?
A esta terra sim
Decerto mas foi antes
Das casas e das pessoas
Que ela me deu de mamar
Figos a cair maduros das figueiras
O galo da avó
Atirava-se aos olhos dos passantes

Seus sovacos
Seu púbis
Rescendem a uvas pretas
Seus sucos
Leite branco de figos lampos
Na cesta de cana
Sento-me nos ladrilhos frescos do chão
Respiro o fresco da cal
Abro a porta:
Cai-me nos braços o bafo de um Verão
violento
Empurro-o para fora
Fecho a porta
Saboreio
Sorrindo na sombra
A sua ausência


De quê de quem de quê de quem
De quê me sinto regressar?
De quê de quem de quê de quem
De quem me sinto regressar?
De quê de quem de quê de quem
De quê de quem me sinto regressar?
De quê de quem de quê de quem
De quê de quem me sinto regressar?


* Rui Moura – voz (cantada)
Teresa Rita Lopes – voz (dita)

Arranjos – Rui Moura
Gravado nos Estúdios Fábrica da Música, Gafanha da Nazaré, Ílhavo, em Novembro de 2005
Produção, misturas e masterização – José Miguel
URL: http://livro.dglab.gov.pt/sites/DGLB/Portugues/autores/Paginas/PesquisaAutores1.aspx?AutorId=10205



Capa do CD "E a Fala se Fez Canto", de Teresa Rita Lopes & Rui Moura (IELT - Instituto de Estudos de Literatura Tradicional, 2005)
Concepção – Rui Moura


«Eu descobri Pessoa e Florbela Espanca ao mesmo tempo. Gostei logo do Álvaro de Campos e ainda hoje é aquele de que mais gosto. O Álvaro de Campos e a Florbela andavam sempre na minha pasta. Estou convencida de que a Florbela teve muita influência no Álvaro de Campos. Por isso é que ele é relativamente desbocado e desinibido: Pessoa era extraordinariamente inibido. Não me lembro qual foi o primeiro poema que conheci dele, mas li todo o Álvaro de Campos, da Ática, que é apenas um terço do Álvaro de Campos. Mas ainda assim, foi o suficiente para eu ficar completamente rendida.
Quando decidi fazer a minha tese de doutoramento sobre o Fernando Pessoa, o meu "patron", René Étiemble, "papa" das literaturas comparadas, disse-me: "Olhe eu não conheço o seu autor mas vou aprender consigo". [...]
Só em 1969 fui a casa da irmã do poeta, Henriqueta Madalena, detentora do baú, que vivia na Avenida da República, em Lisboa. Meses antes tinha ido à biblioteca da Gulbenkian em Paris, e o seu director, o professor Veríssimo Serrão, disse-me que o espólio de Pessoa ia ser vendido para a Inglaterra. Fiquei em pânico! Era nessa altura ministro da Educação de Salazar, o professor José Hermano Saraiva, irmão do meu companheiro, António José Saraiva. Falei imediatamente com ele que expôs o assunto ao irmão. O Hermano Saraiva mandou imediatamente arrolar o espólio, impedindo-o assim de sair do país. Ordenou ainda que uma equipa de bibliotecárias fosse para casa da irmã do Pessoa fazer a catalogação do material e um breve resumo de cada um dos papéis do poeta.
Comprei uma máquina de fotocopiar enorme, e lá fui para casa da mana do poeta. Fotocopiei o mais que pude com o argumento de que era para a minha tese que concluí com o título "Fernando Pessoa e o Drama Simbolista". Estive lá durante muito tempo, fiz uma excelente relação de amizade com a irmã do Pessoa, e foi aí que eu me dei conta de que os livros que nós conhecíamos, editados pela Ática, eram muito incompletos, e senti que tinha absolutamente de fazer novas edições.
No ano do centenário do nascimento de Álvaro de Campos, 1990, eu quis mostrar, em dois grandes volumes, que as pessoas ainda não conheciam o Pessoa.»

                       TERESA RITA LOPES
                       (excertos da entrevista concedida
                       a Ramiro Santos para o caderno
                       "Cultura Sul", do jornal "Postal
                       do Algarve", 7 Nov. 2020)



Capa do livro "Pessoa por Conhecer: I - Roteiro para uma Expedição", org. Teresa Rita Lopes, colab. Manuela Parreira da Silva (Lisboa: Editorial Estampa, 1990)
Fotografia – Ana Esquível



Capa do livro "Pessoa por Conhecer: II - Textos para um Novo Mapa", org. Teresa Rita Lopes, colab. Manuela Parreira da Silva (Lisboa: Editorial Estampa, 1990)
Fotografia – Ana Esquível



Capa do livro "Álvaro de Campos: Vida e Obras do Engenheiro", Introdução, organização, transcrição e notas de Teresa Rita Lopes (Lisboa: Editorial Estampa, 1990)



Capa do livro "Pessoa Inédito", Coord. e pref. Teresa Rita Lopes (Lisboa: Livros Horizonte, 1993)



Capa do livro "Álvaro de Campos: Livro de Versos", Edição crítica. Introdução, transcrição, organização e notas de Teresa Rita Lopes; colaboração de Manuela Parreira da Silva e de Luísa Medeiros (Lisboa: Editorial Estampa, 1993)



Capa da 3.ª edição do livro anterior (Lisboa: Editorial Estampa, 1997)



Capa do livro "Fernando Pessoa: Livro(s) do Desassossego", Org. Teresa Rita Lopes (São Paulo: Global Editora, 2015)



Capa do livro "Fernando Pessoa: Vida e Obras de Alberto Caeiro", Org. Teresa Rita Lopes (São Paulo: Global Editora, 2017)



Capa do livro "Fernando Pessoa: Vida e Obras de Ricardo Reis", Org. Teresa Rita Lopes (São Paulo: Global Editora, 2018)



Capa da do livro "Fernando Pessoa: Vida e Obras do Engenheiro Álvaro de Campos", Org. Teresa Rita Lopes (São Paulo: Global Editora, 2019)



Capa do livro "Fernando Pessoa: Poesia Autónima, Vol. I", Org. Teresa Rita Lopes (São Paulo: Global Editora, 2021)

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