
© Eyad Baba / Agence France-Presse
(in https://www.facebook.com/jornalnoticias)
[Para ver a fotografia em ecrã inteiro, noutra janela, é favor clicar aqui]
«Faz agora um ano, a SIC Notícias transmitiu uma reportagem da Sky News em Rafah, a cidade que acolhera um milhão de refugiados e onde ainda era possível comprar tomates e pepinos. No mercado, com alguma sorte, os mais afortunados talvez encontrassem meio frango. Enfim, "a um preço astronómico", sublinhava o repórter.
Há um momento da reportagem em que aparece um homem muito alto, de samarra com gola de pele de carneiro, um gorro sobre o cabelo muito curto, barba mais espessa, nariz adunco, olhar muito penetrante. O homem dirige-se ao repórter e explica-lhe que as pessoas não têm dinheiro que lhes permita comprar o que quer que seja, ficam apenas a olhar umas para as outras. Mas a reportagem da Sky News mostrava que as pessoas não ficavam só a olhar umas para as outras. Ali estavam as crianças acotovelando-se, segurando pequenas panelas na fila por uma sopa aguada, um caldo de penúria. Como num formigueiro alvoroçado, atropelavam-se na urgência de uma sopa de batata. A dado momento, a reportagem seguia um rapaz que regressava com a panela vazia, a sopa tinha acabado antes de chegar a sua vez.
Creio ser aquele o mesmo homem que distribui sopa na banca humanitária na foto que serve de capa ao JN esta manhã. É uma foto obtida por Eyad Baba, da France-Presse. Ele é um dos bravos da agência que nos tem revelado os dias do "inferno de Gaza", legenda da exposição montada no Centro de Fotojornalismo de Bruxelas, já no início deste ano.
Chegam de Gaza notícias de uma vaga de pilhagens que bloqueiam a capacidade de resposta das agências humanitárias agravando a situação de fome generalizada, em si mesma uma repugnante arma de guerra.
A Euronews reportava, por estes dias, a situação de quase colapso vivida pelas cozinhas solidárias.
É o que mostra também a foto de Eyad Baba, na capa do JN, esta manhã. Se passares por um quiosque, demora-te diante desta primeira página, no emaranhado de gestos, no desespero mudo destas mulheres esticando os braços para a sua ração de sopa aguada, tenta escutar os gritos suspensos, a fúria destas vozes emudecidas na capa de um jornal. E, todavia, elas gritam.
Estou capturado por esta imagem, o olhar de uma severidade fraterna na distribuição da sopa tão minguada, o olhar que caustica o atropelo dos desesperados para que todos possam partilhar a penúria insultuosa. Hoje vou pedir uma sopa no restaurante, vou pensar nesta imagem de capa do JN e no breve poema de Ruy Belo: "Um prato de sopa um humilde prato de sopa / comovo-me ao vê-lo no dia de festa / e entro dentro da sopa / e sou comido por mim próprio com lágrimas nos olhos".» [Fernando Alves, "A sopa", in "Os Dias que Correm", 6 Mai. 2025]
No arquivo histórico da RDP não existe qualquer registo recitado do poema "Um prato de sopa", de Ruy Belo? A confirmar-se tal hipótese, ela não serve de desculpa para a ausência do desejado remate poético ou poético musical à crónica de Fernando Alves quando foi transmitida pela Antena 1, hoje, no seu programa da manhã. Podia muito bem deitar-se mão a um poema cantado ou canção denunciando a fome ou a fome e a guerra (estes "cavaleiros do Apocalipse" andam frequentemente a par), como é o caso do poema "Fala do Velho do Restelo ao Astronauta", de José Saramago, cantado por Manuel Freire com música da sua autoria.
O distinto compositor e intérprete gravou-o duas vezes: a primeira para o EP "Dulcineia" (Zip-Zip, 1971) e a segunda para o álbum "As Canções Possíveis: Manuel Freire canta José Saramago" (Editorial Caminho, 1999). Estamos firmemente convictos de que todos os rádio-ouvintes (ou a esmagadora maioria) apreciariam terem sido presenteados com qualquer um daqueles tocantes registos poético-musicais imediatamente a seguir à crónica, e também acreditamos piamente que Fernando Alves teria esboçado um sorriso de agrado e de sentida gratidão por esse gesto da Antena 1. Infelizmente, a inércia e a negligência voltaram a sobrepor-se ao dever de se prestar bom serviço público...
Para aqui destacar, escolhemos a segunda gravação por ter um arranjo mais contido, logo mais favorável à necessária compenetração e meditação a respeito do genocídio do povo palestino perpetrado pelo criminoso estado sionista, com a cumplicidade (declarada ou silenciosa) dos dirigentes das principais potências do Ocidente (o pretenso farol da civilização e do humanismo). A "Fala do Velho do Restelo ao Astronauta" saramaguiana tinha como referente a Guerra do Vietname, promovida pelo poderoso país que então também mandava astronautas para o espaço, em demanda da Lua, quando na Terra grassava a fome. Seis décadas mais tarde, verifica-se que é esse mesmo país que dá respaldo a outra guerra infame e ao extermínio pelas armas e pela fome de um povo indefeso às mãos de outro que se considera o eleito de Deus (uma ideia eminentemente racista que, no fundo, não difere assim tanto do arianismo nazi). Dá calafrios e causa insónias!
Fala do Velho do Restelo ao Astronauta
Poema: José Saramago (Do ciclo "Poema a Boca Fechada", in "Os Poemas Possíveis", Col. Poetas de Hoje, vol. 22, Lisboa: Portugália Editora, 1966 – p. 76; "Poesia Completa", Lisboa: Assírio & Alvim, 2022 – p. 82)
Música: Manuel Freire
Intérprete: Manuel Freire* (in CD "As Canções Possíveis: Manuel Freire canta José Saramago", Editorial Caminho, 1999, reed. Ovação, 2005)
Aqui, na Terra, a fome continua,
A miséria, o luto, e outra vez a fome.
Acendemos cigarros em fogos de napalme
E dizemos amor sem saber o que seja.
Mas fizemos de ti a prova da riqueza
Ou talvez da pobreza, e da fome outra vez,
E pusemos em ti nem eu sei que desejo
De mais alto que nós, e melhor, e mais puro.
No jornal soletramos, de olhos tensos,
Maravilhas de espaço e de vertigem:
Salgados oceanos que circundam
Ilhas mortas de sede, onde não chove.
Mas o mundo, astronauta, é boa mesa
(E as bombas de napalme são brinquedos),
Onde come, brincando, só a fome,
Só a fome, astronauta, só a fome.
* Manuel Freire – voz
Aníbal Lima – violino
Nuno Silva – clarinete
Paulo Gaio Lima – violoncelo
João Paulo Esteves da Silva – piano
Bernardo Moreira – contrabaixo
Orquestração e direcção musical – Carlos Alberto Moniz
Assistência musical – Idália Moniz
Produção – Dito e Feito, Lda.
Gravado nos Estúdios Xangrilá, Lisboa, nos dias 8, 9 e 10 de Março de 1999, por Pedro Ferreira, e nos Estúdios Goya, Lisboa, nos dias 23, 24, 25 e 26 de Março de 1999, por Rosário Sena e José Manuel Fortes
Mistura e masterização – José Manuel Fortes
URL: https://www.facebook.com/ManuelFreireOficial/
https://www.youtube.com/channel/UC-z8xqfA49yS1tAXIBTvQig
https://www.youtube.com/user/DoTempoDosSonhos/videos?query=manuel+freire

Capa da 1.ª edição do livro "Os Poemas Possíveis", de José Saramago (Col. Poetas de Hoje, vol. 22, Lisboa: Portugália Editora, 1966)

Capa do livro "Poesia Completa", de José Saramago (Lisboa: Assírio & Alvim, Out. 2022)

Capa da 1.ª edição do CD "As Canções Possíveis: Manuel Freire canta José Saramago" (Editorial Caminho, 1999)
Design e ilustração – José Serrão
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Outros artigos com canções interpretadas por Manuel Freire:
A infância e a música portuguesa
Em memória de Fernando Alvim (1934-2015)
José Saramago: "Dia Não"
Manuel Freire: "O Zeca"
Manuel Freire: "Livre" (Carlos de Oliveira)
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Outro artigo com poesia de José Saramago:
José Saramago: "Dia Não"
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Outros artigos relacionados com a crónica de Fernando Alves na Antena 1:
Galandum Galundaina: "Chin Glin Din"
"Sons d'Outrora" em viola da terra, por Miguel Pimentel
Vitorino: "Moças de Bencatel" (Conde de Monsaraz)
Teresa Silva Carvalho: "Barca Bela" (Almeida Garrett)
António Borges Coelho: "Sou Barco"
Celeste Rodrigues: "Chapéu Preto"
Sérgio Godinho: "Tem Ratos"
Ruy Belo: "E Tudo Era Possível", por Nicolau Santos
Jacques Brel: "J'Arrive"
A tristeza lusitana
Segréis de Lisboa: "Ay flores do verde pino" (D. Dinis)
Manuel D'Oliveira: "O Momento Azul"
Aldina Duarte: "Flor do Cardo" (João Monge)
José Mário Branco: "Inquietação"
Chico Buarque: "Bom Conselho"
Teresa Paula Brito: "Meu Aceso Lume - Meu Amor" (Maria Teresa Horta)
Adriano Correia de Oliveira: "Pensamento" (Manuel Alegre)
Fausto Bordalo Dias: "Comboio Malandro" (António Jacinto)
Grupo Coral "Os Ganhões de Castro Verde" com Luiz Avellar: "As Nuvens Que Andam no Ar"
Amélia Muge: "Ai, Flores"
Afonso Dias: "Os Amigos" (Camilo Castelo Branco)
Pedro Barroso: "Barca em Chão de Lama"
António Gedeão: "Poema do Coração"
Reinaldo Ferreira: "Quero um cavalo de várias cores"
Chico Buarque: "Construção"
João Afonso: "Tangerina dos Algarves"
Joan Manuel Serrat: "Cantares" (Antonio Machado e Joan Manuel Serrat)
Belaurora: "Lamento do Camponês" (Popular e Onésimo Teotónio Almeida)
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