16 outubro 2024

Pablo Neruda: "Ode ao Pão", por Mário Viegas


Pão alentejano
(in https://ruralea.com/pao-alentejano-receita-original/)


PÃO

São muito antigos os registos do fabrico de pão, sendo um dos primeiros alimentos processados pelo Homem. Consta que foi nas pequenas aldeias palafitas, na região actualmente ocupada pela Suíça, que surgiu pela primeira vez esta mistura de grãos de cereal moídos (farinha) com água e sal, em 10 000 a.C.. Mais tarde, cerca de 5000 a.C., com a descoberta dos fermentos, o pão aproximou-se mais daquilo que comemos actualmente. Aproximadamente um milénio depois, os Egípcios vulgarizaram a produção de pão e, por volta do ano 500 a. C., surgia em Roma a primeira escola de padaria. O pão foi sustento de civilizações inteiras e o seu fabrico manteve-se quase inalterado até ao século XIX, altura em que foi pela primeira vez introduzida a mecanização nos processos de fabrico. Inicialmente rejeitado pelos consumidores, este pão "industrial" veio fazer com que as padarias dessem lugar a panificadoras com grande capacidade de produção.
O pão é o produto obtido da amassadura, fermentação e cozedura, em condições adequadas, das farinhas de trigo, centeio, triticale ou milho, estremes ou em mistura, com água potável e fermento ou levedura. Pode ainda conter sal e outros ingredientes, nomeadamente aditivos e auxiliares tecnológicos, nas condições legalmente fixadas [Portaria n.º 425/98, de 25 de Julho]. Nutricionalmente, o pão é uma boa fonte de hidratos de carbono, proteínas vegetais, ferro, magnésio, fibras alimentares e vitaminas do complexo B, fundamentais para o desenvolvimento e saúde do organismo.
[in https://www.asae.gov.pt/perguntas-frequentes1/area-alimentar/pao.aspx]


Assinalamos o presente Dia Mundial da Alimentação, que é igualmente o Dia Mundial do Pão, nada mais nada menos do que com a admirável "Ode ao Pão", escrita por Pablo Neruda, traduzida por Fernando Assis Pacheco e recitada por Mário Viegas. A eloquência das palavras do poeta «chileno de nascimento, hispano-americano pela língua e pela cultura, universalista pelo coração, pela razão, pela poesia» (citando o tradutor), notavelmente reforçada pela primorosa recitação, em tom de proclamação, de Mário Viegas, dispensa-nos o esforço de tecer comentários que, aliás, pecariam por superfluidade. É ouvir/ler este impressivo fonograma/texto e, depois, jamais esmorecer na luta para que nunca falte o pão a cada ser humano que habita a Terra.

Lembramo-nos muito bem de ter ouvido este tocante registo pela mão do saudoso Rafael Correia, no seu memorável "Lugar ao Sul", e de nos ter causado uma indelével impressão. Nunca mais lográmos apanhá-lo na Antena 1 (nem noutra rádio). E aqui temos, inevitavelmente, de voltar a denunciar a gritante lacuna de uma rubrica regular de poesia na grelha do primeiro canal da estação pública de radiodifusão. O mesmo – convém lembrar – que tem um mui digno e honroso historial nessa vertente cultural, quer antes quer depois do 25 de Abril de 1974, e que um tal António Luís Marinho, já no presente século, criminosamente descontinuou, sem que os sucedâneos locatários da direcção de programação tivessem a clarividência de emendar a mão. Um apontamento diário de poesia feito com registos do arquivo histórico e de edições discográficas teria uma repercussão insignificante no orçamento do canal, pelo que o factor económico não pode ser aduzido como justificação. É tão-somente uma questão de sensibilidade e de efectiva tomada de consciência, por parte de quem manda, das obrigações culturais que a Antena 1 também tem e nunca devia descurar.



Ode ao Pão



Poema de Pablo Neruda ("Oda al Pan", in "Odas Elementales", Buenos Aires: Editorial Losada, 1954) [texto original em castelhano >> abaixo]
Traduzido por Fernando Assis Pacheco (in "Antologia Breve", de Pablo Neruda, Col. Cadernos de Poesia, Vol. 2, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1969 – p. 68-75)
Recitado por Mário Viegas* (in LP "Pretextos para Dizer...", Orfeu, 1978; "Mário Viegas: Discografia Completa": Vol. 5 – "Pretextos para Dizer", Público, 2006)




Pão,
com farinha,
água
e fogo
te levantas.
Espesso e leve,
reclinado e redondo,
repetes
o ventre
da mãe,
equinocial
germinação
terrestre.
Pão,
que fácil
e que profundo tu és:
no tabuleiro branco
da padaria
estendem-se as tuas filas
como utensílios, pratos
ou papéis,
e de súbito
a onda
da vida,
a conjunção do germe
e do fogo,
cresces, cresces
de súbito
como
cintura, boca, seios,
colinas da terra,
vidas,
sobe o calor, inunda-te
a plenitude, o vento
da fecundidade,
e então
imobiliza-se a tua cor de oiro,
e quando já estão prenhes
os teus pequenos ventres
a cicatriz escura
deixou sinal de fogo
em todo o teu doirado
sistema
de hemisférios.
Agora,
intacto,
és
acção de homem,
milagre repetido,
vontade da vida.

Ó pão de cada boca
não
te imploraremos,
nós, os homens,
não somos
mendigos
de vagos deuses
ou de anjos obscuros:
do mar e da terra
faremos pão,
plantaremos de trigo
a terra e os planetas,
o pão de cada boca,
de cada homem,
em cada dia
chegará porque fomos
semeá-lo
e fazê-lo,
não para um homem, mas
para todos,
o pão, o pão
para todos os povos
e com ele o que possui
forma e sabor de pão
repartiremos:
a terra,
a beleza,
o amor,
tudo isso
tem sabor de pão,
forma de pão,
germinação de farinha,
tudo
nasceu para ser compartilhado,
para ser entregue,
para se multiplicar.

Por isso, Pão,
se foges
da casa do homem,
se te escondem,
se te negam,
se o avarento
te prostitui,
se o rico
te armazena,
se o trigo
não procura sulco e terra,
pão,
não rezaremos
pão,
não mendigaremos,
lutaremos por ti com outros homens,
com todos os famintos,
por todos os rios, pelo ar
iremos procurar-te,
a terra toda repartiremos
para que tu germines,
e connosco
avançará a terra:
a água, o fogo, o homem
lutarão junto a nós.
Iremos coroados
de espigas,
conquistando
terra e pão para todos,
e então
também a vida
terá forma de pão,
será simples e profunda,
inumerável e pura.
Todos os seres
terão direito
à terra e à vida,
e assim será o pão de amanhã,
o pão de cada boca,
sagrado,
consagrado,
porque será o produto
da mais longa e dura
luta humana.

Não tem asas
a vitória terrestre:
tem pão sobre os seus ombros,
e voa corajosa
libertando a terra
como uma padeira
levada pelo vento.


* Mário Viegas – voz

Gravado nos Estúdios Arnaldo Trindade, Lisboa
Técnico de som – Moreno Pinto
Masterização (edição em CD) – José António Regada
Texto sobre o disco em: Grandes discos da música portuguesa: efemérides em 2008
URL: https://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A1rio_Viegas
https://www.infopedia.pt/$mario-viegas
https://www.youtube.com/@DoTempoDosSonhos/videos?query=mario+viegas



Oda al Pan

(Pablo Neruda, in "Odas Elementales", Buenos Aires: Editorial Losada, 1954, 2.ª edição, Buenos Aires: Editorial Losada, 1958 – p. 151-154)


Pan,
con harina,
agua
y fuego
te levantas.
Espeso y leve,
recostado y redondo,
repites
el vientre
de la madre,
equinoccial
germinación
terrestre.
Pan,
qué fácil
y qué profundo eres:
en la bandeja blanca
de la panadería
se alargan tus hileras
como utensilios, platos
o papeles,
y de pronto,
la ola
de la vida,
la conjunción del germen
y del fuego,
creces, creces
de pronto
como
cintura, boca, senos,
colinas de la tierra,
vidas,
sube el calor, te inunda
la plenitud, el viento
de la fecundidad,
y entonces
se inmoviliza tu color de oro,
y cuando se preñaron
tus pequeños vientres,
la cicatriz morena
dejó su quemadura
en todo su dorado
sistema
de hemisferios.
Ahora,
intacto,
eres
acción de hombre,
milagro repetido,
voluntad de la vida.

Oh pan de cada boca,
no
te imploraremos,
los hombres
no somos
mendigos
de vagos dioses
o de ángeles oscuros:
del mar y de la tierra
haremos pan,
plantaremos de trigo,
la tierra y los planetas,
el pan de cada boca,
de cada hombre,
en cada día
llegará porque fuimos
a sembrarlo
y a hacerlo,
no para un hombre sino
para todos,
el pan, el pan
para todos los pueblos
y con él lo que tiene
forma y sabor de pan
repartiremos:
la tierra,
la belleza,
el amor,
todo eso
tiene sabor de pan,
forma de pan,
germinación de harina,
todo
nació para ser compartido,
para ser entregado,
para multiplicarse.

Por eso, Pan,
si huyes
de la casa del hombre,
si te ocultan,
te niegan,
si el avaro
te prostituye,
si el rico
te acapara,
si el trigo
no busca surco y tierra,
pan,
no rezaremos,
pan,
no mendigaremos,
lucharemos por ti con otros hombres,
con todos los hambrientos,
por todos los ríos y el aire
iremos a buscarte,
toda la tierra la repartiremos
para que tú germines,
y con nosotros
avanzará la tierra:
el agua, el fuego, el hombre
lucharán con nosotros.
Iremos coronados
con espigas,
conquistando
tierra y pan para todos,
y entonces
también la vida
tendrá forma de pan,
será simple y profunda,
imnumerable y pura.
Todos los seres
tendrán derecho
a la tierra y la vida,
y así será el pan de mañana,
el pan de cada boca,
sagrado,
consagrado,
porque será el producto
de la más larga dura
lucha humana.

No tiene alas
la victoria terrestre:
tiene pan en sus hombros,
y vuela valerosa
liberando la tierra
como una panadera
conducida en el viento.



Capa da 1.ª edição do livro "Odas Elementales", de Pablo Neruda (Buenos Aires: Editorial Losada, 1954)
Desenho – Silvio Baldessari



Capa da 1.ª edição do livro "Antologia Breve", de Pablo Neruda; Selecção e tradução: Fernando Assis Pacheco (Col. Cadernos de Poesia, N.º 2, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1969)



Capa do LP "Pretextos para Dizer...", de Mário Viegas (Orfeu, 1978)
Fotografia – Luiz Carvalho
Design gráfico – João Massapina



Capa do livro/CD "Pretextos para Dizer", Vol. 5 de "Mário Viegas: Discografia Completa" (Público, 2006)
Design gráfico – José Santa-Bárbara.

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