01 junho 2024

Sophia de Mello Breyner Andresen: "A Fada Oriana" (em versão radiofónica)


A Fada Oriana, ilustração de Teresa Calem (in "A Fada Oriana", de Sophia de Mello Breyner Andresen, Porto Editora, 2012 – p. 32) [capa >> ao fundo]


[Entrevistador – Sophia de Mello Breyner é, sobretudo, uma autora de temas que interessam essencialmente as crianças...]
Bem, foi uma série de circunstâncias... eu tinha cinco filhos — tinha e tenho —, mas eram pequenos (agora são grandes) e eu tinha que lhes contar histórias. E, por outro lado, para mim foi uma maneira de regressar à minha própria infância. Todos os meus livros para crianças partem dos lugares da minha infância. A Casa do Mar é uma casa onde eu vivi. Aliás, eu escrevi um poema, primeiro, quanto tinha p'ra aí uns 16 ou 17 anos, sobre essa casa. Depois, escrevi "A Menina do Mar", que é um conto para crianças, que começa nessa casa. Mais tarde, escrevi uma história chamada "A Casa do Mar" que é um conto para adultos. Quer dizer: é um tema que está na raiz da minha relação com o mundo. Outras histórias partem do jardim da minha avó, do jardim da minha própria casa, da noite de Natal. Por exemplo, a certa altura n' "A Fada Oriana", a Fada Oriana está muito cansada e senta-se numa árvore e a árvore poisa-lhe as folhas em cima dos olhos e ela adormece. Isto é porque, quando era pequena, eu dormia num quarto que tinha à roda tílias. Eu dormia com a janela aberta e as sombras das folhas das tílias poisavam na minha cara. Esses livros são profundamente ligados à minha nostalgia da minha própria infância.
[Entrevistador – E qual a receptividade que esses contos têm entre as crianças portuguesas?]
Esses contos têm tido uma certa sorte, que eu acho que se deve sobretudo às professoras de Português, porque a crítica literária, normalmente, não fala do livro infantil, considera que é um género secundário: o mesmo crítico que escreve uma longa crítica quando escrevo um livro de poemas, quando é um livro para crianças não diz nada. Mas através das professoras chegaram, realmente, a muitas crianças. Aliás, isso também foi uma das razões que me levou a escrever para crianças. Eu penso que não é possível transformar culturalmente uma sociedade se não for a partir da infância porque os adultos já estão culturalmente separados em classes intelectuais: um professor universitário lê um livro, o operário lê outro, salvo casos muito raros. Mas o filho do professor universitário e o filho do operário podem ler o mesmo livro. Há uma infância que pode já estar marcada, até fisicamente (há crianças que aos 5 anos já estão marcadas fisicamente pela miséria), mas a imaginação ainda pode estar livre para uma receptividade, que nos adultos já está determinada pelos meios de comunicação, pelas circunstâncias sociais, pelas relações da família... na criança ainda há, realmente, uma grande receptividade da imaginação e a partir dessa receptividade é possível que as crianças comecem a ser leitores de poesia e não apenas leitores de tipo de novela comercializada.

      SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN
      (in programa da R.D.P. gravado em 28.06.1990)
      [>> RTP-Arquivos]


Já contei muitas vezes como comecei a escrever, mas posso dizê-lo também a si. Quando ainda não sabia ler nem escrever, aconteceu que uma criada em casa dos meus pais ensinou-me a "Nau Catrineta" e pouco depois o meu avô, sonetos de Antero de Quental e de Camões. Penso que é muito importante começar pela oralidade.

      SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN
      (in entrevista concedida ao jornal "Expresso", 15.07.1989)


Tendo em conta que o presente Dia da Criança acontece no ano do vintenário da morte de Sophia de Mello Breyner Andresen [resenha biográfica no site do >> Instituto Camões] e, também, do centenário do nascimento de Carmen Dolores, [resenha biográfica no site do >> Instituto Camões], vem muito a propósito celebrarmos conjuntamente aquelas figuras gradas da Cultura Portuguesa contemporânea com o enfoque na versão radiofónica do conto "A Fada Oriana", na qual a insigne actriz interpreta (magistralmente) a personagem Rainha das Fadas. Com adaptação (notável) de Isabel Figueiredo de Barros, e realização (proficiente) de Eduardo Street, esta cativante produção dramatizada de um dos mais belos contos para crianças foi radiofundida pela Antena 2, no consulado de João Pereira Bastos, a 1 de Dezembro de 2002, a partir das 19h:30 (com repetição no dia 4 do mesmo mês, a partir das 23h:00), no âmbito do saudoso "Teatro Imaginário", e entretanto – em boa hora – disponibilizada na plataforma RTP-Arquivos, tornando assim possível a revisitação pelos que então eram petizes e a escuta em primeira mão pelas crianças de hoje, mormente por aquelas que ainda não dominam a leitura. Porque, como refere Sophia no excerto da entrevista acima transcrito, «é muito importante começar pela oralidade» para estimular o gosto pela boa literatura.
Redobradamente gratificados sentir-nos-emos se o destaque que entendemos por bem fazer à magnífica versão radiofónica d' "A Fada Oriana", aqui e agora, proporcionar a descoberta/revisitação a uns quantos que ignoravam que existisse ou que estivesse à mão de se ouvir. Boa escuta e bom Dia da Criança!

A talhe de foice, endereçamos uma pergunta a quem de direito: acaso esta gravação foi alguma vez dada a ouvir aos petizes que escutam a Rádio ZigZag? Se ainda não foi, que quem está na direcção daquele canal público destinado aos mais novos tenha o bom senso e a responsabilidade cultural de tomar como pretexto as efemérides de Sophia e de Carmen Dolores para incluí-la na programação! É claro que a Antena 3 e mesmo outros canais da RDP (porque não?) também podiam transmiti-la. Fica a sugestão, se bem que sem grandes esperanças de que haja acolhimento favorável...



TEATRO IMAGINÁRIO | 01 Dez. 2002 [>> RTP-Arquivos]
A Fada Oriana, de Sophia de Mello Breyner Andresen
Adaptação: Isabel Figueiredo de Barros
Intérpretes (e personagens): Carmen Dolores (Rainha das Fadas), Ângela Ribeiro (Fada Oriana), Fernanda Figueiredo (Uma andorinha / Uma víbora), Pedro Pinheiro (Um peixe)
Locução: Eduardo Street
Captação de som: João Arraiano
Montagem: Ricardo Olsen
Realização: Eduardo Street.



Capa da 1.ª edição do livro "A Fada Oriana" (Lisboa: Edições Ática, 1958)
Concepção da capa – Quito sobre quadro de Nuno de Siqueira
Ilustrações de Bió (Isabel Maria de Andrade Rebelo Vaz Raposo)



Ilustração de Bió para a 1.ª edição do livro "A Fada Oriana" (Lisboa: Edições Ática, 1958 – p. 35)

— Salva-me, Oriana! — gritava o peixe. Dei um salto atrás duma mosca e caí fora do rio.
Oriana agarrou no peixe e tornou a pô-lo na água.
— Obrigado, muito obrigado — disse o peixe, fazendo muitas mesuras. Salvaste-me a vida e a vida dum peixe é uma vida deliciosa. Muito obrigado, Oriana. Se precisares de alguma coisa de mim, lembra-te que eu estou sempre às tuas ordens.
— Obrigada, disse Oriana — agora não preciso de nada.
— Mas lembra-te da minha promessa. Nunca esquecerei que te devo a vida. Pede-me tudo quanto quiseres. Sem ti eu morreria miseravelmente asfixiado entre os trevos e as margaridas. A minha gratidão é eterna.
— Obrigada — disse a fada.
— Boa tarde, Oriana. Agora tenho que me ir embora, mas quando quiseres vem ao rio e chama por mim.
[p. 34]



Ilustração de Bió para a 1.ª edição do livro "A Fada Oriana" (Lisboa: Edições Ática, 1958 – p. 39)

— Oriana — pediu o Poeta — encanta a noite.
Então Oriana tocou com a sua varinha de condão na noite e a noite ficou encantada.
E o Poeta disse-lhe:
— O que tu me trazes é muito mais do que a beleza. No Mundo há muitas meninas bonitas. Mas só tu é que podes encantar a noite porque és uma fada.
[p. 38]



Ilustração de Bió para a 1.ª edição do livro "A Fada Oriana" (Lisboa: Edições Ática, 1958 – p. 65)

A fada pôs-se a caminho da Torre do Poeta. A torre ficava longe e o caminho era selvagem, cheio de picos e de pedras. Oriana caminhava cortando a cada instante os seus pés. Não se ouvia cantar nenhum pássaro, não se via correr nenhum coelho, não se via aparecer nenhum veado com o seu ar majestoso e os seus olhos húmidos de doçura. Em toda a floresta pairava o silêncio, o abandono, a solidão. [p. 63-64]



Ilustração de Bió para a 1.ª edição do livro "A Fada Oriana" (Lisboa: Edições Ática, 1958 – p. 77)

Apagou-se a luz do Sol e acenderam-se as luzes da cidade. Havia luzes azuis, luzes verdes, luzes brancas, luzes amarelas, luzes roxas, luzes vermelhas. E o chão da cidade era brilhante e preto.
Oriana pôs-se à busca do Poeta.
Procurou-os nas ruas, nas praças, nos jardins públicos. Procurou-o nos cafés, nas pastelarias, nas esplanadas, nas tabernas. Procurou-o nos miradouros, nas paragens dos eléctricos e nas saídas dos cinemas. Até que as luzes da cidade se foram apagando uma por uma. E quando cantou o primeiro galo, de madrugada, só já havia uma casa com luz.
— É ali — disse Oriana.
E caminhou para a luz. Foi ter a uma rua larga com casas altas.
[p. 76 e 79]



Ilustração de Bió para a 1.ª edição do livro "A Fada Oriana" (Lisboa: Edições Ática, 1958 – p. 89)

— Peixe — disse Oriana — no dia em que eu te salvei tu disseste: «quando quiseres vem ao rio e chama por mim». «Pede-me tudo quanto quiseres». E por isso agora eu peço: diz aos animais que eu sou a fada Oriana.
— Sabes — disse o peixe — quando uma pessoa nos atira à cara o favor que nos fez perde o direito à nossa gratidão.
Oriana ficou muito corada, sem saber o que havia de responder. Apeteceu-lhe cuspir naquele peixe importante e covarde. Mas lembrou-se do lenhador que estava na prisão, da mulher do moleiro que não sabia do filho, e do Poeta que já não acreditava em fadas. E resolveu ter paciência. Disse:
— Peixe, eu peço-te que digas aos animais que eu sou a fada Oriana.
— Está bem — disse o peixe. — Eu não quero ser ingrato. Quando chegarem os animais, chama por mim.
— Obrigada, obrigada, obrigada! — disse Oriana.
— Até já — disse o peixe, com um ar cerimonioso e bem educado.
E o peixe desapareceu.
Oriana pôs-se à espera dos animais. O Sol foi subindo no céu. Até que chegou o meio-dia. E ao meio-dia apareceram os animais.
Vinham todos em bicha, com um ar muito sério. À frente vinha o lobo. No fim vinha o veado, que trazia às costas o filho do moleiro.
— Bom dia — disse Oriana.
— Bom dia — responderam os animais. — Onde está a tua testemunha?
— Vem já — disse a fada. — Está à espera do meu chamamento.
E, ajoelhando-se à beira do rio, Oriana chamou:
— Peixe, peixe, peixe, meu amigo!
O peixe não apareceu.
[...]
O Sol começou a passar para o outro lado do rio.
Os animais começaram a zangar-se. Oriana estava aflita e envergonhada.
[...]
— Disseste que o peixe vinha ser tua testemunha, e o peixe não apareceu — gritou-lhe o lobo.
[p. 87-88 e 91]



Ilustração de Bió para a 1.ª edição do livro "A Fada Oriana" (Lisboa: Edições Ática, 1958 – p. 101)

A certa altura a velha parou para descansar. Estava a um passo do abismo. Oriana, já muito perto, pensou:
— Ainda chego a tempo!
Mas quando Oriana já estava só a meio metro de distância, a velha deu um passo para a frente e caiu no abismo.
— Ai! — disse Oriana.
E esquecendo-se de que não tinha asas, saltou no abismo, para salvar a velha.
Conseguiu apanhá-la pelos braços e depois quis voar, mas não pôde. E lembrou-se que não tinha asas.
— Ai de nós! — disse ela.
Viu debaixo de si o fundo abismo aberto como uma enorme boca que a ia devorar.
— Ai, ai, ai! — gritava a velha.
E caíam, caíam.
Mas de súbito, como um relâmpago, apareceu no ar a Rainha das Fadas. Estendendo o seu braço, ela tocou em Oriana com sua varinha de condão.
E, no mesmo instante, Oriana parou de cair e ficou imóvel, suspensa no ar, segurando a velha.
[...]
E logo nos ombros de Oriana apareceram outras asas.
[p. 98-100]



Capa da 2.ª edição do livro "A Fada Oriana" (Lisboa: Edições Ática, 1964)
Ilustrações de Bió (Isabel Maria de Andrade Rebelo Vaz Raposo)



Capa da 3.ª edição do livro "A Fada Oriana" (Lisboa: Edições Ática, s/d [c.1972])
Ilustrações de Luís Noronha da Costa



Capa da 7.ª edição do livro "A Fada Oriana" (Porto: Figueirinhas, 1982)
Ilustrações de Carlos Natividade Corrêa



Capa da 35.ª edição do livro "A Fada Oriana" (Porto: Porto Editora, Nov. 2012)
Ilustrações de Teresa Calem



Capa da edição brasileira em e-book do livro "A Fada Oriana" (São Paulo: SESI-SP Editora, Dez. 2017)
Ilustrações de Veridiana Scarpelli



Capa da edição francesa do livro "A Fada Oriana" (Col. Au pays des merveilles, Paris: Éditions de la Différence, Mar. 1999)
Tradução para francês – Natália Vital
Ilustrações de Olivier O. Olivier



Capa da compilação espanhola dos contos "A Fada Oriana", "A Árvore" e "O Espelho ou o Retrato Vivo" (Madrid: Talis, Mai. 2005)
Tradução para castelhano – María Tecla Portela
Ilustrações de Danuta Wojciechowska



Capa da edição bilingue em português e tétum do livro "A Fada Oriana" (Lisboa: Divisão de Edições da Assembleia da República, 2010)
Tradução para tétum – João Paulo T. Esperança e Emília Almeida de Araújo
Ilustrações de Nuno Timóteo



Capa da edição mexicana do livro "A Fada Oriana" (Col. Narrativa Infantil, Cidade do México: Dirección General de Publicaciones del Conaculta, Nov. 2012)
Tradução para castelhano – Mario Morales Castro
Ilustrações de Paulina Barraza



Capa da compilação dinamarquesa dos contos "A Fada Oriana", "A Menina do Mar" e "O Rapaz de Bronze" (Humlebæk: Forlaget Rhodos, Abr. 2018)
Tradução para dinamarquês – Knud Møllenbach
Ilustrações de Signe Kjær



Capa da edição bilingue em português e mandarim do livro "A Fada Oriana" (Xangai: Shanghai Foreign Language Education Press, Nov. 2020)
Tradução para mandarim – Xu Yixing, Mai Ran
Ilustrações de Teresa Calem



Capa da edição bilingue em português e alemão do livro "A Fada Oriana" (Lisboa/Berlim: Oxalá Editora, Out. 2022)
Tradução para alemão – Marcella Jachmich
Ilustrações de Antonia Tiedt

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