11 novembro 2024

Celeste Rodrigues: "Chapéu Preto"



«Já tinha lido no "Jornal do Fundão" que, neste arranque de Novembro, "a azeitona faz triplicar a população em Malpica do Tejo". A aldeia de Castelo Branco acolhe os que regressam para varejar as oliveiras da família. O mesmo se passa nos tantos povoados em redor. Na manhã de sábado, retive a imagem de uma longa fila de carrinhas de caixa aberta carregadas de azeitona, à porta do lagar, em São Miguel de Acha. Ou foi em Aldeia do Bispo? Tantos os nomes que retive na lenta revisitação de lugares há muito guardados apenas no mapa mais íntimo, ao longo da manhã e em parte da tarde, fazendo horas para a apresentação do romance "O Tribunal das Almas: Os Espiões de Deus e as Fogueiras" que Fernando Paulouro das Neves acaba de editar na Guerra & Paz. Quando a noite pousar, depois do bacalhau na Hermínia, estará cheia a sala do Casino Fundanense, Lavacolhos fará soar os bombos diante dos inquisidores, se for necessário. Não foi. Mas é ainda manhã de sábado e deixo-me levar pelos caminhos sob um sol manso: Penamacor anuncia já o seu madeiro, Monsanto à vista, tomo o sentido de Medelim e de Proença-a-Velha, desta vez não compro queijo na Lardosa, nem no mercado de Alcains, a voz de meu pai canta dentro da minha cabeça uma moda antiga, "a azeitona já está preta, já se pode armar aos tordos".
Entro em Castelo Branco com um programa muito bem definido: almoço breve e a tarde no Jardim do Paço onde sempre acredito que o poeta António Salvado continua a conversar com as estátuas dos reis sob o olhar comovido de José Manuel Castanheira que há-de estar na roda da mesa dos amigos de Paulouro a escutar as andanças do ficcionista até à descoberta dos atalhos da vida de Martinho Pessoa, um antepassado do poeta cuja relação com o Fundão fora aflorada num texto de Arnaldo Saraiva nos anos 80.
Fernando Paulouro das Neves acalentou longamente a saga deste encontro com uma personagem tão exaltante como a de Martinho Pessoa, beirão do Fundão, judeu perseguido por honrar convicções, fugido aos "espiões de Deus" para um Brasil onde a vida não foram favas contadas, "oh que lindo chapéu preto!". Regressa agora aos lugares onde, por estes dias, os filhos da terra varejam as oliveiras da família, cuidando que não lhe hão-de colocar, desta vez, a carocha na cabeça.
Incansável labor, o de Fernando Paulouro das Neves, entretecendo numa escrita admirável as memórias de Martinho, o pai de Martinho legendando a água caída na seca planura idanhense com palavras que sabiam a pão: "Deus choveu". E o romance nos leva, entretanto, nas páginas iniciais, pelos estes campos de Idanha que encheram de luz, no sábado, os meus olhos. Por estes campos cresceu, também, como esteva maligna, a baba denunciante dos caçadores de cristãos-novos, esse lastro de tempos de infâmia com as suas fogueiras purificadoras. Os repuxos do parque da cidade sacodem a tarde como chicotes, enquanto retenho a memória daquele que há-de perecer na fogueira do Rossio, diante de um rei, um Rei Nosso Senhor que não suspende o riso. As fogueiras de homens eram "teatro divino", lembra o ficcionista.
Fernando Paulouro das Neves retém o pensamento de Martinho Pessoa: "O Santo Ofício queima homens e livros". Vamos por este romance como se varejássemos a nossa própria História ferida. É uma ferida tão funda que nunca cicatriza.» [Fernando Alves, "Um romance", in "Os Dias que Correm", 11 Nov. 2024]


Ao evocar a conhecida cantiga "Chapéu Preto", citando os versos «a azeitona já está preta, / já se pode armar aos tordos» e «Ai, que lindo chapéu preto», Fernando Alves teria certamente apreciado que a sua crónica fosse rematada/ilustrada, na emissão hoje de manhã, com uma gravação do mencionado trecho musical. E os ouvintes, na sua esmagadora maioria, não deixariam também de receber com imenso agrado e satisfação esse mimo musical, em complemento às palavras ditas pelo eminente cronista. A Antena 1, ao contrário do que acontecia na TSF-Rádio Jornal com a crónica congénere "Sinais", optou, uma vez mais, pela inacção. E seria bem fácil deitar mãos a uma boa gravação, dada a abundância delas, quer cantadas quer instrumentais. Das últimas apontamos três, cujos arranjos são de superior qualidade: a de Júlio Pereira, com a participação de Janita Salomé a fazer vocalizos (in "Cádoi", 1984) [>> YouTube Music], a de Rão Kyao (in "Danças de Rua", 1987) [>> YouTube Music] e a de Carlos Araújo (in "Duo", 2015) [>> YouTube Music]. Resolvemos dar destaque à mui cativante e fresquíssima versão cantada por Celeste Rodrigues, publicada em 1959, aproveitando para assim rendermos homenagem, singela mas sincera, àquela distinta filha do Fundão e extraordinária intérprete, quer de fado, quer da chamada canção parafolclórica de que o presente espécime, concebido por Arlindo de Carvalho (também ele natural do concelho do Fundão), é um magnífico exemplo (no disco original vem classificado como chula).
O verso «Já se pode armar aos tordos» é hoje – e ainda bem – ecologicamente incorrecto, mas não devemos censurar/cancelar a canção por causa disso pois seria adoptar uma atitude inquisitorial. As canções – e isto vale igualmente para quaisquer obras artísticas e literárias – são um testemunho da mundividência de um autor e reflectem a mentalidade e os costumes da época em que foram criadas. São instantâneos culturais do processo histórico e, nessa medida, sagrados e invioláveis, não se podendo jamais aceitar que, por não estarem em perfeita e estreita conformidade com o pensamento prevalecente num determinado momento histórico posterior (que é, por definição, transitório), sejam modificadas, amputadas ou, pura e simplesmente, banidas. A obra é o que é, e se tem valor artístico, estético e/ou filosófico, em lugar da atitude paternalista de pretensa protecção dos seus fruidores a ideias e a conceitos considerados errados à luz do pensamento mais validado pelas elites (ou pseudo-elites), importa dotar as pessoas dos instrumentos de interpretação e análise crítica dessas obras do passado. Proceder desse modo é também promover a liberdade de pensamento dos cidadãos e desenvolver as suas faculdades de discernimento, no escrupuloso respeito pelos inalienáveis valores democráticos e pluralistas.
Eis, pois, a cantiga "Chapéu Preto", com versos e música de Arlindo de Carvalho, na primorosa interpretação de Celeste Rodrigues, à qual apensamos a prévia nota (especialmente dirigida aos menos conscienciosos em questões ambientais) de que já não se deve "armar aos tordos" (seja com azeitonas maduras ou com qualquer outro engodo), porque aqueles pássaros, assim como todas as demais aves, são importantes para o equilíbrio dos ecossistemas e, por extensão, para a própria sobrevivência da espécie humana no planeta Terra. Sortudos os visitantes do blogue "A Nossa Rádio" pela oportunidade de aqui se deleitarem com este encantador "Chapéu Preto", os quais – se ouvintes da Antena 1 nas matinas de segunda a sexta-feira – bem podem lamentar-se por terem sido outra vez desconsiderados pela rádio que vive do seu dinheiro!



Chapéu Preto



Letra e música: Arlindo de Carvalho
Intérprete: Celeste Rodrigues* [in EP "Celeste (Chapéu Preto)", Parlophone/VC, 1959; reed. digital: Edições Valentim de Carvalho, 2019]




A azeitona já está preta, [bis]
Já se pode armar aos tordos, [bis]
Diz-me lá, ó cara linda: [bis]
Como vais d'amores novos?
Já se pode armar aos tordos.

É mentira, é mentira,
É mentira, sim, senhor!
Eu nunca roubei um beijo,
Quem mo deu foi meu amor.
[bis]

Quem me dera ser colete! [bis]
Quem me dera ser botão, [bis]
Para andar agarradinha [bis]
Juntinho ao teu coração!
Quem me dera ser botão!

É mentira, é mentira,
É mentira, sim, senhor!
Eu nunca roubei um beijo,
Quem mo deu foi meu amor.
[bis]

Ai, que lindo chapéu preto [bis]
Naquela cabeça vai! [bis]
Ai, que lindo rapazinho [bis]
Para genro do meu pai!
Naquela cabeça vai!

É mentira, é mentira,
É mentira, sim, senhor!
Eu nunca roubei um beijo,
Quem mo deu foi meu amor.
[bis]

É mentira, é mentira,
É mentira, é mentira,
É mentira, é mentira...


* Celeste Rodrigues – voz
Adelino dos Santos – guitarra portuguesa
Carlos Neves – viola
URL: https://www.museudofado.pt/fado/personalidade/celeste-rodrigues
https://www.youtube.com/@ValentimdeCarvalhoPT/videos?query=celeste+rodrigues
https://music.youtube.com/channel/UCcVQ5pMWj0gEjkzEg9RqVJQ



Capa do EP "Celeste (Chapéu Preto)", de Celeste Rodrigues (Parlophone/VC, 1959)
Fotografia – João Paulo Gil (na Casa de Fados "A Viela", à Rua das Taipas, em Lisboa)
Arranjo gráfico – Morato



Capa do romance "O Tribunal das Almas: os Espiões de Deus e as Fogueiras", de Fernando Paulouro das Neves (Lisboa: Guerra & Paz, Ago. 2024)

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Outro artigo com repertório de Celeste Rodrigues:
Celeste Rodrigues: "Velhas Sombras"

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Outros artigos relacionados com a crónica de Fernando Alves na Antena 1:
Galandum Galundaina: "Chin Glin Din"
"Sons d'Outrora" em viola da terra, por Miguel Pimentel
Vitorino: "Moças de Bencatel" (Conde de Monsaraz)
Teresa Silva Carvalho: "Barca Bela" (Almeida Garrett)
António Borges Coelho: "Sou Barco"

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