26 julho 2006

E Alegre se Fez Triste

A notícia do "Correio da Manhã" sobre a reforma de Manuel Alegre decorrente do seu vínculo à RDP deu azo a dois fóruns de discussão na rádio: Fórum TSF e Antena Aberta. Ficou bem patente o sentimento de indignação e de revolta da generalidade dos ouvintes, subsistindo alguns pontos que urge esclarecer. Se Manuel Alegre só esteve alguns meses na RDP, como é que cumpriu o período de contribuições para a Caixa Geral de Aposentações para ter direito à reforma enquanto trabalhador da rádio pública? Em declarações às rádios e televisões, Manuel Alegre diz que a reforma resulta dos descontos que fez como deputado. Mas na Lista de Aposentados e Reformados - Agosto 2006 ele é dado como coordenador de programas de texto da Radiodifusão Portuguesa, SA e não como deputado (a última actividade), aparecendo integrado no sector Empresas Públicas e Sociedades Anónimas e não no sector Assembleia da República. Não é crível que a CGA não soubesse que Manuel Alegre era deputado. Será que nos mapas de remunerações que a Assembleia da República envia para a CGA, Manuel Alegre é dado como funcionário da RDP com a profissão de coordenador de programas de texto? É no mínimo absurdo! Enquanto isto não for devidamente explicado e fundamentado é totalmente legítima a interrogação: terá Manuel Alegre continuado a receber da RDP o seu vencimento ao longo dos últimos trinta anos mesmo sem lá ter posto os pés, e cumulativamente com a sua remuneração de deputado? O mínimo que se pediria é que a administração da Rádio e Televisão de Portugal viesse esclarecer todos os portugueses, em vez de se remeter a um comprometedor silêncio. É sabido e notório que o serviço público de rádio tem sofrido apertadas limitações orçamentais, pelo que não se admite que a taxa de radiodifusão (rebaptizada de contribuição do audiovisual por Morais Sarmento para dela a televisão passar a comer a parte de leão) possa ser usada para pagar salários a quem, por vontade própria, deixou de exercer funções na rádio que é suportada por todos nós. E caso se confirme que Manuel Alegre esteve a receber da RDP, não haverá outras situações similares?
Parece-me muito sintomático que a juntar-se a outros casos bem conhecidos (Alberto João Jardim, Santana Lopes, etc.) venha agora à baila o nome de um homem que me havia habituado a ver como um inconformista e um não-alinhado com o situacionismo, diria até, uma consciência cívica do regime. Agora não escondo o meu desalento e a minha tristeza ao constatar que afinal esse homem peca dos mesmos pecados venais dos videirinhos da política, que se estão a marimbar para o país e cuja única preocupação é sua vidinha. O cidadão Manuel Alegre de Melo Duarte devia ter vergonha quando vai à televisão falar em ética e em moral. Será ético e moral (ainda que legal) um deputado passar a auferir de uma reforma de aposentação (ainda que reduzida a um terço, o que corresponde a mais de mil euros) e continuar na Assembleia da República para a acumular com o ordenado de deputado? E será também ético e moral (ainda que legal), um deputado depois de abandonar o Parlamento ficar com duas reformas por inteiro pelo exercício do mesmo cargo? Pois é! O Sr. Manuel Alegre pode ter alguma valia como poeta, mas quanto ao resto é como os demais.
Péssimo tributo está Manuel Alegre a dar à memória do grande Adriano Correia de Oliveira que deu voz a alguns dos seus mais belos versos. "E Alegre se fez triste ... Que fez tão triste a clara madrugada" terá exclamado Adriano na tumba em Avintes por esta traição do seu antigo companheiro de luta, afinal um vulgar "comedor do dinheiro que a uns farta e a outros mata" (acrescentaria Adriano, do poema de Manuel da Fonseca).



E Alegre se Fez Triste



Poema: Manuel Alegre
Música: José Niza
Arranjo e direcção de orquestra: José Calvário
Voz: Adriano Correia de Oliveira


Aquela clara madrugada
Que viu lágrimas correrem no teu rosto
E alegre se fez triste como
Chuva que viesse em pleno Agosto.

Ela só viu meus dedos nos teus dedos
Meu nome no teu nome. E demorados
Viu nossos olhos juntos nos segredos
Que em silêncio dissemos separados.

A clara madrugada em que parti
Só ela viu teu rosto olhando a estrada
Por onde um automóvel se afastava.

E viu que a pátria estava toda em ti
E ouviu dizer adeus, essa palavra
Que fez tão triste a clara madrugada.


(in "Gente de Aqui e de Agora", 1971)

4 comentários:

  1. Haja alguém que repare que a taxa de radiodifusão foi DESVIADA para disfarçar o buraco negro da RTP... Eles comem tudo e não deixam nada.

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  2. Só mais uma coisa, desta vez em relação ao Manuel Alegre:
    O que não se percebe nesta história e o que faz com que tudo seja preverso, é o facto de Deputado NÃO ser uma profissão. Ou seja, o deputado que é deputado a vida inteira tem como profissão "oficial" a última antes de entrar no parlamento. Mas os descontos são feitos do vencimento como deputado!
    É isso que permite que Manuel Alegre e tantos outros se reformem (da sua suposta profissão, no caso coordenador da RDP), continuando no entanto no Parlamento. Tudo porque Deputado não é uma profissão! Faz sentido?
    A pergunta que se impõe é esta: será igual ser deputado durante 4 anos ou durante 30? É honesto dizer que o líder do PC é operário metalúrgico? Por favor...
    Mais vale assumir que ser Político é também uma profissão. Se assim fosse, e abrindo excepção para a idade limite da reforma, Manuel Alegre não estaria agora reformado e a acumular um terço da pensão (cuja grande fatia de descontos veio da mesma actividade que continua a exercer!) com o ordenado de deputado. Quando se reformasse da AR, aí sim, receberia a reforma. Nem um terço, nem dois, mas toda. Simples.

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  3. desilusão partilhada!

    c/ Manuel Alegre, figura que sempre admirei e c/ o país...

    contudo, gostaria ainda de acreditar que tudo isto se trata apenas de um mal-entendido.
    mas não será, certamente.
    ainda assim, será preferível abster-me a julgamentos.

    agora, a explicação tarda!

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  4. Ainda bem que a Luisa esclareceu esta questão, porque, desde sempre, a mim me pareceu uma "tempestade num copo d'água".
    Eu não defendo Alegre, não concordo com Alegre, não apoio Alegre; mas reconheço que o facto de ele ter obtido uma votação tão expressiva nas presidenciais causa engulhos a muita gente e pode ter contribuído para esta vil tramoia.
    Não defendo Alegre, mas também não defendo (até abomino) Sócrates e não me calei quando foi vítima duma coisa semelhante. Jogo sujo, comigo, não!
    Nestes casos, "o seu a seu dono". Afinal não foi Alegre que decidiu se reformar, se atribuir a reforma ou definiras regras para a atribuição destas reformas...
    Aliás esta história das reformas escandalosas (eu diria: de gangsters) é uma questão que indigna e revolta muita gente, com toda a razão. É uma questão inexplicável, condenável, que já devia ter acabado, a que se deve por fim urgentemente, fixando um limite máximo (não superior a dois mil euros), PARA TODOS, em função do valor mínimo das reformas.
    Mas não são os beneficiários das reformas que são culpados (mesmo que tenham colaborado com as regras de que beneficiam, nenhum deles poderia tê-lo feito sozinho); quem é culpado é o Governo e o Parlamento que continuam a ignorar a questão e a assobiar para o lado, enquanto o erário público se esvai sendo extorquido de todo esse dinheiro usado para "recompensar" o mau desempenho destas pessoas que ajudaram a afundar o país. Em vista da situação desastrosa que o País vive, não há ninguém que possa invocar merecer reformas escandalosas que estão a comprometer ainda mais o futuro das actuais novas gerações, já tão penalizadas pela desastrosa actuação de toda essa gente...

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